quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Apresentação d'Os Fugitivos de Alcatraz, por Pierre Rissient

Escape from Alcatraz (1979) de Don Siegel


por João Palhares

Vindo dos chamados de duros Clint Eastwood e Don Siegel, ditaria o bom senso ou a história oficial do cinema falar-se de relógios suíços e de cronómetros e de planos estudados e científicos, que serão sem dúvida as razões que tornam Escape from Alcatraz uma experiência alucinante e muitíssimo envolvente mas que talvez estejam longe de esclarecer totalmente o mistério deste filme sobre tantas prisões e sobre tantas liberdades. 

Quando se vê o filme pela primeira vez é a destreza da exposição e da disposição das cenas e dos planos que nos apanha desprevenidos. Passa uma hora e a obsessão por cada acção dos prisioneiros prende-nos numa enorme rede de cumplicidade. As belas simetrias da narração e que vão da mais óbvia, o facto do filme começar com a entrada na prisão de Alcatraz e acabar com a saída, a primeira sob a água da chuva e a segunda sobre a água do mar; passando pela apresentação e pela despedida de Frank Morris e English, as personagens de Clint Eastwood e Paul Benjamin com ambos a chamarem-se de “boy” ou pelos encontros do mesmo Morris com o brutamontes Wolf, que entra na solitária na primeira metade do filme e sai na segunda. E ainda as mortes de ‘Doc’ e de Litmus em momentos chave do filme e também simetricamente dispostas. 

Na segunda vez que se vê o filme repara-se numa flor que parece simbolizar a liberdade: um belo apontamento, pensamos nós, estes prisioneiros representam uma opressão mais profunda e que também nos diz respeito. Na figura do director prisional vemos a opressão e pensamos então nos horrores de Alcatraz: os suicídios, as mortes de presidiários pelas mãos de outros presidiários ou pelas mãos de guardas, as mortes de guardas, os castigos na solitária, os massacres de vários prisioneiros em fuga e a repressão constante que dá no desespero absoluto de certos prisioneiros (a auto-mutilação de ‘Doc’ é baseada na de Rufe Persful, nos anos 30). Ficamos do lado de Morris e de ‘Doc’ e de English, incondicionalmente, e começamos a reparar ainda em pequenas coisas mostradas com enorme sensibilidade: o rato pequeno de Litmus, a que ele dá de comer e que vai a todo o lado com ele, resgatado depois por Morris quando o dono morre; as visitas da mulher de Charley Butts e da filha de English, mais coisa de olhares e de gestos do que de conversas propriamente ditas (que, de resto, são escutadas pelos guardas da prisão); os quadros de ‘Doc’; a ajuda prestada por quem nem sequer pensa em fugir da ilha mas que, de certa maneira, foge com eles e associa a fuga a um ataque directo à prepotência diária de Alcatraz. E vemos a flor a flutuar nas ondas da manhã, com o director atónito e uma mensagem, no fim do filme, que nos diz que a prisão fechou pouco tempo depois. A misteriosa fuga destes três prisioneiros abalou as fundações dum sistema e Don Siegel, Clint Eastwood e Richard Tuggle perceberam isso muito bem. Bem como que quando assim é, não são só as instituições que vêem o seu funcionamento posto em causa, mas há algo que muda bem fundo nas almas e nos corações dos homens. 

E à terceira, ouvimos que a flor é um crisântemo plantado há quinze anos por ‘Doc’ e por Litmus e que significa muito para eles. Logo a seguir, vemos o director a tentar destruí-lo e a provocar a morte do segundo. Mas até na aridez e no inferno de Alcatraz há algo que floresce, uma liberdade e tenacidade humanas inabaláveis que nem o director consegue perturbar: ‘Doc’ e Litmus saem de Alcatraz através do crisântemo e do rato, que vão com Morris. A pintura e o trabalho de ‘Doc’, outra tentativa de fuga, tornam-se indissociáveis da que levam a cabo os três “fugitivos de Alcatraz”, que fazem modelos das suas caras e da conduta de ar das suas celas e as pintam. Os quadros de ‘Doc’, particularmente o do próprio Director, incomodam-no porque se vê finalmente a si próprio e com as verdadeiras cores e não gosta, o retrato reaviva-lhe a consciência e não o suporta. Percebe também que dali, dessa demonstração de liberdade absoluta, até um motim ou uma fuga vai um pequeno passo e por isso a tenta destruir. E o espírito lutador e a moral certa de Siegel e Eastwood, tantas vezes chamados de fascistas por quem não sabe o que é o fascismo, vêm ao de cima, transformando o que pode parecer só um austero exercício de movimentos e de descrição precisa desses movimentos (à maneira de Fleischer, Henry Hathaway ou Robert Bresson, que fez esse Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (1956) com que o filme de Siegel faz uma óptima parelha) num grito contra a brutalidade e a crueldade humanas. E ainda assim há imensa coisa por explicar e por perceber.

“O vento sopra para onde quer”...

domingo, 27 de novembro de 2016

36ª sessão: dia 29 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Continuando as grandes linhas de força, cruzamentos e heranças do cinema americano, John Cassavetes apreciava muitíssimo Don Siegel, de quem também era amigo e serviu como actor. Garra, pressão, adaptação, carga física. Totalmente consanguíneos, cada um com a sua temperatura. 

O filme que iremos ver esta semana, Escape from Alcatraz, tem como actor principal Clint Eastwood, o grande continuador do método de trabalho e da moral de Siegel. Instinto, simplicidade formal e profundidade humana. Jamais impor o brilhantismo técnico à personagem ou à situação. Escape, uma das obras finais de um insuperável artesão lacónico, é uma típica história de prisão e de fuga, mas tudo é absolutamente transcendido na acção detalhada, na paciência de Job e no desenrolar do tempo. Enfim, uma compressão e consequente gravidade explosiva que rebenta as costuras clássicas. Duro e cada vez mais surpreendente. 

Pierre Rissient, velha raposa da cinefilia que conheceu e conhece de perto estes homens, gravou-nos um vídeo de apresentação. 

Sam Peckinpah - assistente de Siegel em vários filmes - em Don Siegel and Me, descreveu o realizador de Dirty Harry como "um artesão dedicado e diligente, Don era maníaco na sua batalha contínua contra a autoridade estúpida de estúdio. Ele ficava e fica constantemente espantado com a idiotice da nossa indústria, ficando ainda encantado pela sua competência e profissionalismo. Eu percebi que podia ser considerado na última categoria quando, depois de ver um dos meus programas na TV, ele se virou e murmurou, Não és assim tão bom!"

