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domingo, 30 de outubro de 2022
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Água (2010) de Eva Ângelo
por Alexandra Barros
Água é um documentário sobre
a montagem do espectáculo coreográfico e musical Vale, de Madalena Victorino, com música de
Carlos Bica. O projecto Vale foi
inspirado pela região do Vale do
Tejo e envolveu catorze intérpretes, vindos da dança, do teatro e
da música, e quarenta pessoas de
comunidades locais, com diversas
idades e modos de vida.
Além de acompanhar os ensaios
dentro de portas, Eva Ângelo filmou os encontros dos artistas
com trabalhadores de - e em - diversos espaços emblemáticos do
Vale: uma coudelaria, campos de
pastagem de gado, uma praça de
touros, um olival, ... A coreografia do bailado alimenta-se destes
encontros: das conversas, dos
ensinamentos recebidos de mestres locais, das observações, dos
gestos apre(e)ndidos participando
nas actividades que nesses lugares decorrem.
Durante os ensaios, Eva Ângelo
captou as orientações e as interpretações, os movimentos e as
expressões, as dificuldades e as
sintonias, os risos e as tensões, as
brincadeiras e as irritações, as cumplicidades. Tudo isso nos entrega
e dá a ver, ora de forma demorada e com pinceladas precisas ora
de forma fugidia, subtil, evitando
o voyeurismo, o drama e a afectação.
Madalena Victorino, trajada com
vestidos estampados com fabulosas cores e padrões, voz doce e
tom sereno, exerce uma liderança forte e assertiva. Dirige os
trabalhos, dando indicações aos
bailarinos como: “avançam como
senhoras, não como pata chocas”;
“respiramos para dentro do fundo
da Terra”; “não sorri, os cavalos
não sorriem”. Ela faz da dança um
ponto de encontro entre movimento e emoção, e é esse entrelaçamento que Eva Ângelo tão
bem traz para o filme. Visualmente
o filme é lindíssimo, mas encantador é o lugar comum da criação e
esforço conjunto, do entusiasmo,
empenho e gozo no trabalho de
grupo.
Madalena explica aos participantes
que ”este trabalho é um trabalho
sobre estarmos uns com os outros,
mas é também um trabalho sobre
estarmos connosco”. A dança é,
possivelmente, sempre um trabalho sobre estarmos connosco,
pois “ensina-nos a aceitar os nossos erros, porque fazemos tantos que
a única possibilidade de progresso
é a aceitação”[1].
O espectáculo fecha com imagens
de uma mó a rodar, uma metáfora
do círculo, símbolo de movimento, expansão, tempo, perfeição,
eternidade. Mas neste círculo há
um buraco no meio, em representação “do abismo, do desconhecido, do futuro”[2]. Sabe-se hoje que
muitas galáxias têm um buraco
negro no seu centro, como se a
luz só pudesse existir acompanhada dessa escuridão que tudo tenta devorar. Matéria e antimatéria,
cargas positivas e negativas, atração e repulsão. As dualidades
estão entretecidas no mundo microscópico, em nós, no espaço
cósmico. Serão essas forças opostas, afinal, os mais prevalecentes
LUGARES COMUNS?
[1] Ian Crewe, professor de dança.
[2] Madalena Victorino.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Crazy Horse (2011) de Frederick Wiseman
por Alexandra Barros
As obras de Frederick Wiseman,
reputado realizador de documentários, exploram maioritariamente a civilização americana e
o funcionamento das suas instituições. Wiseman parte para um
filme sem ideias pré-concebidas
e os filmes parecem querer deixar
os juízos críticos para o espectador. Mas, de acordo com o próprio,
os filmes não são nem poderiam
ser imparciais e representam a sua
versão da realidade. Daí não gostar que sejam classificados como
documentários.
Crazy Horse é o seu 39º filme e
a escolha do tema causou alguma surpresa. Em resposta a esta
reacção, disse sentir-se cativado
pelos diferentes usos a que o corpo humano é sujeito, e que lhe
interessa fazer filmes sobre tantos
diferentes aspectos da experiência
humana quanto lhe for possível.
O Crazy Horse é um clube parisiense, que apresenta espectáculos de cabaret, com influências do
burlesco e das artes circences contemporâneas. Tornou-se um ponto
icónico da Paris turística nocturna
e autopromove-se como artístico,
sofisticado, avant-garde, glamoroso e elegante.
O filme acompanha a montagem
de um novo espectáculo, concebido pelo director de produção e
coreógrafo do Crazy Horse, Philippe
Decouflé, assistido pelo director
artístico, Ali Mahdavi, dois perfeccionistas assumidos, entre os
quais existe uma tensão palpável.
Guarda-roupa, luzes, cenários, coreografia, tudo é sujeito a um meticuloso e coordenado desenvolvimento. As bailarinas, muitas das
quais com formação em bailado
clássico, estão sujeitas a um treino exigente e regrado. Neste filme
não há histórias individuais (como
é aliás característico da restante
obra de Wiseman) embora a intensidade de Mahdavi e a sua personalidade exuberante acabe por
torná-lo, de alguma forma, uma
excepção. Mahdavi é assumidamente um obssessivo-compulsivo
cuja obsessão na altura em que o
filme foi feito era o Crazy Horse.
