E o mais belo e aflito filme do enorme realizador alemão Douglas Sirk, The Tarnished Angels, chega a Braga na próxima Terça-Feira, dia 31. Filme em que não é possível esquecer a arrebatada, desesperada e comovente personagem de Burke Devlin, interpretada por Rock Hudson. É ele quem se vai interessar pelos perdidos com causa que se entregam às mais indizíveis paixões, sacrificando tudo pela redenção absoluta e assim com vista para o abismo mais fundo. Um dos mais belos personagens de todo o cinema.
O filme será antecedido por uma apresentação em vídeo por Mário Jorge Torres, grande especialista em Sirk e literatura americana, gravada especialmente para a ocasião.
Sirk, quando questionado por Jon Halliday em Sirk on Sirk sobre a origem do título do filme, respondeu que "foi pensado por alguém no meio do departamento de vendas da Universal. É bom. Pylon não funciona como título. Eu lembro-me que quando o andava a mostrar por aí, as pessoas diziam sempre, 'O que é este título Pylon? Soa a qualquer coisa relacionada com electricidade.' Zugsmith (o produtor) queria chamar-lhe Sex in the Air - embora quando Zuckerman (o argumentista) lhe disse que se ia chamar The Tarnished Angels, a primeira reacção de Zugsmith foi 'As camas são na terra, não no céu.'"
Tag Gallagher, crítico americano conhecido principalmente pelos seus livros sobre John Ford e Roberto Rossellini, mas que também se debruçou sobre as obras de Edgar G. Ulmer, Samuel Fuller, King Vidor ou Max Ophüls, escreveu que "só há dois temas em Sirk: personagens que impõem com sucesso as suas Vontades apesar da dor (melodrama branco), e personagens que são dominadas pelas suas Vontades, que como Fausto se vendem à ânsia (melodrama negro)." E que "o melodrama branco e o negro colidem em The Tarnished Angels. O seu trio faustiano ambulante trocou as almas por uma espécie de cio permanente, um delírio de estar com o cio: Jiggs (Jack Carson) a perseguir LaVerne (Dorothy Malone) a perseguir Roger (Robert Stack) a perseguir a própria ânsia, sentindo-se todos culpados e rejeitados. LaVerne está viciada em fazer o que não quer fazer: saltos de pára-quedas. Quando Roger (“Um homem conquistado pela máquina voadora, um homem sem sangue nas veias”) se auto-destrói (como Kyle e Fedor, mas imitando um herói), o impulso de imitação de LaVerne é atirar-se a si mesma para as mãos de Satanás."
"Mas agora Burke (Rock Hudson), o repórter alcoólico quase engolido pela orgia negra deles, canaliza a sua ânsia por LaVerne para desejos mais nobres. Confrontado com as contínuas rejeições de LaVerne e as afrontas ao seu orgulho e à sua pessoa, Burke re-afirma persistentemente o triunfo da Vontade, como Dean Hess ou Thérèse. Graças a ele The Tarnished Angels, que como There's Always Tomorrow (1956) e Summer Storm pareciam ser sobre um homem incerto que anda em círculos, acaba por ser a parábola duma mulher que encontra outra vez a sua Vontade pelo bem. "No crime como no amor só existem os que fazem e os que não se atrevem."
E Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão mais próximo de Sirk e que tinha por ele a mais profunda das admirações, escreveu que "The Tarnished Angels (1958) é o único Sirk a preto e branco que consegui ver. É o filme em que teve mais liberdade. Um filme incrivelmente pessimista. É baseado numa história de Faulkner que infelizmente não conheço. Aparentemente Sirk profanou-a, o que lhe fica bem.
"O filme, como La Strada, mostra uma profissão moribunda, só que não de uma forma tão pretensiosa. Robert Stack foi piloto na Primeira Grande Guerra. Nunca quis fazer mais nada senão voar, e por isso é que agora participa em festivais aéreos onde circunda pilones. Dorothy Malone é a mulher dele; ela faz demonstrações de saltos de pára-quedas. Mal conseguem viver. Robert é corajoso mas não sabe nada sobre máquinas, portanto tem um mecânico, Jiggs, o terceiro na equipa deles, que está apaixonado por Dorothy. Robert e Dorothy têm um filho, que Rock Hudson conhece quando está a ser gozado pelos outros aviadores: 'Quem é o teu pai hoje, miúdo? Jiggs ou . . . .' Rock Hudson é um jornalista que quer escrever uma obra fantástica sobre estes ciganos do ar que têm gasóleo de cárter nas veias em vez de sangue. Acontece que os Shumanns não têm sítio nenhum onde ficar portanto Rock Hudson convida-os para sua casa. Durante a noite Dorothy e Rock conhecem-se um ao outro. Temos a sensação que estes dois teriam muita coisa a dizer um ao outro. Rock perde o trabalho dele, um dos aviadores despenha-se na corrida, é suposto Dorothy prostituir-se a si própria por um avião uma vez que o de Robert avariou. Rock e Dorothy afinal não têm assim tanta coisa para dizer um ao outro, Jiggs repara um avião avariado, Robert vai nele para cima e morre.