Já Chris Fujiwara escreve (sobre Riot in Cell Block 11 e Don Siegel) que "o cinema de Siegel é marcado pelo desejo de se atirar de cabeça, dar o tudo por tudo, deitar tudo fora. O seu compromisso em filmar pura energia é anunciado cedo em Riot in Cell Block 11 com a fuga dos prisioneiros mais perigosos das celas deles, seguida da sua libertação dos outros, que, uma vez livres, destroem os seus quartos instintivamente, atirando camas e mobílias para o piso inferior da ala prisional. Momento de anarquia que lembra Zéro de ­conduite de Jean Vigo, a cena ressoa as revoltas contemporâneas incipientes: o movimento dos direitos civis, o rock and roll. Algo da libertação é transmitido, também, pela escolha dos actores do filme: tantos actores condenados a continuar subutilizados em papéis pequenos, estereotipados têm aqui uma oportunidade para mostrar o que conseguem fazer (Neville Brand, Robert Osterloh, e particularmente Emile Meyer). Aparentemente possuídos pela necessidade de exprimirem finalmente as suas personalidades, os actores dão-nos interpretações de força não regenerada.

"Ao longo da sua carreira, Siegel foi atraído pelas situações extremas, estados de excepção que revelam a verdade sobre as condições supostamente normais que interrompem. O roubo da arma do polícia pelo criminoso em Madigan (1968); a fuga do suspeito em Coogan’s Bluff (1968); o reino de terror do assassino em Dirty Harry (1971); a posse de dinheiro da Máfia impossessível pelos assaltantes de bancos em Charley Varrick (1973) constituem todos estados de excepção desses. E Riot é um exemplo ideal. O motim, e a tomada de reféns em particular, cria uma situação limite, caracterizada pela suspensão das regras. Quem manda torna-se uma questão: é o guarda prisional, o representante do governo, a polícia, a legislatura, “o povo”? Todos estes exercem um certo poder, ou são imputados a ter poder, em algum momento durante o impasse."

Finalmente, Clint Eastwood, o actor principal do filme, depois de falar sobre a influência de Siegel na sua obra e sobre o seu método de trabalho em entrevista a Michael Henry Wilson, elogiando a sua rapidez e engenho, disse que "a temperança dele influenciou-me de certeza. Em Fuga de Alcatraz [Escape from Alcatraz, 1979], fui eu que o persuadi a filmar nas galerias por onde se deu a fuga. Porquê gastar 100 mil dólares para construir um cenário? Don sabia exactamente quais planos ia filmar, mas não era rígido. Acontecia ele mudar ou acrescentar um plano no último momento. Trabalhei com realizadores que ficavam completamente desconcertados se a gente sugerisse uma mudança na interpretação de uma cena."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

John Cassavetes, por Adriano Aprà

The Killing of a Chinese Bookie (1976) de John Cassavetes



por João Palhares

John Cassavetes é difícil de situar ou descrever, de enquadrar numa corrente ou num movimento. “Não papava grupos”, como diz muitas vezes o José Lopes, actor do Adeus Lisboa que vimos no início deste ano - antes de Stagecoach, se bem se lembram. Quando o achavam perto do cinema underground, fazia Too Late Blues, quando o achavam perto do cinema de Hollywood fazia Faces e baralhava as contas todas outra vez. Talvez se possa dizer, então, que foi sempre fiel à sua stock company, como John Ford antes dele e como Pedro Costa, uns anos depois. Perto da mulher, Gena Rowlands, de Seymour Cassel, Peter Falk, Val Avery, Elizabeth Deering, Fred Draper, John P. Finnegan e de Ben Gazzara, que interpreta Cosmo Vittelli no filme de hoje, The Killing of a Chinese Bookie, de Al Ruban (produtor, mas também actor, montador e director de fotografia), Bo Harwood (música, som), Sam Shaw (produtor, cenógrafo) ou de Phedon Papamichael (direcção artística), fazia filmes de que não se conseguia distanciar e, portanto, mergulhava totalmente nas cenas, nos locais e nos corpos que os percorriam, fazendo dos mais belos retratos do amor e da amizade dos anos setenta e oitenta. 

Juntava ainda a estes actores renegados selvagens como Timothy Carey e Lawrence Tierney (vindos das trincheiras da série B e dos biscates em produções maiores, sempre em conflitos e sempre com muitos problemas, onde trabalharam com André De Toth, William Wellman, Elia Kazan, Delmer Daves, Stanley Kubrick, Phil Karlson, Gordon Douglas, Robert Wise, Richard Fleischer ou Cecil B. DeMille), mulheres não menos selvagens como modelos e playmates, actrizes de filmes de Russ Meyer (Haji) e bailarinas de casas de striptease (Donna Gordon e Alice Friedland), e por isso a vida entrava nos seus filmes e por isso se justificavam os movimentos de câmara ansiosos, o grão da imagem e os sons não trabalhados, brutos e violentos. John Cassavetes atirava-se de cabeça para cada filme, não procurava efeitos nem associava correntes de pensamento contemporâneas à técnica dos seus filmes, não escrevia manuais de instruções para críticos e espectadores (como se faz muito, agora). Não, saía tudo dele, instintivamente, e para o bem e para o mal. Do coração e do fundo de si, fiel às famosas palavras de Samuel Fuller, ditas em Pierrot le Fou (1965) de Jean-Luc Godard: “o cinema é como um campo de batalha: Amor. Ódio. Acção. Violência. Morte. Numa palavra, emoção.” 

Donna Gordon falou em entrevista do seu encontro com Cassavetes para entrar em Bookie. Disse que "era uma bailarina num clube de strip em Hollywood chamado “The Classic Cat” e uma amiga minha – Alice Fredlund – também na indústria (e que acabou por interpretar “Sherry” no filme) estava a trabalhar num clube mesmo no fundo da rua chamado “The Body Shop”. No meu dia de folga a Alice telefonou e disse que um realizador qualquer chamado John Cassavetes vinha ao “The Body Shop” procurar raparigas para entrar num filme novo para que ele estava a escolher actores. Sem reconhecer o nome dele nem acreditar nela, já que me tinha pregado partidas no passado, coisas como: o agente do Dustin Hoffman me querer ver, etc, pensei “que se foda”. 

