quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Corumbiara (2009) de Vincent Carelli



por Alexandra Barros

Em 1985, houve um massacre de índios na Gleba Corumbiara, no estado brasileiro de Rondônia. Terá sido executado pelos fazendeiros locais, para evitar que as “suas” terras fossem demarcadas pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) como área protegida. Os ataques terão sido tão bárbaros que ganharam o estatuto de mito e foram esquecidos. Os fazendeiros tentaram apagar as marcas dos crimes e negam sistematicamente que tenham ocorrido. 

O indigenista Marcelo Santos, para evitar a continuidade dos crimes e punir os responsáveis, inicia uma expedição para encontrar sobreviventes e recolher vestígios dos massacres. As autoridades exigem prova visual para reconhecer a existência de indígenas e cabe ao realizador Vincent Carelli, que acompanha Marcelo, captar as imagens da expedição. 

Ao longo de vinte anos, a equipa de Carelli regressa repetidamente a Corumbiara para reunir evidências dos crimes, encontrar/reencontrar os sobreviventes, protegê-los, evitar que os territórios por eles habitados sejam ocupados por fazendeiros e tentar entender o que aconteceu em 1985. 

No entanto, tudo se vem a revelar muito mais complexo do que a ingenuidade com que partiram para o projecto permitiu entrever. Embora inicialmente o projecto fosse essencialmente político e humanitário, ao longo dos anos vai-se transformando num meta-projecto, na história das suas dificuldades e impossibilidades. 

No início, surge a dificuldade de estabelecer contacto entre pessoas que se receiam mutuamente (os indígenas e a equipa de indigenistas) por não conhecerem as intenções uns dos outros e não terem uma linguagem comum. Depois, após o contacto, existem dificuldades de comunicação, dado que as línguas indígenas são desconhecidas. Ao longo dos anos, a equipa de Carelli debate-se com a oposição cerrada dos fazendeiros ao seu trabalho. Os fazendeiros, sempre que podem, negam o acesso aos territórios onde se suspeita que existem indígenas escondidos. Boicotam também o trabalho que a equipa consegue realizar, através de campanhas para desacreditar as provas da existência de tais indígenas recolhidas pela equipa. 

Finalmente, são também problemáticas as dúvidas dos próprios “salvadores” sobre os métodos que utilizam nos “salvamentos”, particularmente quando o contacto é recusado por quem é suposto “ser salvo”. A equipa reflecte sobre a sua abordagem: será legítimo impor a sua presença a quem nitidamente não a deseja? Será legítimo filmar quem não quer ser filmado, mesmo com a melhor das intenções? 

Duas décadas depois do massacre, é finalmente lançado um documentário sem conclusões definitivas. Não há história com princípio, meio e fim. O que se mostra é um puzzle com muitos buracos, seja por ser impossível encontrar algumas das peças, seja por que outras, ao longo dos anos, perderam a sua nitidez. 

O filme, mais do que uma história de sucesso ou de metas alcançadas (descobrir e punir os culpados pelos crimes, por exemplo), é uma história sobre as lacunas da própria história, sobre a incapacidade de atingir os objectivos propostos e sobre as implicações éticas dos métodos utilizados. No entanto, essa aparente fragilidade é uma das grandes forças do filme, levando-o para territórios que ultrapassam o activismo em prol de uma causa específica. 

É também um filme sobre o Brasil (teias de poder, pobreza e estratégias de sobrevivência, ocupação de território, indigenismo, ambientalismo e sustentabilidade, ...) e um filme sobre adversidade e a superação possível, sem mistificação. No fim, não há heróis, há homens que fizeram o melhor que sabiam e que cometeram erros, mesmo tendo as melhores intenções. E é aí que todos nos poderemos identificar. Sem incluir as histórias dos problemas, falhanços, crises e impasses, não haveria filme, não haveria história. Para além de outros pontos de contacto com Cabra Marcado Para Morrer (filme já exibido neste ciclo dedicado ao cinema brasileiro), esta estratégia de composição é talvez o que mais aproxima os dois filmes. Impossibilidades transformadas em possibilidades, fraquezas feitas forças, histórias que afinal são História.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

204ª sessão: dia 28 de Setembro (Terça-Feira), às 21h00


A terminar o ciclo a que decidimos chamar "Aquarela do Brasil", sempre com a presença do actor Bemvindo Sequeira para uma conversa final, veremos o fruto de um trabalho de vinte anos apresentado pela organização Vídeo nas Aldeias, fundada por Vincent Carelli em 1986. Foi ele que realizou Corumbiara, a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em entrevista à revista Eco Pós, em 2017, Carelli disse que "(...) eu sempre digo que trabalhar com índio é aprender a sofrer derrotas. Eu, que tenho dificuldades pessoais em sofrer derrotas, tive que aprender isso: a cada derrota, dar a volta por cima e voltar à carga, não é? Então, é isso: eu entro no CEDI, onde tivemos que constituir um grande banco de dados. A realidade indígena era algo completamente obscuro. Nem governo, nem Estado brasileiro tinham informações organizadas; havia lugares, na Amazônia profunda, que nem sequer os órgãos indigenistas tinham chegado. Eu ajudei a propor essa grande rede de informação, que era uma rede supra “fé”, supra profissional, supra partidária, supra tudo. Apelava aos missionários, intelectuais, pesquisadores e jornalistas, enfim, para constituir esse grande banco de informações minimamente confiáveis, para que se pudesse pensar inclusive políticas indigenistas. Algo que resultou na ampla enciclopédia do Instituto Socioambiental. 