"Mais nada a não ser derrotas. Este filme não é nada senão uma acumulação de derrotas. Dorothy está apaixonada por Robert, Robert está apaixonado por voar, Jiggs também está apaixonado por Robert, ou é Dorothy e Rock? Rock não está apaixonado por Dorothy e Dorothy não está apaixonada por Rock. Quando o filme nos faz acreditar por um momento que estão, na melhor das hipóteses é uma mentira, mesmo quando ambos pensam por alguns segundos, talvez . . . ? Então perto do fim Robert diz a Dorothy que depois desta corrida vai desistir de voar. Claro que isso é exactamente quando morre. Seria inconcebível que Robert se pudesse envolver com Dorothy em vez da morte.
"A câmara está sempre em movimento no filme; exactamente como as pessoas andam às voltas, finge que está mesmo alguma coisa a acontecer. Na verdade está tudo tão acabado que mais valia desistir toda a gente e deixarem-se enterrar. Os travellings no filme, os planos de grua, as panorâmicas! Douglas Sirk olha para estes corpos com tanta ternura e brilho que começamos a pensar que alguma coisa deve estar errada por estas pessoas serem tão perturbadas e, ainda assim, tão gentis. O que está errado prende-se com o medo e a solidão. Raramente senti tanto o medo e a solidão como neste filme. O público senta-se no cinema como o filho dos Shumanns no carrossel: podemos ver o que está a acontecer, queremos chegar-nos à frente e ajudar, mas, pensando no assunto, o que é que um miúdo pequeno pode fazer perante um avião em queda livre? São todos culpados pela morte de Robert. É por isso que Dorothy Malone fica tão histérica, depois. Porque sabia. E Rock Hudson, que queria um furo. Logo que o consegue começa a gritar com os seus colegas. E Jiggs, que não devia ter reparado o avião, senta-se a perguntar 'Onde é que está toda a gente?' Pena que nunca tenha notado que nunca houve mesmo ninguém. Estes filmes são sobre a maneira como as pessoas se enganam a si próprias. E porque é que tens de te enganar a ti próprio. Dorothy viu Robert pela primeira vez numa fotografia, um poster dele como piloto corajoso, e apaixonou-se por ele. Claro que Robert não era nada como a fotografia dele. O que é que se pode fazer? Enganares-te a ti próprio. Aí está. Dizemos a nós próprios, e queremos dizer-lhe a ela, que não tem obrigação de continuar, que o amor dela por Robert não é mesmo amor. Qual seria o objectivo? A solidão é mais fácil de aguentar se mantivermos as nossas ilusões.
"Aí está. Eu acho que o filme mostra que isto não é assim. Sirk fez um filme em que há acção contínua, em que está sempre qualquer coisa a acontecer, a câmara está sempre em movimento, percebemos imenso sobre a solidão e como ela nos faz mentir. E quão errado é que mintamos, e quão estúpido."
Até Terça-Feira!
"Mas agora Burke (Rock Hudson), o repórter alcoólico quase engolido pela orgia negra deles, canaliza a sua ânsia por LaVerne para desejos mais nobres. Confrontado com as contínuas rejeições de LaVerne e as afrontas ao seu orgulho e à sua pessoa, Burke re-afirma persistentemente o triunfo da Vontade, como Dean Hess ou Thérèse. Graças a ele The Tarnished Angels, que como There's Always Tomorrow (1956) e Summer Storm pareciam ser sobre um homem incerto que anda em círculos, acaba por ser a parábola duma mulher que encontra outra vez a sua Vontade pelo bem. "No crime como no amor só existem os que fazem e os que não se atrevem."
E Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão mais próximo de Sirk e que tinha por ele a mais profunda das admirações, escreveu que "The Tarnished Angels (1958) é o único Sirk a preto e branco que consegui ver. É o filme em que teve mais liberdade. Um filme incrivelmente pessimista. É baseado numa história de Faulkner que infelizmente não conheço. Aparentemente Sirk profanou-a, o que lhe fica bem.
