quarta-feira, 28 de setembro de 2016
Ulzana's Raid (1972) de Robert Aldrich
por João Palhares
Sabia-se pelo menos desde Fort Apache (1948), filme extraordinário do John Ford de Stagecoach (que vimos em Janeiro deste ano), entrevisto nessas brumas míticas que faziam os apaches de Cochise desaparecer do campo de batalha, que os Índios tinham muito mais que se dissesse do que o que se fazia passar na maior parte dos filmes, que alguns eram guerreiros orgulhosos, cruéis e estrategas geniais, que sabiam quais eram as fraquezas dos colonos que os expulsaram e enfiaram em reservas governamentais - não por serem mais fortes e corajosos mas sim por serem em muito maior número - e que eram um povo ligado pelo sangue à natureza e às suas tradições, capaz de as defender até à morte. No seguimento deste novo interesse pelos Índios (particularmente pelos Apaches) e até Ulzana's Raid, o que se via em Ford através das brumas foi-se dissipando em filmes como Apache Drums (1951) de Hugo Fregonese, Escape from Fort Bravo (1953) de John Sturges ou Garden of Evil (1954) de Henry Hathaway, obcecados com processos e estratégias militares Índias e em que o respeito e o medo dos colonos e dos soldados americanos para com eles se iam confundindo e entrelaçando numa rede complexa de relações que, com o passar dos anos, só se intensificou, tentando ir no caminho da compreensão.
Em The Last Wagon (1956) de Delmer Daves, a personagem de Richard Widmark ('Comanche' Todd), que cresceu entre Índios, avisava os sobreviventes de um ataque dos Apaches que não podiam enterrar os seus mortos porque senão os nativos ficavam a saber que havia sobreviventes e atacavam. Também em Ulzana's Raid os valores cristãos e a boa consciência são aproveitados e explorados pelo pequeno exército de bravos de Ulzana num jogo de recuos e investidas fabuloso na extensão do Oeste. Dizem que o verdadeiro Ulzana percorreu 1.800 quilómetros quando escapou da reserva em que o puseram. Mas Alan Sharp, argumentista deste filme e também de Night Moves (1974) de Arthur Penn, falando de inspirações reais para o guião disse que “além de ser a minha homenagem sincera a Ford... uma tentativa de exprimir alegoricamente a malevolência do mundo e o terror que os mortais sentem diante dela. Todos temos as nossas próprias noções do que constitui o medo derradeiro, de fobias pessoais a períodos na história... As três paisagens históricas que me fazem estremecer mais ao pensar nelas são o Terceiro Reich, a Turquia durante a Primeira Grande Guerra e o Sudoeste Americano durante os anos 1860-86... Em Ulzana's Raid não pretendo apresentar uma análise fundamentada da relação entre os aborígenes e o colonizador. Os acontecimentos descritos no filme são exactos no sentido de terem equivalentes factuais, mas a consideração final foi apresentar uma alegoria em cujas características aumentadas pudéssemos distinguir os contornos do nosso próprio drama, caricaturado, mas não falseado... O Ulzana de Ulzana's Raid não é o Apache Chiricahua da história, cuja incursão foi mais demorada e impiedosa e ousada do que aquela sobre a qual eu escrevi. Ele é a expressão da minha ideia do Apache como o espírito da terra, a manifestação da sua hostilidade e aspereza.”
Estranho nenhum a esta expressão do Apache como “espírito da terra”, Robert Aldrich tinha filmado Apache (1954) nos anos 50, também com Burt Lancaster, de que Ulzana's Raid será a transposição ou reinvenção mais próxima da verdade histórica. Nesse filme, era Lancaster o Índio revoltado que deixava a reserva igual a tantas reservas injustas e precárias espalhadas pela América fora, cada vez mais pequenas e atulhadas, e que empurravam o Índio para o pé de batalha. Questionado sobre as diferenças entre os dois filmes, Aldrich respondeu que “em Apache não havia nenhum homem branco para falar da força e da integridade do Índio. Havia apenas uma afirmação por Índios e sobre Índios que se auto-justificava. Em Ulzana, esperava que por ter Lancaster a falar pelos Índios se tivesse um ponto de vista experiente e educado sobre a cultura deles e o que isso significava. Funcionou, mas não para o público. Sentavam-se e sabiam do que é que ele estava a falar mas não se relacionaram emocionalmente com isso. Não sabem se ele é o herói ou o vilão. Têm pena de o ver morrer mas não percebem mesmo se ele representa o bem ou o mal.”
Como os filmes citados de Fregonese, Sturges e Hathaway, Ulzana's Raid também se debruça sobre tácticas, movimentações e emboscadas, descrevendo-as com o vigor e a frieza necessárias. Apache Drums mostrava o cerco de Apaches Mescaleros a uma cidade, obrigando os habitantes a refugiarem-se numa igreja fria durante grande parte do filme, o que permitiu ao realizador argentino e a Val Lewton, o produtor (responsável, nos anos 40, por uma revolução dentro dos filmes de terror através das suas produções para a RKO, realizadas por Jacques Tourneur, Robert Wise e Mark Robson), levar a cabo belas experiências com a luz e com a tensão (os Índios são invisíveis, estamos sempre em interiores e do lado dos colonos mas sem nunca deixar de perceber o que se passa lá fora, num efeito e numa tensão que não são nada fáceis de produzir); Escape from Fort Bravo dá-nos a ver um trajecto bem parecido com o do filme de Aldrich, que envolve um grupo de soldados da União e da Confederação, em plena Guerra Civil, presos numa ravina e rodeados de invasores que os atacam de forma lenta e calculada, ilustrada pela realização segura de Sturges, que no ano seguinte faria um filme extraordinário, Bad Day at Black Rock, e depois não fez mais nada que se comparasse; Garden of Evil talvez se sirva dos Índios, que são muito secundários, para falar de outros medos e de outras forças, como muitos dos filmes atormentados dos anos 50, mas Hathaway não resiste a filmar os ataques e as investidas com a força e energia necessárias, como tantas vezes na sua carreira.
Como The Last Wagon e outros filmes de Daves, ou o belo Run of the Arrow (1957) de Samuel Fuller, Ulzana's Raid subverte as regras do western clássico ao desfazer por duas vezes, por exemplo, o mito do milagre e da beleza do som do clarim da cavalaria em terras inóspitas como som da salvação de último minuto (como se vê, por exemplo, e com belos efeitos, em tantos filmes de Cecil B. DeMille), que acabam por levar à morte um fazendeiro e por deixar Ulzana escapar. Ou os actos cristãos que separam regimentos e facilitam os ataques de Ulzana (“divide et impera” já vem do Latim). É algures por aqui que Ulzana's Raid se insere, belo western de movimentos e desvios estratégicos onde se enfrenta uma força que é tão antiga como a Terra e a simboliza. Não se pode odiar o deserto por não ter água, diz-se a dada altura no filme. Bastavam estes pensamentos difíceis e justos para colocar Ulzana's Raid na grande tradição deste género maior, mas como Sam Peckinpah, que quando fez Pat Garrett & Billy the Kid confessou não conseguir descartar por completo o mito, quando tinha um argumento de Rudy Wirlitzer documentado e pesquisado o suficiente para destruir por inteiro a imagem de Billy, Aldrich também se perde em momentos líricos como aqueles em que Ulzana e McIntosh dão o último suspiro, perdendo-se também nas brumas de Ford e em certos mistérios que, por tudo o que se faça, hão-de continuar mistérios.