"Além de ajudar a criar essa rede (para a qual cada um vinha com seu capital de relações), eu constituí um arquivo fotográfico: corri todos os acervos de museus, de imprensa, os arquivos pessoais... encontrei uma quantidade enorme de fotografias, registros esparramados em gavetas e armários, escondidos em museus. Descobri, então, a importância de resgatar esses registros e esses acervos: a coleção fotográfica de [Curt] Nimuendajú, o registro monumental da Comissão Rondon... todas essas preciosidades. Tudo isso, que para as novas gerações tem uma importância muito grande, tudo isso tinha que voltar aos índios, porque era deles, afinal. Era parte de um processo de expropriação e precisava ser devolvido. Então, por ter feito uma opção radical na vida, por ter abandonado tudo (cidade, casa, família) e ter partido para morar com os índios, eu passei a enxergar o mundo de uma outra perspectiva. Eu via as pessoas irem para as aldeias fazer seus trabalhos e percebia ser sempre um movimento de mão única. Raramente retornavam às aldeias os produtos e os registros destes trabalhos. Então, eu sentia isso da perspectiva da aldeia e todo o meu movimento seria o de, justamente, inverter essa direção. Quer dizer, as coisas tinham que voltar. Para esses povos, que sofrem transformações e perdas de conhecimento muito rápidas e intensas, essas referências históricas são fundamentais."

Numa crítica para a revista Retrato do Brasil, Leandro Saraiva escreveu que "como uma flechada, Corumbiara nos impacta violentamente, como espectadores desacostumados com um cinema feito de compromissos radicais. As discussões sobre o estatuto das imagens documentais, a natureza do caráter ético e/ou político das relações estabelecidas entre quem filma e quem é filmado, ou mesmo a ética (sempre “a ética”, entendida como compromisso individual entre “autor” e “documentado”) da produção audiovisual com relação aos abundantes desvalidos retratados – todas essas questões debatidas nos últimos anos, de especial crescimento do documentário no País, amargam na nossa boca, tomando um gosto meio pueril defrontadas com a clareza e firmeza desassombrada dos posicionamentos que movem o filme de Vincent Carelli. Tamanha contundência tem seu nervo no inconformismo frente à violência bárbara que rege as relações sociais nas frentes de expansão agrária do País. 

"Corumbiara se compõe das filmagens feitas por Carelli na região homônima, em Rondônia, entre 1986 e 2006. Sempre tentando flagrar os criminosos responsáveis pelo massacre de um grupo indígena que “atrapalhava” fazendeiros locais – pelo desagradável inconveniente de existir, com o agravante de fazê-lo sobre terras que os fazendeiros sulistas tinham comprado num negócio de lucros amazônicos promovido pelo desenvolvimentismo patrimonialista –, o cineasta acumulou farto material ao longo de duas décadas. Vestígios de ocupação violentamente desfeita, oculta de modo primário, ameaças de jagunços, depoimentos de trabalhadores que tes- temunharam o ataque, entrevistas com especialistas indigenistas, localização de índios que fugiram e sobreviveram e até mesmo a confirmação do massacre por alguns desses sobreviventes."

Já sobre o projecto Vídeo nas Aldeias, damos a palavra à educadora Nietta Lindenberg Monte, que a descreveu como "parte de uma rede de organizações não-governamentais com atuação em terras indígenas, o VÍDEO NAS ALDEIAS constrói sua trajetória particular no cenário do novo indigenismo brasileiro ao apresentar uma renovada proposta educativa junto aos povos indígenas e à sociedade brasileira e internacional. Seu trabalho tem obtido reconhecimento como marco de referência original não só pelo rico acervo etnográfico que acumulou em 18 anos, mas pelos processos educacionais interculturais que estão na origem e nos fins de sua produção audiovisual. 

"A partir de 1997, uma prática sistemática e inovadora de formação de realizadores indígenas, entre 23 povos em 4 estados da Amazônia Legal, vem implicando na formação de um público diversificado dentro e fora das fronteiras brasileiras, com a divulgação e comercialização das obras resultantes desse processo educacional."

Até Terça!