Entre as obsessões anteriores
figuram: Marlene Dietrich, Yves
Saint Laurent e Helmut Newton.
Assistiu 40 vezes ao primeiro espectáculo que viu do Crazy Horse,
“arrepiando-se” tanto como com
os filmes de Fassbinder, Fellini ou
Michael Powell. Decouflé, que coreografou as cerimónias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1992 e
a cerimónia de abertura dos 50
anos do Festival de Cannes, ambiciona condições de trabalho adequadas aos elevados standards
de qualidade do Crazy Horse,
tentando (sem sucesso) fechar o
clube enquanto prepara o novo espectáculo. Tenta também que seja
reconhecido, por parte dos accionistas, que um trabalho de criação
artística como o seu não se coaduna com prazos apertados ou deadlines definitivas. O espectáculo tem
actos “sofisticados”, como o que é
executado ao som de uma versão
langorosa de Toxic, de Britney
Spears: um espelho divide horizontalmente um palco totalmente
negro, para criar imagens caleidoscópicas com braços e pernas que
parecem ter-se libertado das suas
bailarinas. Noutro acto, há um
strip executado ao som de Antony
and the Johnsons onde, nos meticulosos jogos de luz e sombra,
percebemos a que aspira Decouflé, quando afirma ser um criador
da arte da sedução, do desejo, do
sonho. Mas apesar das pretensões
de Decouflé e Mahdavi, a fasquia
nem sempre está tão alta. Algumas coreografias resvalam na vulgaridade e as canções no pimba.
Tal não impede que os dois ou três
espectáculos diários do clube estejam sempre lotados. Os clientes
(mais homens que mulheres, naturalmente, mas 30% do público são
mulheres em casal ou em grupo),
bem compostos, têm ar de quem
está ali por ter lido num qualquer
Guia Turístico de Paris que não
devia perder o espectáculo sexy,
artístico e com classe deste famoso cabaret. Mas face à hipersexualização do mundo actual, os afamados actos de sedução do Crazy
Horse deixaram de ser avant e não
são realmente crazy. Estarão mais
próximos da disciplina de controlo
e postura de Dressage do que com
qualquer galope louco.
Em sintonia com o ar do tempo, em
que o lazer e as actividades recreativas e culturais se tornaram produtos comerciais, os espectáculos
do Crazy Horse são vendidos em
pacotes mais ou menos exclusivos, de acordo com o que se
pode gastar. São uma experiência
icónica da cultura francesa para os turistas endinheirados acompanharem com champagne superieur e
amuse-bouches, e levarem documentada pela fotografia-lembrança incluída apenas nos pacotes de
luxo.
Com o crescimento do turismo
de massas, a Disneylização de
espaços e experiências “típicos”
tem-se vindo a alastrar em todo o
mundo, das grandes cidades aos
pequenos lugares. Património ma-
terial e imaterial é convertido em
mercadoria pronta a consumir, de
preferência com bilhete reservado,
para evitar filas de espera.
Que transformações sofreu o Crazy Horse neste processo? O que
procuravam os seus clientes iniciais e o que procuram os actuais?
Ser seduzido ou fazer tick numa
recomendação do Guia Turístico?
Fantasia sexual ou turismo cultural? Embora as respostas sejam
possivelmente diferentes, no fundo, todos estarão unidos por um
mesmo lugar comum: fantasia,
sonho, a evasão do quotidiano e
da vida real.
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
Dom na trubnoy (1928) de Boris Barnet
por António Cruz Mendes
Todos conhecemos Eisentein, Dovjenko, Dziga Vertov… Mas, Boris Barnet, também ele realizador de
cinema com uma carreira que se inicia nos anos 20, é ainda desconhecido do grande público. E, no
entanto, Georges Sadoul chegou a considerá-lo “o melhor realizador soviético”.
Este filme ajuda-nos a compreender a admiração do historiador de cinema francês. É excelente a
sequência da caótica “limpeza” das escadas do prédio, filmadas em planos de conjunto que realçam a
sua verticalidade, a perspectiva das ruas oferecida pelas linhas serpenteantes dos eléctricos, o recurso
ao movimento acelerado para nos dar a impressão do dinamismo da vida urbana… Particularmente
ousada é a forma como, num momento de grande tensão (Parasha vai ou não ser atropelada pelo
eléctrico?), recorre à imagem parada para introduzir um flash-back que há-de responder a uma cómica
questão: “mas, afinal, donde veio o pato?”. O singular humor de Barnet percorre todo o filme.
Encontrámo-lo, por exemplo, na cena onde Marisha, roída de ciúmes por causa da atenção que Semyon
dá a Parusha, descarrega a sua fúria nos tapetes que tem que bater. Uma atitude logo seguida pela
“rival”, que assim agridem os tapetes em vez de se agredirem uma à outra.