Ainda bem.
sexta-feira, 23 de setembro de 2016
28ª sessão: dia 27 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30
Ulzana's Raid, western fabuloso de Robert Aldrich com um muito atento e muito cauteloso Burt Lancaster, que interpreta um profissional desencantado e amargurado incumbido de seguir a pista do Índio Ulzana, é a nossa próxima sessão. Lançado numa altura em que o western dava os últimos suspiros como género, o filme olha de novo para as histórias de formação, expansão e consolidação da América como país tentando dar novas luzes e sentidos novos às complexas relações raciais entre índios e colonos.
A anteceder o filme, teremos uma apresentação em vídeo por Marlon Krüger, crítico brasileiro formado em Cinema pela UFSC em 2012. Trabalhou em curtas-metragens, organizou mostras e sessões pelo Cineclube Rogério Sganzerla e redigiu textos críticos para a revista Foco e para a revista Contracampo. Pesquisou o cinema de Maurice Pialat no Programa de pós-graduação em Literatura da UFSC.
Robert Aldrich, nos anos 70, era realizador veterano (o seu primeiro filme, Big Leaguer, é de 1953, depois de alguns anos a trabalhar como assistente de realização de Joseph Losey, Jean Renoir e os nossos conhecidos Robert Rossen e Charles Chaplin, entre outros) e conseguiu atravessar essa década com muito sucesso. Como Mulligan, serviu de elo de ligação e de passagem de testemunho entre a Velha e a Nova Hollywood.
Em 1955, em pleno fervor da descoberta de Aldrich pelos Cahiers du Cinéma escrevia-se no número 54 da revista (no Dictionnaire des Réalisateurs Américains Contemporains que vai da página 47 à 63) que era "a descoberta do ano. A sua entrada no cinema tem menos de "sucessão" do que de um autoritário "sai daí que estou a ir" da bola num jogo de bowling. Uma geração atira a outra fora com um vigor em que entram muita insolência, um bocado de bluff, muito talento e uma grande sinceridade. Depois de O Último Apache e The Big Knife, já não se podem ver Zinnemann ou Kazan como os cérebros de Hollywood. No universo de Aldrich respira-se o ar atómico: de Jean Cocteau, Aldrich tem o sentido muito vivo do realismo que surge em ricochete quando menos se espera, e de Orson Welles, a estética ensurdecedora e imperativa, com cada plano, imprevisível, a desafiar as regras, cada cena a maltratar o corte clássico. Se as personagens de Aldrich são estilizadas, o meio em que - de alguma maneira - elas respiram é inventado. As intrigas de Aldrich põem em causa o mundo inteiro e esse mundo pode morrer: Kiss Me Deadly, The Big Knife, ou voltar à vida: O Último Apache, Vera Cruz. Aldrich consegue ainda carregar às costas o velho mundo, pôr o novo no bolso e o lenço dele por baixo: World for Ransom. Para o grande Robert, a mise en scène é um jogo olímpico, a sua carreira faz lembrar uma maratona de carros de corrida e de corrida em patins ao mesmo tempo. É o realizador vivo mais vivo de todos, aquele em que se detecta de antemão o amor ao cinema e o prazer de o fazer."
A anteceder o filme, teremos uma apresentação em vídeo por Marlon Krüger, crítico brasileiro formado em Cinema pela UFSC em 2012. Trabalhou em curtas-metragens, organizou mostras e sessões pelo Cineclube Rogério Sganzerla e redigiu textos críticos para a revista Foco e para a revista Contracampo. Pesquisou o cinema de Maurice Pialat no Programa de pós-graduação em Literatura da UFSC.
Robert Aldrich, nos anos 70, era realizador veterano (o seu primeiro filme, Big Leaguer, é de 1953, depois de alguns anos a trabalhar como assistente de realização de Joseph Losey, Jean Renoir e os nossos conhecidos Robert Rossen e Charles Chaplin, entre outros) e conseguiu atravessar essa década com muito sucesso. Como Mulligan, serviu de elo de ligação e de passagem de testemunho entre a Velha e a Nova Hollywood.
Em 1955, em pleno fervor da descoberta de Aldrich pelos Cahiers du Cinéma escrevia-se no número 54 da revista (no Dictionnaire des Réalisateurs Américains Contemporains que vai da página 47 à 63) que era "a descoberta do ano. A sua entrada no cinema tem menos de "sucessão" do que de um autoritário "sai daí que estou a ir" da bola num jogo de bowling. Uma geração atira a outra fora com um vigor em que entram muita insolência, um bocado de bluff, muito talento e uma grande sinceridade. Depois de O Último Apache e The Big Knife, já não se podem ver Zinnemann ou Kazan como os cérebros de Hollywood. No universo de Aldrich respira-se o ar atómico: de Jean Cocteau, Aldrich tem o sentido muito vivo do realismo que surge em ricochete quando menos se espera, e de Orson Welles, a estética ensurdecedora e imperativa, com cada plano, imprevisível, a desafiar as regras, cada cena a maltratar o corte clássico. Se as personagens de Aldrich são estilizadas, o meio em que - de alguma maneira - elas respiram é inventado. As intrigas de Aldrich põem em causa o mundo inteiro e esse mundo pode morrer: Kiss Me Deadly, The Big Knife, ou voltar à vida: O Último Apache, Vera Cruz. Aldrich consegue ainda carregar às costas o velho mundo, pôr o novo no bolso e o lenço dele por baixo: World for Ransom. Para o grande Robert, a mise en scène é um jogo olímpico, a sua carreira faz lembrar uma maratona de carros de corrida e de corrida em patins ao mesmo tempo. É o realizador vivo mais vivo de todos, aquele em que se detecta de antemão o amor ao cinema e o prazer de o fazer."
