sexta-feira, 30 de junho de 2017
quinta-feira, 29 de junho de 2017
Apocalypse Now Redux (2001) de Francis Ford Coppola
por José Lopes
Na “minha estreia” enquanto espectador e admirador de Francis Ford Coppola embarquei com os meus amigos do bairro da Madragoa e de lutas, às ordens do “Capitão” Martin Sheen, naquele barco norte-americano, em meio da selva da Indochina, à procura do Coronel Kurtz (Marlon Brando). Estávamos em 1980, em Lisboa, no Cinema Apolo 70, com som Dolby Stereo. A meio do filme, do alto dos meus 22 anos, esqueci que estava em Lisboa à noite – olhava à minha volta e só via a selva Cambojana. Cheio de medo, embora no escuro da sala de cinema, pensava com os meus botões nos dementes Khmers vermelhos das “Terras Sangrentas”.
Antes dessa noite, já conhecia a novela de Joseph Conrad, “Heart of Darkness”, na tradução portuguesa. E, soube entretanto, que Orson Welles acalentou o desejo de transformar em filme “O Coração das Trevas”.
Alguns anos depois, Francis Coppola e John Milius agarraram o búfalo pelos cornos e prepararam o argumento de Apocalypse Now, o grande filme norte-americano, “ex-aequo” com The Deer Hunter de Michael Cimino, que se debruça sobre a tragédia do Vietname.
A tragédia da guerra do Vietname extravasou o universo americano e contaminou a memória dolorosa da guerra colonial portuguesa nas matas Africanas. Como objector de consciência e amante da paz, dei por mim fascinado e encantado pelo espectáculo feérico da guerra. A sequência “wagneriana”, com a “Valquíria” despejada das colunas de som instaladas nos helicópteros comandados pelo comandante Robert Duvall representava a faceta mais deslumbrante de Coppola, o realizador operático do cinema dos Estados unidos. Revejam a trilogia de The Godfather. Revejam um filme posterior a Apocalypse Now, Gardens of Stone (aí está, mais uma vez, a memória traumática do Vietname). A “obra de arte total” wagneriana está presente, sempre presente, nos vários “opus” de Francis Coppola.
Falei de Robert Duvall, um dos grandes actores americanos de todos os tempos. Mas falo-vos também de Martin Sheen que, reza a história, sofreu uma crise cardíaca durante a rodagem de Apocalypse Now, nas Filipinas. Desde Badlands (1973) de Terrence Malick, que não me lembro de uma tão fulgurante interpretação de M. Sheen. E que dizer daquele fotógrafo “freak”, Dennis Hopper, meio filósofo, meio louco, meio mestre-de-cerimónias?.... e Frederic Forrest, que acaba decapitado, o futuro mecânico de automóveis de One From the Heart (1982) do nosso realizador desta noite? Deixo para o fim, a referência a Aurore Clémant, a actriz inesquecível em filmes de, entre outros, Chantal Akerman, Víctor Erice e Wim Wenders. É na sequência magistral, a casa da Indochina, na versão de Apocalypse Now Redux...
Umas palavras sobre Marlon Brando, claro. Em 1980, eu já vira aquilo que tinha de ver com Brando: Viva Zapata, Um Eléctrico chamado Desejo, e tantos, tantos outros filmes, sem esquecer o “arco-da-abóboda” The Godfather I... Quando desembarquei com o capitão Martin Sheen, naquela curva do rio que nos conduziu ao Coronel Kurtz, fiquei completamente abismado. Porquê? Da penumbra saiu o corpo obeso de Marlon Brando lendo e recitando poesia do mais alto calibre... Caramba! Simplesmente esmagador. E, na reposição de Apocalypse Now, já entrados nos anos 1987, voltei, desta feita nos antigos Cinema Monumental, a ouvir o balbuciar do Coronel Kurtz “Horror! Horror!”.
Terminando, recordo com imenso respeito e saudade, o nosso capitão-herói Fernando José Salgueiro Maia, o qual numa entrevista que segui na rádio, referiu o filme que hoje passa no Lucky Star – Cineclube de Braga, como o grande filme sobre a Guerra do Vietname e sobre, e cito, “o nosso Vietname”, isto é, a Guerra do Ultramar.
Aos amigos João Palhares e José Oliveira, bem como aos fiéis e assíduos espectadores do Lucky Star, saúdo com votos de uma boa sessão cineclubista.
25 de Junho de 2017
n'os Amigos do Minho,
em Lisboa
domingo, 25 de junho de 2017
66ª sessão: dia 27 de Junho (Terça-Feira), às 21h30
"O meu filme não é sobre o Vietname... o meu filme é o Vietname", foram as míticas palavras de um apocalíptico Francis Ford Coppola ao apresentar Apocalypse Now no Festival de Cannes de 1980.
Indo buscar inspiração ao terrífico ensaio sobre a obsessão e a loucura puramente humanas do Heart of Darkness de Joseph Conrad, John Milius, o argumentista, fundiu a escuridão dos finais do século XIX com a guerra do Vietname e só apontou ao ridículo de todas as guerras passadas e futuras.
“O horror... o horror...” vai dizendo o Coronel Curtz, incomparavelmente possuído por Marlon Brando, que o Willard de Martin Sheen terá de terminar.
E tal como a tortuosa viagem e a impossível missão que iremos acompanhar o que está em causa é a perpétua contradição e irresolução da nossa condição. Coppola, que de uma assentada convocou todos os gestos e lições do cinema que é Cinema – de Griffith a Eisenstein, de Stroheim a Gance – meteu igualmente tudo em risco – tanto a sua própria vida e a de muita gente que participou na rodagem como a carreira de realizador – para que o Apocalipse não fosse só o tema da empreitada mas a matéria mesma e o fogo central que tudo anima.
Na nossa próxima sessão veremos a versão Redux, apresentada em 2001, que foi ainda mais ao fundo do vórtice da demência e cravou de nostalgia a visão fugaz dos Paraísos Perdidos de que tanto nos falou Camões como Milton. Hélder Castro, artista, professor e campeão da vida, vem a Braga para nos falar de um dos filmes da sua vida.
Walter Murch, mago do som e da montagem que trabalhou várias vezes com Coppola, falou com Michael Ondaatje sobre a nova montagem do filme, dizendo que "havia um problema [a propósito de Apocalypse Now Redux]: a partida da plantação francesa fora filmada uma só vez e mostrava o cais intacto. Não havia uma partida com um cais em ruínas. Não podíamos chegar com o cais em ruínas e partir com ele intacto! Logo, se utilizássemos o cais em ruínas para entrar na sequência, não se podia voltar a sair de lá.
"Então, ao investigar os rushes, encontrei um take com Martin Sheen e Aurore Clément, quando ela sai da cama, nua, e fecha o mosquiteiro que rodeia a cama. Havia algo de belo e de evocador, no seu perfil contra o mosquiteiro, e pensei: 'Ela parece um fantasma, e o mosquiteiro é como o nevoeiro'. Foi então que fiz a ligação. Ao começar a sequência da plantação francesa [...]. Quando o nevoeiro se instala, as ruínas da plantação dão a sensação de que Willard e a tripulação voltaram atrás no tempo. E o filme pode mergulhar nesse jantar espectral, que o Francis achava buñueliano, com pessoas movidas por paixões políticas no início dos anos 50, um reflexo do compromisso americano no Vietname quinze anos mais tarde. Na versão original, Willard apanhava a jovem através do mosquiteiro, faziam amor e reencontrávamo-los de manhã. Mas, na nossa versão, a imagem de Aurore dissolve-se progressivamente num fundido encadeado e ficamos com a silhueta desencarnada desta jovem, a pairar num fundo branco como o leite. Então, percebemos que estamos de volta ao barco, de onde tínhamos partido. Quando descobri esta transição, que não estava no guião, algo se desbloqueou. Senti que começava a assimilar a linguagem desta nova versão."
Jean Douchet, farol absoluto nos tempos em que vivemos, escreveu sobre a nova versão e do que ela acrescentou ao original, a propósito de uma exibição em Cannes, de "regresso ao festival para os Cahiers, quarenta anos depois. Já não para fazer a cobertura crítica do evento inteiro, mas para vir mergulhar na multidão, durante vinte e quatro horas, por ocasião dos cinquenta anos da revista. A última vez foi em '63. Os Pássaros abriram a competição, mas sem concorrer. Lembro-me, como diria Pérec, de bocas, de queixadas grandes como as dos críticos e jornalistas autorizados. Nós, só o éramos em aparência, tentados demais pelo amor ao cinema para entrar no jogo estúpido das conferências de imprensa. "Sr. Hitchcock, Os Pássaros, são a bomba atómica?" "Sr. Hitchcock, acha que o público vai assistir a uma história tão inverosímil?" "Sr. Hitchcock, porque é que Os Pássaros atacam? Porquê esta violência? Love birds, porquê? Porquê, porquê, porquê?" Com a sua fleuma britânica, o pobre Alfred tentava responder com humor a esta enchente de disparates, mas lutava visivelmente por esconder a sua decepção e uma agressividade latente para com tal congregação. Um jovem, acho que era dos Cahiers, veio em seu socorro. "Sr. Hitchcock, eu fiquei com a impressão que o comportamento dos humanos, principalmente de Melanie, que se julgam proprietários do mundo, é o único responsável pela cólera dos céus." A cara do genial Alfred iluminou-se de repente. "É isso, absolutamente isso!" E só deixa este pequeno desconhecido de uma revista mensal modesta (15 000 números na altura), embora já ilustre, fazer-lhe perguntas diante de um público aturdido e perturbado. Depois da conferência, Hitchcock chamou o miúdo para o convidar a vir para Hollywood e o entrevistar durante três dias. Isto, era Cannes, e eram os Cahiers (os amarelos, de preferência). E pronto. No entanto, jurei a mim próprio: absolutamente nada de "no meu tempo..." e outros "uh! lá! lá!". Portanto, sigamos para os dias de hoje. E dividamos a história em dois. Depois do apocalipse de Hitch, o Apocalypse Now. Isso cai bem, uma vez que o now é duplo. '79 e '01. Primeira vez: versão mutilada mas com Palma de Ouro. Mudança de cenário e inversão dos papéis, agora. São os Cahiers, saídos de um longo teste de questionamento do papel do mundo no cinema e vice versa, que se fazem de difíceis. É verdade que depois de 64 a revista seguiu um rumo desenfreado à mais pequena modernidade, porque há moda na modernidade, na direcção do que havia de mais avançado no ar intelectual do tempo. E mergulhou naturalmente, depois de 68, na mais opaca salmoura maoísta. O cinema afundava-se em discursos ditos políticos patéticos. E todo o cinema realmente moderno do próprio começo dos seventies, Fassbinder, Jean Eustache e essa nova vaga americana que explodia neste momento, foi desdenhado ou soberbamente ignorado. Os Cahiers de então, em relação a alguém como De Palma, adoptaram a mesma atitude condescendente e depreciativa, enfim, que a crítica banal dos anos 60 em relação a Hitchcock. Mesmo Daney ou Bonitzer, quer dizer, ainda precisavam, em 79, de se mostrar reticentes face ao filme de Coppola. Porque não há nenhum de nós que, em nome da teoria e das ideias, não tenha, num artigo, traído a verdade das suas emoções e da sua sensibilidade.