Mas, afinal quem é Parasha (ou Paranya, nome pelo qual também era conhecida)? Trata-se de uma
jovem provinciana perdida na grande cidade. O tio que a deveria receber foi à aldeia no dia em que ela
chegou a Moscovo. Vestida como uma camponesa, com as suas botifarras e a sua roupa sem forma, ela
vê-se perdida, perplexa entre a multidão de desconhecidos, desorientada no meio das ruas por onde
circulam pessoas apressadas, carros e eléctricos. A cena onde para o trânsito para se abraçar ao seu
pato (“aterrorizado”, diz ela), à última hora salvo de ser atropelado, exemplifica a sua situação.
O encontro com Semyion leva-a à casa da Praça Trubnaia onde vai trabalhar como empregada
doméstica para os Galikov, uma casa onde a mulher nada faz e não se aceitam trabalhadoras
sindicalizadas. Contudo, uma série de acidentes permitem-lhe conhecer Fenya, uma sindicalista, e
assistir à representação da “Tomada da Bastilha” no Clube dos Trabalhadores. Aí, vai saltar para o palco
para “salvar” um revolucionário de ser abatido pelo General, episodicamente interpretado pelo
cabeleireiro Galikov. A confusão entre a ficção e a realidade, alarga-se de Parasha a todos os
espectadores, que fazem dela uma heroína, e ao próprio patrão, que a castiga com o despedimento.
No fim do dia das eleições, a multidão dos votantes, dispersa-se em todos os sentidos e Parasha,
filmada em plongé, surge-nos isolada, no meio da praça deserta. Está de novo sozinha e sem-abrigo.
Mas, a fama da sua ousadia e uma confusa troca de nomes, põem a correr o boato de que ela teria sido
eleita, em representação do sindicato das trabalhadoras domésticas, para a Assembleia Municipal. Na
casa da Praça Trubnaia, todos se preparam para a acolher em festa. As escadas da casa estão
finalmente asseadas e até mesmo os “burgueses” das relações da madame Galikov que, antes disso, a
desprezava e explorava, prepararam um pequeno banquete para a receber.
No entanto, desfeito o equívoco, Parasha é de novo expulsa da casa dos antigos parões e são apenas
as mãos ávidas dos convidados dos Galikov que se atiram, num expressivo plongé, sobre as requintadas
vitualhas dispostas na mesa.
A sinopse que reproduzimos mais acima diz-nos que o filme é “uma sátira à pequena-burguesia que
sobrevivera à Revolução”. Na verdade, ela não apenas “sobrevivera”, mas, decerta forma, renascera
durante o período da NEP, a “Nova Política Económica” promovida na URSS entre 1921 e 1928.
Apostou-se, então, na iniciativa dos pequenos produtores e comerciantes para revitalizar uma economia
que se encontrava exangue depois da 1ª Guerra Mundial e da guerra civil que se seguiu à tomada do
poder pelos bolchevistas. No entanto, a implementação da NEP dividiu o Partido. Entre os seus
defensores, destacou-se Bukarine. Na sua opinião, dado o subdesenvolvimento económico da URRS, o
socialismo só poderia avançar aí “a passo de tartaruga”. Outros, como Preobajensky, pelo contrário,
consideravam que a industrialização do país teria que passar obrigatoriamente pela colectivização das
terras, embora defendessem que esse processo fosse realizado à medida que os camponeses fossem
reconhecendo as vantagens das grandes explorações colectivas sobre as pequenas propriedades
individuais. E havia ainda quem visse, no enriquecimento dos NEPmen (os pequenos comerciantes e
proprietários, como Galikov) uma traição aos ideais igualitários da Revolução.
Nesta disputa, o filme de Barnet toma partido. Não é por acaso que a parede da sala da casa dos
Galikov, onde se prepara o banquete de recepção a Parusha, está decorada com a fotografia de
Bukarine. Ora, a data da realização do filme coincide com a da aprovação do 1º Plano Quinquenal que
assinala o fim da NEP e o início de radical processo expropriação das pequenas propriedades que vai
mudar a face do país.
Em 1928, é Estaline quem detém o poder. Primeiro, apoiou-se em Bukarine para afastar Trotsky,
Zinoviev, Kamenev. Preobajensky também não escapou. Mas, muito em breve, o seu antigo aliado vai
tornar-se a sua próxima vítima. O seu retrato afixado na sala dos Galikov é uma subtil introdução à
tragédia que se vai seguir. Bukarine, tal muitos outros daqueles e de outros “velhos bolchevistas”, vai ser
condenado à morte nos tristemente famosos Processos de Moscovo, ocorridos nos anos 30. A
colectivização das terras e a “liquidação como classe” dos Kulaks (os camponeses “ricos”) e dos
NEPmen vai realizar-se rapidamente e com a maior violência. O saldo serão muitos milhões de mortos.
