sexta-feira, 28 de janeiro de 2022
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Terra Franca (2018) de Leonor Teles
por André Miranda
De Nantucket partiu o Pequod com Ahab a bordo, em busca da baleia branca. Cruzou os mares de todo o mundo, durante 3 anos. No Tejo, navega Albertino Lobo, numa lancha movida a motor; não tem uma tripulação a comandar, nem destino feroz que o treslouque, assim como o espaço que habita é exíguo, constrangido pelas margens. Avança no rio de olhar fixo num horizonte, enfrentando os elementos, os anos de labuta marcados no rosto, no corpo inteiro, nas mãos que puxam uma linha que parece sem fim.
Mas este não é um filme sobre um herói, um Ahab consumido pelo desejo de vingança ou um Ulisses que apenas quer regressar a casa, enfrentando quantos perigos lhe surgem no caminho. As criaturas do Tejo são consideravelmente mais pequenas que um cachalote e o único contratempo a lutar é a revogação da licença de pesca.
Albertino não é um lobo solitário, tal como o rio não lhe é único na existência. Conhecemos-lhe a família: esposa, duas filhas, neta e genro. Entramos nesta casa sem pedir autorização, mas não somos recebidos com desconfiança; a nossa presença é apenas notada pelos olhares fugidios em direção à omnipresente câmara. Sem que haja uma ação deliberada que nos mova nesse sentido, depressa somos envolvidos no calor íntimo dos gestos simples do dia a dia: as frases ditas sem pensar, a maçã que se oferece para descascar ou o cão que se passeia à noite.
A vida não é feita de cachalotes a abater ou de façanhas perigosas a ultrapassar. É aspirar a casa enquanto o Quim Barreiros canta na televisão. É acalmar a neta quando o apito estridente do comboio a assusta. É impedir que um cão sedento beba o nosso bagaço. Ou então, finalmente resolver a questão que há séculos assola Portugal: qual o tamanho e por quantas pessoas era repartida a afamada sardinha que tantas bocas famintas do passado alimentou.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022
A Metamorfose dos Pássaros (2020) de Catarina Vasconcelos
por Alexandra Barros
Catarina, a realizadora do filme, perdeu a mãe quando tinha 17 anos. Nessa altura, Catarina e o seu pai, Jacinto, criaram um laço ancorado na perda, que vai para além da relação entre pai e filha. Jacinto também perdera a mãe, Beatriz, durante a sua juventude. Quando a mãe lhe faltou, Catarina passou a sentir igualmente o espaço ocupado pela falta da avó. Quis então saber tudo sobre ela e sobre a parte do pai que até aí nunca tinha conhecido: a parte “que ele era com a mãe”. É com as memórias familiares que Catarina constrói o filme e é através delas que pai e filha procuram ultrapassar a dor da ausência das respectivas mães.
Catarina conta-nos a história da família através do cruzamento de pequenas histórias de três gerações e entretece nelas uma outra: a História de Portugal durante o Estado Novo e a Guerra Colonial. Ao aprofundar o conhecimento deste período histórico que não viveu, ela percebe o privilégio que é viver em Liberdade.
Jacinto é o mais velho dos seis filhos de Beatriz e Henrique. De Beatriz diz-se que era uma árvore e que aprendeu tudo com a verticalidade das plantas. Henrique era oficial da Marinha e andava grande parte do tempo no mar. Por isso, a relação de Henrique e Beatriz era feita de palavras. As palavras viajavam entre Beatriz e Henrique através de cartas. Nelas se falava de saudade, de amor, da vida quotidiana de Beatriz e seus filhos em terra e da solidão de Henrique no mar...
Nunca sabemos se estamos perante memórias reais ou ficcionadas, tanto mais que as palavras (sempre em voz off) são acompanhadas de imagens em tons oníricos, cuidadosamente encenadas: o olhar metálico de Sta Luzia pendurado na parede ao lado de uma pintura de Sorolla; mãos-espelhos que reflectem o olhar que as contempla / o olhar que se contempla; um mar de céu e um céu de mar; navios que navegam numa garrafa, numa fotografia, numa pintura; dezenas de olhos enfileirados em penas de pavão; caixas de charutos que guardam conchas, as inúmeras nervuras das folhas, troncos
enxertados com pedaços reflectidos de outros troncos[1]... Poemas visuais. Alguns são pinturas, muitas são de mães. Outros parecem pinturas, como o grupo de fantasmas muito brancos, no meio de um campo muito verde, que parecem posar para a fotografia como uma família em piquenique de domingo. Ou a imagem assombradora de Beatriz a usar como brinco o cavalo-marinho que Henrique lhe enviou (os objectos também nos podem assombrar só por serem muito bonitos). Há muitas imagens construídas com espelhos ou lupas, instrumentos ópticos que nos devolvem imagens semelhantes às reais, mas nunca iguais às reais. Como a memória, que nos devolve histórias mais ou menos semelhantes às que vivemos, mas nunca como as vivemos ou mesmo nada como as vivemos.
Portugal pré-25 de abril emerge na narrativa representado por imagens de forte carácter simbólico, como a tomada/mulher presa à parede e a ficha/homem que anda por todo o lado. Aos belíssimos selos das cartas enviadas por Henrique a Beatriz justapõem-se os pensamentos condenatórios de Jacinto sobre a participação portuguesa na colonização de África.
À medida que os filhos crescem, Beatriz sente crescer também o espaço entre a sua realidade e a deles. Não são precisos mais que uns brevíssimos segundos para a distância entre o sufoco dos filhos sob o regime ditatorial de Salazar e o alheamento político da mãe nos ser revelada. Beatriz segura uma revista Flama, com a notícia sobre a morte de Salazar na capa. Em voz off, anuncia: “Eis que aconteceu aquilo que tanto ansiávamos, Henrique: os nossos filhos cresceram”.