E tal como a tortuosa viagem e a impossível missão que iremos acompanhar o que está em causa é a perpétua contradição e irresolução da nossa condição. Coppola, que de uma assentada convocou todos os gestos e lições do cinema que é Cinema – de Griffith a Eisenstein, de Stroheim a Gance – meteu igualmente tudo em risco – tanto a sua própria vida e a de muita gente que participou na rodagem como a carreira de realizador – para que o Apocalipse não fosse só o tema da empreitada mas a matéria mesma e o fogo central que tudo anima.
Na nossa próxima sessão veremos a versão Redux, apresentada em 2001, que foi ainda mais ao fundo do vórtice da demência e cravou de nostalgia a visão fugaz dos Paraísos Perdidos de que tanto nos falou Camões como Milton. Hélder Castro, artista, professor e campeão da vida, vem a Braga para nos falar de um dos filmes da sua vida.
Walter Murch, mago do som e da montagem que trabalhou várias vezes com Coppola, falou com Michael Ondaatje sobre a nova montagem do filme, dizendo que "havia um problema [a propósito de Apocalypse Now Redux]: a partida da plantação francesa fora filmada uma só vez e mostrava o cais intacto. Não havia uma partida com um cais em ruínas. Não podíamos chegar com o cais em ruínas e partir com ele intacto! Logo, se utilizássemos o cais em ruínas para entrar na sequência, não se podia voltar a sair de lá.
"Então, ao investigar os rushes, encontrei um take com Martin Sheen e Aurore Clément, quando ela sai da cama, nua, e fecha o mosquiteiro que rodeia a cama. Havia algo de belo e de evocador, no seu perfil contra o mosquiteiro, e pensei: 'Ela parece um fantasma, e o mosquiteiro é como o nevoeiro'. Foi então que fiz a ligação. Ao começar a sequência da plantação francesa [...]. Quando o nevoeiro se instala, as ruínas da plantação dão a sensação de que Willard e a tripulação voltaram atrás no tempo. E o filme pode mergulhar nesse jantar espectral, que o Francis achava buñueliano, com pessoas movidas por paixões políticas no início dos anos 50, um reflexo do compromisso americano no Vietname quinze anos mais tarde. Na versão original, Willard apanhava a jovem através do mosquiteiro, faziam amor e reencontrávamo-los de manhã. Mas, na nossa versão, a imagem de Aurore dissolve-se progressivamente num fundido encadeado e ficamos com a silhueta desencarnada desta jovem, a pairar num fundo branco como o leite. Então, percebemos que estamos de volta ao barco, de onde tínhamos partido. Quando descobri esta transição, que não estava no guião, algo se desbloqueou. Senti que começava a assimilar a linguagem desta nova versão."
Jean Douchet, farol absoluto nos tempos em que vivemos, escreveu sobre a nova versão e do que ela acrescentou ao original, a propósito de uma exibição em Cannes, de "regresso ao festival para os Cahiers, quarenta anos depois. Já não para fazer a cobertura crítica do evento inteiro, mas para vir mergulhar na multidão, durante vinte e quatro horas, por ocasião dos cinquenta anos da revista. A última vez foi em '63. Os Pássaros abriram a competição, mas sem concorrer. Lembro-me, como diria Pérec, de bocas, de queixadas grandes como as dos críticos e jornalistas autorizados. Nós, só o éramos em aparência, tentados demais pelo amor ao cinema para entrar no jogo estúpido das conferências de imprensa. "Sr. Hitchcock, Os Pássaros, são a bomba atómica?" "Sr. Hitchcock, acha que o público vai assistir a uma história tão inverosímil?" "Sr. Hitchcock, porque é que Os Pássaros atacam? Porquê esta violência? Love birds, porquê? Porquê, porquê, porquê?" Com a sua fleuma britânica, o pobre Alfred tentava responder com humor a esta enchente de disparates, mas lutava visivelmente por esconder a sua decepção e uma agressividade latente para com tal congregação. Um jovem, acho que era dos Cahiers, veio em seu socorro. "Sr. Hitchcock, eu fiquei com a impressão que o comportamento dos humanos, principalmente de Melanie, que se julgam proprietários do mundo, é o único responsável pela cólera dos céus." A cara do genial Alfred iluminou-se de repente. "É isso, absolutamente isso!" E só deixa este pequeno desconhecido de uma revista mensal modesta (15 000 números na altura), embora já ilustre, fazer-lhe perguntas diante de um público aturdido e perturbado. Depois da conferência, Hitchcock chamou o miúdo para o convidar a vir para Hollywood e o entrevistar durante três dias. Isto, era Cannes, e eram os Cahiers (os amarelos, de preferência). E pronto. No entanto, jurei a mim próprio: absolutamente nada de "no meu tempo..." e outros "uh! lá! lá!". Portanto, sigamos para os dias de hoje. E dividamos a história em dois. Depois do apocalipse de Hitch, o Apocalypse Now. Isso cai bem, uma vez que o now é duplo. '79 e '01. Primeira vez: versão mutilada mas com Palma de Ouro. Mudança de cenário e inversão dos papéis, agora. São os Cahiers, saídos de um longo teste de questionamento do papel do mundo no cinema e vice versa, que se fazem de difíceis. É verdade que depois de 64 a revista seguiu um rumo desenfreado à mais pequena modernidade, porque há moda na modernidade, na direcção do que havia de mais avançado no ar intelectual do tempo. E mergulhou naturalmente, depois de 68, na mais opaca salmoura maoísta. O cinema afundava-se em discursos ditos políticos patéticos. E todo o cinema realmente moderno do próprio começo dos seventies, Fassbinder, Jean Eustache e essa nova vaga americana que explodia neste momento, foi desdenhado ou soberbamente ignorado. Os Cahiers de então, em relação a alguém como De Palma, adoptaram a mesma atitude condescendente e depreciativa, enfim, que a crítica banal dos anos 60 em relação a Hitchcock. Mesmo Daney ou Bonitzer, quer dizer, ainda precisavam, em 79, de se mostrar reticentes face ao filme de Coppola. Porque não há nenhum de nós que, em nome da teoria e das ideias, não tenha, num artigo, traído a verdade das suas emoções e da sua sensibilidade.
"As reservas sobre o filme nessa altura, visavam - é escusado dizer -, o olhar político que Coppola mostrou sobre a guerra do Vietname. Embora fosse suficiente sentir - neste caso concreto e prosaicamente, ver bem e entender o filme - para captar o discurso real do cineasta. Sim, o filme foi concebido sobre o ponto de vista americano, já que toda a potência de fogo da mise en scène demonstrava a futilidade de uma nação cujo imaginário foi falsificado para sempre pela representação ideológica de um mundo que Hollywood fabricou durante décadas. Sim, foi Hollywood que caiu sobre a selva como, vinte anos antes, tinham caído os pássaros sobre Bodega Bay. O filme não tinha equívoco nem mal-entendido nenhum. É impossível não apanhar a ressonância nazi da famosa cena do bombardeamento de napalm. Especialmente quando Wagner e as suas Valquírias caricaturavam ao limite o uso hollywoodiano à Tiomkin da música para filmes. É impossível não ver o desembarque na linha da frente do show-biz, com as suas girls a vibrar em frente a boys frustrados, como uma metáfora dos estragos mentais provocados pela fábrica dos sonhos. Metáfora que Kubrick vai resumir, até à lobotomia, no último plano de Full Metal Jacket. Não ouvir nem ver Apocalypse Now era evidente má vontade. A versão de 2001 põe definitivamente fim às reticências. Está tudo claro, agora. A apresentação da cena dos colonos franceses diz explicitamente o que não se desejava perceber na primeira versão de Cannes. Aliás, essa cena é tratada de forma magnífica. Tem a mesma força dramática que as outras. Mas ela extrai a sua necessidade sobretudo por fortalecer e cimentar a estrutura narrativa e por provar, de novo ("par (le) neuf" no original, trocadilho entre "novo" e "nove", como em "prova dos nove"), que foi mesmo um filme político que Coppola realizou. Reafirmar - agora que o filme encontrou a sua verdadeira duração - a minha opinião de antanho de que Apocalypse Now é uma obra-prima indiscutível apraz-me ainda mais sabendo que, quarenta anos depois dos meus relatórios de Cannes, me posso exprimir num novo suporte. Há qualquer coisa de jovem ("jaune"), e até de amarelo ("jeune"), nos cahiersducinema.com"
Até Terça-Feira!