“Quando cheguei ela levou-me com ela. Apresentei-me a alguns homens numa mesa, e pensei que se fosse uma partida pelo menos ia ter uma bebida ou duas de graça. Estava o John Cassavetes e acho que o actor Seymour Cassel também. Quando o John me deu um guardanapo com o número de telemóvel dele, e me disse para lhe telefonar por causa do filme, eu só pensei: “Está bem, está”. Mas peguei nele, enfiei-o na minha mala, disse obrigado, e pus-me a caminho. 

“Uns dias depois estava em Las Vegas numa festa com algumas celebridades. Alguém me perguntou se tinha amigas bonitas que se quisessem juntar à festa, portanto telefonei à Alice em L.A. Ela disse-me que não podia vir porque se estava a preparar para entrar no filme do John Cassavetes e que se eu não dissesse nada iam escolher outra pessoa. Com relutância decidi arriscar. Voltei para L.A e pela primeira vez a Alice estava a dizer a verdade.” 

Sobre Cassavetes, disse: “Se eu na altura soubesse tanto sobre ele como sei agora, tenho a certeza que estaria muito mais nervosa ou com “pânico do palco”. Eu não sabia que ele era um realizador independente inovador e não fazia ideia que era actor, sequer. Não tinha visto Rosemary’s Baby ou The Dirty Dozen nem nenhum dos outros filmes dele (que me lembrasse, pelo menos), portanto para mim ele era só um realizador... mas diferente da maioria dos tipos de Hollywood, não era “dress for success”. 

“Quando vi o John pela primeira vez parecia que tinha acordado num banco de jardim. Até lhe disse que precisava de se barbear e comprar roupa nova. E acho que ele gostava da minha honestidade ingénua. Costumo falar das coisas como elas são. E se vir Bookie, vai ver que a minha personagem é muito brusca e um bocado “cabra”. Ao princípio não gostava desse aspecto da “Margo”, mas agora percebo que a faz destacar-se dos outros.” 

Sobre os ensaios antes da rodagem, disse: “Estávamos todos a ler do guião, a passar pelas nossas falas, e acho que para o John parecia muito construído. Chegou ao pé de mim, pegou no meu guião, atirou-o para o fundo da sala, agarrou-me pelos ombros e gritou: “Quero que seja verdadeiro... quero a Donna verdadeira!

“Apesar de intenso, o John era muito doce, e compreendíamo-nos um ao outro. Ele sabia que tinha passado por muito na minha vida; tinha muita dor e era dura como uma pedra por causa disso. E acho que ele percebeu que a minha vida intensa se ia canalizar na personagem.” 

Muitas citações e muitas aspas mas que, pelo menos, nos ensinam que o cinema não tem que ser vida de estrela nem de connects ao mais alto nível mas pode ser uma "arte do encontro", como dizia o outro. Por aí, pela madrugada e por Braga, porque não?

sábado, 19 de novembro de 2016

35ª sessão: dia 22 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Sobre John Cassavetes se pode dizer que perseguiu um único tema: o amor. Por ele movido e trucidado a sua câmara tanto tremeu, torcendo-se e contorcendo-se, caindo e levantando-se, perdendo-se e encontrando-se nesse violento embate com a morte, a raiva, o carinho, confiança e desconfiança, todos os temas que gravitam no coração do homem. Máquina de filmar conectada literalmente à sua carne e ao seu sangue, aos seus nervos e ao seu espírito, olhando todos e mais alguns abismos. Nada para ele importava mais do que os seus actores, e obcecado com Gena Rowlands, com Ben Gazarra ou com Peter Falk, tentou entender e dar razão a milhões de outros seres frágeis e únicos. Tão contraditório como certo. 

Sobre The Killing of a Chinese Bookie, a nossa próxima sessão, disse: «Este é um dos filmes que mais me interessou. Parte do desafio foi imaginar um mundo contido em si mesmo, diferente daquele em que vivo, mudar-me para ele e nele viver. O Cosmo Vitelli é um homem que diz querer viver com estilo e confortavelmente. Mas para Cosmo, o conforto significa viver no fio da navalha. Ele dirigiu um clube que não é dele durante sete anos. Mas o reinado dele é uma farsa sustentada apenas por encontros mensais com um agiota. Este filme diz-me algo. Podemos vender tudo sem pensar duas vezes... Até as nossas vidas». 

A anteceder o filme teremos um vídeo onde o crítico e historiador Italiano Adriano Aprà (Adriano “Vitelli” Aprà para os amigos) nos falará sobre o grande cineasta Americano.

Sérgio Alpendre, que nos apresentou Cleopatra e Cecil B. DeMille no início do ano, escreveu sobre a obra de Cassavetes a propósito duma mostra no Cinesesc, dizendo que o realizador é "um mestre da subtileza. Os seus filmes, especialmente os mais pessoais - além dos que o Cinesesc exibe, pode-se incluir nessa turma Maridos (Husbands, 1970), Tempo de Amar (Minnie & Moskowitz, 1971) e Amantes (Love Streams, 1984) – são cheios de pequenas nuances reveladoras dos personagens, ou, antes, das pessoas. Essas pessoas são retratadas, geralmente, em situações limite, que fazem com que elas estejam sempre à flor da pele, e sejam tão indefiníveis quanto as pessoas que vemos no dia-a-dia, que fazem parte das nossas vidas. Essa proximidade com pessoas que conhecemos, ou com as quais convivemos, em maior ou menor grau, já garante uma empatia imediata com os seus filmes. Mesmo que de início eles se mostrem um tanto cruéis e misóginos, caso de Faces (1968) e Maridos, principalmente; ou inclinados demais por um sadismo pouco explicado, Uma Mulher Sob Influência, Noite de Estreia; ou ainda internos demais, completamente compreendidos apenas por iniciados em artes, Noite de Estreia e A Morte de um Apostador Chinês; ou demonstrem uma soberba irritante, Gloria, de 1980, no qual a personagem-título desdenha, de um elevador do prédio em que mora, o menino pobre, no fim revelam muita riqueza de observação. Revelam também uma disposição generosa para entender as mais pequenas fagulhas de revolta ou de ódio, as  demonstrações de humanidade mais irrisórias, mas não uma humanidade de manual, com gestos enobrecedores e compreensão assombrosa, mas uma humanidade calcada na vivência, no sofrimento e no gozo diários. É gente de carne e osso que aparece diante da câmera de Cassavetes. E é por isso que nos sentimos tão bem ao ver os seus filmes."

