sexta-feira, 30 de dezembro de 2022
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
The Shop Around the Corner (1940) de Ernst Lubitsch
por António Cruz Mendes
Quando falamos de Lubitsch, geralmente recordamos os seus filmes realizados nos EUA, para onde emigrou em 1922. Em particular, os filmes que aí realizou na década de 30, onde o sexo e o dinheiro são os temas dominantes. Tome-se como exemplo Ladrão de Alcova (1932), as aventuras passionais, os roubos e as traições de dois vigaristas, Gaston e Lilly, que, em Veneza, passam por nobres e frequentam a alta sociedade. Os diálogos espirituosos, a elegância do argumento e a comicidade das situações conferem a esses filmes aquilo que se convencionou designar por “Lubitsch touch”, um estilo que, por trás de uma aparente frivolidade, esconde uma crítica mordaz à sociedade americana dos tempos da “grande depressão”. Crítica essa que, aliás, nos seus filmes, é extensiva ao “comunismo” (Ninotchka, 1939) e ao nazismo (Ser ou não Ser, 1942).
O Lubitsch de A Loja da Esquina parece estranho àquele registo. As suas personagens não são milionários, nem aventureiros, mas pessoas comuns, preocupadas com a possibilidade de perderem o emprego ou de serem condenados a uma vida solitária e cinzenta na grande cidade. Porém, a elegância do realizador revela-se imediatamente quando, logo nas primeiras sequências, em breves apontamentos, nos apresenta as suas características individuais: a honesta frontalidade de Kralik, a receosa timidez de Pirovitch, a sabujice de Vadas, a esperteza de Pepi, a autoridade de Matushek, muito mais aparente do que real.
Entretanto, algumas sombras negras pairam sobre aquele microcosmos da Matushek & Cia., onde todos parecem cumprir prazerosamente o seu papel. Por um lado, os gastos extravagantes da Senhora Matushek; por outro, as desconfianças do seu marido acerca da sua fidelidade conjugal. O sexo e o dinheiro, mais uma vez.
É neste contexto que Kralik conta a Pirovitch que se corresponde com uma amiga que permanece incógnita, vendo crescer assim um amor que se deveria manter platónico (“que importa se és alto ou baixo, se os teus olhos são azuis ou castanhos”, “que interesse tem falarmos do como ganhamos a vida, se as nossas almas se enlaçam”?). E que chega à loja uma nova funcionária, Karla, com quem Kralik começa por embirrar.
Entramos, então, num registo de comédia romântica, cujo desenvolvimento será o motor da história. Os cómicos quid pro quo, a ironia das situações, os diálogos brilhantes – aí temos o “Lubitsch touch” em todo o seu esplendor. Mesmo as situações mais dramáticas têm um desfecho divertido: o suicídio falhado de Matushek termina com a rápida transformação de Pipo, o moço de recados, em Sr. Katona, o vendedor; o violento desaguisado entre Kralik e Vargas, com a queda deste no monte das caixas musicais de cigarros que imediatamente desatam a tocar. O happy end inevitável, num quadro de festejos natalícios, não deixa indiferente a alma mais empedernida.
A Loja da Esquina é um filme que se vê, do princípio ao fim, com um sorriso nos lábios. Boas festas!
quarta-feira, 7 de dezembro de 2022
Meet Me in St. Louis (1944) de Vincente Minnelli
por João Palhares
Meet Me in St. Louis é o terceiro filme de Vincente Minnelli, encenador norte-americano tornado realizador no início dos anos quarenta. É também o décimo terceiro filme da famosa Freed Unit, uma equipa de produção formada dentro da MGM pelo produtor e compositor Arthur Freed no rescaldo do enorme sucesso de O Feiticeiro de Oz, também com Judy Garland no papel principal. É a segunda colaboração de Minnelli com Freed, depois de Cabin in the Sky, 1943, e antes de Ziegfeld Follies, 1945, Yolanda e o Vigarista, 1945, Till The Clouds Roll By, 1946, The Pirate, 1948, Um Americano em Paris, 1951, A Roda da Fortuna, 1953, Brigadoon, 1954, Kismet, 1955, Gigi, 1958, e Bells Are Ringing, 1960. Mas, mais importante ainda, Meet Me in St. Louis, conhecido em Portugal como "Não Há Como a Nossa Casa", é a primeira colaboração de Vincente Minnelli com Judy Garland. Apaixonaram-se durante a rodagem, casaram-se, tiveram uma filha que também se tornou famosa, Liza Minnelli, e fizeram juntos mais quatro filmes, o fabuloso The Clock, de 1945, Ziegfeld Follies, Till the Clouds Roll By e The Pirate.
Meet Me in St. Louis é um filme de Natal, feito como muitos filmes de Hollywood num rodopio e com dramas pessoais e colectivos permanentes. Houve atrasos na produção, ninguém estava satisfeito com o guião e acabou-se a rodagem para lá do previsto e muito para lá do orçamentado. O caso paradigmático, e que é para onde parece confluir tudo quando se fala ou escreve sobre este filme, é a canção Have Yourself a Merry Little Christmas. As letras apresentadas por Hugh Martin e Ralph Blane, na primeira versão, diziam “Have Yourself a Merry Little Christmas / It may be your last / Next year we may all be living in the past,” e tanto Garland, como Minnelli e Tom Drake acharam a canção demasiado deprimente e pediram que se fizessem mudanças, acabando por se substituir o segundo e terceiro versos por “Let your heart be light” e “Next year all our troubles will be out of sight.” Almas em tumulto, portanto, dúvidas constantes no nosso íntimo, saudades do passado e muito receio do futuro por ser o eterno desconhecido. O presente é apenas o posto avançado de onde se tenta em vão ver as duas coisas, o que se perdeu e o que não se sabe se se vai conseguir encontrar. No Natal, tudo isto parece ganhar mais força, e os
melhores filmes associados a esta quadra são os que o conseguem problematizar em termos dramáticos e levantar-nos dos mortos, dissuadir-nos da apatia e da depressão com revelações prodigiosas. Eis como a simples angústia de uma criança em não querer mudar de casa se torna a coisa mais urgente do mundo, o problema mais importante a resolver mesmo apesar de nós próprios, numa pequena cidade que provavelmente acharíamos a mais pacata e a mais deprimente do mundo se lá fossemos obrigados a viver. E é resolvido com uma canção, introduzida pelo som duma caixinha de música, com um beijo carinhoso e muito discreto atirado ao coração duma criança, por uma mulher olhada e filmada com o amor que se conseguiu encontrar nas circunstâncias mais contrárias e mais adversas. E um problema muito específico e prático transforma-se numa catarse abrangente e colectiva. Se não fossemos tão cínicos e tão pouco crentes, chamar-lhe-íamos um milagre. Como somos, chamamos-lhe apenas cinema.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022
quarta-feira, 30 de novembro de 2022
Watashi ga suteta onna (1969) de Kirio Urayama
por Alexandra Barros
A Mulher que Eu Abandonei abre com uma máscara Noh, mas passa-se num Japão
ocidentalizado, no final da década de 60. É uma história de sufocos sentimentais, centrada em
Yoshioka, um estudante universitário. Tem como pano de fundo as convulsões sociais da altura,
incluindo movimentos estudantis de protesto e revoltas no mundo laboral.