Até Terça-Feira!
quinta-feira, 22 de junho de 2017
The Yards (2000) de James Gray
por João Palhares
The Yards é o segundo filme de James Gray, um dos poucos cineastas americanos que ainda vale a pena seguir e que ainda este ano estreou The Lost City of Z, adaptação de um livro de David Grann sobre as explorações de Percy Fawcett com Robert Pattinson, Sienna Miller e Franco Nero. Sempre acreditou no cinema como forma privilegiada de exprimir grandes sentimentos, sendo, além disso, admirador confesso das óperas de Puccini, Wagner ou Charles Gounod. Mas disse que "a palavra "operático" é frequentemente mal usada como se significasse exagerado, quando alguém está emocionado em demasia. E isso faz um prejuízo terrível porque "operático" para mim quer dizer um compromisso e uma crença que são sinceros para com a emoção do momento." E de Little Odessa a Z, Gray não tentou fazer mais nada do que ser "sincero para com a emoção do momento", concentrando todas as suas forças e o seu talento em explorar as grandes emoções e os grandes turbilhões da vida, sim, mas também as mais pequenas manifestações de afecto ou ressentimento. Na sua obra desvenda-se um mundo por olhares, grandes e pequenos gestos, movimentos de câmara entre a luz e os abismos, decisões trágicas no turbilhão do mundo e actores em completo estado de graça, ficando sempre a certeza de que o seu trabalho é só "operático" ou minucioso para potenciar a descoberta e o pensamento - a revelação.
Faz sentido vermos este filme logo a seguir a True Crime, de Clint Eastwood, porque Gray e Eastwood devem ser os únicos cineastas americanos (Todd Field já não faz filmes há uns anos) a tentar fazer evoluir esse género que está para o cinema como a ópera está para a música - o melodrama, também muito mal descrito como "exagerado" ou "com demasiadas emoções" e que não há-de evoluir se se continuarem a celebrar as transposições a régua e esquadro muito irónicas e muito vazias de Todd Haynes, Tom Ford ou Sam Mendes. E apesar do próprio Gray admitir que Scorsese e Francis Ford Coppola são grandes influências para ele, continuo a achar que está mais próximo de Elia Kazan ou de Vincente Minnelli. E talvez especialmente em The Yards, em que se pode pensar tanto em On the Waterfront como no Some Came Running que vimos o ano passado também por esta altura. Também aqui um homem ingénuo se vê obrigado a lutar sozinho contra um grande sistema corrupto (como no filme de Kazan) e também aqui a chegada de um homem a sua casa faz desencadear uma terrível cadeia de acontecimentos (como no filme de Minnelli, que o de Gray também faz lembrar pela interpretação fabulosa de Charlize Theron, tão parecida com a Shirley MacLaine desse filme e de The Apartment de Billy Wilder).
Só que tal como em True Crime (ao qual se podia acrescentar A Perfect World, The Bridges of Madison County, Absolute Power, Blood Work e Mystic River, para não fugirmos muito dos anos noventa), e embora possam acontecer coisas muito semelhantes, nada é mostrado ou contado como se mostrava e contava nos anos cinquenta (que é o que fazem Haynes, Ford e Mendes, com uma pitada de ironia por cima para lhe atribuir a tão necessária "modernidade"). Pense-se na forma como Clint Eastwood termina o seu filme (da montagem paralela entre Beechum e Everett à fabulosa dissolução do plano da mão da mulher de Beechum a bater no vidro com a cena final do filme) ou nas várias cenas do filme de Gray que começam só com o som e ainda com imagens da cena anterior, no uso da música de Gustav Holst (também próximo do que faz Michael Cimino em Year of the Dragon com a música doutro Gustav, Mahler). Para chegar aos mesmos resultados e às mesmas emoções de um filme de Kazan ou de Minnelli é preciso tomar um caminho totalmente diferente. E talvez seja por isso que, como diz Jean Douchet, "os filmes de James Gray, no seu pensamento como na sua expressão, são obras clássicas que reinventam a nossa concepção do classicismo. São, portanto, inteiramente modernos. Com autores como ele, o cinema não morrerá".
A suspensão e a dissolução finais de True Crime talvez sejam o maior atestado disto, um golpe genial e tão eficaz da parte de Eastwood que continua a resultar mesmo vendo o filme pela quarta ou quinta vez. Coisa tão arriscada que podia não ter resultado. Uma ideia pura, cristalina, como só acontece a espaços muito alongados no cinema. Acontece algo parecido com a montagem paralela também já perto do final do filme de Gray, aliada à dedicação absoluta de Joaquin Phoenix e Charlize Theron. É nisto que pensamos quando falamos de revelação. Não é só informação, é fazer-nos acreditar só com imagens e sons que algo pode ser possível (para o bem, no filme de Gray, e para o mal, no filme de Eastwood) quando já sabemos que não é. Acreditar que Erica vai sobreviver, chorar a morte de Beechum. Os acenos de mão tão discretos entre Eastwood e Washington, o dar das mãos de Mark Wahlberg e Faye Dunaway, selos eternos que carregam o peso do mundo. "Um compromisso e uma crença que são sinceros para com a emoção do momento."
Nota final para defender a versão de James Gray de The Yards, sem o final imposto pelos irmãos Weinstein. Foi a que exibimos e é a que não mostra Leo a testemunhar contra a empresa da personagem de James Caan. Sem essa cena, ganha a corrupção engendrando uma maneira de se salvar a si própria pelos seus próprios meios, tornando-se um mal endémico e com anti-corpos. Mas mais importante, ganham outros contornos e outras ramificações o cumprimento final entre Leo e Frank (Caan), o dar das mãos de Leo e da tia (Dunaway) e surgem travellings sobre estaleiros e quartos vazios, que projectam a tragédia no infinito, como num abismo, e nos deixam um grande aperto na garganta. Como se encena uma tragédia no século XXI? The Yards é o melhor filme de James Gray?
sábado, 17 de junho de 2017
65ª sessão: dia 20 de Junho (Terça-Feira), às 21h30
James Gray é um dos poucos cineastas americanos que ainda vale a pena seguir. Confundido primeiro como um sucedâneo desinspirado de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, por situar as suas histórias em meios urbanos e redes criminosas sempre com a família por trás de cada decisão, e agora como um formalista e um cineasta académico, por dedicar algum tempo a pensar os planos e as sequências das suas histórias.
É óbvio que qualquer filme de Gray serviria para desfazer críticas tão superficiais como estas, mas escolhemos o segundo de uma obra em que um mundo se descobre e desvenda por olhares, grandes e pequenos gestos, movimentos de câmara entre a luz e os abismos, decisões trágicas no turbilhão do mundo e actores em completo estado de graça. Fica sempre a certeza de que o trabalho de Gray é só minucioso para potenciar a descoberta e o pensamento - a revelação.
The Yards é portanto a nossa próxima sessão e para o apresentar em vídeo teremos Linara Siqueira, colaboradora da FOCO - Revista de Cinema e grande admiradora da obra do cineasta.
James Gray, quando Jordan Mintzer lhe perguntou se havia elementos auto-biográficos neste filme, nas Conversations with James Gray, respondeu que "(...) eu estava a tentar lidar com um par de coisas diferentes, sendo uma delas como a corrupção e a violência são os princípios organizadores centrais da sociedade. Também estava ansioso em mostrar uma espécie de família de imitação (nota: ersatz no original) - que tentou reconstruir-se a si própria e se manteve junta em parte por inveja de classe, e depois acaba por ser destruída pela corrupção.
É óbvio que qualquer filme de Gray serviria para desfazer críticas tão superficiais como estas, mas escolhemos o segundo de uma obra em que um mundo se descobre e desvenda por olhares, grandes e pequenos gestos, movimentos de câmara entre a luz e os abismos, decisões trágicas no turbilhão do mundo e actores em completo estado de graça. Fica sempre a certeza de que o trabalho de Gray é só minucioso para potenciar a descoberta e o pensamento - a revelação.
The Yards é portanto a nossa próxima sessão e para o apresentar em vídeo teremos Linara Siqueira, colaboradora da FOCO - Revista de Cinema e grande admiradora da obra do cineasta.
James Gray, quando Jordan Mintzer lhe perguntou se havia elementos auto-biográficos neste filme, nas Conversations with James Gray, respondeu que "(...) eu estava a tentar lidar com um par de coisas diferentes, sendo uma delas como a corrupção e a violência são os princípios organizadores centrais da sociedade. Também estava ansioso em mostrar uma espécie de família de imitação (nota: ersatz no original) - que tentou reconstruir-se a si própria e se manteve junta em parte por inveja de classe, e depois acaba por ser destruída pela corrupção.
"De certa maneira, foi um erro fazê-lo, porque é um tema adequado para um romance russo. Falando em termos narrativos, demorou bastante tempo a estabelecer todas as ligações entre as personagens. Tendo dito isto, em alguns aspectos The Yards é o meu favorito dos meus filmes, mesmo sendo o meu filme menos bem sucedido em todos os níveis: piores críticas, pior box office, e o mais difícil de montar. Talvez goste mais dele como consequência."