Teria Barnet consciência do papel desempenhado pelo seu filme na preparação da opinião pública para
aquilo que estava para vir? Na última cena, o cabeleiro é informado que vai “passar uns anos na prisão”,
acusado de “ofensas físicas” a Parusha...
A mão negra da Inquisição esconde-se por trás de muitas extraordinárias pinturas do século XVII e,
agora, isso não nos impede de as apreciarmos com gosto. Também a sombra do estalinismo paira sobre
o divertido filme de Barnet. Diante de uma obra assim, como posso eu conciliar o meu prazer estético
com o meu repúdio político?
As Operações SAAL (2007) de João Dias
por João Palhares
«1. Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.»
in Artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
«Lá vêm subindo o abismo
Da sombra donde vieram
Já sem medo e sem vergonha
Virados para a luz do dia
Será esta a nossa porta?
Perguntavam um pouco inquietos
Por terem pela vez primeira
Quatro paredes e um tecto.»
José Afonso, in «Barracas ocupação».
Feita a revolução (essa que o Juan Miranda de Giù la testa descreveu aos gritos como um sonho de burgueses posto em prática pelos mais pobres), que mais falta fazer? Normalmente, tudo. E muito antes de José Mário Branco assumir pesadamente que “foi um sonho lindo que acabou,” numa ode cantada a uma amada que podia ser a nossa Revolução, houve um grupo alargado de arquitectos e de moradores que arregaçou as mangas e pôs mãos à obra durante o Processo Revolucionário em Curso. A pretexto de um despacho criado pelo então Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas, tentar-se-ia resolver o problema da habitação e da exclusão em comunidade: os arquitectos desenhavam as casas, os moradores construíam-nas e o Estado pagava os materiais. O projecto chamou-se Serviço de Apoio Ambulatório Local, mas é mais conhecido por “Operações S.A.A.L.”, que é também o nome do filme de João Dias.
As Operações SAAL, o filme, foi feito nas ruas. A caminho de bairros ou de escritórios de arquitectos, em salas de arquivos e com o próprio realizador em campo durante a sua investigação. O estado primordial da demanda retratada, que envolve a reforma de um país e a luta de um povo pelos seus direitos fundamentais, permitiu a João Dias abrir uma discussão com duas horas entre pólos aparentemente irreconciliáveis. Um dos arquitectos que presta depoimento até diz que “agora podemos desabafar” e os intervenientes são confrontados uns com os outros na montagem e, claro, no terreno. Como garantir habitação a pouco custo para muita gente? Como é que se constrói uma casa que agrade a outra pessoa? Como é que se sustenta um programa que depende de reuniões contínuas entre associações de moradores e técnicos do Estado? Quanto duram os projectos originais e quanto desperdício de fundos houve, se, depois, os moradores trocam os materiais usados por outros ou o poder local interrompe os trabalhos? Vale a pena quando, noutras situações, as casas não vão para os moradores mas para arquitectos?
Não há muitos documentários ou reportagens (portugueses ou não) que abracem, desta forma, o contraditório para qualquer dos lados de uma discussão. Normalmente há uma tese a ser defendida, normalmente os depoimentos não são cortados ou deixam-se correr até ao final duma ideia (normalmente, isso também é uma ilusão urdida pela montagem). Mas em As Operações SAAL respira-se o ar de Abril e dos milhares de sonhos possíveis traçados entre a esperança pessoal e o inconsciente colectivo, captados por uma câmara que deixa miúdos acenar-lhe do outro lado da rua e espectadores fortuitos chamarem-lhe de câmara da “TVI”. Lembramo-nos do Glauber Rocha, cineasta brasileiro, em pleno 25 de Abril, a espicaçar miúdos e graúdos pelas ruas de Lisboa n’As Armas e o Povo. “Acredjita na révulução?” “Há quanto tempo você lútá?” Que esperança ainda têm as pessoas de que algo mude no que é essencial nas suas vidas? Ainda estão dispostas ou ainda acreditam em lutar como lutaram pela paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação? “Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa,” gritam os proscritos de hoje, relembrando-nos que continuamos muito longe de dar corpo à Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A resposta é afirmativa, a luta continua.
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
L'arbre, le maire et la médiathèque (1993) de Éric Rohmer
por António Cruz Mendes
O que fazer de terreno abandonado, propriedade do pequeno município de St. Juire, vizinha da bela igreja medieval no centro da povoação? Eis a questão em torno da qual se desenvolve este filme, inserido no ciclo “Lugares Comuns”, tema dos Encontros da Imagem de 2022. Sob as respostas possíveis, escondem-se interesses particulares que, no entanto, como sempre acontece nos filmes de Rohmer, nem sempre são assumidos de uma forma explícita, mas surgem envoltos em “teorias”. E é nisso que, na minha opinião, reside o humor, a ironia, que perpassa todos os seus filmes: o que está em causa são propósitos muito práticos, mas o que se debate são “ideias", longamente argumentadas.