Embora Yoshioka tenha uma relação intensa com Mitsu - uma rapariga carinhosa e devotada -
abandona-a devido às suas ambições de ascensão social. Mitsu é substituída por Mariko, a
sobrinha do presidente da fábrica onde Yoshioka trabalha. Apesar de Mariko estar apaixonada por
Yoshioka, ele não consegue viver com ela um amour fou como o que viveu com Mitsu. Yoshioka e
Mariko têm um namoro “formal”, com forte presença e compromissos com o clã familiar de Mariko.
Ela desempenha o seu papel de acordo com as convenções sociais, menorizando a paixão. A
máscara Noh, que veremos por diversas vezes ao longo do filme, reforça essa ideia de
representação que é a vida em sociedade. “Todos têm as suas próprias circunstâncias.” diz Mariko,
quando Yoshioka se mostra desiludido por ela privilegiar os desejos da família relativamente aos
desejos dele.
Sem o amor devotado e incondicional de Mitsu, Yoshioka murcha. Embora aparentemente tenha
ficado indiferente ao fim da relação, ficou, de facto, desamparado. Apesar dos esforços de Mariko
para reforçar a união sentimental entre os dois, a solidão interior de Yoshioka contamina o
casamento. O desapego de Yoshioka condena Mariko, por sua vez, à solidão.
Quando Yoshioka reencontra Mitsu, torna-se impossível manterem os sentimentos enclausurados e
caem numa teia preparada para capturar Yoshioka. Mitsu enfrenta a “aranha” para salvá-lo e este
acaba por perdê-la para sempre. Confrontada com a devastação de Yoshioka, Mariko compreende
finalmente porque é que nunca se sentiu amada e, desesperada, quer perceber “Quem é Mitsu?”.
“Mitsu sou eu! E tu também és Mitsu!”, é a resposta de Yoshioka, que, por fim, vê com clareza o
triângulo de sofrimento que criou em nome do “sucesso”. Caídas as máscaras, a paleta cromática
do filme passa do preto e branco para a cor.
quarta-feira, 23 de novembro de 2022
Onna no isshô (1962) de Yasuzô Masumura
por Alexandra Barros
A Vida de uma Mulher é a vida de Kei, uma jovem orfã que vive em casa de uns tios pobres que a maltratam e sobrecarregam de trabalho. Por representar um encargo financeiro, ela acaba por ser expulsa de casa. O que poderia ser uma libertação será a entrada para uma nova prisão. Numa imagem premonitória, filmada a partir do interior gradeado da casa dos tios, Kei, de frente para a câmera, parece enjaulada por essas grades que a separam do lar, apesar de se encontrar do lado de fora das mesmas. Ao longo do filme, veremos, uma e outra vez, imagens em que é vista através de gradeamentos ou em cantos onde aparenta estar enclausurada.
A prisão de onde nunca conseguirá sair é o compromisso feito com a matriarca da família que a acolheu, quando vagueava sem destino, após ter ficado desalojada. As mais belas imagens do filme, situam-se nessa deambulação nocturna. O Desfile das Lanternas - um rio de luz que corre no sentido inverso ao de Kei até se transfigurar em longínquas bolas de luz flutuantes - e a sombra negra de Kei, secundada pela sua silhueta, recortada contra o casario, são memoráveis.
Amada pelos dois filhos da matriarca, casa com Shintarô, para honrar o seu compromisso, apesar de ser Eiji quem ama. É também para honrar esse compromisso, que sacrifica a sua natural gentileza e humanidade, não olhando a meios para garantir a prosperidade de Tsutsumi, a empresa familiar pela qual se tornou responsável. Ao fazer desse empreendimento a sua prioridade, não consegue atender às necessidades pessoais dos diversos membros da família, os quais outrora muito acarinhou. Os mais gravemente afectados são o marido e a filha, para quem nunca tem tempo ou disponibilidade, e que muito sofrem devido à consequente falta de afecto. Por causa da promessa que fez à sua falecida “mãe”, não cumpre as promessas com que tenta apaziguar a sua sempre negligenciada (e revoltada) filha.