Jean Douchet, que nos apresentou Marnie de Alfred Hitchcock em Julho do ano passado, escreveu o prefácio desse livro de conversas (em que também se pronunciam vários colaboradores de Gray e ainda Francis Ford Coppola), notando que "(...) ficou claro desde o seu primeiríssimo filme que James Gray era o que nós nos Cahiers chamávamos de autor. Podia-se detectá-lo imediatamente. E depois de quatro filmes, foi confirmado. O trabalho dele é marcado por um pensamento altamente emocional, sensível e violento, canalizado através de uma mise en scène que é enraizada no cinema clássico de autor.
"Com cada filme, ele volta ao mesmo pensamento uma e outra vez: Não importa o que se faça, os nossos passados são inescapáveis. É a própria definição de tragédia - os passados, e os Deuses, pesam sobre nós com todas as suas forças. Todos os filmes de James Gray consistem numa ou várias personagens a tentar escapar aos seus passados e libertarem-se a si próprios, sabendo o tempo todo que nunca farão tal coisa. Se em O Leopardo Visconti empregou a máxima: “Tem que mudar tudo para que nada mude”, nos filmes de James Gray a máxima podia ser: “Nós queremos que mude tudo, mas sabemos que não pode.”
"O passado no mundo de James Gray significa a Família - a Família no sentido duma mãe, pai e/ou irmão, mas também família num sentido mais amplo que reflecte a sociedade Americana como um todo, com as suas noções do bem e do mal, e a ideia de que toda a boa acção carrega o seu próprio mal dentro dela. Embora a família possa providenciar a fundação do amor, também nos sufoca com o seu único pecado original: restringe a liberdade.
"Em The Yards, a Família é definida pelos clãs mais amplos de políticos e empreiteiros, com cada personagem a usar de subterfúgios para encontrar o seu lugar enquanto caminham na direcção da sua ruína. Em Little Odessa, a personagem de Tim Roth escapa à sua família eliminando-a, enquanto que em We Own the Night, a personagem de Joaquin Phoenix é implacavelmente trazido de volta à sua família, onde acaba por substituir o pai dele. E em Two Lovers, a mãe interpretada por Isabella Rosselini deixa o filho dela ir, sabendo no entanto que regressará em breve, que é incapaz de sair de casa."
Até Terça!
Jean Douchet, que nos apresentou Marnie de Alfred Hitchcock em Julho do ano passado, escreveu o prefácio desse livro de conversas (em que também se pronunciam vários colaboradores de Gray e ainda Francis Ford Coppola), notando que "(...) ficou claro desde o seu primeiríssimo filme que James Gray era o que nós nos Cahiers chamávamos de autor. Podia-se detectá-lo imediatamente. E depois de quatro filmes, foi confirmado. O trabalho dele é marcado por um pensamento altamente emocional, sensível e violento, canalizado através de uma mise en scène que é enraizada no cinema clássico de autor.
"Com cada filme, ele volta ao mesmo pensamento uma e outra vez: Não importa o que se faça, os nossos passados são inescapáveis. É a própria definição de tragédia - os passados, e os Deuses, pesam sobre nós com todas as suas forças. Todos os filmes de James Gray consistem numa ou várias personagens a tentar escapar aos seus passados e libertarem-se a si próprios, sabendo o tempo todo que nunca farão tal coisa. Se em O Leopardo Visconti empregou a máxima: “Tem que mudar tudo para que nada mude”, nos filmes de James Gray a máxima podia ser: “Nós queremos que mude tudo, mas sabemos que não pode.”
"O passado no mundo de James Gray significa a Família - a Família no sentido duma mãe, pai e/ou irmão, mas também família num sentido mais amplo que reflecte a sociedade Americana como um todo, com as suas noções do bem e do mal, e a ideia de que toda a boa acção carrega o seu próprio mal dentro dela. Embora a família possa providenciar a fundação do amor, também nos sufoca com o seu único pecado original: restringe a liberdade.
"Em The Yards, a Família é definida pelos clãs mais amplos de políticos e empreiteiros, com cada personagem a usar de subterfúgios para encontrar o seu lugar enquanto caminham na direcção da sua ruína. Em Little Odessa, a personagem de Tim Roth escapa à sua família eliminando-a, enquanto que em We Own the Night, a personagem de Joaquin Phoenix é implacavelmente trazido de volta à sua família, onde acaba por substituir o pai dele. E em Two Lovers, a mãe interpretada por Isabella Rosselini deixa o filho dela ir, sabendo no entanto que regressará em breve, que é incapaz de sair de casa."
Até Terça!
quinta-feira, 15 de junho de 2017
True Crime (1999) de Clint Eastwood
por José Oliveira
Pouco tempo depois de termos visto Um Mundo Perfeito (1993), eis que Clint Eastwood, porventura o maior dos cineastas vivos, está de volta ao nosso cineclube. E logo com Um Crime Real, uma das obras mais negras e ambíguas da sua carreira, e também das mais menosprezadas. A sessão partiu de uma carta-branca a Daniel Pereira (comparsa do Capitão Napalm no blog O Sabor da Cerveja), que apresentará a sessão em vídeo. Vídeo que, significativamente, e ineditamente, passará no final da projecção. Quando já muita névoa passou pelo ecrã tantas vezes dito demoníaco...
Da raça puramente humana e puramente imperfeita. O acaso, o instinto, a consciência.
True Crime (título original que ainda escurece mais o abismo) ramifica-se todo mal abre, dando-nos o cenário, os intervenientes, motivações e o passado a não colar com o presente. A correnteza ou a torneira sempre aberta na mesma medida que se diz ser o estilo Clint começa logo aí a soluçar. Há um condenado à morte, um caso resolvido, a tragédia da curva da morte e um jornalista de má fama a querer provar que está no caminho certo. E assim o filme seguinte a Midnight in the Garden of Good and Evil vai muito mais fundo nas aparências e localizações do bem e do mal. A cena triste e patética da volta rápida ao zoo com a filha do jornalista de segunda que se quer tornar de primeira para poder dar voltas lentas pode ser o centro da questão moral pois mostra o lado oposto do claro heroísmo e bem da sua cruzada. Clint dorme com as filhas ou as mulheres dos patrões e está-se a borrifar para os deuses e as justiças deste mundo ou dos outros, para o bem e o mal, tem um cheiro que lhe diz que um inocente pode ser morto e decide ir até ao fim em consonância com a sua (falta) de ética. Praticar a coisa certa ou levantar-se da lama e dar a volta lenta no zoo? Raça dos que se queimam no trabalho, no seu modo de vida, por aquilo para que nasceram, na acção; sem chances de constituir uma boa família, mas que mesmo assim querem mostrar que podem.
«Todos mentimos, amigo, eu só o vim aqui escrever», dispara o jornalista ao polícia antes da cena do cheiro. Cheiro que para ele funciona como o Jesus para o preso prestes a morrer. Se cheirar bem, ele está bem. Se cheirar mal, é o inferno. E é esse o móbil que lhe faz exigir ao condenado toda a verdade. Com gente de sobra a assistir, com todo o mundo a assistir, Clint faz depender o bem e o mal desse orgulho, do seu motivo particular. Um acidente levou-o ali e ele atira-se a ele, transformando a curva da morte em curva da vida, o tortuoso no certo, e acabando só depois de ter distribuído a sua prenda no natal.
Ou pode não ser nada disso e tratar-se apenas da transcendente redenção também a todos os humanos resguardada. E estaria certo. Tal como salvou as pessoas certas independentemente dos motivos. Os seus esgares no encontro derradeiro com a mulher que perdeu o neto e ganhou um coração de ouro vêm das entranhas, conectadas com o órgão vital. É a grande questão e a grande dúvida de um imenso tratado de múltiplas leituras. Mas que Clint assuma no final que anda sempre sozinho como o Pai Natal, é amargo demais, depois de ter salvado três ou infinitas vidas. Sem zona, área ou luz de conforto. O peso do bem e do mal... sempre a depender do cheiro... do instinto que também é o tudo ou nada deste cinema. Fica a calma final, rasgando ainda mais para todos os lados.
Lembram-se da acalmia e do percurso para o escuro e para a luz da Angelina Jolie no final de Changeling, do mesmo ambíguo e humanista Clint?
domingo, 11 de junho de 2017
64ª sessão: dia 13 de Junho (Terça-Feira), às 21h30
Pouco tempo depois de termos visto Um Mundo Perfeito (também o vimos em Thunderbolt and Lightfoot de Michael Cimino e em Escape from Alcatraz do mestre Siegel - em Outubro e Novembro, respectivamente) eis que Clint Eastwood, porventura o maior dos cineastas vivos, está de volta ao nosso cineclube.
Um Crime Real, a nossa próxima sessão, é uma das obras mais negras e ambíguas da sua carreira, e também das mais menosprezadas. É a história de um polémico jornalista que gosta de se movimentar na corda bamba, da bebida e de mulheres e que vai ter poucas horas para confirmar a verdade do seu faro e salvar um condenado à morte; sendo ainda um poderosíssimo mergulho no famoso individualismo americano.
A sessão partiu de uma carta-branca a Daniel Pereira (comparsa do Capitão Napalm que nos apresentou Brian De Palma a semana passada, no blog O Sabor da Cerveja), que apresentará a sessão em vídeo.
Em 1999, Eastwood, falando tanto da sua personagem como da de Beechum, o condenado à morte, disse que "este tipo (Everett) é uma espécie de tipo auto-destrutivo e tem uma família que o adora mas isso parece não ser suficiente, parece que tem que a destruir. E o que torna esta história interessante é que a vítima no caso (Beechum) é uma vítima falsamente acusada, ou achamos que é, quando o encontramos. É mesmo um homem de família e tenta manter a família em ordem e fazer as coisas todas que o nosso herói não faz."