Neste caso, debate-se, por exemplo, a relação campo-cidade. Onde é preferível viver? Nos tempos modernos, no campo ainda haverá camponeses? Na época do tele-trabalho, actividades tipicamente urbanas não poderão trasladar-se para o campo, beneficiando com outra qualidade de vida muitos trabalhadores? E a chegada de novos residentes, ou até mesmo de turistas, não vai dinamizar a economia local, beneficiando os antigos residentes? Todas as ideias se definem melhor quando se afirmam contra um opositor que as contrariam e é Bérénice Beaurivage, a companheira de Julien Dechaumes, o Presidente da Câmara de St. Juire, quem vai desempenhar esse papel. A contradição cidade-campo resolve-se levando a cidade para o campo, como defende Julien, ou o campo para a cidade, como defende Bérénice?
Mais prosaicamente, sabemos que o simpático Presidente, derrotado nas eleições regionais, pretende apresentar-se como candidato do
PSF às próximas eleições legislativas. Para isso, tem de vencer outros prováveis candidatos, apresentando-se à direcção do seu Partido como sendo aquele que mais apoio reúne entre a população do seu círculo eleitoral. Portanto, como demonstrá-lo?
Estamos no tempo de François Mitterrand, que quis assinalar a sua passagem pela Presidência da República com a realização de um conjunto de grandiosos projectos arquitectónicos. O Instituto do Mundo Árabe, o Grand Arche de La Défense, as obras do Louvre assinaladas pela famosa pirâmide, o Parque de La Villette... Por que não realizar no seu próprio município, algo de semelhante? Surge assim o projecto da Mediateca, um imenso centro cultural e desportivo, com uma dimensão pouco adequada às verdadeiras necessidades dos actuais habitantes daquela pequena povoação.
Evidentemente obra de um prestigiado arquitecto, o projecto de Dechaumes conta com defensores e opositores. Entre estes, destaca-se Marc Rossignol. A sua tese: a identidade de um lugar, a sua beleza, invalidam qualquer intervenção, mesmo que ela se pretenda respeitosa da envolvente natural ou construída. Uma majestosa árvore está ameaçada pela construção do grande complexo cultural e desportivo que o Presidente ambiciona construir. Mesmo estando ela, talvez, velha e doente, merecerá a pena condená-la para que possa ser construído um estacionamento para os automóveis dos futuros visitantes da mediateca?
Aqui ecoa um outro debate travado, entre Julien e Bérénice, onde intervêm também Blandine Lenoir, jornalista, e Regis Lebrun-Blondet, director de uma revista política mensal e primo por afinidade de Dechaumes: serão os ecologistas de esquerda ou reaccionários em oposição radical à modernidade e ao progresso? As suas ideias, não se conjugam elas perfeitamente com a política cultural da direita baseada na intransigente defesa da tradição? Talvez as razões ecologistas possam ser pontualmente invocadas tanto pela direita e como pela esquerda, quando isso mais lhes convém... Não é o próprio Regis Lebrun-Blondet, também ele, “ecologista” quando se trata de proteger a casa que tem na província? E, afinal, o que é “ser de esquerda”? Será Dechaumes, senhor de uma magnífica propriedade, “de esquerda”, como ele próprio pretende, ou comportar-se-á ele como um grand seigneur, um “janota”, como diz Bérénice, guia e protector dos seus pobres e incultos munícipes?
E Rossignol, que não é um “filho da terra”, mas alguém que nela se refugiou dos tempos modernos que abomina, defenderá ele interesses próprios ou os daqueles que nessa aldeia residem? Em todo o caso, as concepções do “bem comum” de Dechaumes e de Rossignol parecem inconciliáveis.
Como é que se há-de resolver a questão? A solução, que parece ser simples, foi apresentada por uma criança, Zoé, a filha do professor, e acabou por se concretizar, em parte por causa de um artigo da revista de Lebrun-Blondet. Artigo esse que foi escrito porque, por mero acaso, Blandine pôde presenciar uma entrevista de Dechaumes com o director da revista; entrevista essa que a levou a escrever um artigo sobre os “jovens turcos” do PSF; artigo que apareceu truncado e deformado, por iniciativa do director que, movido por estranhas razões, o transformou numa reportagem sob o impacto da mediateca na vida de St. Juire, onde se destaca o depoimento do professor Rossignol; e que, pôde ser assim publicado porque, na altura, Blandine, estava longe de Paris, a acompanhar uma missão da UNICEF ao Senegal...
A história termina em happy-end: O projecto megalómano não se concretiza e Dechaumes abre as portas da sua propriedade aos habitantes da aldeia que aí confraternizam alegremente. Mas, também poderia acabar de outra maneira. E também aqui Rohmer expõe, sub-repticiamente, uma outra teoria, enunciada em voz-off. Ouvimo-la num discurso, aliás bastante redundante e aborrecido, num rádio, em casa de Blandine, enquanto, em cena, se passa algo que nos distrai, sem qualquer relação com ele. Trata-se dos “imponderáveis na história”. Logo no início do filme, vemos o professor Rossignol a explicar aos seus alunos a função da conjunção “se”. É por ela que se iniciam os títulos dos capítulos em que o filme se divide: “E se...”
quarta-feira, 12 de outubro de 2022
Zéfiro (1994) de José Álvaro de Morais
por João Acciaiuoli Catalão
«Eu acho que o essencial no cinema (...) não é a história, é a maneira como é contada ou os sentimentos e as emoções que ela nos causa, e a capacidade (que tem) de despoletar associações.»