Jacques Lourcelles, no seu Dictionnaire du Cinéma, escreveu (e desaconselhamos a leitura a quem ainda não tenha visto o filme): "Um dos raros westerns importantes dos anos 70. Retomando os temas e as personagens de O Último Apache (1954), Aldrich examina aqui, tentando compreendê-las, as crenças, as práticas de crueldade e a « loucura » índias. Estas representam tantos enigmas que os Brancos, no momento do seu combate, nunca tiveram sucesso em as esclarecer inteiramente. Mistério, medo e desencantamento caracterizam uma história extraordinariamente complexa e densa nas suas personagens e na sua mise en scène. Cenas de violência extrema ao lado de tentativas de explicação e de racionalização dos factos mostrados, de acordo com uma alternância já presente na obra-prima de Fuller, Run of the Arrow. Mas aqui ela é conduzida até um paroxismo do desassossego e do desequilíbrio. Esta história exprime a distância extrema que separava as duas raças e que só podia levar à eliminação de uma delas. Fatalismo pessimista e denúncia da incompreensão branca vão de mãos dadas na reflexão do cineasta. E é bem possível que Aldrich torne seu o julgamento amargo de McIntosh (admiravelmente interpretado por Lancaster), o herói deste filme sem heróis. A única coisa que os Índios conheceram do seu adversário foi o encarceramento, a fome e alguns tratados acompanhados por contra-ataques inábeis. A razão sem generosidade dos Brancos triunfa pela força do número (e não certamente pelas suas qualidades de combate) e acentua a violência, a loucura homicida de uma minoria racial coagida a ver a possibilidade de sobrevivência – durante um momento – apenas nessa mesma loucura. Fazendo esse juízo, McIntosh, porta-voz de Aldrich, enrola um último cigarro e deixa-se morrer fora do filme, algures."
Até Terça!
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
Summer of '42 (1971) de Robert Mulligan
por João Palhares
Vindo da televisão como o Arthur Penn de The Chase, Sidney Lumet, o Bob Rafelson cujo influente e belíssimo Five Easy Pieces vimos a semana passada, Larry Cohen, William Friedkin, John Frankenheimer ou Daniel Petrie, trabalhando em séries como Suspense (1949-1954), The Philco Television Playhouse (1948-1955), The Alcoa Hour (1955-1957), Studio One (1948-1958), DuPont Show of the Month (1957-1961) e Playhouse 90 (1956-1960), Robert Mulligan contou que “havia um grupo nosso: Sidney Lumet, Arthur Penn, John Frankenheimer, eu. A ideia cativante por trás da televisão ao vivo nessa altura era contar uma história através de pessoas e linguagem. O diálogo era crucial. Aprendemos todos a lidar com escritores e estávamos todos enraizados na literatura, quer fosse literatura do palco ou só literatura, ponto. Havia um foco enraizado sobre o que era drama e o que não era, o que era narrativa e o que não era, isso não era tão dependente de imagem para imagem. Encaremo-lo: em televisão ao vivo nessa altura tinha que se contar uma história e tinha que ser sobre pessoas, porque não se podia sair para fazer perseguições automóveis. E podia-se pousar uma câmara calmamente num rosto humano, de forma discreta, e deixar algo acontecer. Deus sabe que Ingmar Bergman deu uso maravilhoso a essa técnica simples, honesta. De qualquer maneira, foi essencialmente daí que todos viemos. Historicamente, estávamos a fazer o que tinha que ser feito. É estranho, também, o quão ligados estávamos. Eu trabalhei como assistente do Sidney em três ou quatro programas. O Johnny Frankenheimer trabalhou como meu assistente e foi um assistente maravilhoso e um grande realizador, claro. E Arthur Penn veio de lá, também. Portanto acho que nos damos num círculo comum, compreendemo-nos uns aos outros.”
Em 1957, Mulligan realiza Fear Strikes Out, história de um jogador de baseball que tem que lidar com a bipolaridade e com as esperanças exageradas do pai na sua carreira e no seu sucesso - que já tinha sido adaptada para a televisão num episódio da primeira temporada de Climax! (1954-1958), com Tab Hunter no papel que Anthony Perkins interpretaria no filme. O produtor foi Alan J. Pakula, com quem Mulligan formou uma companhia de produção responsável pela maior parte dos seus filmes até The Stalking Moon (1968), western com Gregory Peck e Eva Marie Saint (nossos conhecidos de David and Bathsheba e Exodus). O primeiro foi To Kill a Mockingbird (1962), conto de amadurecimento com a segregação e a injustiça sulista como plano de fundo e interpretado também por Gregory Peck, ao qual se seguiram Love with the Proper Stranger (1963), passeio urbano de Natalie Wood e Steve McQueen alimentado pelo amor que sentem um pelo outro e em que as ruas tomam vida e se tornam palco de riscos cegos e impulsos belos pela mão de Mulligan, Baby the Rain Must Fall (1965), outro filme com McQueen, em que combate a sua própria natureza enquanto tenta ter sucesso a cantar, a escrever música e também a deixar a bela Lee Remick entrar na sua vida, Inside Daisy Clover (1965), olhar sobre os bastidores de Hollywood nos anos 30 outra vez com Natalie Wood e com Robert Redford nos papéis principais e Up the Down Staircase (1967), retrato realista e sofrido de uma professora acabada de sair da universidade e que dá logo de caras com o mundo, atirando-se de cabeça às feras.
É possível que a segunda parte da carreira do realizador tenha sido eclipsada (injustamente) pelo sucesso de Alan J. Pakula como realizador, à semelhança do que aconteceu por exemplo com Stanley Kubrick e James B. Harris (quem se lembra do segundo?). Colaborando habitualmente com as mesmas pessoas, associado a Pakula (Elmer Bernstein assinou a maior parte das bandas-sonoras, Aaron Stell montou quase todos os filmes, repetiram-se actores, argumentistas, directores de fotografia...) é também possível que se tenha desconfiado da obra posterior de Mulligan por não ter mantido associações e ter trabalhado com diferentes colaboradores ao longo dos anos (ainda assim, convém notar que se agarrou a alguns directores de montagem por dois ou três filmes seguidos). Robin Wood, na entrada de Robert Mulligan e Alan J. Pakula em Cinema – A Critical Dictionary, dissertando sobre a relação entre os dois, escreveu mesmo que “a comparação mais reveladora é entre The Sterile Cuckoo, realizado por Pakula, e Summer of '42 (1971), realizado por Mulligan sem Pakula. Ambos se preocupam com as dores da adolescência, mas onde Mulligan cede facilmente às suas personagens (e, pior, ao seu público), explorando a sua 'fofura', convidando a uma resposta superior e nostálgica ao mesmo tempo, Pakula não satisfaz ninguém nem suaviza nada: não somos encorajados nem a rir de forma condescendente das manias e das inadequações dos seus adolescentes nem a desejar que pudéssemos 'viver tudo outra vez'.” Mas Mulligan não era Mulligan se não se deixasse levar pelas suas personagens, se não lhes prestasse toda a atenção e tentasse perceber o que é que as move.