A realidade o que é? Beatriz quando vê os filhos subir às árvores só vê a probabilidade da queda e eles só vêem a possibilidade de voar. Os antigos, que nada sabiam sobre a migração dos pássaros, pensavam que os pássaros que apareciam ao mesmo tempo que outros desapareciam, apesar de terem características diferentes, eram sempre os mesmos. Tinham apenas sofrido uma metamorfose. “Aquilo que o ser humano não consegue explicar, inventa.”
Catarina, para fazer este “documentário”, também inventou. Até o nome do pai é inventado, apesar dos seus protestos: “Não são os filhos que dão o nome aos pais. O tempo não anda para trás”. O passado porém pode andar para a frente. Catarina, Jacinto e os irmãos recitam os lugares onde suas mães vivem ainda: nos lençóis, nas chávenas de chá, em todos os objectos do dia-a-dia, nos objectos coleccionados, nas árvores e plantas que as mães cuidaram, nos gestos e hábitos dos filhos, nos seus olhos e narizes ... Os filhos são diferentes dos pais, mas são também suas metamorfoses.
[1] Os espelhos da floresta de Catarina lembram os espelhos d’As Praias de Agnès Varda.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2022
Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto (2019) de Rui Garrido
por José Oliveira
Mestre/Jamais Mestre: Filosofia Prática.
Sério Fernandes, tal como José Saramago revelou certa vez, tem uma visão total e desempoeirada da sua obra artística e do seu legado e assim sabe que passado o reino dos humanos nesta terra o cosmos não saberá que Homero escreveu A Odisseia. Também como os novíssimos e primitivos Glauber Rocha, Werner Herzog ou Rainer Werner Fassbinder, acredita que o processo, a vivência e a comunhão durante a feitura de uma obra de arte é o fulcro, jamais o resultado final. Como esses e não muitos mais, só dialoga com limites e abismos, sem meias verdades, uma questão existencial: uma coisa é uma coisa e não outra coisa: ou é arte ou é cultura: ou é Apolíneo ou é Dionisíaco: ou é vida ou é morte.
Limpar a merda toda de mais de cem anos de confusão entre a arte do cinema e o negócio do cinema; limpar a datação e os atavios argumentistas; limpar todos os acessórios, todos os efeitos, todos os filtros, todas a leis vãs, económicas e castradoras de uma invenção e de um meio gigantesco (o cinematógrafo) constantemente violado pelo pecado original do lucro, da ganância e do ego: eis a demanda de Sério Fernandes. Um meio incomensurável como o cinematógrafo não pode somente servir para contar «historinhas», tem de agarrar a eternidade, eis a moral. Como esses (Glauber, Herzog, Fassbinder) e não muitos mais, se a feitura de uma obra de arte é questão de vida ou de morte, tudo é permitido: roubos, empréstimos, mentiras, falsificações, amor; e em última ou primeira instância, a destruição do produto final; justiça poética: enterrar as latas de película num buraco do Porto, na terra Portuense, gesto matricial, será o acto derradeiro. Limpar (e libertar) a obra e o criador da potência maléfica do Tema, do compromisso, da utilidade, da responsabilidade.
Convocar os irmãos Auguste e Louis Lumière, Aurélio Paz dos Reis, e ficar-se nessa modernidade definitiva, para tudo ser revolucionário, como na primeira vez, como na invenção, de olhar limpo. Uma síntese cósmica onde um único Quadro Artístico Cinematográfico (fixo, de câmara na mão ou no ombro, plano sequência de um minuto – eis uma tentativa de definição impossível) tem de comportar todos os milhões de planos cinematográficos que sonhamos e rejeitamos, todo o cinema e não-cinema. Nesse quadro cinematográfico estão todas as paralelas de D. W. Griffith, todas as dialécticas de Serguei Eisenstein, toda a montagem; todas as gestas e toda a música de Luís de Camões («Camões, o que vale a pena ler na cadeira de “realização cinematográfica”, a par de Charles Baudelaire e de Pier Paolo Pasolini, é isto que tenho para vocês lerem», S.F); nesse quadro cinematográfico tem de estar obrigatoriamente a experiência do brilho e da publicidade e do espectáculo em fora-de-campo que ele (e muitos) praticou antes da morte e da ressurreição. No quadro cinematográfico concebido por Sério Fernandes - e oferecido de mãos vazias à irmandade dos seus alunos, essa comunhão e coro grego - deseja-se alcançar o princípio do universo, límpido, claro, intacto; e que não sirva para nada senão para esse fim, o da criação cinematográfica.
Em Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto, de Rui Garrido, tudo isso nos é provado e legado com a única das certezas definitivas e lúcidas: a paixão. Quem assim se expressa e ama, só pode estar certo. Ao mesmo tempo que se assume o absoluto, assume-se a morte, a consonância dos vivos com a consonância dos mortos, numa rotação perfeita. Sério Fernandes ama a lua, o sol, os animais vivos, os animais mortos, o aluno mais interessado, o aluno mais desprezado; o épico, os humilhados, os ofendidos, o complexo, o invisível: de igual para igual. Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto traça o mesmo percurso ascendente da fabulosa vida de Sério Fernandes: da via-crúcis e da escuridão até aos altos e à claridade solar sem problemas de consciência.
Sem problemas de consciência: entre tantas vidas dentro de vidas e filmes dentro de filmes, é por isso que a existência de Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto é essencial; mesmo ou pela contradição ao mestre, mesmo ou pelo forçar do registo e da confissão para lá da memória ou do mito a que Sério Fernandes estaria sujeito caso esta obra não estreasse comercialmente. No entanto, sem problemas de consciência.
in «raging-b», 4 de Janeiro de 2021.