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

A Hora da Estrela (1985) de Suzana Amaral



por António Cruz Mendes

Há pessoas que passam pela vida como sombras. São quase imperceptíveis. Limitam-se a desempenhar, rotineiramente, melhor ou pior, as funções que lhe foram atribuídas, sem grandes alegrias ou tristezas porque “a vida é mesmo assim”. Mas, apesar de tudo, podem alimentar sonhos fabulosos e há mesmo um momento onde, finalmente, ocupam o centro do palco e todas as atenções se voltam sobre si. É a hora da sua morte, a hora da estrela. 

Antes deste filme, Suzana Amaral só tinha realizado documentários. Conta-nos ela que o professor de roteiro da Universidade de Nova Iorque onde estudou cinema, aconselhava os alunos que quisessem adaptar uma obra literária a não escolher um livro grande. Corriam o risco de realizar um filme que não fosse mais que um resumo truncado, empobrecido, da sua história. Uma narrativa curta teria que ser expandida e, mais facilmente, o filme adquiriria vida própria. Suzana Amaral lembrou-se disso quando pensou em adaptar uma obra de Clarice Lispector. Passou um dedo pela estante onde, na biblioteca da Universidade, se encontravam os seus livros e percorreu as lombadas até encontrar a mais fininha. Saiu-lhe A Hora da Estrela, uma extraordinária obra literária – que muitos consideravam ser inadaptável para cinema. 

Clarice Lispector conta-nos a história de Macabéa pela voz de um narrador, Ricardo S. M., que constantemente interrompe a narrativa para se referir a si mesmo e à sua íntima necessidade de contar a história da Macabéa e, ao mesmo tempo, da dificuldade que tinha em fazê-lo. Afinal, ele apenas entreviu a rapariga que a inspirou. A personagem “Macabéa” é, em grande medida, uma criação sua. Como traduzir isto em imagens? 
 
Suzana Amaral optou por se concentrar em Macabéa que viu como uma pessoa real e, ao mesmo tempo, como uma metáfora. Aqui, temos que abrir um parêntese para falar da extraordinária interpretação de Marcélia Cartaxo (“Urso de Prata” de interpretação no Festival de Cinema de Berlim). A sua dicção, a sua postura corporal, a sua aparência física compõem uma personagem dotada de um extraordinário verismo. Por outro lado, “todas nós”, as mulheres e, em particular, as nordestinas deslocadas e perdidas numa grande cidade, diz-nos Suzana Amaral, “temos algo de Macabéa”. Ela própria também se sentiu uma “Macabéa”, imigrada em Nova Iorque, quando, com mais de 50 anos e mãe de nove filhos, foi para aí estudar cinema. 

Macabéa tem 19 anos. O pai e a mãe viveram e morreram no sertão, em Alagoas. Foi criada por uma tia beata, fria e autoritária que a privava de um dos poucos prazeres que conhecia, o de comer queijo com goiabada. E, depois da morte dela, vê-se sozinha, longe da sua terra, partilhando um quarto miserável com três desconhecidas e ganhando a vida num trabalho mal pago, que não lhe dá prazer e que desempenha toscamente. Incompetente na dactilografia e incompetente na vida. Baixinha e magricela, não é bonita, nem vistosa – “nem pobreza enfeitada tem”, diz-nos Ricardo S. M. É tímida e ignorante – embora goste de ouvir os ensinamentos da Rádio Relógio, cuja linguagem, aliás, não entende e dos quais não retira proveito algum. Tem uns olhos grandes que perscrutam com curiosidade um mundo que percebe mal, mas que aceita como ele é. Procura ser amável e educada, mas não conhece o amor. É virgem e despe-se, pudicamente, sob os lençóis da sua cama. 

É, portanto, alguém que facilmente podemos ignorar, substituir, descartar. Afinal, haverá milhares de Macabéas. Porém, ela tem um sonho: gostava de ser uma estrela de cinema. 

Suzana Amaral já tinha realizado uns cinquenta documentários quando realizou A Hora da Estrela e é num registo quase documental que nos descreve o quotidiano de Macabéa, a sua amizade com Glória, a colega exuberante, de roupas justas e cabelo pintado, que procura o amor, mas de quem todos se aproveitam e com quem ninguém quer casar; e o seu patético namoro com Olímpico, outro nordestino, também ele sozinho e desterrado em São Paulo, mas que, com a sua fingida desenvoltura, o seu dente de ouro e o seu cabelo empastado de brilhantina, sonha ser “deputado”. 

Como se resolverá este balanço entre a crua realidade e os sonhos fantásticos de Macabéa e dos seus amigos? A Madame Carlota, que já foi prostituta e “patroa” e que, agora, lança as cartas e adivinha o futuro, tem uma palavra a dizer.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

203ª sessão: dia 21 de Setembro (Terça-Feira), às 21h00


No final do Verão, entramos no mundo ficcional de Clarice Lispector com Suzana Amaral e Marcélia Cartaxo, que interpreta o papel de Macabéa, personagem principal de A Hora da Estrela, a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Como guia, teremos Bemvindo Sequeira, que conhece Marcélia e nos continuará a falar do cinema do seu país.