Kei mantém a ilusão do controlo, mas o seu destino é determinado pelos conflitos no interior da família e pelas guerras em que o Japão se vai envolvendo. O contexto histórico dos diversos períodos da saga familiar, da era Meiji ao pós 2ª Guerra Mundial, é dado pelos cabeçalhos dos jornais de época, através dos quais vamos saltando no tempo. Uma guerra trouxe fortuna à família Tsutsumi, uma guerra a derruba. É só quando Kei perde tudo, a empresa e a família, que a vida finalmente lhe parece sorrir, com o regresso de Eiji a casa. Mas o final redentor é boicotado pela própria Kei, ao tomar uma decisão que a mantém refém do que resta da casa e da família pela qual se sacrificou, prefigurando uma espécie de caso de Síndrome de Estocolmo. No final do filme, Kei surge encurralada entre um duplo arco: o arco do portão dos Tsutsumi, pelo qual entrou furtivamente na noite em que os tios a expulsaram, e um arco de luz projectado nas ruínas do casarão onde, nessa noite, foi acolhida.
sexta-feira, 18 de novembro de 2022
Perceval le gallois (1978) de Éric Rohmer
por João Palhares
Chrétien de Troyes, cujo livro «Perceval ou le Conte du Graal» é a inspiração para este filme de Éric Rohmer, é considerado o pai da literatura arturiana e dos cavaleiros da Távola Redonda. E a lenda do Rei Artur sempre interessou o cinema directa ou indirectamente, para o provar basta mencionar alguns títulos como Parsifal de Edwin S. Porter, de 1904, Prince Valiant de Henry Hathaway, de 1954, The Sword in the Stone de Wolfgang Reitherman, de 1963, Camelot de Joshua Logan, de 1967, Lancelot du Lac de Robert Bresson, de 1974, Excalibur de John Boorman, de 1981, ou Parsifal de Hans-Jürgen Syberberg, de 1984. O próprio Rohmer, num documentário feito para a televisão em 1965, abordou a temática, a personagem de Perceval e a obra de Chrétien de Troyes antes de realizar o Perceval, o Galês que hoje vamos ver.
Sem ver a Idade Média como um circo de variedades e pirotecnia da ordem dos King Arthur ou King Arthur: The Legend of the Sword desta vida, o cineasta francês compõe o filme em cenários pintados e versos cantados ao longo das excursões dos cavaleiros Perceval e Sir Gawain. Há um coro a pontuar todas as aventuras, às vezes intromete-se na narrativa e às vezes são as próprias personagens a servir de coro a si próprias e a personagens com quem falam. Sem aceitar isto, não vale a pena ver o filme, que é uma transposição virtuosa dos escritos fundadores de Troyes, Thomas Mallory ou Geoffrey Saucer. Aceitando, pode-se apreciar a candura e a violência desses relatos, a realidade possível dentro de um mundo sonhado. O cinema.
Num acumular de pequenos absurdos, como um rapaz destinado a ser cavaleiro não saber o que é um cavaleiro porque a mãe assim o quis para o desviar dessas aventuras mas sem sucesso, cavalos e cavaleiros a entrar dentro de castelos sem proporcionalidade aparente, tinta vermelha a servir de sangue e de vinho, duelos e combates que as narrações nos dizem durarem horas serem mostrados em poucos segundos, cantoria e poesia por todo o lado, um rapaz que não parece ser capaz de levantar um escudo conseguir derrubar cavaleiros que aterrorizaram exércitos, homens sinistros no aspecto mostrarem ser os mais justos do mundo. Depois de tudo isto, encenado no maior dos classicismos, uma encenação elaboradíssima da Paixão de Cristo, intercalada com um coro que descreve os acontecimentos enquanto os vemos a acontecer, a uma velocidade demencial e
com grande violência. Coisas que nos fazem lembrar que Rohmer deu uma entrevista aos Cahiers du Cinéma a que se deu o nome de “O Antigo e o Novo”, e é também o realizador de Louis Lumière, ou A Inglesa e o Duque, variações documentais e ficcionais sobre a modernidade ancoradas no mais antigo e nas fundações do cinema, sempre. Ou então, e como não se fartava de gritar um amigo uma noite, há muito tempo, “os católicos são os mais fodidos.”
quarta-feira, 16 de novembro de 2022
Ginza no onna (1955) de Kôzaburô Yoshimura
por João Palhares
Como já referido em folha de sala anterior (Sessão nº 264: Johnny Coração de Vidro), há “mestres japoneses desconhecidos” a descobrir para além dos mais famosos Kenji Mizoguchi, Yasujirõ Ozu, Akira Kurosawa ou Mikio Naruse. Estão disponíveis no nosso mercado e no nosso mapa de estreias graças à The Stone and the Plot, distribuidora fundada por Daniel Pereira em 2017, e à curadoria de Miguel Patrício, grande entusiasta de cinema japonês - ao qual tem dedicado alguns artigos e palestras. Assim, em 2021 estrearam-se em Portugal O Menino da Ama de Tomotaka Tasaka (exibido por nós há duas semanas), Cada um na sua Cova de Tomu Uchida e o Mulheres de Ginza que nos ocupa esta semana. Este ano e este mês, estreou-se o segundo ciclo, composto por Johnny Coração de Vidro de Koreyoshi Kurahara, A Vida de uma Mulher de Yasuzô Masumura e A Mulher Que Eu Abandonei de Kirio Urayama, e que é exibido integralmente pelo cineclube este mês. Para o ano de 2023, espera-se uma retrospectiva integral da obra como realizadora de Kinuyo Tanaka, uma das mais célebres actrizes japonesas, que esperamos poder também exibir. Muitos parabéns, portanto, à The Stone and the Plot.
O realizador de Mulheres de Ginza é Kôzaburô Yoshimura. Nasceu em Ôtsu, na prefeitura de Shiga, a 9 de Setembro de 1911 e arranjou trabalho no estúdio Shõchiku em 1929. Apesar de se estrear como realizador cinco anos depois, em 1934, continuou a trabalhar como assistente de realização de cineastas como Yasujirõ Ozu ou Yasujirõ Shimazu. A partir de Anjō-ke no butōkai, com Setsuko Hara, inicia uma colaboração de vários filmes com o argumentista e realizador Kaneto Shindo, que é também autor do argumento de Mulheres de Ginza. Em 1957, realiza Osaka monogatari, projecto planeado e iniciado por Kenji Mizoguchi mas terminado por si. E foi a Mizoguchi que Yoshimura foi mais comparado, certamente por situar a sua obra em casas de gueixas e fazer das mulheres o centro dos seus filmes.