Continua, dizendo que "Maridos sedimentou praticamente o esquema de realização de Cassavetes, com muita liberdade ao actor, e duas ou três câmaras para captar todos os movimentos. Depois de filmar muitas horas de material, Cassavetes monta o filme respeitando o tempo dos actores, e das emoções que eles fazem aflorar na tela. É um tipo de montagem pouco convencional, com cortes bruscos, ausência completa de didáctica espacial (sem que a nossa noção do espaço seja prejudicada), uma aceleração constante dos acontecimentos contrastando com o tempo cadenciado no interior dos planos. Graças à sua maneira de montar os filmes, e de pensar a mise en scène como algo revelador dos seus personagens, além da sua tendência em extrair dos movimentos de câmara e dos tempos de corte verdadeiros retratos de almas, Cassavetes foi reconhecido como um inventor de formas. Graças a essa invenção constante de formas, os personagens de Cassavetes apresentam-se com muitas facetas, como num retrato cubista. O aspecto formal faz, assim, uma ligação perfeita com o conteúdo dos seus filmes."

Sobre o filme da próxima Terça-Feira, escreve que "A Morte de um Apostador Chinês (The Killing of a Chinese Bookie, 1976) e Noite de Estreia (Opening Night, 1978) marcam o regresso de um amigo querido ao cinema de Cassavetes, Ben Gazarra, um dos protagonistas de Maridos. Ele interpreta o protagonista de A Morte, um dono de clube nocturno que para saldar dívidas tem que matar o personagem do título. É um filme ensaísta, que versa sobre a passagem do tempo, as decisões que contrastam com o desejo do protagonista e o excitante e decadente mundo nocturno, com as suas mulheres performativas e os seus homens sedentos de carinho, afeição e sexo."

Finalmente, Jim Jarmusch escreveu uma carta aberta a John Cassavetes, em que disse e confessou que "Fico com uma sensação especial quando estou prestes a ver um dos seus filmes–uma antecipação. Não importa se vi o filme antes ou não (por este momento acho que os vi todos pelo menos várias vezes) fico com essa sensação na mesma. Estou à espera de qualquer coisa que pareço precisar, uma espécie de iluminação cinematográfica. Como fã de cinema ou como cineasta (realmente, já não há uma linha divisória clara para mim) estou a antecipar um golpe de inspiração. Quero iluminação formal. Preciso que me sejam reveladas as consequências secretas de um jump-cut. Quero saber como é que a crueza dos ângulos de câmara ou o grão do material fílmico figuram na equação emocional. Quero aprender sobre interpretação com os desempenhos dos actores, sobre atmosfera com a luz e os locais. Estou pronto, totalmente preparado para absorver a “verdade a vinte-e-quatro-frames-por-segundo.”

"Mas o que acontece é o seguinte: logo que o filme começa, me apresenta o seu mundo, eu estou perdido. A expectativa dessa iluminação específica evapora. Deixa-me lá no escuro, sozinho. Agora habitam seres humanos no mundo dentro do ecrã. Também parecem perdidos, sozinhos. Eu olho para eles. Observo cada detalhe dos seus movimentos, das suas expressões, das suas reacções. Ouço com atenção o que cada um está a dizer, as bordas desgastadas do tom de voz de uma pessoa, o mal escondido no ritmo do discurso de outra. Já não estou a pensar em interpretação. Estou abstraído do “diálogo.” Esqueci-me da câmara.

"A iluminação que antecipei de si está a see substituída por outra. Esta não convida a análise ou a dissecação, só a observação e a intuição. Em vez de ideias sobre, digamos, a construcção de uma cena, começo a ficar iluminado em relação às nuances ardilosas da natureza humana.

"Os seus filmes são sobre amor, sobre confiança e desconfiança, sobre isolamento, alegria, tristeza, êxtase e estupidez. São sobre inquietação, embriaguez, resiliência e luxúria, sobre humor, teimosia, falhas de comunicação e medo. Mas, sobretudo, são sobre amor e levam-nos para um lugar muito mais profundo do que qualquer estudo sobre “forma narrativa.” Sim, é um grande cineasta, um dos meus favoritos. Mas o que os seus filmes esclarecem de forma mais pungente é que a celulóide é uma coisa e que a beleza, a estranheza e a complexidade da experiência humana é outra.

"John Cassavetes, tiro-lhe o meu chapéu. Estou com ele por cima do meu coração."

Até Terça!

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

The Conversation (1974) de Francis Ford Coppola



por João Palhares

To be invisible 
Will be my claim to fame, 
A man with no name. 
That way, I won't have to feel the pain.” 

Curtis Mayfield, em To Be Invisible 

Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul.” 

Jean de La Bruyère - epígrafe de The Man of the Crowd de Edgar Allan Poe 

Vimos do negrume de The New Centurions (exibido por nós a semana passada) para o negrume do filme de hoje: The Conversation. Já estamos apresentados, seguramente, ao mundo destroçado dos homens que tentam fazer a coisa certa num meio sufocante, esmagador e que desafia qualquer explicação e qualquer remédio. E embora não precisemos de filmes para conhecer esse meio e esse mundo (para isso basta olhar à nossa volta), já vimos o xerife Calder abandonar a cidade de Bubber Reeves desfigurado por dentro e por fora em The Chase, já vimos o asfalto tornado morada eterna quando recebeu o corpo do agente Wintergreen em Electra Glide in Blue, já vimos o crime e a cidade a corroer os espíritos de Kilvinski e de Roy em The New Centurions e veremos hoje a estranha aventura de Harry Caul, personagem interpretado por Gene Hackman e atormentado por questões relacionadas com a sua vida privada e com a convivência normal com os outros mas que, muito ironicamente, tem como trabalho invadir a privacidade das pessoas.