Em entrevista a Alex Beigui em 2007, e quando este lhe perguntou como dirigiu a actriz principal no filme, Suzana Amaral respondeu que "(...) eu fiz o Actor’s Studio como atriz mesmo. Então eu aprendi uma forma bem “actor’s studio” e eu trabalhei a Marcela nesse sentido também. Mas, depois conforme eu fui conhecendo mais, e lendo, e podendo estudar, eu fui percebendo que esse não era o caminho. Então tiveram outras pessoas que eu comecei a ler e que me influenciaram o Xavier Ismail. Não sei se você já ouviu falar.* Aí então eu me interessei mais e comecei a ler e a pesquisar e a trabalhar os meus atores com base nesses novos princípios, ou seja: nenhuma intelectualização psicológica, nenhuma memória afetiva. Tudo aquilo que eram e ainda são de certa forma os princípios do Actor’s Studio. E como a dialética do desenvolvimento, a dialética é uma coisa muito importante, eu me contradisse. E graças a Deus que eu me contradisse. Porque eu acho importante você está sempre mudando, sempre descobrindo coisas novas e hoje eu trabalho no sentido da “interpretação negativa”. Eu não quero jogar com nada de conflitos, pensamentos, com essa coisa psicológica. Não. É o aqui e agora, aqui e agora. É o que você está fazendo. Tem que comer, então come. Então como é que esse personagem vai comer? Como se come. Oras! Coma. Porque quem faz o filme é o ator, claro. Mas quanto menos um ator faz pelo seu filme melhor para o seu filme; o ator que quer fazer muito pelo seu filme estraga o filme. É, nesse sentido, que também sou minimalista: quanto menos o ator fizer, quanto menos o ator pensar, quanto menos o ator se emocionar, melhor para o seu filme. O ator tem que fazer aquilo que tem que ser feito, o resto deixa que eu faça. O filme, a mise en scène, a montagem, a luz, o resto eu faço. O ator tem que entender a personagem e trabalhar."

* Xavier Ismail escreveu alguns artigos sobre cinema, alguns deles traduzidos para o português: "Transgressões de Todas as Regras", "Do Golpe Militar à Abertura: a resposta do cinema de ator" e o ainda não traduzido "Memoires of Prison", todos publicados em 1985.

Entrevistada por Ricardo Daehn para o Correio Braziliense, o ano passado, Cartaxo confessou que "A Hora da Estrela e o prêmio do Festival de Berlim definiram a minha vida, a minha carreira. Até então, eu morava na cidade do interior, na Paraíba, e todos os meus amigos do grupo estavam indo embora para João Pessoa, e eu não tinha perspectiva de sair daquele lugar. Se não fosse A hora da estrela acho que estaria lá até hoje. 
 
"(...) me deu muitas oportunidades, muitas perspectivas de me perceber de me botar em prática. Na minha vida, resistindo. Voltei para o Nordeste e estou aqui, resistindo, perpetuando o meu jeito de ser. O que tenho e o que eu sou são transformados numa coisa maior. Através da minha arte, quero dizer muito sobre a sociedade, sobre os preconceitos, sobre a violência, sobre vencer obstáculos. Então a minha arte me salvou verdadeiramente também da loucura, da ansiedade, dos medos, dos anseios e até dos desejos. Com mais maturidade, agora, com um pouco mais de segurança, mas sempre sendo uma aprendiz na arte e na vida."

Perto do final da sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa começa a descrever as coisas belíssimas que ele tem, citando "(...) aquele belíssimo plano de Macabéia ao espelho, logo no início, depois do chefe lhe dizer «deste jeito, vamos ter que despedir você»; a primeira noite na casa das moças (inadjectivável fotografia de Edgar Moura), com os sons do rádio e Macabéia sentada no penico, a comer a perna de galinha; a sequência do metro («Eu gosto mesmo é de passear no Metro, nos dias de Domingo») com o permanente «o senhor me desculpe», culminando no prodigioso enquadramento que a mostra a sentir o cheiro dos homens, o cheiro do sovaco dos homens (depois, ela mente, dizendo que não sabe o que isso é) e que a conduz à masturbação nocturna, filmada com um pudor magnífico, e ao plano de Macabéia a benzer-se (reparem na "rima interna" desse plano, com o que se segue, mais tarde, na noite em que Olímpico a traiu).

"Depois, é tudo tão bonito: tão bonito o raccord entre o espelho (quando ela repete «sou dactilógrafa, sou virgem e gosto de Coca-Cola») com o plano da montra de manequins com fatos de noiva. Tão bonito o encontro com Olímpico de Jesus Moreira Chaves («O que quer dizer Olímpico?»); tão bonita a história da Alice no País das Maravilhas (no livro, era a leitura dos Humilhados e Ofendidos de Dostoievsky que obcecava Macabéia); tão bonita a ideia das horas; tão bonita a sequência no jardim zoológico; tão bonito o plano da despedida («Macabéia, você é cabelo na minha sopa, não dá vontade de comer»).