Ginza é um bairro em Tóquio, onde vivem as classes mais abastadas. É uma escolha óbvia para abrir e manter uma casa de gueixas e é aí que vivem e trabalham Ikuyo e as suas gueixas. Ludibriadas e traídas por homens, recusam-se a dar por vencidas e vão sorrindo e vão fazendo pela vida como podem. Yoshimura toma a perspectiva delas e isso resulta num tom leve e irónico que talvez impressione ou choque mas é perfeitamente justificado. Os homens são todos caricaturas, desde o pai que só pensa no leite ao escritor que só pensa em si próprio, passando pelo irmão que credita a si e aos seus contactos todos os clientes da irmã e pelo detective que lê as “tragédias de X” e as “tragédias de Y” sem se aperceber que há bastantes tragédias a ocorrer sob a sua jurisdição, e as mulheres parecem os únicos seres lúcidos e práticos. Inocentemente, elas iniciam uma revolução, e tentam mudar de vida. Incendeiam o sistema. Talvez o tom leve fosse a única forma de fazer passar uma mensagem tão perigosa como essa, nos anos cinquenta no Japão, mas a verdade é que ainda há conformismo e cobardia nos tempos que correm, e as coisas não devem ter mudado assim tanto. Riamos ou choremos, todos estes anos passados.
sábado, 12 de novembro de 2022
Le Journal d'une femme de chambre (1964) de Luis Buñuel
por António Cruz Mendes
Na sequência do ciclo “A Literatura e o Cinema Francês”, exibimos hoje
Diário de Uma Criada de Quarto, a adaptação de Luis Buñuel do
romance de Octave Mirbeau.
Logo nas primeiras linhas do romance, lemos uma entrada do Diário
de Célestine: “Hoje, 14 de Setembro, às três da tarde, por um tempo
ameno, cinzento e chuvoso, dei entrada no meu novo emprego. Em dois
anos, é já o décimo segundo. Já não falo dos que tive nos anos anteriores. Não tinham conto possível. Bem me posso gabar de ter visto por
dentro muita casa, muita cara... muita alma imunda...”. Em Paris ou na
província, em casas aristocratas ou burguesas, Célestine experimenta
o menosprezo dos patrões, que tratam a “criadagem” como coisas, e
testemunha as perversões e ódios dos abastados, numa França onde o
reacionarismo monárquico, o nacionalismo revanchista e o anti-semitismo fazem o seu caminho. A França do “caso Dreyfus”.
Luís Buñuel, adapta o romance permitindo-se algumas alterações. Os
acontecimentos já não se passam na viragem do século, mas trinta anos
mais tarde, concentra-os numa só casa e acrescenta-lhes os episódios
do velho fetichista e da violação e assassinato da pequena Claire. Mas,
o propósito de denúncia social do romance de Mirbeau, continua presente, ainda que tratado sob a óptica singular do cinema de Buñuel,
com a sua ênfase particular na feição erótica dos acontecimentos narrados.
A casa dos Monteil é um microcosmos que a lupa de Buñuel nos vai desvendando. Monteil dedica-se à caça e compensa a frigidez da sua esposa assediando e engravidando as criadas que passam por lá. Madame
Monteil, que se dedica a velar pelos seus preciosos objectos decorativos, não tem ciúmes do marido. De facto, as suas aventuras têm até a
vantagem de ele, “demasiado forte e vigoroso”, a deixar mais facilmente
em paz. O diálogo com o padre esclarece-nos acerca da moral sexual
da Igreja. Porém ela exige que elas não lhe tragam despesas. O seu pai
é um velho “encantador”, apenas tem os botins das mulheres como fetiche sexual. E Joseph, cocheiro e guarda-caça, é um militante da Action
Française que aspira à condição de dono de um botequim.
Pelo meio, uma criança é violada e morta. A tentativa de incriminar
Joseph engendrada por Célestine não resulta. Falhado o assalto a Célestine, Monteil contenta-se com a pobre Muni. E Célestine emancipa-se
da sua condição de criada, substituindo a velha Rose na cama de um
caricatural capitão, de quem aceita um pedido de casamento.
Na sequência final, uma manifestação da Action Française desfila pelas
ruas, passando à porta do botequim de Joseph, bradando contra os
“metecos” – os judeus e os imigrantes. Às suas palavras de ordem,
Joseph acrescenta uma outra, desde logo adoptada: “Viva Chiappe!”
Buñuel não quis deixar escapar esta oportunidade para se vingar do
prefeito da polícia de Paris que, em 1931, a instâncias da extrema-direita, mandou fechar a sala de cinema onde se exibia o seu segundo
filme, A Idade do Ouro.
O filme termina com uma imagem de um céu ameaçador, carregado de
nuvens negras. É difícil ignorar a sua actualidade.
quarta-feira, 9 de novembro de 2022
Garasu no Jonî: Yajû no yô ni miete (1962) de Koreyoshi Kurahara
por António Cruz Mendes
Todos conhecemos Mizoguchi, Ozu ou Kurosawa, Alguns dos seus filmes foram já aqui exibidos pelo Lucky Star - Cineclube de Braga. Mas, evidentemente, o cinema japonês não se reduz aos filmes desses autores e a The Stone & The Plot decidiu que essa lacuna no nosso conhecimento devia ser preenchida, distribuindo dois ciclos de filmes de “mestres japoneses desconhecidos”. Cinco dos filmes desses dois ciclos vão ser exibidos por nós.
O filme de hoje tem sido comparado a La Strada, de Fellini. Podemos, de facto ver em Mifune algo de Gelsomina, também ela vendida a um brutamontes que a maltrata. Ambas, Mifune e Gelsomina, são personagens cândidas, ingénuas, perdidas num mundo brutal onde o poder do dinheiro impera. Aparentemente, os dois filmes parecem inserir-se na tradição neo-realista. A opção pelo preto e branco no filme de Kurahara, o protagonismo de pessoas pobres, o realce dado à relação entre as suas atribulações e as condições sociais da sua existência, apontam nesse sentido. Mas, o registo sentimental de Johnny coração de vidro, afasta-o dos cânones do neo-realismo italiano. Aliás, de resto, também La Strada, foi criticada pelo seu tom melodramático.
