segunda-feira, 31 de agosto de 2020

173ª sessão: dia 3 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Depois da podridão e da pobreza surrealmente insuportáveis ou insuportavelmente surrealistas de Los Olvidados, depois do suor, do calor e das seduções pouco inocentes de Susana, depois dos enganos e desenganos trágicos e cómicos de La hija del engaño e Una mujer sin amor, e depois das cargas e investidas animais de El Bruto, em Setembro regressamos a Luis Buñuel Portolés e ao México. El, de 1952, com um Arturo de Córdova alucinante, é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Na sua autobiografia, Mon Dernier Soupir (Robert Laffont, 1982), o realizador contou que “depois de Subida al cielo, o meu próximo filme lançado foi El, que foi feito em 1952 depois de Robinson Crusoe. Ironicamente, não há absolutamente nada de mexicano em El; é simplesmente o retrato de um paranóico, que, como um poeta, nasce, não se constrói. Mais tarde, percebe cada vez mais a realidade consoante a sua obsessão, até tudo na sua vida girar à volta dela. Suponha-se, por exemplo, que uma mulher toca uma frase curta ao piano e o marido paranóico dela fica imediatamente convencido que é um sinal para o amante dela que está algures à espera lá fora, na rua...

"El tem muitos detalhes autênticos retirados da vida quotidiana, mas também tem bastante invenção. No início, por exemplo, durante a lavagem dos pés na igreja, o paranóico espia imediatamente a sua vítima, como um falcão espia a pomba. Esta intuição ofuscante pode ser ficção, mas ninguém me pode dizer que em certo sentido não seja baseada numa realidade. Em todo o caso, o filme foi mostrado em Cannes, por qualquer razão inexplicável, durante uma exibição em honra dos veteranos de guerras estrangeiras, que, como se pode imaginar, ficaram indignados. De uma maneira geral, não foi muito bem recebido; mesmo Jean Cocteau, que uma vez tinha escrito várias páginas generosas sobre o meu trabalho em Opium, declarou que com El eu tinha “cometido suicídio.” (Mudou de ideias, mais tarde.) A minha única consolação veio de Jacques Lacan, que viu o filme numa exibição especial para psiquiatras na Cinemateca em Paris e elogiou algumas das suas verdades psicológicas. 

"No México, El foi nada mais, nada menos, que desastroso. Oscar Dancigers saiu de rompante da sala de exibição enquanto o público se convulsionava com risos. Eu entrei no cinema mesmo no momento em que (fantasmas de San Sebastián) o homem passa uma grande agulha pelo buraco duma fechadura para cegar o espião que acha que está à espreita por trás da porta. Oscar tinha razão; eles estavam-se a rir. O filme esteve em exibição durante umas semanas, mas apenas graças ao prestígio de Arturo de Córdova, que interpretou o papel principal.”

João Bénard da Costa, na sua folha da Cinemateca sobre o filme, escreveu que "o estatuto cimeiro desta obra ímpar tardou em ser reconhecido. Em Cannes, onde, pela terceira vez consecutiva, Buñuel esteve representado, depois do grande sucesso de Los Olvidados, em 1950, o filme foi muito mal recebido. No México, mesmo gelo. À época, segundo Buñuel, só um homem reparou na importância do filme: o então ainda pouco conhecido psicanalista Jacques Lacan que o escolheu como base dum curso sobre a paranóia.

"Só no ano seguinte (quando El se estreou nas principais capitais europeias) a crítica começou a descobrir a obra, sobretudo a partir de uma excelente análise publicada na Positif, em Maio de 54. Desde então (como escreveu, em 1968, Jacques Belmans em Image et Son) El foi como o bom vinho: só melhorou com o tempo. «O que à época pôde parecer bizarro e exagerado, assume hoje o aspecto de uma tragédia individual, contada com prodigiosa habilidade e com uma escrita brilhante e ligeira, capaz de iluminar as raízes sociais e morais que determinam o comportamento de um burguês.»

"Se transcrevi estas palavras é porque elas me parecem encerrar, ainda, um mal-entendido. El não é só um estudo de um caso de paranóia, nem uma dissecação do comportamento burguês, para o qual o "ter" contaria mais do que o "ser". É um filme que sistematicamente afasta qualquer interpretação linear, e onde a zona de perturbação é mais funda do que o diagnóstico da paranóia, ou de que a análise de um comportamento de classe levado ao extremo."

No seu Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles escreve que "sem relação directa com a realidade mexicana, o filme é um estudo psicopatológico conduzido com mãos de mestre por Buñuel. Através da exposição de um caso de ciúmes paranóico e delirante num representante da alta burguesia, o autor denuncia também, e antes que isso se tenha tornado moda, os excessos do «machismo» social e sexual. Buñuel semeia a sua narrativa de imagens insólitas e preciosas pela sua crueldade, mistério ou pela sua graça extrema. Há um humor subjacente, de uma força muito grande na derisão, a acompanhar constantemente o desenrolar da intriga. O que não impede Buñuel de mostrar no seu herói um homem infeliz, azarado e de resto frequentemente incompreensível «Os paranóicos», diz ele na sua auto-biografia, «são como os poetas. Nascem assim.» Formalmente, o génio do filme vem do facto de ser tanto uma comédia como uma tragédia. Não por um doseamento habilidoso ou uma mistura de tons qualquer. É o tom buñueliano que tem por característica, sobretudo por esta altura, ser profundamente ambivalente. Este tom tinha-se tornado uma segunda natureza no autor depois de algumas encomendas ingratas que teve de realizar no México (cf. Susana) e que soube transformar por dentro em obras perfeitamente pessoais."

Até Quinta!