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Cabra Marcado para Morrer (1984) de Eduardo Coutinho



por João Palhares

CINEMA MARCADO PARA SUMIR*
 
Braga, Setembro de 2021. 
 
Décima quinta ou décima sexta semana de um processo entre cinco instituições diferentes que põe em causa o financiamento de um cineclube. O Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) dobrou o subsídio do Apoio à Exibição em Circuitos Alternativos para 2022 e 2023, mas fê-lo com um pequeno senão: obrigou os candidatos a apresentar o Documento de Identificação do Recinto (DIR), quatro palavras bastante simples mas que implicam todo um arsenal de documentação que deve ser entregue pela Câmara Municipal de Braga (CMB), pela Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS) e o cineclube à Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC). 
 
Em conversas com representantes doutros cineclubes, durante as primeiras semanas do processo, descobre-se que o concurso é adiado de Julho para Setembro de 2021 por pressão da Federação Portuguesa de Cineclubes (FPCC), de forma a garantir que os candidatos tenham tempo para apresentar toda a documentação. Descobre-se também que há salas que são obrigadas a fazer obras para obterem o DIR e poderem concorrer ao dito concurso. Tudo isto em plena pandemia. Mas como estamos em Portugal, nada disto é noticiado, é-se obrigado a aceitar tudo e a depender de processos burocráticos que parecem existir apenas para extinguir pequenas associações e pequenos cinemas. Descobre-se um mundo vasto de pessoas que se refugiam de muito bom grado nas regras e nos regulamentos como se fossem o dogma absoluto por que nos devêssemos reger e sem fazer quaisquer perguntas. Não serve de nada falar de cinema, de cineclubismo e do 25 de Abril, ou do cineclubismo antes do 25 de Abril porque isso são coisas de intelectuais, de artistas e pequeno-burgueses, as sanguessugas da sociedade. E o mundo gira, e os dias passam.

Um piloto-pintor português viaja durante meia vida pelo mundo, regressa à terra natal, faz a decoração de cinco andares alusivos a cinco civilizações diferentes em casa e tenta convencer o presidente da junta de freguesia a dinamizar a sua vila, oferecendo os seus préstimos. É recusado. Segundo este, a vila só quer festas e bailaricos. Um produtor tenta convencer a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) a comprar e exibir nos seus canais um filme que não segue modas nem tendências actuais. Esse apoio tornaria viável a carreira comercial do filme. É recusado, recebe uma lição não solicitada sobre o que deve produzir. Um artista plástico junta-se a uma associação cultural e pede paredes numa cidade à vereadora da cultura para pintar murais alusivos ao 25 de Abril. É recusado. Pouco tempo depois, as paredes ficam disponíveis para uma iniciativa supostamente mais alinhada com os gostos dos munícipes e sem revoluções à mistura. A vereadora tira várias fotografias de promoção diante das paredes.
 
No momento em que exibimos Cabra Marcado para Morrer de Eduardo Coutinho, e porque achamos que uma descrição dos bastidores de um cineclube também pode servir de folha de sala, estamos à espera que o IGAC aceite o pedido do DIR para que seja possível enviar mais quatro documentos e formulários preenchidos e seja depois emitido um DIR provisório, que será então enviado para o ICA para se poder criar um sistema de emissão de bilhetes com uma sessão-teste e finalizar a candidatura. Tudo isto num tempo recorde de três dias e meio. E exactamente por causa disto tudo, continua-se a acreditar que o mundo é feito de indivíduos e das suas acções, que são eles que podem mudar o estado geral das coisas indo além do que é esperado deles. E para este caso em concreto, com centenas de telefonemas num espaço de poucos meses, essa pessoa foi José Amaro, o presidente do cineclube. Se para o ano houver cinema na biblioteca, a ele o devemos. E a quem conseguiu convencer e recrutar para tornar viáveis os projectos de uma pequena associação.
 
Salvaguardando todas as distâncias, que a luta por pão e por casa é muito mais importante, muito mais urgente e muito mais dura do que tudo isto, põe-nos em sentido em relação ao que são os verdadeiros problemas na vida, ganhamos alento ao ouvir Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, depois de tudo o que lhe aconteceu e depois de tudo o que viveu, dizer perto do final de Cabra Marcado que “a mesma necessidade está na fisionomia do operário, do homem do campo e do estudante. A luta é que não pode parar.” Portanto, a luta continua.