No filme que hoje exibimos, Mifune, frágil e ingénua, reparte o protagonismo com Akinoto e “Joe”, dominados pelas suas poderosas obsessões, as corridas de bicicletas e um amor traído. As relações entre estes três desvalidos da sorte, são, simultaneamente, de atracção e repúdio. Primeiro, Mifune persegue, literalmente, “Joe”, procurando a protecção e o amor de que carece. E acaba por ser vendida por ele à dona de um prostíbulo. Depois, tenta conquistar Akinoto, o perseguidor, que a tinha comprado aos pais, com a mesma finalidade, e de quem fugia. Nos dois, procura o seu “Johnny coração de vidro”, a figura fantasmática e redentora que lhe foi apresentada por um poeta suicida, e que povoa os seus sonhos. Os dois acabam por reconhecer nela uma inocência perdida, a promessa de uma vida fundada sobre o amor.
O filme conta-nos uma história de traições, de pecado e de redenção, aqui simbolizada pela água. A água que cai sobre o corpo de "Joe", deitado à chuva numa varanda, finalmente livre da sua obsessão; a água do mar onde, por fim, Mifune vai procurar o seu amor.
sexta-feira, 4 de novembro de 2022
Le plaisir (1952) de Max Ophüls
por João Palhares
Quando, em 2016, se abordou o grande crítico norte-americano Tag Gallagher para uma pequena apresentação em vídeo sobre Samuel Fuller, que acabou por ser exibido apenas em Janeiro do ano seguinte com White Dog no ciclo dos anos oitenta dentro do grande ciclo dedicado ao cinema americano, reparou-se que ele se despedia sempre com um enigmático “max”, seguido do seu primeiro nome. Quando lhe perguntámos o que é que isso queria dizer, ele respondeu-nos que “as pessoas normalmente despedem-se com "all the best," ou apenas "best," que é mais ou menos o mesmo que "max," que mais ninguém diz a não ser eu, que o comecei a fazer em 2002 em honra de Max Ophüls, cujo centenário se celebrou em 2002.”
Max Ophüls é um cineasta franco-alemão que começou por trabalhar na Alemanha, onde nasceu Maximillian Oppenheimer, e depois em França, com uma pequena passagem pelos Estados Unidos nos anos quarenta. Além deste O Prazer, é autor de filmes como Carta de Uma Desconhecida, com Joan Fontaine e Louis Jordan, Caught e The Reckless Moment, ambos com James Mason, La Ronde, com Simone Signoret e Simone Simon, e Madame De…, com Charles Boyer, Danielle Darrieux e Vittorio De Sica, já exibido por nós no ciclo que dedicámos aos amores cinéfilos de João Bénard da Costa em 2019, ainda na Casa do Professor.
James Mason, que trabalhou com o cineasta em dois filmes, escreveu um poema sobre ele em que descreve o seu amor por grandes e sofisticados movimentos de câmara, dizendo que “I think I know the reason why / Producers tend to make him cry. / Inevitably they demand / Some stationary set-ups, and / A shot that does not call for tracks / Is agony for poor dear Max, / Who, separated from his dolly, / Is wrapped in deepest melancholy. / Once, when they took away his crane, / I thought he’d never smile again…”[1] Também Stanley Kubrick e Paul Thomas Anderson não se fartaram de elogiar os movimentos de câmara do franco-alemão, tentando a sua sorte em homenageá-lo com as suas câmaras nos seus próprios filmes.
Em O Prazer, vemos a câmara de Ophüls no seu máximo esplendor, sem interferência de qualquer produtor, a descrever as cambiantes da paixão e do amor. Três episódios: o primeiro uma espécie de prelúdio in finis res em que um casal idoso luta contra os seus próprios impulsos em lamentação da sua juventude perdida, com a câmara a seguir o homem nas suas deambulações nocturnas por clubes de dança. De máscara, até ao paroxismo, depois um sem fim de idas e vindas dos bastidores para a pista de dança e da pista de dança para os bastidores para tratar o velho que não quer acreditar que é velho; o segundo, o corpo essencial da estória, descreve a viagem de uma madame e das suas prostitutas a uma primeira comunhão no campo, onde se comovem imenso e fazem também outros comover-se, em tom solar e alegre, como anuncia o narrador-Maupassant a negro, antes do sol nascer. A casa Tellier apresentada em plano-sequência do exterior: movimentos rotineiros observados com pudor ou voyeurismo. No final, a festa com o regresso das mulheres, até ao torpor dos sentidos; o terceiro uma elegia conclusiva, a felicidade e a alegria, o efémero e o eterno, com o narrador presente no quadro. Corpos que dançam, corpos que caem, corpos que se aproximam e repelem até à lição derradeira, aprendida a sangue e lágrimas.
O narrador arrepende-se de o amigo se ter afastado dele na sequência dos acontecimentos trágicos que marcaram o seu grande amor. “Errou, ele,” diz o escritor a outro amigo. “Encontrou o amor, glória e fortuna. A felicidade não é isso?”
“Mesmo assim, tens de admitir que isto é tudo muito triste,” diz o amigo.
“Mas, meu caro, a felicidade não é alegre,” conclui o narrador.
Max, meus amigos.
Max.
[1] Tradução possível, mas sem as belas rimas do original: “Penso saber a razão / porque os produtores tendem a fazê-lo chorar. / Inevitavelmente exigem / montagens de planos fixos, e / um plano sem trilhos / é uma agonia para o pobre Max, / que, separado da sua dolly, / se embrenha na mais profunda melancolia. / Uma vez, quando lhe tiraram a grua, / pensei que nunca mais iria sorrir…”
Jochukko (1955) de Tomataka Tasaka
por Duarte Mata
Se o relógio não me enganou, o meu enquadramento favorito de Jochukko (O Menino da Ama, 1955) encontra-se no minuto 46. Trata-se de um plano de conjunto em picado que reúne uma mulher e um homem. Ela é a sobrinha da dona da casa que é o espaço central do filme, ele um visitante externo que não voltaremos a ver após esta cena. Ela ocupa o centro da composição, ele a zona próxima da margem direita. É uma conversa tranquila? A forma como o plano está filmado é o suficiente para nos indicar que não. Como? Neste enquadramento, está colocado graficamente um corrimão de escadas sobre o homem, este último visível à audiência apenas por entre as hastes verticais de madeira do dito elemento doméstico decorativo. A singularidade imagética deixa o espectador em estado de alerta: “Porquê um plano picado?”, “Porquê o corrimão sobreposto ao visitante?”, “Porquê esta imagem com o seu quê de incomodativo?” Um cineasta que sabe o que faz nunca filmaria um plano destes aleatoriamente, e é bom que Tomotaka Tasaka tenha uma razão para fazê-lo.