Luís Miguel Oliveira, que nos visitou em Braga para falar de Scorsese e também nos apresentou The Thing, escreveu sobre este filme de Eastwood por alturas da estreia, dizendo que "aparentemente mais convencional do que qualquer um dos últimos filmes de Clint Eastwood, sem nenhum pressuposto de fundo temático ou formal imediatamente visível, e partindo de um argumento algo banal que poderia ser utilizado por inúmeras rotineiras produções de Hollywood, Um Crime Real é no entanto, e por paradoxal que possa parecer, um filme exemplar na demonstração do estatuto ímpar que Eastwood/cineasta adquiriu no cinema americano. Dir-se-ia mesmo que é precisamente por tudo parecer tão banal (e essa "banalidade" terá ditado o insucesso comercial, quando não crítico, do filme) que essa fundamental diferença de Eastwood, medida em termos de talento, se revela com mais clareza.
Um Crime Real, a nossa próxima sessão, é uma das obras mais negras e ambíguas da sua carreira, e também das mais menosprezadas. É a história de um polémico jornalista que gosta de se movimentar na corda bamba, da bebida e de mulheres e que vai ter poucas horas para confirmar a verdade do seu faro e salvar um condenado à morte; sendo ainda um poderosíssimo mergulho no famoso individualismo americano.
A sessão partiu de uma carta-branca a Daniel Pereira (comparsa do Capitão Napalm que nos apresentou Brian De Palma a semana passada, no blog O Sabor da Cerveja), que apresentará a sessão em vídeo.
Em 1999, Eastwood, falando tanto da sua personagem como da de Beechum, o condenado à morte, disse que "este tipo (Everett) é uma espécie de tipo auto-destrutivo e tem uma família que o adora mas isso parece não ser suficiente, parece que tem que a destruir. E o que torna esta história interessante é que a vítima no caso (Beechum) é uma vítima falsamente acusada, ou achamos que é, quando o encontramos. É mesmo um homem de família e tenta manter a família em ordem e fazer as coisas todas que o nosso herói não faz."
Luís Miguel Oliveira, que nos visitou em Braga para falar de Scorsese e também nos apresentou The Thing, escreveu sobre este filme de Eastwood por alturas da estreia, dizendo que "aparentemente mais convencional do que qualquer um dos últimos filmes de Clint Eastwood, sem nenhum pressuposto de fundo temático ou formal imediatamente visível, e partindo de um argumento algo banal que poderia ser utilizado por inúmeras rotineiras produções de Hollywood, Um Crime Real é no entanto, e por paradoxal que possa parecer, um filme exemplar na demonstração do estatuto ímpar que Eastwood/cineasta adquiriu no cinema americano. Dir-se-ia mesmo que é precisamente por tudo parecer tão banal (e essa "banalidade" terá ditado o insucesso comercial, quando não crítico, do filme) que essa fundamental diferença de Eastwood, medida em termos de talento, se revela com mais clareza.
"À boa maneira "clássica", há dois filmes em Um Crime Real: o primeiro corresponde às regras da indústria e desenrola-se segundo fórmulas, temas e géneros consagrados, o que neste caso equivale à história de um condenado à morte cuja inocência tem que ser provada, em "last minute rescue", nas 24 horas que antecedem a sua execução; o segundo, que mantém com o primeiro relações meramente tangenciais (ou por outra, que se "serve" dele), é o filme que Clint Eastwood quer fazer e que tem nesta matriz apenas o pretexto para partir para outra coisa e outros lugares, mais pessoais."
Inácio Araújo, que há pouco tempo nos apresentou Heat de Michael Mann, também escreveu sobre o filme, para a Folha de São Paulo, dizendo que "são tantos os aspectos a observar em Um Crime Real que mais vale isolar um deles, à primeira vista contingente, que é a função da TV na vida contemporânea.
O novo filme de Clint Eastwood tem dois pólos. Num, está Frank Beechum, um presidiário negro, no dia de sua execução. No outro, o veterano repórter Steve Everett, cínico, frustrado e mulherengo. Tendo herdado a missão de entrevistar Beechum, ele chega à conclusão de que a culpabilidade do condenado não está estabelecida.
O desimportante "Oakland Tribune" quer dele uma reportagem "humana": como se sente o condenado no dia da morte, se está arrependido, essas coisas. Algo não muito diferente do que faz a TV, em suma. A TV não faz senão martelar o óbvio cretinizante: declarações deste ou daquele, detalhes sobre a execução, entrevista com a testemunha do crime etc. etc.
"À parte o cinismo transbordante, no entanto, Steve considera que existe uma relação entre jornalismo e verdade. Nas poucas horas que lhe restam, está disposto a investigar o caso e a demonstrar que ainda tem "faro" para a notícia. A rigor, a afirmação contida no filme é: a TV tudo pode. Uma mentira repetida ali à saciedade torna-se verdade. Isso faz menos parte da diretriz editorial de tal ou tal rede do que da própria lógica do veículo. Se existe um morto, tem que haver um culpado. Se há alguém que parece culpado, esse é o culpado. A revolta popular por um crime tem que encontrar uma resposta, e essa resposta tem de ser a morte de alguém. A verdade não tem nada a ver com isso."
Até Terça-Feira!
"À parte o cinismo transbordante, no entanto, Steve considera que existe uma relação entre jornalismo e verdade. Nas poucas horas que lhe restam, está disposto a investigar o caso e a demonstrar que ainda tem "faro" para a notícia. A rigor, a afirmação contida no filme é: a TV tudo pode. Uma mentira repetida ali à saciedade torna-se verdade. Isso faz menos parte da diretriz editorial de tal ou tal rede do que da própria lógica do veículo. Se existe um morto, tem que haver um culpado. Se há alguém que parece culpado, esse é o culpado. A revolta popular por um crime tem que encontrar uma resposta, e essa resposta tem de ser a morte de alguém. A verdade não tem nada a ver com isso."
Até Terça-Feira!
quarta-feira, 7 de junho de 2017
Snake Eyes (1998) de Brian De Palma
por João Palhares
Snake Eyes acaba e começa com planos-sequência. Melhor dizendo, começa com um falso plano-sequência e acaba com um plano-sequência. Esse primeiro "plano-sequência" introduz-nos na acção, é a representação distanciada do acontecimento que vai contaminar todo o filme: a morte do ministro da defesa. Segundo Brian De Palma, o realizador deste filme, há três ou quatro cortes muito subtis (pessoalmente só reparei em dois, deixo o exercício para quem os quiser contar: parece que são quatro ou cinco, os planos), no trajecto do personagem de Nicolas Cage, Rick Santoro. Mas a minúcia a lidar com a logística (centenas de figurantes, percursos complicados dos actores) não deixa de surpreender. Começo por escrever isto porque a comoção que se segue só tem o poder que tem por causa da fluidez, diria até que acalmia absoluta, desses primeiros minutos. Quando a multidão desata a correr em pânico, nós sentimos a transição profundamente. De facto, atravessa-nos um grande desalento, mais intelectual, mais teórico, e enquanto os cortes se seguem uns atrás dos outros a grande velocidade, também estamos completamente desnorteados.
O que se segue, ou o cerne do filme, é a dissecação obsessiva (narrativa, do som, da montagem) daqueles cinco primeiros planos, ou daquele falso plano. Repetem-se os “Tyler!” efusivos de Santoro, o “Here comes the pain!” e o tiro final, constantemente.
Rick Santoro é o otário que investiga o assassinato, percebendo as coisas aos poucos. E De Palma parece que adequa o trabalho de câmara e de montagem ao Q.I. da personagem. Slow motions, split screens, escalas em sintonia, música; nunca a arte de De Palma, parece-me, fez tanto sentido num filme seu, confundem-se a percepção e a montagem, constantemente.
E porque sempre achei que há um momento em filmes brilhantes em que percebemos que são brilhantes, falo da sequência do flashback de Tyler, o boxer: confrontado por Santoro pelo K.O. duvidoso, conta a sua história, uma das primeiras peças do puzzle. A dificuldade em ser vencido por tão fraco adversário, está à nora; vêm então os acordes belíssimos da banda-sonora de Ryuchi Sakamoto. Tudo lentíssimo, contemplativo. Retenha-se o plano do homem vencido (talvez o mais belo de toda a obra de De Palma), perfeitamente consciente da sua ruína e do seu destino, pausa necessária da profusão de reviravoltas e de informação – tudo isto prova que De Palma também é humano, o momento é belíssimo, mas não se força a isso, flui extraordinariamente.
Ao ver o resto do filme, conforme Santoro vai decifrando o resto do puzzle, apercebêmo-nos do gozo que deve ter dado a De Palma ter feito o filme, continuando a dividir e a talhar minuciosamente aquele assassinato até às últimas consequências, encontrando novas câmaras e novos pontos de vista, novos ângulos e novos testemunhos – a história pela imagem – habilidosamente. Reviravolta atrás de reviravolta. Até ao plano final, com Santoro e Julia (onde andas tu, Carla Gugino?).
Dos chamados “filmes com twist” (e para este filme acho que isso pouco interessa), só gosto dos de De Palma.
texto publicado no terceiro número da revista FOCO, com algumas modificações para esta folha
segunda-feira, 5 de junho de 2017
sábado, 3 de junho de 2017
63ª sessão: dia 6 de Junho (Terça-Feira), às 21h30
Com Snake Eyes, a nossa próxima sessão, talvez voltem os fantasmas dos anos sessenta e as paranóias, obsessões e conspirações dos anos setenta. Um assassínio ao mais alto nível é filmado com múltiplas câmaras e contado sob múltiplas perspectivas, sendo as peças reunidas por um dos vultos da Nova Hollywood, o Brian De Palma que disse que "o cinema mente a toda a hora... 24 vezes por segundo".