As corridas desenfreadas e impulsivas das personagens de Mulligan não se esquecem. Seja Reese Witherspoon nos arredores da sua casa no Louisiana, atrás do vizinho em The Man in the Moon (1991), ou Richard Gere a subir as escadas do local de construção onde estão o pai e o tio, carregado de cabos de electricidade e cafés em Bloodbrothers (1978), numa vertigem absolutamente necessária e que tem que ceder à personagem porque é indissociável dela e dos objectivos do filme. A câmara percorre as ruas da cidade da família DeCoco a uma velocidade torrencial no início do filme porque é também a essa velocidade que o jovem tem que tomar as suas decisões. Tal como a personagem de Michael Sarrazin em The Pursuit of Happiness (1970), que tem uma lei que não lhe dá o benefício da dúvida no seu encalço e sente que tem de fugir, ou o Cooper de The Nickel Ride (1974) que tem a máfia atrás dele e também corre e também foge. Sem forçar sequer esta velocidade, o que interessa a Mulligan é observar e acompanhar as personagens durante todo o filme para no fim tirar as suas conclusões, com paciência e generosidade. Privilegia os jovens que têm que crescer em pouco tempo e nesse pouco tempo viver uma vida inteira, fazendo as escolhas que irão moldar as suas vidas desses dias em diante. Natalie Wood, grávida em Love with the Proper Stranger, atrás de Steve McQueen, depois de uma noite juntos e sem que este a reconheça, para que ele assuma as suas responsabilidades; Sandy Dennis a andar pelos corredores atulhados e perigosos de Up the Down Staircase e a tentar fazer alguma coisa de si e dos seus alunos confusos e tanto tempo negligenciados...
É nesse filme, de resto, que a professora dá a ler aos jovens a primeira frase de A Tale of Two Cities, de Charles Dickens, de quem Mulligan confessou ser o maior fã e o provou ao abrir Summer of ’42 com a sua própria voz, como Hermie envelhecido. Diz ele: “for no person I’ve ever known has ever done more to make me feel more sure, more insecure, more important and less significant...” Podia ser “It was the best of times, it was the worst of times...” A dada altura, Mulligan dá-nos a ver esse Hermie inocente a correr pelas cercanias da sua casa e a esmurrar ao vento num plano fabuloso, furioso com nada e com tudo. Até chegar essa cena enorme, bem densa e sem quaisquer palavras na cabana, de noite e de noite na alma, só com o som das ondas e da agulha de um gira-discos já sem música, regada com o whisky e os cigarros que vão enganando a imensa tristeza de Dorothy, que Hermie deixa a fumar e a chorar no alpendre com os olhos postos no mar...
E as dúvidas e a confusão dissipam-se, quando Hermie ouve o amigo a queixar-se por se queixar e percebe que há dores e terrores bem mais horríveis e impronunciáveis do que os que sentem os miúdos...
sábado, 17 de setembro de 2016
27ª sessão: dia 20 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30
A nossa próxima sessão é Summer of '42, filme sobre o crescimento e a perda da inocência de um rapaz na Ilha do Nantucket, que foi também de onde Gordon Pym e Ishmael partiram para as suas aventuras e se tornaram homens em mares revoltosos. Decorrido nos anos 40, mostra ainda as feridas de um país em guerra infligidas em quem fica para trás e sofre em completa solidão. Tudo isto pelos olhos de adolescentes confusos e curiosos que só adultos e recordando é que conseguem dar algum sentido ao que se passou nesse Verão de quarenta e dois.
Para nos apresentar o filme teremos Cauby Monteiro, crítico de cinema, tradutor e colaborador da revista FOCO, que nos gravou um vídeo especialmente para esta sessão.
O realizador de Summer of '42, Robert Mulligan, começou a sua carreira na televisão, realizando episódios de Suspense, Studio One e da aclamada série Playhouse 90, onde trabalharam também John Frankenheimer, Sidney Lumet e Arthur Penn antes de enveredarem pelo cinema. Mulligan nasceu no Bronx e demorou algum tempo a decidir sobre que carreira queria seguir. Como o próprio explicou ao Columbia Daily Spectator, nos anos 70, "demorei tempo a apalpar o terreno. Primeiro pensei que ia ser escritor, depois pintor, depois jornalista, padre. Mantive um diário quando era miúdo, escrevi contos, esse tipo de coisas. Nunca falei disso a ninguém, não mostrei a ninguém, não do mundo de que vim. Bom, talvez tenha mostrado à minha mãe. Mas ninguém da minha família estava no mundo do entretenimento. Iam ver filmes, ouviam a rádio, mas o meu pai nunca passou da escola primária, a minha mãe nunca acabou o liceu.
"Costumava ler muito quando era miúdo. De livros de banda-desenhada a livros livros. Devia ter à volta de doze, treze. A minha tia tinha uma colecção que tenho a certeza que veio de uma oferta de livros qualquer, porque ninguém da minha família lia mesmo. Era uma colecção de Dickens: tudo o que ele escreveu. Li tudo, não sei quantas vezes. Estou convencido de que se Charles Dickens estivesse vivo e de saúde e a viver em Los Angeles, seria o melhor produtor-realizador-argumentista de filmes de sempre. Eu acho que se alguém quer mesmo aprender como contar uma história em imagens, deve ler Dickens. Pelo menos uma ou duas vezes por ano."
Em entrevista ao Film Journal International, durante a rodagem do seu belíssimo último filme, The Man in the Moon, em 1991, Mulligan confessou que quando começou a fazer filmes "era penosamente ingénuo. Não posso falar pelos outros, mas eu era muito convencido, inacreditavelmente confiante, sem munição suficiente no cinto para o justificar. Mas avancei despreocupadamente. Era muito jovem. Queria fazer 32 takes no primeiro dia, e fiz. Estava preparado. Não perdia tempo. Conseguia uma cena em dois ou três takes e, se não conseguisse, então alguma coisa estava mal. Havia aquele sentido de energia, lá. Acho que todos os tipos da TV o tinham. A frase de Paul Newman sobre Sidney (Lumet), de que realiza como se estivesse estacionado em segunda fila, acho que nos descreve a todos. Eu gosto de trabalhar rápido. Gosto de ensaios, montes deles. Quanto mais ensaios tem um actor, mais seguro se torna. Não acredito em actores que se poupam para a luz vermelha. Quero experimentar a interpretação para que saibamos se a cena funciona. Se um actor é como um mergulhador a saltar de uma prancha de mergulho, não quero que ele me diga que consegue fazer o salto mas não o vamos ensaiar. Eu digo que se consegue mergulhar melhor quando se sabe para onde vai. O argumento com que confronto esse tipo de actores é: E as surpresas que podem acontecer quando se sabe para onde se vai? O que é que pode acontecer numa cena além do que é bem comum e óbvio? Eu acho que todos os realizadores de que estivemos a falar tiveram o mesmo sentido de preparação, a capacidade para se sentarem com um actor e o ouvirem a falar sobre o que quer fazer. Mas não falemos demais. Vamo-nos levantar e fazê-lo."