E Tasaka tem essa razão. Como o decorrer da cena demonstrará, este visitante é, na realidade, um embusteiro, andando de casa em casa com manobras de intimidação para forçar a venda de produtos inúteis. O corrimão sugeria, então, já um antagonismo entre as duas personagens, tanto pela rejeição em ambas compartilharem um enquadramento visualmente desobstruído, como pelo facto de as hastes dificultarem qualquer espécie de identificação com a figura masculina. Ao mesmo tempo, o ângulo de câmara é sugestivo de uma certa opressão ou vulnerabilidade, neste caso, aquela sentida pela figura feminina. A desconsolação imagética inicial ver-se-á, deste modo, confirmada pela narrativa, associando-se a inquietação espacial da imagem ao desconforto emocional da jovem. Momentos entusiasmantes de analisar como este há muitos em Jochukko, mas referir a perfeita sintonia de forma e substância não é dizer tudo (nem, provavelmente, o mais importante) sobre aquele que é definido por Donald Richie e Joseph L. Anderson, em The Japanese Film: Art and Industry, como “o retrato definitivo das milhares de jovens raparigas que vêm das áreas agrícolas deprimidas do Norte, todos os anos, para se tornarem no novo suprimento de empregadas domésticas de Tóquio.”
Trata-se de um filme do género shomin-geki – “sobre as vidas de pessoas comuns, particularmente as de classe média-baixa” (Richie/Anderson outra vez) – onde, não mostrando mais do que eventos quotidianos, Tasaka é capaz de traçar cuidadosamente um retrato psicológico e afectivo das personagens, assim como sociológico e económico de um país (o Japão do pós-guerra, no caso). É um universo íntimo a espelhar, na sua modesta escala, um outro mais abrangente, o particular como reverberação do geral, transformando uma casa num observatório de questões classistas com as suas dicotomias campo/cidade, tradição/modernidade, sempre de maneira simples, leve e justa.
Um exemplo para o parágrafo anterior? Numa cena onde a já referida sobrinha e a ama do título, Hatsu, vão passear ao mercado, estas dialogam brevemente sobre o preço das salsichas e dos rabanetes, nomeadamente o facto de o das primeiras ser dez vezes mais caro que o dos segundos. “Não é justo para o rabanete! E os pobres dos agricultores? Têm tanto trabalho a cultivá-los.”, comenta indignada a criada. Resposta da sobrinha: “A salsicha é uma comida modernamente preparada e o seu valor é naturalmente diferente do rabanete, onde só é preciso arrancá-lo do solo.” Neste curto diálogo estão colocados, de jeito espirituoso e sem discursos pregadores, todos os contrastes previamente referidos, abordando metaforicamente como o cidadão “moderno” (e, por consequência, “urbano”) é ilusoriamente encarado como superior ao mais “tradicional” (e, por consequência, “rural”) por beneficiar de uma educação mais sofisticada e de uma aparência que envolve mais “preparação”. É uma das várias exibições da condescendência cosmopolitana que, como o realizador mostrará numa das últimas cenas (aquela na neve), de nada vale quando os cidadãos citadinos se confrontam com a força da Natureza no campo, esse espaço onde o ser humano está despido das comodidades e aparências para melhor descobrir o seu verdadeiro valor.
Estas dinâmicas sociais estão presentes, em maior ou menor grau, desde a primeira cena, decorrida no interior de um metro com Hatsu a observar admirada uma passageira à sua frente, uma mulher adulta enfeitada com um colar, brincos e outros adereços (“modernamente preparada”, portanto), anunciando já o ponto-de-vista do filme inteiro: o olhar exterior da província sobre a metrópole. A câmara da Tasaka está, então, a partir do começo, do lado da criada, e é nele que explorará as várias microdinâmicas dentro do lar, sendo a mais importante aquela estabelecida com a criança mimada, irascível e egoísta da família dos patrões, de quem Hatsu se tornará a genuína figura didáctica. Um exemplo: uma birra provocada pelo rapaz para obter uma pressão de ar (cuja origem está numa outra cena de exposição exclusivamente visual e montagem de efeito kuleshoviano, com o rapaz a contemplar atentamente as balas, espingarda e aves abatidas de um caçador) só será resolvida pela intervenção da ama ao apresentar um método mais arcaico para capturar passarinhos. Comprar uma arma letal para matar animais? Não. Ao invés, construir uma armadilha segura com as suas mãos e escolher cuidar deles. A agressividade masculina, infantil e urbanita é, assim, vencida pela gentileza feminil, matura e campestre. É em instantes como este que melhor se enaltecem a cumplicidade silenciosa, confiança mútua e proximidade discreta entre educadora e educando (e não é por acaso que as sequências entre eles são aquelas onde a câmara está mais perto dos sujeitos).