É difícil saber com toda a certeza se o mundo está tão diferente do que era e do que foi, se é tão mais difícil perceber e dar um sentido, nos dias que correm, às coisas que se passam à nossa volta. Pensando que se disse que os filmes, hoje em dia, têm que ser muito mais longos para contarem o mesmo que contava um filme muito curto e habilmente condensado de Edgar G. Ulmer, Jack Arnold ou Jacques Tourneur dos anos 40 e 50 (foi Jacques Rivette quem o disse), ou que é muito mais difícil decidir e saber o que é bom e o que é mau pela quantidade de poeira que nos deitam para os olhos todos os dias (foi o fotógrafo Paulo Nozolino quem o disse), que atrás de nós estão anos de história e aumenta a cada dia que passa a nossa herança cultural, os nossos traumas civilizacionais, e se amontoam dentro de nós novos conhecimentos, informações e saber. Tal como o universo, que se expande e parece ocultar proporcionalmente os seus mistérios, também a alma e a mente humanas parecem fazer percurso semelhante, mas para o interior. As cidades crescem e o homem refugia-se em si mesmo e remete-se à solidão. Voltamos aos Cadernos do Subterrâneo de Dostoievski, voltamos a Bartleby e às resoluções vazias no prédio em ruínas... Se prestarmos atenção talvez lá encontremos Harry Caul, o homem que quer estar só sem estar mesmo só.

Francis Ford Coppola falou de Franz Kafka, Hermann Hesse e Michelangelo Antonioni como bases para o seu The Conversation e o impermeável transparente de Harry, os passeios dele entre a multidão, a bela melodia ao piano de David Shire e a repetição obsessiva do plano do beijo de Cindy Williams a Frederic Forrest (que lá para o fim do filme já toma contornos abstractos e metafísicos) parecem confirmar estas influências. Confirmam, também, poder falar-se nestas questões de mundos em mudança, de homens a reagir à dispersão da informação e do conhecimento, especializando-se nos seus campos respectivos. Presos ao trabalho e imersos nos seus processos como o David Hemmings* de Blow Up com as suas fotografias e o próprio Harry com as suas fitas e os seus microfones, vêem e ouvem a mesma coisa horas e dias a fio até começarem a ver e a ouvir coisas diferentes, desafiando a sua própria sanidade. O filme de Coppola mostra isso com uma nuance genial na frase que a personagem de Gene Hackman encontra escondida na imensa paisagem sonora que capta no início do filme - a “conversa” do título original. Frederic Forrest diz a Cindy Williams que “he’d kill us if he got the chance” e as ramificações e as consequências possíveis dessa frase são exploradas ao limite ao longo do filme.

Claro que tudo isto se enquadra numa trama policial perfeitamente lógica, que Harry Caul é alguém que se tornou assim por se apegar demais a pessoas que vigiou uma vez em Nova Iorque, com resultados traumáticos. Volta a fazê-lo com estes jovens de quem forma uma ideia demasiado construída e que é verdade apenas na sua cabeça, porque não se conhece ninguém ouvindo meia dúzia de palavras trocadas numa praça cheia de gente. Quando descobre a verdade, é tarde demais. Pela repetição constante das frases e das imagens dessa conversa na praça podemos até assumir que ele próprio se projecta no jovem interpretado por Frederic Forrest, querendo amar e cuidar da mulher interpretada por Cindy Williams, como vemos no sonho dele e na reprodução integral da conversa quando acaba a festa e ele expulsa toda a gente do seu armazém menos a assistente do seu rival, em quem vê um duplo da mulher da conversa.

No final, no apartamento em ruínas que parece emular o de Bartleby, consuma-se a loucura de Caul, orgulhoso demais para se deixar vencer no seu terreno e para sempre preso nos interstícios mais ínfimos e insignificantes dessa conversa. No último plano repetido do beijo dos jovens assassinados tornados assassinos percebemos mesmo que há verdades que não se deixam revelar a si mesmas. E pensamos em Edgar Allan Poe, quando inaugura o seu The Man of the Crowd com este parágrafo desesperado:

“It was well said of a certain German book that "er lasst sich nicht lesen" --it does not permit itself to be read. There are some secrets which do not permit themselves to be told. Men die nightly in their beds, wringing the hands of ghostly confessors, and looking them piteously in the eyes --die with despair of heart and convulsion of throat, on account of the hideousness of mysteries which will not suffer themselves to be revealed. Now and then, alas, the conscience of man takes up a burthen so heavy in horror that it can be thrown down only into the grave. And thus the essence of all crime is undivulged.” 

Não andamos longe do “The horror! The horror!” de Conrad.

Hemmings aparece também em Profondo Rosso de Dario Argento que tem muitos pontos em comum com os filmes de Antonioni e Coppola bem como com o Blow Out de Brian De Palma.

sábado, 12 de novembro de 2016

34ª sessão: dia 15 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Realizado entre as duas primeiras partes do monumental fresco familiar da saga O Padrinho, e antes da demência irracional de Apocalipse Now, O Vigilante é um "pequeno" filme de Francis Ford Coppola que vai ao osso de todas as questões da guerra oficial e da guerra privada, da casa e do mundo, do barulho e do silêncio sufocantes. 

Pequeno, intimista, sussurrado, mas avassalador na dimensão paranóica que assola o protagonista Gene Hackman e mais amplamente uma América estilhaçada na sua representação e nos seus augúrios. 

A imagem em rota de colisão com o som, o que se escuta a contradizer o que se vê, as certezas a desvanecerem-se no ar do tempo triste, cansado e sem rumo. Almas sangradas e matéria doente, o horror, como no inclassificável quadro final.

Um filme muito especial, a nossa próxima sessão e uma das obras preferidas do seu autor, junto a The Rain People. Sobre a génese do filme, Coppola disse a Brian De Palma (que faria mais tarde um filme que deve muito ao de Coppola, Blow Out) que "este projecto começou de forma diferente de outras coisas que fiz, porque em vez de o começar a escrever movido por algo emocional - a identidade emocional de pessoas que conheci - comecei-o como uma espécie de puzzle, coisa que nunca fiz e que penso que nunca mais vou fazer.

"Por outras palavras, começou como uma premissa. Eu disse, "acho que quero fazer um filme sobre espionagem e privacidade, e quero que seja sobre o tipo que a faz e não sobre as pessoas a que é feita." Depois algures no caminho tive a ideia de usar a repetição, de expôr novos níveis de informação não através da exposição mas da repetição. E não como Rashomon em que se apresenta isso de maneiras diferentes a cada passo - deixá-las ser as mesmas linhas de diálogo mas ter novos significados em contexto. Por outras palavras, à medida que o filme avança, o público alinha com ele porque se está constantemente a dar-lhes as mesmas linhas de diálogo que já tinham ouvido, mas quando eles sabem um bocado mais sobre a situação vão interpretar as coisas de maneira diferente. Essa era a ideia original."