No volume dos realizadores do Dictionnaire du Cinéma, Jean Tulard descreve Mulligan como "uma personalidade sensível e inteligente cuja obra força a estima. Os heróis de Mulligan, já o dissemos, são a maior parte das vezes solitários, desfasados que não se conseguem integrar na sociedade (Steve McQueen em Errando pelo Caminho, o Índio de Emboscada na Sombra, o gangster de The Nickel Ride ou ainda o jovem jogador de baseball de Vencendo o Medo). Mulligan retrata as suas personagens em semi-tons. A sua delicadeza de toque permite-lhe expressar tudo, especialmente no comovente e justamente célebre Summer of '42. Baralhou as cartas uma só vez, criando um clima de violência e de terror pouco habitual nele: inspirando-se num romance de Tom Tryon, assina O Outro, história de dois irmãos gémeos, em que um representa o mal e o outro o bem; um está morto, o outro sobreviveu. Mas qual ? Opondo a doçura das paisagens ao carácter traumático da acção, ligando o imaginário ao real num jogo de interacção encantador, cria um clima de horror inexplicável e de mistério não dissipado, que deixa bem para trás todos os filmes de terror. Os seus últimos filmes decepcionaram e permanecem inéditos em França. Clara's Heart, no entanto, passou na televisão."
Até Terça-Feira!
No volume dos realizadores do Dictionnaire du Cinéma, Jean Tulard descreve Mulligan como "uma personalidade sensível e inteligente cuja obra força a estima. Os heróis de Mulligan, já o dissemos, são a maior parte das vezes solitários, desfasados que não se conseguem integrar na sociedade (Steve McQueen em Errando pelo Caminho, o Índio de Emboscada na Sombra, o gangster de The Nickel Ride ou ainda o jovem jogador de baseball de Vencendo o Medo). Mulligan retrata as suas personagens em semi-tons. A sua delicadeza de toque permite-lhe expressar tudo, especialmente no comovente e justamente célebre Summer of '42. Baralhou as cartas uma só vez, criando um clima de violência e de terror pouco habitual nele: inspirando-se num romance de Tom Tryon, assina O Outro, história de dois irmãos gémeos, em que um representa o mal e o outro o bem; um está morto, o outro sobreviveu. Mas qual ? Opondo a doçura das paisagens ao carácter traumático da acção, ligando o imaginário ao real num jogo de interacção encantador, cria um clima de horror inexplicável e de mistério não dissipado, que deixa bem para trás todos os filmes de terror. Os seus últimos filmes decepcionaram e permanecem inéditos em França. Clara's Heart, no entanto, passou na televisão."
Até Terça-Feira!
quarta-feira, 14 de setembro de 2016
Five Easy Pieces (1970) de Bob Rafelson
por José Oliveira
Mais do que o Vietname e os seus estilhaços em surdina (e este pode ser o filme nuclear sobre essa dor calada, intransmissível e resolutamente cravada como as chagas internas que assolaram uma época), longe ainda das bandeiras da contracultura em voga, dos gritados protestos bélicos ou da estética arty muito lá de casa, Five Easy Pieces escancara lentamente as solidões antiquíssimas reservadas a todos os Homens que as despertem, tacteando as zonas escuras dos Génesis até certos dominadores do mundo moderno; e logo fala do encaixe de cada um em cada espaço e tempo; existência, coexistência e a constante irresolução da nossa condição. Um dos mais doridos lamentos - em filigrana e inscrito nos rostos e movimentos dos seus protagonistas - que o cinema teceu, elevou Jack Nicholson ao patamar dos muito grandes, tratou Karen Black como uma criatura imensamente mais complexa do que a sua aparência pode fazer crer, e acolheu a paisagem Americana como órgão indissociável de todo esse corpo em que mal-estar e horizonte lutam desalmadamente, com as cores e o grão da fabulosa câmara de László Kovács. Bob Rafelson, que admirava Antonioni e os grandes cineastas Europeus da altura, olhou tudo com a humildade de um trabalhador sério a dar no duro (ou tarefeiro sem margem para dúvidas) e com a disponibilidade de um genuíno humanista.
I
Não é preciso andar muito para se perceber que Five Easy Pieces encerra e explana um princípio e uma atitude admirável e corajosa de Robert, o seu protagonista. Alguém que mandou às favas uma vida possivelmente rodeada pela erudição, profundeza e inspiração dessa arte interior da música, que não quis estar onde essas grandes questões estão, que não se acomodou a um previsível conforto. Dos planos de abertura onde Bob Rafelson agarra veementemente as lições estruturais e arquitetónicas do desmesurado meio onde o homem surge inteiro e excelso a par do vivificante, assim como nos mostrou King Vidor, essa relação que esteticamente causa o monumental porque daí advêm, até à forma como abandona o "grande" e se cola a um homem para o sentir, acreditando nessa possibilidade, no seu íntimo, numa espécie de prova de vida e de obliteração de um corpo, percebe-se bem os terrenos perfurados. Bob Rafelson vai filmar progressivamente com ruído e o ruído entre todos os polos que se confundem. A dureza sobre a coluna vertical e o pó no rosto da extração petrolífera contra a dureza que custa arrancar notas do piano – essa questão, esse só aparente antagonismo não se resolverá. Se o filme pode ser um road movie é-o interiormente e assim singularmente, as grandes paisagens e as grandes distâncias serão breves mapas referenciais da procura de um lugar e de uma justificação para uma existência – e que se salvaguarde a meia dúzia de quadros que são pura pintura evocativa, crepuscular, algo que fala com William Turner e Edward Hopper, onde os céus só podem ser testemunhas e poder transformador sobre algo. Céus prenhos, cinzentos, onde o sol pede uma oportunidade. Realismo e evocação, eis o segredo e a prática de quem se entrega ao pulsar e ao risco do mundo e não à teoria fácil. De Los Angeles a Washington e aos lagos gelados é um tiro de espingarda porque para aquele ser todos os lugares são os mesmos assim como nos explicou o igualmente foragido porque muito humano Henry David Thoreau.
Não se está bem na terra do petróleo e rodeado dos sugadores monstros, como não se vai estar grande coisa na grande mansão onde tudo existe em abundância, transgressões incluídas. A mulher mundana do bowling e dos rasgados decotes (Rayette) vai dar tantas certezas e calor como a mulher que se emociona com as representações frias de Chopin. A fuga e rebeldia declarada do acomodamento para a selvageria e para o salve-se quem puder não será orgulho ou bandeira de heroísmo, assim como outrora o dom raro não vingou. A vontade de traição ou de grande conquista excita-o tanto como lhe melhora a disposição uma violenta relação orgástica com a barbie libidinosa já referida. Cantarem os casais despidos depois de um dia de trabalho igual ao anterior e ao seguinte ou uma filosófica tertúlia, sem diferença. Como o enternece tanto os discursos ecologistas que se podem ouvir quando se dá boleia ao desconhecido como os pedantes discursos sobre a humanidade condenada. A bruteza e a delicadeza dele, o olhar terno e o desvio de cara são uma e a mesma coisa, verso e reverso de uma qualquer impossibilidade, de um homem quebrado como se quebram os espelhos e depois não se juntam.