"O filme, como La Strada, mostra uma profissão moribunda, só que não de uma forma tão pretensiosa. Robert Stack foi piloto na Primeira Grande Guerra. Nunca quis fazer mais nada senão voar, e por isso é que agora participa em festivais aéreos onde circunda pilones. Dorothy Malone é a mulher dele; ela faz demonstrações de saltos de pára-quedas. Mal conseguem viver. Robert é corajoso mas não sabe nada sobre máquinas, portanto tem um mecânico, Jiggs, o terceiro na equipa deles, que está apaixonado por Dorothy. Robert e Dorothy têm um filho, que Rock Hudson conhece quando está a ser gozado pelos outros aviadores: 'Quem é o teu pai hoje, miúdo? Jiggs ou . . . .' Rock Hudson é um jornalista que quer escrever uma obra fantástica sobre estes ciganos do ar que têm gasóleo de cárter nas veias em vez de sangue. Acontece que os Shumanns não têm sítio nenhum onde ficar portanto Rock Hudson convida-os para sua casa. Durante a noite Dorothy e Rock conhecem-se um ao outro. Temos a sensação que estes dois teriam muita coisa a dizer um ao outro. Rock perde o trabalho dele, um dos aviadores despenha-se na corrida, é suposto Dorothy prostituir-se a si própria por um avião uma vez que o de Robert avariou. Rock e Dorothy afinal não têm assim tanta coisa para dizer um ao outro, Jiggs repara um avião avariado, Robert vai nele para cima e morre.
"Mais nada a não ser derrotas. Este filme não é nada senão uma acumulação de derrotas. Dorothy está apaixonada por Robert, Robert está apaixonado por voar, Jiggs também está apaixonado por Robert, ou é Dorothy e Rock? Rock não está apaixonado por Dorothy e Dorothy não está apaixonada por Rock. Quando o filme nos faz acreditar por um momento que estão, na melhor das hipóteses é uma mentira, mesmo quando ambos pensam por alguns segundos, talvez . . . ? Então perto do fim Robert diz a Dorothy que depois desta corrida vai desistir de voar. Claro que isso é exactamente quando morre. Seria inconcebível que Robert se pudesse envolver com Dorothy em vez da morte.
"A câmara está sempre em movimento no filme; exactamente como as pessoas andam às voltas, finge que está mesmo alguma coisa a acontecer. Na verdade está tudo tão acabado que mais valia desistir toda a gente e deixarem-se enterrar. Os travellings no filme, os planos de grua, as panorâmicas! Douglas Sirk olha para estes corpos com tanta ternura e brilho que começamos a pensar que alguma coisa deve estar errada por estas pessoas serem tão perturbadas e, ainda assim, tão gentis. O que está errado prende-se com o medo e a solidão. Raramente senti tanto o medo e a solidão como neste filme. O público senta-se no cinema como o filho dos Shumanns no carrossel: podemos ver o que está a acontecer, queremos chegar-nos à frente e ajudar, mas, pensando no assunto, o que é que um miúdo pequeno pode fazer perante um avião em queda livre? São todos culpados pela morte de Robert. É por isso que Dorothy Malone fica tão histérica, depois. Porque sabia. E Rock Hudson, que queria um furo. Logo que o consegue começa a gritar com os seus colegas. E Jiggs, que não devia ter reparado o avião, senta-se a perguntar 'Onde é que está toda a gente?' Pena que nunca tenha notado que nunca houve mesmo ninguém. Estes filmes são sobre a maneira como as pessoas se enganam a si próprias. E porque é que tens de te enganar a ti próprio. Dorothy viu Robert pela primeira vez numa fotografia, um poster dele como piloto corajoso, e apaixonou-se por ele. Claro que Robert não era nada como a fotografia dele. O que é que se pode fazer? Enganares-te a ti próprio. Aí está. Dizemos a nós próprios, e queremos dizer-lhe a ela, que não tem obrigação de continuar, que o amor dela por Robert não é mesmo amor. Qual seria o objectivo? A solidão é mais fácil de aguentar se mantivermos as nossas ilusões.
"Aí está. Eu acho que o filme mostra que isto não é assim. Sirk fez um filme em que há acção contínua, em que está sempre qualquer coisa a acontecer, a câmara está sempre em movimento, percebemos imenso sobre a solidão e como ela nos faz mentir. E quão errado é que mintamos, e quão estúpido."
Até Terça-Feira!