Jean Tulard, no Dictionnaire du Cinéma - Les Realisateurs, descreveu a obra de Coppola como "um cinema à escala dos Estados Unidos. Filho do maestro e compositor Carmine Coppola, apaixonado por cinema desde 1948, ao ponto de filmar mesmo filmes amadores em 16mm, aprendeu os métodos de trabalho moderno com Roger Corman que era produtor e realizador ao mesmo tempo, e que se esforçava por reunir jovens cineastas em torno de si. Rapidez e eficácia eram as palavras de ordem de Corman para quem Coppola rodará vários filmes em segunda unidade bem como Dementia 13 (...) Em 1968, estabelece-se em Los Angeles e funda a American Zoetrope onde trabalha uma nova geração: Scorsese, Milius, Lucas; depois, em 1971, cria com Bogdanovich e Friedkin a Director's Company. O seu primeiro sucesso, O Padrinho, renova o tema do filme de gangsters. Dá uma sensação de esmagamento e tédio, em relação ao livro, e, sobre o tema da Máfia de bandos antigos, é lícito preferir A Mão Negra de Thorpe ou Pay or Die de Richard Wilson. Tal não foi a opinião do público. Coppola dará ao seu Padrinho uma continuação que parece mais incisiva e mais controlada. No intervalo, rodou um filme muito moderno quanto ao seu tema e ao seu tratamento: O Vigilante. O gosto de Coppola pela desmesura explode com Apocalypse Now, adaptação - muito distante do original - de um romance de Conrad transposta para a guerra da Indochina. Duma perfeição técnica raramente alcançada, esta obra impressiona mais pela qualidade da imagem e do som que pelo carácter visionário e as intenções - ambíguas, aliás - que Coppola desejou lá pôr. Esse continua a trabalhar no sentido de um aperfeiçoamento de técnicas e a preparar o cinema de amanhã, ou seja o cinema electrónico. Descobre Abel Gance em 1980 e faz projectar o seu imortal e sempre jovem Napoléon nos Estados Unidos, com uma orquestra de 60 músicos para o acompanhar, com música de Coppola pai. Encontram-se assim dois pioneiros que não conheciam o significado de moderação. Deixando a desmesura, Coppola oferece dois filmes sobre a juventude delinquente, Outsiders e Rumble Fish, de um tom mais próximo das obras de Borzage e que são ambos muito bem conseguidos. Regresso ao gigantesco com Cotton Club, crónica dos anos 30, um dos filmes mais caros da história do cinema. Gardens of Stone dá-nos o revés da guerra do Vietname: o regresso dos restos mortais e a cerimónia fúnebre. Um filme admirável que se re-descobrirá, de resto como a biografia exemplar de um construtor de automóveis: Tucker. As suas dificuldades financeiras obrigam-no a rodar uma terceira versão do Padrinho. E talvez seja a melhor com um final deslumbrante na ópera. Prova que ele não perdeu nenhum do seu talento."

Finalmente, Jean Douchet, que nos apresentou Marnie em Julho e esteve em Portugal a convite do Festival de Cinema de Lisboa e do Estoril esta semana para apresentar vários filmes de Jean-Luc Godard, escreveu no 494º número da L'Avant-scène du cinéma que "O Vigilante é, sem qualquer dúvida, um dos maiores filmes de Francis Ford Coppola e certamente um dos menos conhecidos. Produção completamente independente, rodada na sequência do sucesso do Padrinho, o filme foi considerado durante muito tempo como um desses admiráveis opus menores de um autor habituado às obras-primas de grande orçamento. Graças a este novo lançamento, os jovens cinéfilos voltarão a pô-lo no seu verdadeiro lugar no seio da filmografia de Coppola - um dos primeiros."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

The New Centurions (1972) de Richard Fleischer


por José Oliveira

The New Centurions é um dos mais belos e comoventes filmes alguma vez feitos sobre a amizade. Logo, uma dolorosíssima visão sobre os trabalhos e a fatalidade da solidão. Se acompanhamos grupos de polícias na cidade dos anjos que escalda, metodicamente e detalhadamente, o que vai sendo cada vez mais apurado e vincado é o tempo a actuar. Amizade, solidão, e logo o medo... porque as coisas passam, envelhecem, desaparecem, tanto a paisagem como as pessoas. E chega a morte, que é a do inesperado final de Roy Fehler, e perfeitamente esperado pois tanto ele como o seu mestre - ou o seu pai, irmão, esse anacrónico e artista Kilvinski que soube desde sempre que a melhor das leis é a do interior - acreditaram demais e amaram demais o que porventura já assim não pode ser sentido pois demasiado já aconteceu por estas terras desde tempos demasiado remotos que vão ser evocados aquando das mais negras dúvidas. Amaram demais e viciaram-se demais no que lhes tocou em sorte, na missão sanguínea, e as duas tornaram-se indestrinçáveis. Quando julgaram que poderiam começar a afastar-se e a viver os contos de fadas que sempre puseram em perspectiva, tombaram. O mais triste dos contos, com a moral que Kilvinski não se lembra na hora do seu apagamento - no mais secreto e justo dos planos sacrificiais - e o mais alegre, num mundo onde em tão violentas crostas e cheiros todos parecem ser igualmente bons, muitas das vezes anjos - ou todos terem as suas razões - todos menos esse mercenário que explora os trabalhadores mexicanos e que arranca do bom Kilvinski a mais enraivecida das justiças. Justiça, que será outra dos centros e demandas, precisamente, sacrificiais. 