* no dia em que se escreveu esta folha de sala, o caso DIR parecia muito mais mal parado. Como é também costume em Portugal, tudo se resolveu num dia, entre telefonemas, instalações de software em controlo-remoto, pedidos de certidões, declarações e certificados, concentração de esforços individuais num só sentido. Sempre na corda-bamba, o cineclube conseguiu submeter a candidatura ao Apoio à Exibição em Circuitos Alternativos para os próximos dois anos.

sábado, 11 de setembro de 2021

202ª sessão: dia 14 de Setembro (Terça-Feira), às 21h00


Na segunda semana do nosso ciclo, somos conduzidos até ao Nordeste brasileiro pelas câmaras de Eduardo Coutinho, em busca de pistas sobre os destinos da viúva e dos filhos de João Pedro Teixeira, líder camponês assassinado pelas costas por latifundiários em 1962. Cabra Marcado para Morrer, interrompido nos anos 60 e retomado nos anos 80, é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em entrevista a Francisco Frochtengarten em 2009, Coutinho disse que "(...) o documentário nasceu com várias maldições. A palavra “documentário” é infeliz, a palavra “documento” é infeliz, a palavra “didático” é infeliz. Para muita gente, documentário é para ensinar, educar. Isso é uma tragédia. A National Geographic tem a sua função, mostra a vida dos peixes, a vida de Cleópatra. No que eu faço não tem nada disso. Eu não estou interessado no grande tema. O que é O fim e o princípio? É um filme para denunciar o latifúndio? O que eu encontrei foi um repositório de mitos, de sintaxes e de vocabulário que reflete um mundo patriarcal que acabou. 
 
"Perguntam muito por que eu só filmo os excluídos. Mas eu achei ótimo fazer um filme como o Master, sobre a classe média baixa. Eu tento desconsiderar o problema da classe ou da categoria à qual a pessoa pertence e fazer filmes que não sejam estereótipos. Então, se eu filmo em uma favela ou gente pobre no Nordeste, que são universos afastados do meu, não há o menor problema. Meu problema seria fazer um filme em um país do qual eu não falo a língua. Eu teria que fazer um filme tematizando o fato de que eu não sei a língua. Eu nunca fiz filmes com índios. Se um dia eu fizer – e vai ter um intérprete – eu vou tematizar a dificuldade de comunicação. Isso não tem nos filmes. Então eu acho que a diferença é um trunfo. Eu não faço um papel. Tenho um filme que chama Santa Marta, duas semanas no morro. É claramente um cara que vem de fora para fazer um filme. E o fato de declarar que é de fora faz, de certa forma, ficar de dentro. Um metalúrgico entrevistado por um metalúrgico dá coisas que eu não consigo, mas às vezes produz o mesmo do mesmo. Por isso é que sou contra o politicamente correto americano: só o gay pode filmar o gay, só o negro pode filmar o negro, só o anão pode filmar o anão. Sou pelo poder das minorias, mas jamais sem tratar do diferente. Meu sonho é que houvesse negros filmando o mundo dos brancos – aliás, filmando em geral já seria bom –, favelados filmando o mundo do asfalto e camponeses filmando cineastas. Eu não consigo fazer filmes sobre pessoas próximas a mim. 

"Numa relação de conversa há uma procura de uma igualdade utópica e provisória. Quando fui filmar o Cabra, um dos camponeses chamou: “Vamos tomar uma cachaça?”. Eu disse: “Não quero”. Seria o mesmo se o cara chamasse pra comer uma buchada. Eu não gosto de buchada."

Num texto escrito em 2013 para a Folha de S. Paulo, Eduardo Escorel, o montador do filme, escreveu que "entre as inúmeras decisões a serem tomadas na montagem de todo documentário, duas são cruciais – como começar e como terminar o filme. A primeira sequência sinaliza o rumo, e a última atesta se a trajetória percorrida chegou a bom termo. Jean Rouch dizia que “na montagem começamos pelo início, depois tentamos saber aonde vamos”. 
 
No caso do Cabra não foi diferente. Os dois planos iniciais se impuseram por si mesmos, estabelecendo de imediato que há uma projeção em preparo ao anoitecer, no terreiro de uma casa isolada entre morros, sem que seja identificado onde e quando isso ocorre. Ao protelar a identificação do local e da época dessa primeira cena, os preparativos para a projeção ganharam sentido genérico, abstrato, independente da situação real em que foram filmados. Conforme Jean-Claude Bernardet viria a definir mais tarde com absoluta precisão, “o espetáculo vai começar, e será ele que, até o final, guiará todo o trabalho de resgate da história”.

Já Jean-Claude Bernadet, em Vitória sobre a lata de lixo da História, escreveu que "nada mais distante do projeto de Eduardo Coutinho em Cabra Marcado para Morrer do que historiar os últimos vinte anos. Nada de enfileirar fatos no espeto da cronologia e amarrá-los entre si com os barbantinhos das causas e dos efeitos. Que filmes históricos, no Brasil, escaparam às ilusões do historicismo? Bem poucos, se tantos. Mas, com certeza, Cabra Marcado para Morrer.