Entre os sublimes andamentos da mansão e as cantorias que se escutam no gira-discos da grande metrópole, de um extremo ao outro corre a tristeza, essa tristeza imensa e comovente que sentimos quando no final Robert se olha a um espelho e decide mais uma vez partir rumo à sempre passível epifania. Cerradíssimo plano, cerradíssima decisão. A consciência de uma penosa distopia perene pode matar e por isso anda-se para a frente. O diálogo com o Pai vegetal é sintomático de um tempo e de todos os tempos, existem Roberts que estão sempre em movimento pois têm medo que as coisas acabem mal, medo dos princípios prometedores. E daí larga-se tudo e fica um vazio que rói os ossos. Fica o plano final, um dos mais tristes, surdos e desprotegidos que alguma germinou. Incertezas, todas.
II
Volto a Robert Eroica Dupea e ao meu filme desses tempos, anos 70 ou hoje. Humildes, desgostosos, lastimosos, faiscantes, sem nada a perderem, sem seguro de vida, sem o tapete da salvação. E conservando puramente uma integridade e qualidades que se destacam no meio do supérfluo e das aparências intemporais que todo o modernismo ampliaria até à saturação. Portanto, volto ao meu filme destes tempos. Five Easy Pieces carrega a justeza dos valores primitivos, indestrutíveis, míticos, a par do choro pelo inexplicável degradamento que vai desbravando. Isto, nas formas e no que trata. No cinema e na carne e osso e emoção que o molda. Porque se estamos desde o início ao lado de um desistente, alguém que parece ter assumido a derrota pessoal, lá longe de todas as promessas de consagração, todo o contra-campo disso, os motivos e agressões intoleráveis, essas elipses desmedidas a que só alguns chegam, nunca terão resposta, estarão na expressão e na acção de Dupea, na sua movimentação e no movimento fílmico. O direito a não ficar, a ir com o vento, não vencer. Não por niilismo burguês ou inocência radical, mas por amor. Um outro tipo de amor, muito superior ao banalizado. Amor e violência, a sua inseparável. Dupea afastou-se da música, como outros se tentam afastar do cinema e da sua lei e ordem. Afastou-se da casa e mantem ainda ou eternamente uma guerra matricial. Ambas as coisas parecem não lhe fazer falta, esquecidas ou reduzidas, mortas à força, ou então disfarça muito bem. Mas não cede, não vulgariza, e a cobardia não faz mossa ali. Há por aí alguns, nos passeios e nos cafés de todos os dias, no canto mais escondido da sala de cinema mais recatada ou no antro ainda aberto das quatro da madrugada, em gabinetes atulhados de papéis ou em honrosos cargos administrativos, em todo o lado e em lado nenhum, indivíduos duros que supostamente se apagaram para fruírem o que tantos famosos nunca cheirarão – a vida descarnada. Uma liberdade em que a sombra desses seres é proporcional à intensidade do ardor no estômago e das surpresas a cada instante. Um descontrole ou mesmo uma rotina que franqueia toda uma gama de sentimentos julgados sonhos. Da mesma maneira, falando em casos ou causalidades cinematográficas próximas, não considero um Manuel Mozos ou um José Nascimento realizadores falhados. Como considero o padeiro da minha rua o mais prendado dos artistas. O que muitos tentaram e não conseguiram em incontáveis filmes, videoclipes ou híbridos, Mozos, Nascimento, o puto ignorado do curso de cinema que não lambe botas, aquele que bebeu um copo a mais e falhou, conseguem a cada frame, a cada entrevista não dada, a cada cocktail falhado - a candura, uma aurora, a impressão de verdade que jamais se compra ou suborna. Do loser ao vencedor a ambiguidade da importância. Do fundamental. Five Easy Pieces é a estrada, o percurso e o foco para o desengano. Tão, tão nítido. Ficam dois dos exemplos mais doridos de que me lembro:
1. A câmara fixa-se no rosto dele, escuta-se os preparativos dos dedos e das vacilantes pálpebras, a música entra. Um lamento de Chopin dá o mote e o ritmo a uma divagação nostálgica e funerária. Sai dali com um último olhar e desce até à tensão e coreografia dos dedos com as teclas. Detém-se um bocadinho, não muito, e avança para uma descrição do espaço que é simultaneamente a história do pianista e da sua tragédia ou salvação. A pauta, um repousado violino, outras mãos de uma mulher que nesse momento ele já possui, obviamente flores para uma coroa, um violino mais e o cortinado acastanhado em fundo para entrarmos nas famílias e genealogias. A sua, os seus, amados, perdidos, desprezados, desconhecidos, humilhados, a infância, o luto. E a outra família ainda, ali tão central como a sua, que o acompanhou igualmente do berço e lhe impôs um peso que ele não quis. Beethoven, Bach, o Chopin do negro, alguns mais. Texturas e rasuras a carvão, existências concluídas, suspensas, mascaradas, outras que ainda pulsam. Mas todos na mesma parede, como os altares dos mortos. E da aparente lisura voltámos para os relevos e já lágrimas da mesma mulher que vimos segundos atrás. Nesse hiato insignificante por entre eternidades, ela já é outra. Corte para ele, que parece descarregar as toneladas que ainda o faziam duvidar, mas agora, já mesmo nada o deterá. Para o bem e para o mal, princípio e fim. Aceitação e coragem, nascentes dessa circulação aglutinadora e espectral que assim materialmente e no espaço vazio da morte o cinema conseguiu urdir. Muito triste, muito contundente.
2. Mais um bocadinho para a frente, depois das fúrias e orgasmos gelados e antes da ponderação derradeira. Ele largará tudo de novo, fugirá, esconder-se-á, para arriscar tudo definitivamente ou na busca das felicidades iniciáticas antes das tempestades, não restam dúvidas. Ou então foi num instinto com causa. Sem prestar contas. É nessa gasolineira igualmente cálida e fria como o desamparo que ele entrega a sua identidade para ficar só consigo. Ao passar a carteira dos trocos à também lindíssima criatura composta por Karen Black, aposto que também passa o bilhete que o denúncia, a sua redutora construção que é mais a construção de outros. Um morto por um vivo é a troca inventada, a ver vamos e jamais saberemos. Essa passagem da carteira tem a força dos planos de pormenor cósmicos e silentes de Robert Bresson. Dupea não pestaneja, e vai à sorte que é a vida. No banco da frente de um hercúleo camião, ao lado do desconhecido condutor e desafiando o desconhecido destino, não haverá frio que o incomode, gelo que o paralise. Outro tipo de calor imaterial e invisível começa por ali a fervilhar. O resto é só dele e o filme acaba. Em toda a simplicidade, sem gritos nem retórica, todo o cinema que depois do clássico importa. Assim mesmo, perfeitamente clássico e intemporal. Com Jack Nicholson a preparar a rima, universal e não somente europeia, com o Antonioni de The Passenger. Rima ou chegada, conclusão, crepúsculo, embate, humana contradição. Nada mais certo no ar da errância.