Há muito mais que se poderia discutir. A forma quase ozuiana (sem o rigor composicional tão característico do colosso nipónico) como a câmara estuda as personagens, adereços e objectos por entre as portas internas e divisões mais ou menos vazias desse componente fulcral narrativo que é o espaço doméstico; a batalha entre as crianças com o uso expressionista do som de um avião em pleno voo sobre elas; a conversa amarga final entre criada e patroa, com uma sucessão de curtos travellings rumo à face magoada da protagonista enquanto esta atravessa um dilema moral: revelar a verdade à matriarca ou manter a lealdade junto do petiz; e a última cena, descendente quase certa da do Modern Times (Tempos Modernos, 1936) de Chaplin (a caminhada determinada rumo a um futuro incerto) e ascendente totalmente impossível da de Le notti di Cabiria (As Noites de Cabíria, 1957). “Totalmente impossível” porque, dada a relativa obscuridade da obra de Tasaka no Ocidente, é pouco provável que Fellini a tenha visto. E, no entanto, ambas têm nos seus desfechos um plano fechado do rosto da heroína e do seu sorriso resignado passadas as provações, uma imagem consoladora e esperançosa que anuncia a superação sobre o que veio e há-de vir. Que dois finais pareçam tão semelhantes sem nunca um ter influenciado o outro é qualquer coisa como um milagre. O tipo de milagre misterioso de que só filmes como Jochukko, Cabiria, Modern Times e outras obras-primas são feitas.
in «"O Menino da Ama": a cidade e as serras nipónicas», À Pala de Walsh, 15 de Novembro de 2021.
domingo, 30 de outubro de 2022
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Água (2010) de Eva Ângelo
por Alexandra Barros
Água é um documentário sobre
a montagem do espectáculo coreográfico e musical Vale, de Madalena Victorino, com música de
Carlos Bica. O projecto Vale foi
inspirado pela região do Vale do
Tejo e envolveu catorze intérpretes, vindos da dança, do teatro e
da música, e quarenta pessoas de
comunidades locais, com diversas
idades e modos de vida.
Além de acompanhar os ensaios
dentro de portas, Eva Ângelo filmou os encontros dos artistas
com trabalhadores de - e em - diversos espaços emblemáticos do
Vale: uma coudelaria, campos de
pastagem de gado, uma praça de
touros, um olival, ... A coreografia do bailado alimenta-se destes
encontros: das conversas, dos
ensinamentos recebidos de mestres locais, das observações, dos
gestos apre(e)ndidos participando
nas actividades que nesses lugares decorrem.
Durante os ensaios, Eva Ângelo
captou as orientações e as interpretações, os movimentos e as
expressões, as dificuldades e as
sintonias, os risos e as tensões, as
brincadeiras e as irritações, as cumplicidades. Tudo isso nos entrega
e dá a ver, ora de forma demorada e com pinceladas precisas ora
de forma fugidia, subtil, evitando
o voyeurismo, o drama e a afectação.
Madalena Victorino, trajada com
vestidos estampados com fabulosas cores e padrões, voz doce e
tom sereno, exerce uma liderança forte e assertiva. Dirige os
trabalhos, dando indicações aos
bailarinos como: “avançam como
senhoras, não como pata chocas”;
“respiramos para dentro do fundo
da Terra”; “não sorri, os cavalos
não sorriem”. Ela faz da dança um
ponto de encontro entre movimento e emoção, e é esse entrelaçamento que Eva Ângelo tão
bem traz para o filme. Visualmente
o filme é lindíssimo, mas encantador é o lugar comum da criação e
esforço conjunto, do entusiasmo,
empenho e gozo no trabalho de
grupo.
Madalena explica aos participantes
que ”este trabalho é um trabalho
sobre estarmos uns com os outros,
mas é também um trabalho sobre
estarmos connosco”. A dança é,
possivelmente, sempre um trabalho sobre estarmos connosco,
pois “ensina-nos a aceitar os nossos erros, porque fazemos tantos que
a única possibilidade de progresso
é a aceitação”[1].
O espectáculo fecha com imagens
de uma mó a rodar, uma metáfora
do círculo, símbolo de movimento, expansão, tempo, perfeição,
eternidade. Mas neste círculo há
um buraco no meio, em representação “do abismo, do desconhecido, do futuro”[2]. Sabe-se hoje que
muitas galáxias têm um buraco
negro no seu centro, como se a
luz só pudesse existir acompanhada dessa escuridão que tudo tenta devorar. Matéria e antimatéria,
cargas positivas e negativas, atração e repulsão. As dualidades
estão entretecidas no mundo microscópico, em nós, no espaço
cósmico. Serão essas forças opostas, afinal, os mais prevalecentes
LUGARES COMUNS?
[1] Ian Crewe, professor de dança.
[2] Madalena Victorino.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Crazy Horse (2011) de Frederick Wiseman
por Alexandra Barros
As obras de Frederick Wiseman,
reputado realizador de documentários, exploram maioritariamente a civilização americana e
o funcionamento das suas instituições. Wiseman parte para um
filme sem ideias pré-concebidas
e os filmes parecem querer deixar
os juízos críticos para o espectador. Mas, de acordo com o próprio,
os filmes não são nem poderiam
ser imparciais e representam a sua
versão da realidade. Daí não gostar que sejam classificados como
documentários.
Crazy Horse é o seu 39º filme e
a escolha do tema causou alguma surpresa. Em resposta a esta
reacção, disse sentir-se cativado
pelos diferentes usos a que o corpo humano é sujeito, e que lhe
interessa fazer filmes sobre tantos
diferentes aspectos da experiência
humana quanto lhe for possível.
O Crazy Horse é um clube parisiense, que apresenta espectáculos de cabaret, com influências do
burlesco e das artes circences contemporâneas. Tornou-se um ponto
icónico da Paris turística nocturna
e autopromove-se como artístico,
sofisticado, avant-garde, glamoroso e elegante.
O filme acompanha a montagem
de um novo espectáculo, concebido pelo director de produção e
coreógrafo do Crazy Horse, Philippe
Decouflé, assistido pelo director
artístico, Ali Mahdavi, dois perfeccionistas assumidos, entre os
quais existe uma tensão palpável.
Guarda-roupa, luzes, cenários, coreografia, tudo é sujeito a um meticuloso e coordenado desenvolvimento. As bailarinas, muitas das
quais com formação em bailado
clássico, estão sujeitas a um treino exigente e regrado. Neste filme
não há histórias individuais (como
é aliás característico da restante
obra de Wiseman) embora a intensidade de Mahdavi e a sua personalidade exuberante acabe por
torná-lo, de alguma forma, uma
excepção. Mahdavi é assumidamente um obssessivo-compulsivo
cuja obsessão na altura em que o
filme foi feito era o Crazy Horse.