"Que história nos propõe este filme? Talvez devido à idade - aproximadamente a mesma de Coutinho -, vejo um projeto histórico preocupado em lançar uma ponte entre o agora e o antes, para que o antes não fique sem futuro e que o agora não fique sem passado. Entre o antes e o agora, uma ruptura: 1964. Com a ruptura, o projeto ideológico e cultural anterior a 64 corre o risco de ficar "parado no ar", sem sentido, jogado na "lata de lixo da história"* Assim como o presente corre o risco de não ter sentido se não se enraizar numa anterioridade significativa. Cabra resgata os detritos de uma história rompida, de uma história derrotada. Mais do que isso: Cabra é o duplo resgate de uma dupla derrota. O primeiro Cabra, o de 64 e de que sobram apenas vestígios, já era o resgate de um fracasso: o assassinato de um líder das Ligas Camponesas, João Pedro. Dele vivo, não sobrou nem uma fotografia; o filme de então, sob a forma de um espectáculo, o fazia reviver e o fixava na história. O Cabra de hoje resgata o filme interrompido - e, dessa forma, também João Pedro - e resgata a viúva do líder e sua família."

* Alusões a peças de teatro de Gianfrancesco Guarnieri e Roberto Schwars.

Até Terça!

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980) de Héctor Babenco



por Joaquim Simões

Não há necessidade de elogiar a obra que é Pixote, um filme que relata a vida num reformatório juvenil em São Paulo, centrado no protagonista de onze anos que lhe dá o título - o filme já possui todos os louros que merece, tendo sido abundantemente premiado e inclusivamente considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos melhores 100 filmes brasileiros de todos os tempos. E, se na altura da sua estreia teve um impacto enorme, hoje, passadas quatro décadas, ver esta obra é uma experiência completamente diferente, mais deslocada da realidade atual e por isso talvez mais intensa, pois as qualidades realistas que na altura o tornaram um documento fiel da sociedade brasileira no final da ditadura militar são hoje o que fazem deste filme, para nossa sensibilidade atual, uma obra de tal brutalidade que pode até parecer romantizada: um testemunho de que a realidade é muitas vezes mais surpreendente e chocante do que é possível imaginar. 

Apesar de Héctor Babenco ter comprado os direitos de adaptação do livro Infância dos Mortos, de José Louzeiro, o realizador admite que a matéria prima do filme, mais do que o livro, foram as duzentas horas de entrevistas conduzidas com crianças de reformatórios em São Paulo. Inicialmente pensado como documentário centrado na vida de crianças em reformatórios, a ideia foi rapidamente abandonada uma vez que filmar em tais instituições seria impossível: o reformatório que aceitasse tal exposição estaria a revelar os abusos sistemáticos que eram a prática comum. 

Babenco teve então de recorrer a contar a realidade através da ficção. Fê-lo de forma objetiva e, portanto, brutal. Para tornar o filme o mais fiel possível à realidade, o realizador recrutou os atores das ruas de São Paulo, através de oficinas com centenas de crianças. Num desfecho irónico do destino, o ator protagonista Fernando Ramos da Silva, depois do sucesso do filme e de uma breve e falhada tentativa numa carreira de ator, voltou à vida das ruas e foi morto com 19 anos; segundo a sua esposa, pela polícia. 

A história começa com o momento em que Pixote e os companheiros são apanhados das ruas de São Paulo, levados à esquadra e consequentemente confinados num reformatório. Aí assistimos ao quotidiano destes rapazes que jogam futebol, matrecos e se divertem de formas relativamente inocentes. Há até uma banda. Mas vamos também sendo introduzidos, gradualmente, à realidade subjacente de abuso, corrupção e crueldade por parte da administração, cada vez mais presente e que leva os personagens ao ponto de ruptura quando um jovem inocente é espancado até à morte por se revoltar, e a culpa é impingida na amante transexual que o segura tragicamente entre os braços no momento da sua morte, consolando-o em vão. É nesse ponto que o desespero leva os rapazes a escapar do reformatório. A partir daí seguimos Pixote e o seu grupo, ou tribo, na luta pela sobrevivência nas ruas da cidade, vivendo a princípio de furtos, passando pela venda de droga e juntando-se por fim a uma prostituta num esquema de assaltos planeados, à medida que o grupo se desmorona, um a um, até que Pixote tem de seguir a sós, sem rumo e sem futuro. 

Se despirmos o filme das fortes pressões que movem os personagens na sua luta pela sobrevivência e liberdade, esta é uma história sobre crianças que não tiveram direito a infância e sobre as relações de amizade, ternura, amor e sexualidade que surgem naturalmente, por efémeras que sejam, mesmo nas condições mais hostis.

domingo, 5 de setembro de 2021

201ª sessão: dia 7 de Setembro (Terça-Feira), às 21h00


Já se tinha pensado neste nosso ciclo de cinema brasileiro para Setembro antes do incêndio que invadiu as instalações da Cinemateca Brasileira a 29 de Julho deste ano. O cinema não é volátil, ou permanentemente acessível em qualquer plataforma, é património físico que depende dos esforços de muita gente e de muitos meios para o preservar, defender e divulgar. Portanto dedicamos o nosso ciclo à Cinemateca Brasileira e a todos aqueles que lutam pelo cinema na linha da frente, face às intempéries naturais e à indiferença institucional. A passividade e a ignorância não podem vencer.

A nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Caveiro da Silva é Pixote - A Lei do Mais Fraco de Hector Babenco, primeira de quatro projecções que contarão com a presença do actor brasileiro Bemvindo Sequeira, residente em Braga, para conversar connosco sobre o cinema do seu país. 

Sobre o filme de 1980, Babenco disse em entrevista à Film Quarterly em 1982 que "eu tinha feito duzentas horas de entrevistas com crianças realmente abandonadas nos reformatórios. E também houve crianças dos reformatórios a vir ao meu escritório contar-me as vidas delas - de dentro e de fora dos reformatórios. Construí o meu guião com o auxílio de situações que me foram contadas por estas crianças.

"Assim que o guião ficou escrito comecei a trabalhar com as crianças-actores sem utilizar o guião. As crianças nunca leram o argumento. A cada dia tínhamos uma oficina de trabalho com a ideia de desenvolver uma nova sequência no guião, mas a cada dia era como se fosse um filme novo. Eu contava-lhes a situação. Discutíamos o que é que podia acontecer na determinada situação com que nos deparávamos, porquê? Quais é que podiam ser as reacções? E depois fazíamos uma improvisação baseada na situação. A seguir a isso olhava para o meu guião para corrigir algum diálogo, e à tarde começávamos a rodar. Não queria que as crianças memorizassem o diálogo ou soubessem a história toda. Além disso, fiz o filme em sequência dramática, na mesma ordem em que o vemos. Fiz o filme num calendário em "tempo real" para o entendimento das crianças de como a história avança, para os ajudar a entender que o que acontece hoje é uma consequência do que aconteceu ontem.

"Os produtores ficaram malucos porque o filme acabou por custar duas vezes mais, mas foi maravilhoso para o filme."

A 21 de Outubro de 1980, no Caderno B do Jornal do Brasil, Ely Azeredo escreveu que "Pixote é um filme terrível. Quem quiser ver o drama da infância abandonada envolto em um manto lírico, de transbordante ternura, deverá esperar um dos próximos filmes de Truffaut. Héctor Babenco, realizador do vigoroso Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, volta a tomar como base um romance de José Louzeiro (A Infância dos Mortos), e alcança nível expressivo mais alto, negando o enfoque restritivamente polémico que se costuma dar àquele problema nos meios de comunicação. Nada mais fácil que discorrer sobre causas da delinquência na faixa infanto-juvenil: "Seria como fazer um trabalho sobre o Lúcio Flávio de calça curta," disse o próprio Babenco.

"Em Brincadeiras Proibidas, de René Clément, duas crianças, condicionadas pelas repercussões da guerra, mantêm às ocultas um pequeno cemitério para insetos, cães e outros bichos. Tardiamente os adultos descobrem o brinquedo macabro, que também classificam de blasfémia pelo uso de uma cruz em cada sepulcro. A piedade fossilizada porá fim a essa demonstração da sensibilidade das duas crianças. Brincadeiras Proibidas foi aclamado como libelo contra a guerra, mas poucos observadores terão destacado o ângulo do esmagamento da fantasia infantil pela intolerância dos adultos - um estado de beligerância que sempre prescindiu de declarações formais." 

Já Inácio Araújo, que nos apresentou Heat - Cidade Sob Pressão em Abril de 2017, escreveu sobre o filme para a Folha de S. Paulo, em 1996, dizendo que "como o problema da criminalidade infanto-juvenil não declinou e os abismos sociais que o filme apontava continuam abissais, o quadro desenhado pelo filme permanece de certa forma intacto. 

"Hoje, porém, ninguém pensará em empurrar a culpa do problema para outro. Se há culpa, ela pertence ao passado. De algum modo, todo espectador é responsável e vítima. Resumindo, Pixote é hoje um filme bem mais chocante do que em 1980. 

"Mudou também o cinema. Hoje, o espectador é chamado a ver "pixotes" diretamente inspirados por este filme. Quem Matou Pixote?, de José Joffily, joga a carta da demagogia e do melodrama. Como Nascem os Anjos, de Murilo Salles, trabalha a "inocência" de seus jovens protagonistas. 

"Nada disso em Pixote. Em nenhum momento, o filme esvazia Pixote e amigos de sua integridade e complexidade. Nunca permite que o problema pessoal dissolva-se ou seja absorvido pelo social: ambos existem, em esferas distintas. Babenco não passa a mão na cabeça de seus heróis. Mostra-os. Isso já é trágico o bastante. Também nesse sentido, Pixote cresceu com o tempo."

Até Terça-Feira!