(montagem a partir de fragmentos escritos no blog Raging-b)
sábado, 10 de setembro de 2016
26ª sessão: dia 13 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30
Mais do que o Vietname e os seus estilhaços em surdina (e este pode ser o filme nuclear sobre essa dor calada, intransmissível e resolutamente cravada como as chagas internas que assolaram uma época) Five Easy Pieces escancara lentamente as solidões antiquíssimas reservadas a todos os Homens que as despertem; e logo fala do encaixe de cada um em cada espaço e tempo; existência, coexistência e a constante irresolução da nossa condição. É a sessão da próxima Terça-Feira.
É também um dos mais doridos lamentos - em filigrana e inscrito nos rostos e movimentos dos seus protagonistas - que o cinema teceu, elevou Jack Nicholson ao patamar dos muito grandes, tratou Karen Black como uma criatura imensamente mais complexa do que a sua aparência pode fazer crer, e acolheu a paisagem Americana como órgão indissociável de todo esse corpo em que mal-estar e horizonte lutam desalmadamente, com as cores e o grão da fabulosa câmara de László Kovács. Bob Rafelson, que admirava Antonioni e os grandes cineastas Europeus da altura, olhou tudo com a humildade de um trabalhador sério a dar no duro (ou tarefeiro sem margem para dúvidas) e com a disponibilidade de um genuíno humanista.
Sobre o filme e sobre o seu processo, Bob Rafelson disse que "para escrever uma personagem, tenho que ver a personagem, não o actor. O grande prazer é ver tão nitidamente que se tem mesmo uma personagem - não apenas diálogo, não apenas uma história - que se pode cheirar. Conhece-se mesmo a pessoa. E depois vem o actor e faz-nos mudar de ideias, é o que o torna emocionante - o actor ser melhor que a nossa concepção.
"Tome-se Karen Black (Rayette Dipesto) no início de Five Easy Pieces. Quando a vemos pela primeira vez, ela está sentada no lavatório a pôr batom, certo? Estava-me a preparar para filmar uma cena em que a personagem de Jack Nicholson (Robert Eroica Dupea) volta dos campos de petróleo e entra em casa. É assim que somos apresentados ao seu estilo de vida actual e à mulher com quem está a viver. Mas Karen está sentada no lavatório a pôr a maquilhagem dela. Bem, ninguém se senta no lavatório para pôr maquilhagem. Eu disse, fica aí e vou filmar. E isso foi a Karen. É assim que ela entra no filme."
Sobre Jack Nicholson, o realizador disse que "quando escrevemos o meu primeiro filme juntos, Head, e o produzimos juntos, na altura Jack tinha desistido de ser actor. Eu e ele interpretávamos os diálogos todos, a eu não conseguia tirar os meus olhos dele. Eu disse, "Porque é que não és mais actor?" E ele disse, "Estou cansado disso. Fico sempre com os papéis secundários de merda, não os principais, e é sempre em filmes convencionais." Então eu disse, "Bom, não o próximo. Quero que sejas o actor principal no próximo." Isso foi Five Easy Pieces, mas entretanto eu produzi Easy Rider.
"Rip Torn era para interpretar o papel (de George Hanson) e eu estava com um bocado de medo de dizer a Dennis Hopper que Jack Nicholson devia interpretar o papel, porque queria a emoção de o descobrir eu. Não queria que mais ninguém o conseguisse. Isso foi muito estúpido. E, muito sinceramente, se o Jack não tivesse entrado em Easy Rider, o meu filme não tinha sido o sucesso que foi. Ele apareceu mesmo no momento certo para dar um empurrão extraordinário a Five Easy Pieces."
Até Terça-Feira!
quarta-feira, 7 de setembro de 2016
Zabriskie Point (1970) de Michelangelo Antonioni
por João Palhares
Como Glauber Rocha (efusivo, pelas ruas de Lisboa, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974, a arder de fervor revolucionário depois de ter passado ou estar prestes a passar pelo Congo, por Cuba, pelo Peru, por Roma, por Paris e pelo Chile de Salvador Allende, e fazendo perguntas aos populares e aos militares para o filme realizado pelo Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, As Armas e o Povo, com enérgicos “Acriditá ná révulução?”, “Há quanto tempo você lútá?”, “O sénhô sofreu com á ditadura?”, “O quê achá dá situação atuau?” “Porque é qui não foram ao primeiro di Maio, porqui não estão ná Práça?”) ou Nicholas Ray (chegado à América no final dos anos sessenta, em plena ascensão de vários movimentos revolucionários como os Black Panthers – Black Panther Party - ou os Yippies - Youth International Party -, depois de assistir às grandes manifestações estudantis na Europa, e interessando-se pelo julgamento dos “sete de Chicago”, jovens em que Ray reconheceu certamente a juventude traída e incompreendida de They Live by Night, Knock on Any Door e Rebel Without a Cause, junta-se a eles e vai também filmar as ruas: “Não me importava que levasse cinco anos, é um filme que eu ia rodar. Ia montá-lo e tentar dizer esta única coisa: que não há nada tão importante como uma ideia cuja altura chegou. Vou tentar fazer com que a espontaneidade dos últimos oito anos ganhe vida.”), Michelangelo Antonioni interessou-se muito pelas revoltas generalizadas dos anos sessenta e setenta.
O realizador italiano tinha um filme completamente diferente em mente durante meados dos anos sessenta: “Tinha criado uma história que girava à volta da figura de um poeta imaginário que vivia nos Estados Unidos e a visão dele, as atitudes dele, eram muito mais individuais – diria quase mais abstractas – que as das personagens do filme que acabei por rodar. Era uma história substancialmente diferente, mais introspectiva, talvez mais sugestiva. E então, enquanto estive em Chicago no verão de 1968, testemunhei um incidente que contribuiu para mudar todo o rumo do filme. Vi a Guarda Nacional a investir contra alguns jovens que se estavam a manifestar em frente ao edifício onde se estava a realizar a Convenção Democrática. (…) Nessa ocasião, entrei em contacto com um grupo de pessoas de ambientes muito diferentes do meu, pessoas que tinham ido lá maioritariamente para protestar contra as políticas dos Democratas (…); havia vários jovens. Portanto juntámo-nos e re-escrevemos o argumento todo (…).” Em entrevista a Alberto Moravia, Antonioni disse também que “a minha relação com a América reflecte a divisão dos Americanos em categorias muito distintas: de um lado estão dois terços da população, gente irritante e insuportável; o outro terço são pessoas maravilhosas. O primeiro grupo é a classe média; o segundo é a juventude dos dias de hoje. Há uma indiferença absoluta em relação ao dinheiro entre os jovens, há pureza, desinteresse, revolta e mudança. À classe média, por outro lado, eu chamaria uma classe social de gente louca porque, no fim de contas, apesar de toda a sua alienação, são incorruptíveis e bem intencionados. Percebe, a classe média europeia é corrupta e portanto não é louca.”