Dizia-se e ainda se diz que o realizador de Blow Out roubou tudo a Alfred Hitchcock, que é teórico demais, um fetichista das imagens, que não resiste a fazer um espectáculo dos seus movimentos de câmara e da sua inteligência, mas a verdade é que quando acerta (e ainda acertou umas vezes) o prazer de ver tudo isso em acção sobrepõe-se a quaisquer reservas e assegura-nos que é um original, realizador com uma das marcas mais distintivas do cinema actual.
Tiago Ribeiro, grande fã de De Palma e um dos críticos portugueses de que mais gostamos (e cujo trabalho pode ser lido no site À Pala de Walsh, partilhando também um blog com Daniel Pereira, O Sabor da Cerveja), enviou-nos um vídeo de apresentação para o filme.
Sobre a filmagem dos primeiros planos do filme, De Palma disse a Henri Béhar que foi "extremamente complicado. Não há rede, basicamente. Comete-se um erro, tem que se voltar ao princípio. É semelhante a um número de corda bamba: pode-se ficar muito animado a tentar levá-lo adiante. Também é muito vitalizante para os actores. Há uma espécie de agitação na interpretação deles que não se obtém quando se começa a filmar em planos gerais, depois planos aproximados, depois grandes planos...
"Passámos mesmo um bom bocado a fazer isso tudo. Mas digo-lhe, enquanto o estávamos a fazer, estávamos a olhar uns para os outros, e estávamos, tipo, "Whoa!" Eu trabalhei com a mesma equipa em vários filmes, fizemos aquele plano de abertura de Bonfire of the Vanities, fizemos muitos planos complicados. Mas tenta-se sempre elevar um bocadinho a parada. E ao fazê-lo, descobrem-se coisas que estão a acontecer mesmo à nossa frente ou só num canto do enquadramento e diz-se, "Porque é que não se tenta integrar aquilo nisto?" E fica-se animado ao fazê-lo. "Wow! Conseguimos levá-lo adiante?"
"No fim de contas, passa-se muito rápido, porque faz-se mesmo a coisa toda num só take. O estúdio telefonava: "Isso é óptimo, mas onde está a cobertura?" Não há cobertura. É isto. "Espeeera um minuto! Imagina que não funciona?" TEM que funcionar! Basicamente, filmámos as primeiras vinte e tal páginas do guião em menos de vinte minutos. Ensaiámo-las o dia todo, depois filmámos."
O nosso já conhecido Bruno Andrade escreveu sobre o filme para a revista Contracampo em 2007, confessando que "até àquela época - eu devia estar entre os 14 e 15 anos - os filmes de Brian De Palma não me tinham impressionado muito (com a notável excepção de Blow Out - Explosão, que ainda hoje considero a obra-prima do cineasta); eu não conseguia entender a razão por trás dos seus longos e lentos movimentos de câmara, e também não me conseguia envolver com as reviravoltas nas narrativas dos seus filmes ou com as atribulações dos seus personagens, a meu ver muito ingénuos ou muito preocupados com paranóias políticas ou dilemas éticos que não me pareciam de maior interesse (a adolescência geralmente revela-se ou bastante cínica ou apenas cretina, e acho que a minha tendeu bastante para a segunda alternativa). Mas a partir de Missão Impossível, um filme que me tinha impressionado bastante não apenas pelo carácter ambíguo de toda a sua segunda parte mas também por fugir do já mais que antiquado estereótipo dos filmes de espionagem (leia-se 007), passei a cogitar uma reavaliação não apenas dos talentos de sr. De Palma como encenador mas também de toda a sua obra, a tentar observar algumas características ou temas recorrentes; enfim, a tentar procurar uma amostra do talento exibido em Missão Impossível nos seus filmes anteriores.
Dizia-se e ainda se diz que o realizador de Blow Out roubou tudo a Alfred Hitchcock, que é teórico demais, um fetichista das imagens, que não resiste a fazer um espectáculo dos seus movimentos de câmara e da sua inteligência, mas a verdade é que quando acerta (e ainda acertou umas vezes) o prazer de ver tudo isso em acção sobrepõe-se a quaisquer reservas e assegura-nos que é um original, realizador com uma das marcas mais distintivas do cinema actual.
Tiago Ribeiro, grande fã de De Palma e um dos críticos portugueses de que mais gostamos (e cujo trabalho pode ser lido no site À Pala de Walsh, partilhando também um blog com Daniel Pereira, O Sabor da Cerveja), enviou-nos um vídeo de apresentação para o filme.
Sobre a filmagem dos primeiros planos do filme, De Palma disse a Henri Béhar que foi "extremamente complicado. Não há rede, basicamente. Comete-se um erro, tem que se voltar ao princípio. É semelhante a um número de corda bamba: pode-se ficar muito animado a tentar levá-lo adiante. Também é muito vitalizante para os actores. Há uma espécie de agitação na interpretação deles que não se obtém quando se começa a filmar em planos gerais, depois planos aproximados, depois grandes planos...
"Passámos mesmo um bom bocado a fazer isso tudo. Mas digo-lhe, enquanto o estávamos a fazer, estávamos a olhar uns para os outros, e estávamos, tipo, "Whoa!" Eu trabalhei com a mesma equipa em vários filmes, fizemos aquele plano de abertura de Bonfire of the Vanities, fizemos muitos planos complicados. Mas tenta-se sempre elevar um bocadinho a parada. E ao fazê-lo, descobrem-se coisas que estão a acontecer mesmo à nossa frente ou só num canto do enquadramento e diz-se, "Porque é que não se tenta integrar aquilo nisto?" E fica-se animado ao fazê-lo. "Wow! Conseguimos levá-lo adiante?"
"No fim de contas, passa-se muito rápido, porque faz-se mesmo a coisa toda num só take. O estúdio telefonava: "Isso é óptimo, mas onde está a cobertura?" Não há cobertura. É isto. "Espeeera um minuto! Imagina que não funciona?" TEM que funcionar! Basicamente, filmámos as primeiras vinte e tal páginas do guião em menos de vinte minutos. Ensaiámo-las o dia todo, depois filmámos."
O nosso já conhecido Bruno Andrade escreveu sobre o filme para a revista Contracampo em 2007, confessando que "até àquela época - eu devia estar entre os 14 e 15 anos - os filmes de Brian De Palma não me tinham impressionado muito (com a notável excepção de Blow Out - Explosão, que ainda hoje considero a obra-prima do cineasta); eu não conseguia entender a razão por trás dos seus longos e lentos movimentos de câmara, e também não me conseguia envolver com as reviravoltas nas narrativas dos seus filmes ou com as atribulações dos seus personagens, a meu ver muito ingénuos ou muito preocupados com paranóias políticas ou dilemas éticos que não me pareciam de maior interesse (a adolescência geralmente revela-se ou bastante cínica ou apenas cretina, e acho que a minha tendeu bastante para a segunda alternativa). Mas a partir de Missão Impossível, um filme que me tinha impressionado bastante não apenas pelo carácter ambíguo de toda a sua segunda parte mas também por fugir do já mais que antiquado estereótipo dos filmes de espionagem (leia-se 007), passei a cogitar uma reavaliação não apenas dos talentos de sr. De Palma como encenador mas também de toda a sua obra, a tentar observar algumas características ou temas recorrentes; enfim, a tentar procurar uma amostra do talento exibido em Missão Impossível nos seus filmes anteriores.
"Mas para que tal revisão acontecesse, foram necessários dois anos e a estreia de Os Olhos da Serpente. É realmente muito difícil explicar o efeito que o filme teve (e ainda tem) sobre mim, e quando o tento pensar não consigo escapar de algumas palavras perigosas como "revelação" ou "revolução". O que posso sinceramente dizer é que, pela primeira vez, um filme me fazia perceber que a imagem não detém qualquer coisa que possamos chamar simplesmente de verdade ou mentira; que o cinema trabalha justamente a linha ténue que existe entre as duas; e que é função do cineasta fazer-nos questionar tudo aquilo que se põe como verdade ou tudo aquilo que a imagem transforma em verdade, pois a sua área de trabalho não se limita às velhas noções de realidade ou ficção mas sim de artifícios e representações, de uma ruiva provocante que acaba por se revelar uma agente do governo (e por sinal loira, não ruiva), de uma femme fatale loira que descobriremos ser uma programadora de computadores (e por sinal morena, não loira), de um polícia corrupto que será transformado em herói nacional e de um herói nacional que descobriremos ser um oficial corrupto... De Palma subverte e desmonta, perverte e remonta toda e qualquer imagem que o espectador possa transformar num "apoio": jamais sabemos se o que vimos há pouco ou o que estamos a ver agora não passa de um grande engodo, de uma grande "ilusão" que não apenas oculta mas que também revela, a seu modo, muito do que parece ser o ideário cinematográfico de De Palma: a busca incessante por essa imagem ambígua que não corresponde nem a uma ideia de falso e muito menos a uma ideia de real, e que é no entanto o suporte deste confuso credo de De Palma em tudo aquilo que é cinema."
Até Terça!