Faz sentido que a dupla Irwin Winkler e Robert Chartoff tenha pegado no projecto e o tenha acarinhado tanto como acarinharia os contos Caprianos da saga Rocky ou outras produções com Robert De Niro em deslize, parecendo ser coisas destas em ligação a Paraísos Perdidos o que realmente lhes interessa. Como as afeições alvas de Frank Borzage ou os miminhos das irmãs Gish nos Griffiths, como Pat Garrett & Billy the Kid, Scarecrow ou o Ed Wood de Tim Burton para todo esse amador genial, Richard Fleischer cria, na aparência do género policial cinematográfico com que Kilvinski goza a certa altura para efeitos de realismo e verdade, um grande ciclo que vai do nascimento e aprimoramento ao fim, deixando entrever nas bordas os eternos-retornos e mais uma vez os princípios dos fins. É assim que quando um verde agente diz aos experientes que apenas quer fazer o bem, só obtém destes silêncio, e medo, e muita estupefacção de quem reconhece tais traços e crenças e possivelmente já destino. Numa cena que corta e monta para outros trabalhos, os do casal com Roy que ainda não sabe controlar esse tipo de amor. 

Como Kilvinski, homens sempre à deriva num mar turvo que lhes promete a terra firme, mar de onde não poderão sair pois só nele se espraiam realmente. Um veterano que recolhe as prostitutas da rua e as protege, oferecendo-lhes whisky e leite e tratando-as como rainhas, que se delicia no que elas têm de genuíno e de júbilo em comparação com as aparências do bem e do normal, ficando muitas saudades de ambas as partes, tem obrigatoriamente, na podridão circundante que teima em velar o brilho do mundo, de ser castrado. Que o seu discípulo lhe siga os passos mesmo que o contradiga perto da hora negra por ter descoberto outro tipo de ilhas, são as linhas e os caminhos da tragédia que este filme é. 

Tragédia que Fleischer tece sem exaltações mas como sempre muito naturalmente, muito humanamente. Não imita nada, não copia ninguém, não vai buscar a cinematografias alheias ou a fatos à medida de outras artes ou sociologias, mas observa, toma o pulso, segue, tenta perceber ou aceita o que assim tem de ser. Kilvinski nunca pôde dizer ao seu filho que parasse aquela rotina estupefaciente e voltasse para o lar, mesmo quando esse tocou nas matérias do outro mundo; assim como voltou ao antigo local de trabalho depois do retiro oficial, à sua única família, sem nada para fazer como uma criança que exulta e suplica por brincar com os outros garotos. Essa suspensão, esse calamento. E é este o movimento capital destes Centuriões modernos e de todos os que acreditam numa coisa em algum tempo e lugar, no que quer que seja, na sua arte, até ao fundo, sem freios - a solidão, a saudade que afinal é universal. Faltando o tudo a que se agarrou, não se tendo as bóias ou as margens alternativas, morre-se facilmente.  

É assim, sem efeitos ou enfeites. Secamente. Ao osso. O olhar vazio, a tal moral. 

(texto inédito e que será publicado na próxima edição da Foco – Revista de Cinema)



por João Palhares

Eis-nos chegados e atracados a Richard Fleischer, poeta silencioso das fileiras da RKO, maestro imperturbável mas discreto do grande espectáculo a partir das 20,000 Leagues Under the Sea (1954). Só que rotulá-lo e decifrá-lo, se não é impossível (e bem me quer parecer que sim), é muito difícil. Resta olhar para os seus filmes com vontade de os ver, e arriscar atirar frases e parágrafos na esperança (ou ilusão) de se chegar a algum lado. É o que aqui se vai tentar fazer. 

“Even the romans had centurions to keep the peace. And they were unsupported, unhonored, disliked, just like us. But they held the line, for a while… until Rome was finally overrun by barbarians.” Esta frase aparece a meio do grandioso (do belíssimo, do estratosférico, do…) The New Centurions (1972), dando algumas luzes sobre o que por lá se passa, quando Kilvinski (o personagem de George C. Scott), poucos meses depois da reforma, regressa de uma terrivelmente elíptica estadia em casa da filha e da neta e passa um bocado tão preciso com o antigo colega e amigo, Roy Fehler (o fabuloso Stacy Keach), depois de tantas rondas, turnos e patrulhas partilhadas nas ruas de Los Angeles. Só eles, que viram os olhares estilhaçados das vítimas, horrores domésticos, pesadelos durante a noite, acordados, ora sóbrios ora bêbados, é que percebem que se podem mudar todas as leis para melhorar as percentagens e sondagens do crime – que servirão para ganhar eleições e a adulação barata de certo povo e de certas elites -, “but they can’t get rid of evil”. Eles nunca ouviram falar da “Kilvinski’s law”, que pode também levar o nome de “consciência” e implica saber chegar a um quarteirão com ar de favela e perceber que às vezes é quem é respeitável que tem a culpa no cartório. Como saber que não é preciso levar ninguém para a esquadra certa noite, bastando pagar uma garrafa de whisky e leite às putas que enchem a carrinha da polícia e pedem – só uma o pede, de forma belíssima – palmadas no cu para para ela subirem, contando histórias de banhos de leite macabros em Beverly Hills, decapitações de galinhas feitas só pelo receio de não agradar ao cliente… Acabar a noite a tomar o pequeno-almoço num diner qualquer, sabendo que foram o álcool e os cigarros e as palmadas e os favores oferecidos a esta gente que tornaram as ruas seguras por mais um dia… Sem quotas de encarceramentos, sem vistos nas folhas de apreensão, sem adições no registo criminal. Como manda aquele bichinho na cabeça que tanto importuna ao cair do dia, no breu das várias noites possíveis (das noites do caçador às noites na alma) a perguntar que parte fizemos nós nesta coisa redonda a que chamamos mundo. 

É o mundo de tanta película que rodou, projectou e disparou, serena à volta das mesmas paisagens. De Electra Glide in Blue (1973), de Fort Apache, the Bronx (1981), de Colors (1988) e do tão próximo de nós – só 9 anos nos separam dele -, We Own the Night (2007). As mesmas dúvidas, as mesmas tristezas, os mesmos azares, a mesma solidão, as mesmas viagens ao fundo da alma, as confissões e monólogos regados a whisky que antes nem às paredes se confessavam. Tudo para “hold the line” e “in the line of duty”. 