Mas como se pode adivinhar, o interesse destes cineastas por estes acontecimentos não é político. Ou, pelo menos, não apenas político. Abbie Hoffman, um dos “sete de Chicago” e co-fundador do Youth International Party, durante os meses em que Nicholas Ray esteve ao seu lado, costumava dizer muito (segundo Susan Ray) “What are politics? Fuck politics! Politics is living!” E é Mark Frechette - um jovem membro da comunidade de Mel Lyman (comunidade para onde reverteu o dinheiro que Frechette recebeu por entrar no filme) que foi escolhido entre milhares de candidatos num processo que durou um ano (foi encontrado em Boston pela assistente de Antonioni, Sally Dennison) –, que diz no início do filme que “I'm willing to die... but not of boredom.” Antonioni: “Se eu quisesse fazer um filme sobre dissidência estudantil, tinha continuado pela direcção que tomei na abertura com a sequência do encontro de estudantes. Se alguma vez chegar o dia em que os jovens radicais Americanos concretizem as suas esperanças de mudar a estrutura da sociedade, vão chegar desse tipo de ambientes e ter caras como aquelas. Mas eu deixei-os lá, e segui o meu protagonista num itinerário completamente diferente.”
E a direcção e o itinerário tomados, em Antonioni, sabem-se ir já rumo ao mistério e ao desconhecido, despojando-se gradualmente do que é reconhecível até se acabar sem pontos de referência e se ter forçosamente que começar tudo de novo e de uma maneira totalmente diferente. Forçar até ao limite as barreiras do tangível e acabar, como em L'Eclisse, Blowup e The Passenger, às portas da abstracção pura, fazendo perguntas até deixar de haver respostas. Perdendo-se nas paisagens americanas tal como as suas duas personagens, Antonioni não esconde o seu assombro tanto diante de grandes e coloridos painéis publicitários como diante do imenso deserto que associa à vida e à fecundidade e não à morte, deixando-se levar pelas imensas contradições e paradoxos que tornam a América num dos países mais fascinantes e ricos em sensações do mundo. Vanishing Point, o belo filme de Richard C. Sarafian do ano seguinte (1971), deve o seu nome ao ponto imaginário na perspectiva em que se intersecta todo o espectro visível (que os tradutores portugueses não perceberam, dando-lhe o título de “Corrida Contra o Destino”) e junto a Two-Lane Blacktop de Monte Hellman ou a The Conversation de Francis Ford Coppola mostra o quão importante foi Antonioni para esta década de tantas questões sem resposta e de aventuras em que o asfalto se cruza com o horizonte e a mente com o insondável.
Bem-vindos aos anos setenta.
sábado, 3 de setembro de 2016
25ª sessão: dia 6 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30
Zabriskie Point é uma pincelada fundamental na imensa e densa paisagem do cinema de Michelangelo Antonioni, autor de Il Grido, L'Eclisse, Blowup e The Passenger e a quem os cineastas desta Hollywood a renascer das cinzas dos anos sessenta tanto devem...
A sessão da próxima Terça-Feira é o segundo filme de língua inglesa que o realizador italiano fez sob um contrato com Carlo Ponti (produtor) e a Metro-Goldwyn-Mayer (distribuidora), com liberdade artística absoluta. O primeiro foi Blowup, com David Hemmings e Sarah Miles e o último seria The Passenger, com Jack Nicholson e Maria Schneider.
Sobre a pré-produção do filme, Antonioni disse à Sight & Sound que "fiz duas viagens para a América (a primeira na primavera de 1967 e a segunda no outono). Eu tive esta ideia de fazer aqui um filme porque queria sair da Itália e da Europa. Ainda não tinha começado nada na Europa, este movimento jovem, quero dizer. Quando vim para a América, a primeira coisa que me interessou foi esta espécie de reacção à sociedade como está agora - não só à sociedade, mas à moralidade, a mentalidade, a psicologia da velha América. Escrevi algumas notas, e quando voltei queria saber se o que tinha anotado, a intuição, era verdadeira ou não. A minha experiência ensinou-me que quando uma intuição é bela, também é verdadeira. Decidi-me nesta história quando vim a Zabriskie Point. Achei que este lugar em particular era exactamente o que estava à procura. Gosto de saber onde se passa a história. Tenho que a ver em algum sítio para escrever alguma coisa. Eu quero uma relação entre as personagens e o lugar; não as posso separar do meio delas."
O crítico italiano Adriano Aprà notou que "não é a primeira vez que Antonioni filma no estrangeiro. Já tinha ido a Paris e a Londres para dois dos três episódios de I Vinti (1953). Mas nesse caso tinha sido o "caos empolgante do pós-guerra", de que fala a Moravia, que o tinha levado a procurar fora das fronteiras italianas a confirmação de algo que afectava agora a Europa: a delinquência juvenil na classe baixa e na classe média. O olhar, nesse filme, era objectivo, radiográfico. Depois da radical experiência "subjectiva" de Il Deserto Rosso (1964), resultado de um longo trabalho de pesquisa, Antonioni, com Blowup (1966), volta a uma nova objectividade, que agora incorpora em si a subjectividade. A "liberdade mental" da Inglaterra daqueles anos, reflectida pelo protagonista jovem e dinâmico, permite ainda ao realizador "fotografar" as aparências e a sua beleza inédita; para as abrir, contudo, "engrandecendo-as", a qualquer coisa que a objectividade delas esconde: a abstracção, a irrealidade, a ausência, o mistério, que no final do filme absorve o jovem, fazendo-o desaparecer "para lá do ecrã", para lá do espelho da objectividade.
"Poucos anos depois Moravia volta a questionar Antonioni sobre a importância dos locais em que se filma. "Os locais têm importância. Mas a história de Blowup podia acontecer em qualquer lugar - diz o realizador desta vez -. Zabriskie Point, por sua vez, é um filme sobre a América. A América é a verdadeira protagonista do filme. Os personagens são apenas pretextos. (Os temas dos meus filmes anteriores), aqui nos Estados Unidos, encontram uma correspondência mais clara, mais extrema, mais profunda".
"Na paisagem americana - o meio urbano de Los Angeles, a periferia extrema da cidade, o deserto lunar de Death Valley, a vivenda embutida nas rochas que forma o reflexo oposto - Antonioni encontra, objectivada, essa abstracção, esse "para lá" de que está à procura: que em Blowup era, quase didascaliamente, imposto à realidade; e que desta vez é mesmo capaz de ancorar a história a um contexto político."
Até Terça-Feira!