José Álvaro Morais
O convite era para escrever sobre um filme. Que tem por título o nome de um vento favorável. Mas vou falar antes sobre uma ilha. Não a ilha que o filme também é, no arquipélago singular e rarefeito do José Álvaro Morais, mas a ilha em que este se tornou no meu próprio espaço identitário. Os filmes tornam-se ilhas quando os habitamos de alguma forma. Quando se rompe uma espécie de membrana permeável que os envolve. E eles se entranham e enraízam nas nossas vivências e memórias. Revi o Zéfiro em 1994 no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Onde existe uma espécie de cais de pedra circular a meio. Revi o filme com a presença do José Álvaro Morais, que o apresentou num ciclo dedicado ao cinema português. Tinha acabado de voltar ao Brasil nessa altura. E estava ainda bem presente a viagem que havia feito a Mértola. Pouco antes de embarcar para o Rio de Janeiro. Por causa do filme, que tinha visto em Lisboa. A Mértola e às Minas de São Domingos. O lugar mais próximo onde foi possível encontrar alojamento. Conjugaram-se assim nesse momento decisivo de inflexão a aura mítica que Mértola ganhara e as ruínas a céu aberto da mineração. Num contexto agudizado pela abertura da temporada de caça, que tinha tomado conta do hotel e das redondezas. Mértola é também um ponto de inflexão no filme viagem de José Álvaro Morais. É lá que se intercetam os dois planos condutores do filme. A viagem ficcionada em tons poéticos e a narrativa geográfica e histórica com que esta se entrelaça. Quando Luis Miguel Cintra, narrador de mapas e paisagens, transpõe o estúdio fechado e irrompe no castelo da vila, que foi reconstruída sobre os sedimentos de uma anterior comunidade islâmica. E a figura feminina a cavalo, que acompanha o percurso do jovem fugitivo em direção ao sul, ganha ali sepultura. Porque em Mértola estamos a três passos, ou a três irmãos como refere o filme, da antiga amálgama cultural existente na entrada do Mediterrâneo. A três passos de um estado de convivência harmonioso e tolerante entre os povos do sul da península que tanto fascina o olhar do realizador do filme. E o impele na sua saga de reedificação identitária do país. Antes da invasão devastadora dos reis cristãos do norte. Como defende o arqueólogo Cláudio Torres, que é consultor científico neste trabalho. Que foi recusado pela RTP por ter mais do que duplicado a duração prevista. E que foi por isso podado numa versão televisiva mais ligeira (Margem Sul, 1994). Segundo ele, a islamização desse território a sul do Tejo foi vinculada por mecanismos da paz e da cooperação e não por imposição guerreira. Que é a visão histórica que o filme assume e em que assenta estruturalmente. É apontado o quanto a génese dos trabalhos de José Álvaro Morais parte do plano pessoal e das relações de proximidade do realizador. Como a que cria com o Teatro da Cornucópia. E é referida igualmente a sua tenacidade face às adversidades que marcaram o seu percurso cinematográfico. Cujos projetos iniciais, depois de regressar a Portugal, e na sequência do exílio e formação em cinema na Bélgica, foram os documentários Cantigamente Nº 3, para a RTP, e Ma femme chamada Bicho, sobre o casal Arpad e Vieira da Silva, para a Fundação Calouste Gulbenkian. Ambos realizados através do Centro Português de Cinema. Ambos em que o diretor não foi a primeira escolha. Se já tinham decorrido quase sete anos entre a epopeia do leopardo de ouro no Festival de Locarno (O Bobo, 1987) e o nascimento do Zéfiro (1993), foi preciso aguardar outros tantos para ter lugar o parto do filme seguinte (Peixe-Lua, 2000). Um trabalho carregado de cor e conflito interior, onde pulsa o sangue de García Lorca. E que vai alargar a busca e a redescoberta desse sul musical e vibrante à Andaluzia. Ao lado de lá da fronteira, que é onde a viagem de Zéfiro termina. E faz esse percurso atravessando a ondulação das planícies com um veleiro atrelado num jipe. Que tem o mesmo nome desse filme anterior tão presente. Com a morte repentina de José Álvaro Morais a sua obra acaba por ficar precocemente concluída com o filme Quaresma de 2004. Num retorno premonitório ao norte natal e granítico da Covilhã. Por causa de um funeral de família. E é já outro vento que não o Zéfiro que impulsiona depois a turbulência passional da história até às eólicas bem alinhadas da costa da Dinamarca, na segunda parte do filme. Numa paisagem retratada de uma forma higiénica e fria. Que ganha uma leveza inesperada e quase libertadora na resignação parental com que o filme culmina. Zéfiro é a ilha primeira dessa trilogia que finaliza a obra e o universo cinematográfico de José Álvaro Morais. E encarna com poética e intensidade o fascínio do cineasta por