E entre as tantas prodigiosas sequências deste prodigioso filme, falo agora só de uma, deixando de fora a do hospital, quando Fehler é atingido no estômago e dispara as suas confissões ao amigo Kilvinski, que fora até ali pai e é agora irmão; deixando de fora a do tiro involuntário do polícia ainda verde que se desfaz em pranto à frente do decano parceiro de patrulha que lhe diz que teria feito o mesmo na mesma situação; deixando de fora a da perseguição nos túneis que apagam toda a luz e toda a coragem; e que dizer dos encontros lindíssimos de Fehler com a enfermeira e que abrem caminho para o terrível “Can’t happen now, I was beginning to know…” e para o “Santa Maria, madre de Dios, ruega señora, ruega por nosotros. Ahora y en la hora de la nuestra muerte. Amén” do Sergio de Erik Estrada, que é protagonista de outras tantas prodigiosas sequências? Falo então do plano extraordinário sobre George C. Scott que, pela sua discrição, nem se julga à primeira vista de tanta duração. Conta ele a história de um homem que telefona todos os dias à esquadra de polícia porque está alguém no alpendre. Conta que chegava lá e não via ninguém, mas confortava o homem fingindo que tinha expulsado esse alguém, até ao homem telefonar no dia seguinte e Scott fazer o mesmo que tinha feito no dia anterior. Que será feito desse homem, pergunta ele a Fehler. E a câmara aproxima-se, aproxima-se e sondam-nos os abutres fantasmas dos “dont’s” e das leis da conversa no bar de strip e da filha e da neta de Kilvinski e do polícia reformado que também tem que visitar a esquadra e arranjar um emprego para não ver ninguém no alpendre de sua casa. Volta-se aos grandes monólogos de grandes filmes, num só plano na cara de grandes actores que contam histórias de fins do mundo e nos contaminam só com o seu olhar e com a sua voz… Presos nos olhares e nas vozes, não reparamos em absoluto se há cortes ou se se passa o quê ou o que quer que seja, a não ser aquele pesar na voz e aquele arrependimento de se ter testemunhado novos tempos a destronar outros tempos, novos tempos se calhar nem piores nem melhores, mas em que não há lugar… 

E, “well, here’s to the New Centurions. Let’s hope they do a better job than the old ones.” 

(texto publicado no site À Pala de Walsh, a 17 de Dezembro de 2013)

sábado, 5 de novembro de 2016

33ª sessão: dia 8 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Do discreto poeta que dá pelo nome de Richard Fleischer (a quem João Bénard da Costa chamou "o realizador do Balouço Vermelho" num muito bonito texto com o mesmo nome) e fazia filmes desde os anos 40, que desde essa altura tinha assinado coisas tão belas como Banjo, Follow Me Quietly, These Thousand Hills, Barabbas ou The Last Run (entre muitas outras grandes e pequenas maravilhas), The New Centurions é o filme que vamos exibir esta Terça-Feira.

Filme nocturno e realista, dará seguimento às questões melancolicamente colocadas em Electra Glide in Blue, filme que exibimos o mês passado. Também sobre polícias, também sobre solidão, também sobre a decadência de valores e da própria sociedade como um triste todo, sentida por quem a olha de muito perto e sofre por dentro.

Claro que nada disto é contado e mostrado como uma oposição simples entre bons e maus valores, mas sim como uma rede complexa de acções e relações. Pois como o próprio Richard Fleischer admitiu à revista espanhola Film Ideal em 1964, "eu não gosto das pessoas que fazem tudo bem, que levam a cabo feitos como se nada fosse. Não acredito que essas pessoas existam no mundo. Gosto de destruir essa pequena ilusão que o público tem de que somos todos ou muito bons ou muito maus. Somos todos um mistura louca de ambas as coisas, e é bom que o público se dê conta dessa realidade."

Para ficarmos por Espanha, Jesús Cortés, que em Março nos apresentou Phantom Lady, escreveu no seu blog que "Poucos filmes do seu tempo o contêm todo.

"Pode-se pensar que era a sina desses anos, em que soavam trovões porque se anunciava uma boa tempestade depois do verão.

"Olhando para a música que passava na rádio, lá estavam as melodias desconcertantes de Transformer, as feias New York Dolls olhavam lascivamente de um sofá, chegava como um boomerang a grande resposta "negra", directamente do continente onde tudo começou, There's a riot goin' on, explodiam sombria ou animadamente Raw power e Maggot brain... mas também floresciam, incólumes, os Tapestry, All the young dudes, American beauty, #1 Record ou Grievous angel.

"Nalgum lugar privilegiado e suficientemente alto para poder entrever ambos os lados da barricada está The new centurions."

No Dictionnaire du Cinéma - Les Films, Jacques Lourcelles escreveu (revelando cenas importantes do filme - deixamos o aviso): "Baseado no romance de Joseph Wambaugh, antigo sargento da polícia de Los Angeles, é um dos filmes policiais mais originais e mais carregados de significado do cinema americano dos anos 70. Fleischer não procura, como Don Siegel com Dirty Harry, criar um novo herói nem cultivar o espectacular. Realista, documental, o filme tenta mostrar o mais concretamente possível a degradação da vida nas cidades e a desmoralização resultante em certos polícias, incapazes de cumprir o seu ofício e conciliar o cumprimento das regras com o controlo da realidade. O veterano mal acredita no seu ofício, mas depois de alguns meses de reforma não consegue suportar a inactividade (e comete suicídio num plano-sequência sublime), enquanto que o seu colega cumpre a sua missão como um desafio permanente que, por fim, irá perder. O pessimismo do filme é profundo e especialmente mais convincente por se exprimir num classicismo perfeito da mise en scène, por uma sucessão de episódios variada cuja balança moral e humana se revela tragicamente negativa. No plano de fundo da acção, há a decadência de uma civilização, tema privilegiado de Fleischer, captado aqui com uma espécie de consciência patética do nada que, melhor do que qualquer discurso que seja, afunda o espectador na inquietação e na perplexidade. Fleischer escolheu como intérpretes dois dos melhores actores do momento, Stacy Keach e George C. Scott, grandes artistas em vez de stars. Tornado ainda melhor pela sua associação, as interpretações deles atestam uma credibilidade realista e um pendor de sobriedade bastante impressionantes. A vontade do realizador em circunscrever o detalhe da acção mais de perto e com uma mobilidade extrema obrigou a equipa técnica, que trabalhava apenas em exteriores reais, a executar proezas, especialmente de iluminação. Invisíveis enquanto tais, elas contribuíram grandemente para dar ao filme a sua força concreta e trágica. Ralph Woolsey descreveu-as num artigo da « American Cinematographer », setembro de 1972, a grande revista americana dedicada aos aspectos técnicos da criação cinematográfica."

Até Terça!