Até Terça!
quinta-feira, 1 de junho de 2017
Cop Land (1997) de James Mangold
por João Palhares
Sylvester Stallone nasceu a 6 de Julho de 1946 em Nova Iorque, no bairro de Hell's Kitchen (onde no ano seguinte, Kazan, Cheryl Crawford, Robert Lewis e Anna Sokolow, fundariam o Actors Studio). Devido a complicações durante o parto, os médicos parteiros tiveram que usar fórcepses e cortaram um nervo do pequeno Stallone, provocando uma paralisia na parte inferior esquerda da sua cara que lhe danificou o rosto e a fala - algo com que teve que lidar desde muito novo e mesmo depois de se ter tornado actor, porque houve sempre quem usasse isso para o atacar de forma cobarde a si e ao seu trabalho. Aos cinco anos mudou-se com a família para Maryland, no estado de Washington. Aos 11 anos, com o divórcio dos pais, passou a viver um ano com cada um deles, à vez, até a mãe se casar de novo e se mudar com ela para Filadélfia, onde passou os últimos anos da adolescência. Expulso várias vezes de escolas por desacatos e vandalismo acabou por ser enviado pela mãe para o American College da Suíça, onde teve que improvisar um negócio de hambúrgueres sem licenças para levar a sua vida. Também safou um príncipe etíope de sarilhos com os colegas, acabando por receber um carro como agradecimento. Vendeu-o e ao fim do segundo ano mudou-se para Miami para estudar Teatro, voltando finalmente a Nova Iorque para tentar a sorte como actor.
Entre trabalhos em part-time como porteiro ou limpador de jaulas de leões no jardim zoológico, Stallone ia a castings atrás de castings enquanto escrevia argumentos, chamando inclusive a atenção de Otto Preminger por algo que tinha escrito sobre os seus dias no liceu suíço. Preminger virou-lhe as costas quando o jovem Stallone lhe pediu uma pechincha pela história e pelo trabalho de re-escrita do guião ("Preminger olhou para mim com tanto desdém, como se dissesse, 'Tu não és um escritor. Nenhum escritor no mundo se vendia só por 70 dólares.'", contou Stallone à Playboy em 1978). Entre finais dos anos 60 e inícios dos 70, bateu no fundo, chegando mesmo a dormir nas ruas e a ter que aceitar um trabalho humilhante por 200 dólares para arranjar sítio em que ficar ("era fazer esse filme ou roubar alguém, porque estava no fim -- mesmo no fim -- da linha. Em vez de fazer algo desesperado, trabalhei dois dias por $200 e tirei-me da estação de autocarros", conta Stallone na mesma entrevista). Depois de entrar como figurante ou em papéis muito pequenos de filmes de Richard Fleischer, Alan J. Pakula, Woody Allen ou Steve Carver e de encabeçar e co-escrever The Lords of Flatbush (um dos filmes favoritos de Vincent Gallo), a vida volta-lhe a fazer das suas e acaba outra vez falido. Com o pouco dinheiro que tem, vai ver um combate entre Muhammad Ali e Chuck Wepner. "(...) Estou ali sentado, a olhar para o público à minha volta, e um drama revela-se. O Wepner é um cavalo de prova que é suposto durar talvez três rondas, para o Ali poder ir cedo para o chuveiro, mas ele aguenta-se. E então, de repente, o Ali cai -- tropeçou -- mas agora o público está a ficar louco! Os olhos de alguns tipos estão a ficar brancos; quero dizer, a multidão está a ficar doida. E lá vem a última ronda, e o Wepner perde finalmente por um TKO. Eu pensei para mim mesmo, 'Isto é drama. Agora a única coisa que tenho de fazer é levar uma personagem até esse ponto e tenho a minha história.'" Foi a génese de Rocky. E o resto é história.
Se se conta a história de Sylvester Stallone é porque ao contrário dos talentos que se revelavam num grande sopro de inspiração e vingavam na indústria ou na arte que praticavam, o seu durou bastante tempo a ser reconhecido e, mesmo depois de reconhecido, voltou a ser questionado uma e outra vez. Foi acontecendo sempre ao longo das décadas e dos anos e continua a acontecer. Depois de ser nomeado para três Oscars e provar ser um artista completo que realizava e interpretava os seus próprios guiões (além de pintar ou cantar, por exemplo, o tema de abertura do seu Paradise Alley). E essa luta e esse seu percurso pessoal arranjaram maneira de se tornar matéria viva de vários dos filmes que interpretou, escreveu ou realizou, partindo do momento em que ninguém acredita em si nem na fúria escondida na sua apatia aparente (divagando: será só coincidência que os romances de David Goodis, imbuídos da sua vida na Filadélfia que é também de Stallone, falem de heróis que escondem sempre e das maneiras mais variadas e complexas uma força animal por baixo de uma postura de completo desânimo e indiferença?) até provar o seu valor à custa de um esforço hercúleo e de outro mundo e cumprir o seu potencial. "Eles não sabem quão esquizóide me posso tornar nem como mudo, às vezes. Sempre fui como uma espécie de camaleão, e os críticos não podem saber isso, porque não viveram comigo durante 32 anos; Eu vivi.", disse Stallone.
É difícil falar do mito ("mito" como verdade fundadora e colectiva, não como engodo - que é como a palavra parece ser usada a maior parte das vezes, nos tempos que correm) que Rocky, Rocky II e First Blood erigiram e provocaram, sobretudo tratando-se de filmes aos quais só se consegue responder com profunda emoção, mas terá sido a própria resistência dos seus pares e dos seus críticos ao seu talento (e nunca dos seus milhões de fãs em todo o mundo, porque depois do sucesso inicial de Rocky nunca deixou de ser uma grande estrela) que permitiu a Stallone ir construíndo esse mito ao longo dos anos sem nunca olhar para trás ("I'm too close to ever go home again", canta Stallone em Paradise Alley), como se cada golpe o tornasse mais forte (continuando, "one step closer, now, with one more fight"). E para não nos encerrarmos nem nos enterrarmos na sociologia, dizemos finalmente que a construção desse mito atingiu mesmo pontos muito altos e deu por vezes origem a belos filmes (alguns com as suas falhas, mas que não abalam a sua enorme força e vitalidade), dos quais retemos principalmente Rocky de John Guilbert Avildsen, Paradise Alley e Rocky II de Stallone, First Blood de Ted Kotcheff, Rocky Balboa de Stallone, Creed de Ryan Coogler (aos quais talvez pudéssemos acrescentar The Lords of Flatbush, Rocky V e John Rambo, se os tivéssemos visto) e o filme que nos interessa para esta sessão, Cop Land de James Mangold.
Para Cop Land, James Mangold também teve que superar os seus preconceitos em relação a Stallone. E superou-os vendo-o a trabalhar em primeira mão, durante as filmagens, sendo esperto o suficiente para usar esse seu choque inicial e essa sua revelação progressiva em proveito do filme, que descreve o mesmo arco (e de tantos outros filmes do actor, como já vimos). Stallone interpreta um xerife surdo de um ouvido há já uns anos, por causa de um salvamento perigoso nas águas do rio que separa a sua cidade fictícia da de Nova Iorque. É responsável por uma dezena de polícias corruptos que moram nessa cidade para exercer influências criminosas do outro lado do rio sem represálias. De forma não muito heróica mas sempre resoluta, a personagem de Stallone indaga e pergunta, "move-se diagonalmente", a conselho do amigo Ray Liotta, provando a si próprio e contra o resto do mundo que o rapaz que salvou essa rapariga de um carro submerso ainda vivia dentro de si.
Dentro deste quadro mais stalloniano, Mangold consegue ainda pagar tributo ao western, através da descrição do xerife sitiado, dos armazéns de água que servem como refúgios fora da cidade ou do apelido Heflin (é como se chama o xerife de Stallone, Frank Heflin), que nos remete para Van Heflin, actor de Wings of the Hawk (Budd Boetticher, 1953), The Raid (Hugo Fregonese, 1954), 3:10 to Yuma (Delmer Daves, 1957) e Gunman's Walk (Phil Karlson, 1958).
Mas o que mais toca e impressiona neste filme, tirando a sequência mais óbvia, pesada e calculada do tiroteio final (ainda assim formalmente justificada por ser descrita sob o ponto de vista do Heflin agora surdo de dois ouvidos), são duas sequências lindíssimas à volta da figura de Stallone. A primeira mostra-o a olhar pela janela para a mulher que depois descobriremos ser a que salvou das águas. Vê a mulher a pousar a tartaruga de peluche da filha no cimo da carrinha e a arrancar sem se aperceber do sucedido. Heflin apercebe-se. Mais à frente vêmo-lo a atravessar a rua e a pegar no boneco, entre os seus outros afazeres do dia. Pouco depois vai a casa dela e entrega-o de surpresa. Esta confessa que se tinha esquecido dele em cima do carro e só se apercebeu quando chegou a casa. Ele responde que "I know. I saw, through my window." Coisa muito simples mas que prova, pelo menos, que há alguma atenção e carinho pelas personagens que se estão a filmar, uma tentativa de fazer entrar as pequenas e belas absurdidades da vida pelas portas ásperas de uma narrativa. Sem calculismos mas a espaços, entre pedaços importantes da trama, passando quase despercebida se não se prestar atenção.
A segunda, e que será dos momentos mais comoventes em filmes de Stallone, é a entrega de "Superboy" (o rapaz perseguido que Heflin quer entregar para testemunhar contra os polícias criminosos) em Nova Iorque. Com a ajuda da personagem de Ray Liotta, Stallone arrasta-se ensanguentado pelo átrio da enorme esquadra rodeada de polícias, agarrando-se ao seu prisioneiro com todas as forças que lhe restam. Robert De Niro, que também entra neste filme, diz-lhe que está tudo bem enquanto Liotta grita que ele não ouve, que lhe rebentaram o outro ouvido, que está totalmente surdo. De Niro agarra no prisioneiro e Stallone vira-se enlouquecido e violento. "It's all right", garante De Niro, olhando-o nos olhos. Sly torce a cabeça e larga o prisioneiro. "It's ok, it's ok. Come on." Stallone olha para Liotta, que lhe diz "Come on, Freddy". Grande plano de Bobby De Niro: "Come on inside." Agarra Stallone pelos braços e leva-o para a esquadra como se dissesse ao miúdo com problemas de fala nascido tão perto do Actors Studio que podia finalmente lá entrar, que ao provar o que quer que quisesse provar nesta altura só provou pela enésima vez que nunca teve nada para provar. A ninguém. E nós choramos.