Lisboa. Retratada no filme como um Mediterrâneo em miniatura. E como antecâmara para uma mítica afetiva do sul anterior à formação da nacionalidade. Um “sentimento difícil de explicar” como o filme sublinha. O realizador, que abandonou o curso de medicina em Lisboa, deve ter compreendido a dada altura que essa era provavelmente uma patologia sem cura. Senti um fascínio e uma exaltação semelhantes quando fui também viver para Lisboa. Antes da invasão do turismo. Por causa da cidade em si e pela magnificação relacional então vivida. Refletida nesse Cais das Colunas mítico e coreográfico onde o sul se anuncia ritmicamente. Embora esse apelo viesse para mim de outras latitudes. É na transposição interior desse sul bafejado pelo vento Zéfiro que o filme assenta como ilha. Uma ilha onde o Corto Maltese sugerido por José Álvaro Morais acompanha os navios que chegam e partem do Tejo. Enquanto caminha sobre casas e sedimentos civilizacionais em ruínas. No final do filme troquei umas palavras breves com o realizador. Contei-lhe ter ido até Mértola por causa do seu filme. E fiz referência às cegonhas que filmou em ritual de acasalamento. E que eu não encontrei na minha passagem. Respondeu-me que aquelas cegonhas tinham-se tornado residentes. Que já não faziam mais as migrações costumeiras de inverno. E eu fiquei picado por esse sul cálido e benfazejo a norte que fixava as cegonhas à terra para sempre. E que me dava tanta vontade de voltar a casa. Foi assim que a ilha evoluiu a partir do filme. Uma ilha que aquele bailado do marinheiro a bordo do cacilheiro tão bem sublima. Como um lugar improvável de flamingos. Numa visita mais recente a Pompeia reparei numa casa identificada como sendo de Zéfiro e Flora. O que reforçou a minha consciência do sentido eruptivo da ilha. Porque o Zéfiro que hospedo dentro é uma paisagem indissociável das ruínas. Mas, acima de tudo, porque existe Flora ainda oculta nesse filme. Mas não nos dois filmes seguintes. E porque existe em ambos uma relação primordial profunda. Projetada no presente feito um peixe-lua espectral que nada em silêncio no abismo. Se tu te transformasses em Zéfiro eu transformava-me em mar. Se tu te transformasses em mar eu transformava-me em navio. Se tu te transformasses em navio eu transformava-me novamente em Zéfiro. Se tu te transformasses novamente em Zéfiro eu transformava-me em Flora. Para voltarmos assim ao começo do mundo. A ilha em que o Zéfiro se tornou é parte de um arquipélago renaturalizado pela vegetação bravia. Em estado de redenção suspensa até ao reencontro derradeiro de Zéfiro e Flora. Numa projeção do infinito feita a partir da coluna sem fim de Brancusi. É “um sentimento difícil de explicar”. Porque é uma ilha que se move. E há uma viagem como a de Ulisses pelo meio que não acaba.
Zéfiro e Flora, João Acciaiuoli Catalão
segunda-feira, 10 de outubro de 2022
Nós (2021) de Nelson Fernandes
por Mário Fernandes
«A animação trata problemas sérios, convida à meditação como qualquer filme de Antonioni ou Buñuel.»
Vasco Granja
«Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.»
“O Fazedor”, Jorge Luis Borges
Milhares de desenhos, rostos a gerarem-se e a desfazerem-se no desconhecido, cenários fantásticos e mágicos, figuras atormentadas e irónicas: é este o pano de fundo de uma vida a saltar os muros das percepções comuns. Anos de labor incansável de um fazedor discreto, que não integra os circos merdiáticos, no país das galerias ocupadas por quem tem mais padrinhos que talento, no país das rotundas assinadas pela gorda dos Galos de Barcelos.
Nas mãos que pensam deste fazedor, a animação está pelas horas da poesia, sem lucro material, apenas com a satisfação de gerar vida e movimento, frame a frame, num ofício de amor e paciência, demorado e atento. Falo obviamente de Nelson Fernandes (Zina), um artífice refinado em contra-corrente, cuja animação nada tem que ver com exércitos de assalariados, bonecas, hologramas, afterefects, estúrdia de coloridos do milionário Wes Anderson.
Zina, nos antípodas, afirma a veia orgânica dos materiais e da matéria, e logo a poesia, fiscalidade metafórica, que deles retira. Não o mundo cor-de-rosa e postiço do guloso americano, mas o desenho genuinamente animado, na sua concretize e abstracção, a expressão plástica da condição humana e o respirar de uma íntima verdade, que se inscreve na arte moderna, tal como a definiu Baudelaire: «Criar uma magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objecto e o sujeito, o mundo exterior do artista e o artista ele próprio.»