Entre trabalhos em part-time como porteiro ou limpador de jaulas de leões no jardim zoológico, Stallone ia a castings atrás de castings enquanto escrevia argumentos, chamando inclusive a atenção de Otto Preminger por algo que tinha escrito sobre os seus dias no liceu suíço. Preminger virou-lhe as costas quando o jovem Stallone lhe pediu uma pechincha pela história e pelo trabalho de re-escrita do guião ("Preminger olhou para mim com tanto desdém, como se dissesse, 'Tu não és um escritor. Nenhum escritor no mundo se vendia só por 70 dólares.'", contou Stallone à Playboy em 1978). Entre finais dos anos 60 e inícios dos 70, bateu no fundo, chegando mesmo a dormir nas ruas e a ter que aceitar um trabalho humilhante por 200 dólares para arranjar sítio em que ficar ("era fazer esse filme ou roubar alguém, porque estava no fim -- mesmo no fim -- da linha. Em vez de fazer algo desesperado, trabalhei dois dias por $200 e tirei-me da estação de autocarros", conta Stallone na mesma entrevista). Depois de entrar como figurante ou em papéis muito pequenos de filmes de Richard Fleischer, Alan J. Pakula, Woody Allen ou Steve Carver e de encabeçar e co-escrever The Lords of Flatbush (um dos filmes favoritos de Vincent Gallo), a vida volta-lhe a fazer das suas e acaba outra vez falido. Com o pouco dinheiro que tem, vai ver um combate entre Muhammad Ali e Chuck Wepner. "(...) Estou ali sentado, a olhar para o público à minha volta, e um drama revela-se. O Wepner é um cavalo de prova que é suposto durar talvez três rondas, para o Ali poder ir cedo para o chuveiro, mas ele aguenta-se. E então, de repente, o Ali cai -- tropeçou -- mas agora o público está a ficar louco! Os olhos de alguns tipos estão a ficar brancos; quero dizer, a multidão está a ficar doida. E lá vem a última ronda, e o Wepner perde finalmente por um TKO. Eu pensei para mim mesmo, 'Isto é drama. Agora a única coisa que tenho de fazer é levar uma personagem até esse ponto e tenho a minha história.'" Foi a génese de Rocky. E o resto é história.
Se se conta a história de Sylvester Stallone é porque ao contrário dos talentos que se revelavam num grande sopro de inspiração e vingavam na indústria ou na arte que praticavam, o seu durou bastante tempo a ser reconhecido e, mesmo depois de reconhecido, voltou a ser questionado uma e outra vez. Foi acontecendo sempre ao longo das décadas e dos anos e continua a acontecer. Depois de ser nomeado para três Oscars e provar ser um artista completo que realizava e interpretava os seus próprios guiões (além de pintar ou cantar, por exemplo, o tema de abertura do seu Paradise Alley). E essa luta e esse seu percurso pessoal arranjaram maneira de se tornar matéria viva de vários dos filmes que interpretou, escreveu ou realizou, partindo do momento em que ninguém acredita em si nem na fúria escondida na sua apatia aparente (divagando: será só coincidência que os romances de David Goodis, imbuídos da sua vida na Filadélfia que é também de Stallone, falem de heróis que escondem sempre e das maneiras mais variadas e complexas uma força animal por baixo de uma postura de completo desânimo e indiferença?) até provar o seu valor à custa de um esforço hercúleo e de outro mundo e cumprir o seu potencial. "Eles não sabem quão esquizóide me posso tornar nem como mudo, às vezes. Sempre fui como uma espécie de camaleão, e os críticos não podem saber isso, porque não viveram comigo durante 32 anos; Eu vivi.", disse Stallone.
É difícil falar do mito ("mito" como verdade fundadora e colectiva, não como engodo - que é como a palavra parece ser usada a maior parte das vezes, nos tempos que correm) que Rocky, Rocky II e First Blood erigiram e provocaram, sobretudo tratando-se de filmes aos quais só se consegue responder com profunda emoção, mas terá sido a própria resistência dos seus pares e dos seus críticos ao seu talento (e nunca dos seus milhões de fãs em todo o mundo, porque depois do sucesso inicial de Rocky nunca deixou de ser uma grande estrela) que permitiu a Stallone ir construíndo esse mito ao longo dos anos sem nunca olhar para trás ("I'm too close to ever go home again", canta Stallone em Paradise Alley), como se cada golpe o tornasse mais forte (continuando, "one step closer, now, with one more fight"). E para não nos encerrarmos nem nos enterrarmos na sociologia, dizemos finalmente que a construção desse mito atingiu mesmo pontos muito altos e deu por vezes origem a belos filmes (alguns com as suas falhas, mas que não abalam a sua enorme força e vitalidade), dos quais retemos principalmente Rocky de John Guilbert Avildsen, Paradise Alley e Rocky II de Stallone, First Blood de Ted Kotcheff, Rocky Balboa de Stallone, Creed de Ryan Coogler (aos quais talvez pudéssemos acrescentar The Lords of Flatbush, Rocky V e John Rambo, se os tivéssemos visto) e o filme que nos interessa para esta sessão, Cop Land de James Mangold.
Para Cop Land, James Mangold também teve que superar os seus preconceitos em relação a Stallone. E superou-os vendo-o a trabalhar em primeira mão, durante as filmagens, sendo esperto o suficiente para usar esse seu choque inicial e essa sua revelação progressiva em proveito do filme, que descreve o mesmo arco (e de tantos outros filmes do actor, como já vimos). Stallone interpreta um xerife surdo de um ouvido há já uns anos, por causa de um salvamento perigoso nas águas do rio que separa a sua cidade fictícia da de Nova Iorque. É responsável por uma dezena de polícias corruptos que moram nessa cidade para exercer influências criminosas do outro lado do rio sem represálias. De forma não muito heróica mas sempre resoluta, a personagem de Stallone indaga e pergunta, "move-se diagonalmente", a conselho do amigo Ray Liotta, provando a si próprio e contra o resto do mundo que o rapaz que salvou essa rapariga de um carro submerso ainda vivia dentro de si.
Dentro deste quadro mais stalloniano, Mangold consegue ainda pagar tributo ao western, através da descrição do xerife sitiado, dos armazéns de água que servem como refúgios fora da cidade ou do apelido Heflin (é como se chama o xerife de Stallone, Frank Heflin), que nos remete para Van Heflin, actor de Wings of the Hawk (Budd Boetticher, 1953), The Raid (Hugo Fregonese, 1954), 3:10 to Yuma (Delmer Daves, 1957) e Gunman's Walk (Phil Karlson, 1958).
Mas o que mais toca e impressiona neste filme, tirando a sequência mais óbvia, pesada e calculada do tiroteio final (ainda assim formalmente justificada por ser descrita sob o ponto de vista do Heflin agora surdo de dois ouvidos), são duas sequências lindíssimas à volta da figura de Stallone. A primeira mostra-o a olhar pela janela para a mulher que depois descobriremos ser a que salvou das águas. Vê a mulher a pousar a tartaruga de peluche da filha no cimo da carrinha e a arrancar sem se aperceber do sucedido. Heflin apercebe-se. Mais à frente vêmo-lo a atravessar a rua e a pegar no boneco, entre os seus outros afazeres do dia. Pouco depois vai a casa dela e entrega-o de surpresa. Esta confessa que se tinha esquecido dele em cima do carro e só se apercebeu quando chegou a casa. Ele responde que "I know. I saw, through my window." Coisa muito simples mas que prova, pelo menos, que há alguma atenção e carinho pelas personagens que se estão a filmar, uma tentativa de fazer entrar as pequenas e belas absurdidades da vida pelas portas ásperas de uma narrativa. Sem calculismos mas a espaços, entre pedaços importantes da trama, passando quase despercebida se não se prestar atenção.
A segunda, e que será dos momentos mais comoventes em filmes de Stallone, é a entrega de "Superboy" (o rapaz perseguido que Heflin quer entregar para testemunhar contra os polícias criminosos) em Nova Iorque. Com a ajuda da personagem de Ray Liotta, Stallone arrasta-se ensanguentado pelo átrio da enorme esquadra rodeada de polícias, agarrando-se ao seu prisioneiro com todas as forças que lhe restam. Robert De Niro, que também entra neste filme, diz-lhe que está tudo bem enquanto Liotta grita que ele não ouve, que lhe rebentaram o outro ouvido, que está totalmente surdo. De Niro agarra no prisioneiro e Stallone vira-se enlouquecido e violento. "It's all right", garante De Niro, olhando-o nos olhos. Sly torce a cabeça e larga o prisioneiro. "It's ok, it's ok. Come on." Stallone olha para Liotta, que lhe diz "Come on, Freddy". Grande plano de Bobby De Niro: "Come on inside." Agarra Stallone pelos braços e leva-o para a esquadra como se dissesse ao miúdo com problemas de fala nascido tão perto do Actors Studio que podia finalmente lá entrar, que ao provar o que quer que quisesse provar nesta altura só provou pela enésima vez que nunca teve nada para provar. A ninguém. E nós choramos.