Em Nós, que tanto remete para o “nós” como inquietação colectiva como para os “nós” da solidão que este filme tenta desatar, nada pousa tranquilamente, em descanso; tudo é interrogação muda aos céus, aos mares e aos desertos. Estamos perante a recordação de um sonho catastrófico, em “plano-sequência”, do Homem emparedado na sua loucura? Uma metáfora do artista martirizado, Ícaro de asas cansadas que cai no real quotidiano, e do silêncio a que são votados os proscritos? Uma casa de imagens saqueada, destroçada, simbolizando o drama cósmico do Homem? Um requiem pelo frágil bote da humanidade, afundado nos abismos de plástico (materialmente, literalmente) do oceano? A estupefacção do Homem face à sua circunstância e ao momento histórico? Uma viagem à procura de um outro mundo?
Neste filme sobre a incomunicabilidade, a angústia face ao insondável e a incapacidade humana de lidar com o desconhecido sem causar destruição, a fronteira muda constantemente entre a vida normal e um pesadelo que parece ser mais real. A textura dramática de papel, pele convulsa do filme, é a sagração trémula da ruína, miséria e solidão, união frágil da perenidade e da morte.
No cimo do campanário, força cósmica, um sino plangente (por quem dobra?) expande-se, desce, ecoa, leva a notícia aos confins do silêncio. Uma delicada flor perde as pétalas a um sopro de vento, inocência massacrada por um tanque de guerra. Os relógios interiores do Homem e da flor batem em uníssono com o relógio exterior da torre sineira. O Homem, como a flor no deserto, um ponteiro de sombra. Da raiz ao frutificar das chamas.
Cenas que exemplificam o poder da perfuração desta animação dramática, explosiva, um universo de agitação e malogro, e que projectam as ansiedades comuns desde que o homem é homem, as calamidades domésticas, colectivas e planetárias feitas a mesma carne, o mesmo papel, num preto-e-branco que deflagra como um grito queimado.
Neste filme de destroços e detritos, de cosmos e intimidade, de voos e quedas, a várias mudanças, vertiginoso até à morte em lume brando, sem apelo, o Homem tanto pode ser levantado do chão como esmagado sob o peso de acontecimentos que fazem tremer o mundo.
Chegamos ao dilacerante momento final. Caído dos astros, janelas vazadas pela câmara pergunte , o Homem vinga-se cortando a planta que regara e, já um outro (castigo?), prostra-se no deserto. Da escuridão mais funda da condição humana, sobe uma árvore. Ecce Homo. Pièta. Irrupções de fumo. Sinais de fumo. Veladas cintilações. Ao regaço do fim. No estertor do fim.
P.S.: 24 de Dezembro. Estou a vê-lo na Rua da Cale, nº 82, ao lume de uma mesa de luz onde nascem as formas cinematográficas, como se fosse o seu presépio. Aí está Zina (até quando este país vai ignorá-lo?), recortando as chamas, desafiando a noite, para um clarão breve.
in «Jornal dos Encontros Cinematográficos» de 2021
quinta-feira, 6 de outubro de 2022
Vieirarpad (2021) de João Mário Grilo
por João Mário Grilo
A “coisa” deste Vieirarpad já se vislumbrava, em boa verdade, em Ma Femme Chamada Bicho, belíssimo filme que José Álvaro de Morais realizou entre 1976 e 1978. Filmado em vida do par Maria Helena Vieira da Silva / Arpad Szenes, é um filme que faz parte, ainda e plenamente, do dispositivo pelo qual o casal construiu a sua vida e o seu amor, enquanto componentes essenciais da sua própria obra, abrindo-a a um campo performativo que, dada a disparidade dos materiais, só o cinema e a montagem poderiam verdadeiramente resgatar.
Ora, é neste contexto “performativo” que a publicação da correspondência entre os dois – trocada nos breves períodos em que foram forçados a viver longe um do outro -, bem como a iconografia do casal, que se deixou abundantemente fotografar ao longo de toda a vida - até numa fotonovela! –, para além, evidentemente, dos muitos desenhos e pinturas “biográficas” que, entre ambos, produziram, vem dar luz a essa cena amorosa enquanto verdadeiro ponto de encontro e fusão entre as obras de ambos, numa mise en scène recíproca e interminável.
Assim, para o projecto inicial de Vieirarpad, estes materiais sobreviveram ao tempo para desempenhar uma missão: a de tornar visível a particularidade de uma vida em comum totalmente significativa e que se procurou que tomasse no filme a forma de um último legado do casal.
Uma última obra, mas que é, ao mesmo tempo, a mais inicial e a mais radical de todas as obras: a construção de uma (duas vidas), na forma de uma obra de arte. Para mim, tudo estava ali, portanto, à espera de ser filmado e montado! E o cinema, arte dos fantasmas, por excelência, foi para mim, ao mesmo tempo, a linguagem e a esperança para esta derradeira revelação humana e artística. Procurando perpetuar esta tão feliz frugalidade em algo realmente exemplar.
nota de realização do dossier de imprensa do filme.