Entre as obsessões anteriores
figuram: Marlene Dietrich, Yves
Saint Laurent e Helmut Newton.
Assistiu 40 vezes ao primeiro espectáculo que viu do Crazy Horse,
“arrepiando-se” tanto como com
os filmes de Fassbinder, Fellini ou
Michael Powell. Decouflé, que coreografou as cerimónias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1992 e
a cerimónia de abertura dos 50
anos do Festival de Cannes, ambiciona condições de trabalho adequadas aos elevados standards
de qualidade do Crazy Horse,
tentando (sem sucesso) fechar o
clube enquanto prepara o novo espectáculo. Tenta também que seja
reconhecido, por parte dos accionistas, que um trabalho de criação
artística como o seu não se coaduna com prazos apertados ou deadlines definitivas. O espectáculo tem
actos “sofisticados”, como o que é
executado ao som de uma versão
langorosa de Toxic, de Britney
Spears: um espelho divide horizontalmente um palco totalmente
negro, para criar imagens caleidoscópicas com braços e pernas que
parecem ter-se libertado das suas
bailarinas. Noutro acto, há um
strip executado ao som de Antony
and the Johnsons onde, nos meticulosos jogos de luz e sombra,
percebemos a que aspira Decouflé, quando afirma ser um criador
da arte da sedução, do desejo, do
sonho. Mas apesar das pretensões
de Decouflé e Mahdavi, a fasquia
nem sempre está tão alta. Algumas coreografias resvalam na vulgaridade e as canções no pimba.
Tal não impede que os dois ou três
espectáculos diários do clube estejam sempre lotados. Os clientes
(mais homens que mulheres, naturalmente, mas 30% do público são
mulheres em casal ou em grupo),
bem compostos, têm ar de quem
está ali por ter lido num qualquer
Guia Turístico de Paris que não
devia perder o espectáculo sexy,
artístico e com classe deste famoso cabaret. Mas face à hipersexualização do mundo actual, os afamados actos de sedução do Crazy
Horse deixaram de ser avant e não
são realmente crazy. Estarão mais
próximos da disciplina de controlo
e postura de Dressage do que com
qualquer galope louco.
Em sintonia com o ar do tempo, em
que o lazer e as actividades recreativas e culturais se tornaram produtos comerciais, os espectáculos
do Crazy Horse são vendidos em
pacotes mais ou menos exclusivos, de acordo com o que se
pode gastar. São uma experiência
icónica da cultura francesa para os turistas endinheirados acompanharem com champagne superieur e
amuse-bouches, e levarem documentada pela fotografia-lembrança incluída apenas nos pacotes de
luxo.
Com o crescimento do turismo
de massas, a Disneylização de
espaços e experiências “típicos”
tem-se vindo a alastrar em todo o
mundo, das grandes cidades aos
pequenos lugares. Património ma-
terial e imaterial é convertido em
mercadoria pronta a consumir, de
preferência com bilhete reservado,
para evitar filas de espera.
Que transformações sofreu o Crazy Horse neste processo? O que
procuravam os seus clientes iniciais e o que procuram os actuais?
Ser seduzido ou fazer tick numa
recomendação do Guia Turístico?
Fantasia sexual ou turismo cultural? Embora as respostas sejam
possivelmente diferentes, no fundo, todos estarão unidos por um
mesmo lugar comum: fantasia,
sonho, a evasão do quotidiano e
da vida real.
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
Dom na trubnoy (1928) de Boris Barnet
por António Cruz Mendes
Todos conhecemos Eisentein, Dovjenko, Dziga Vertov… Mas, Boris Barnet, também ele realizador de
cinema com uma carreira que se inicia nos anos 20, é ainda desconhecido do grande público. E, no
entanto, Georges Sadoul chegou a considerá-lo “o melhor realizador soviético”.
Este filme ajuda-nos a compreender a admiração do historiador de cinema francês. É excelente a
sequência da caótica “limpeza” das escadas do prédio, filmadas em planos de conjunto que realçam a
sua verticalidade, a perspectiva das ruas oferecida pelas linhas serpenteantes dos eléctricos, o recurso
ao movimento acelerado para nos dar a impressão do dinamismo da vida urbana… Particularmente
ousada é a forma como, num momento de grande tensão (Parasha vai ou não ser atropelada pelo
eléctrico?), recorre à imagem parada para introduzir um flash-back que há-de responder a uma cómica
questão: “mas, afinal, donde veio o pato?”. O singular humor de Barnet percorre todo o filme.
Encontrámo-lo, por exemplo, na cena onde Marisha, roída de ciúmes por causa da atenção que Semyon
dá a Parusha, descarrega a sua fúria nos tapetes que tem que bater. Uma atitude logo seguida pela
“rival”, que assim agridem os tapetes em vez de se agredirem uma à outra.
Mas, afinal quem é Parasha (ou Paranya, nome pelo qual também era conhecida)? Trata-se de uma
jovem provinciana perdida na grande cidade. O tio que a deveria receber foi à aldeia no dia em que ela
chegou a Moscovo. Vestida como uma camponesa, com as suas botifarras e a sua roupa sem forma, ela
vê-se perdida, perplexa entre a multidão de desconhecidos, desorientada no meio das ruas por onde
circulam pessoas apressadas, carros e eléctricos. A cena onde para o trânsito para se abraçar ao seu
pato (“aterrorizado”, diz ela), à última hora salvo de ser atropelado, exemplifica a sua situação.
O encontro com Semyion leva-a à casa da Praça Trubnaia onde vai trabalhar como empregada
doméstica para os Galikov, uma casa onde a mulher nada faz e não se aceitam trabalhadoras
sindicalizadas. Contudo, uma série de acidentes permitem-lhe conhecer Fenya, uma sindicalista, e
assistir à representação da “Tomada da Bastilha” no Clube dos Trabalhadores. Aí, vai saltar para o palco
para “salvar” um revolucionário de ser abatido pelo General, episodicamente interpretado pelo
cabeleireiro Galikov. A confusão entre a ficção e a realidade, alarga-se de Parasha a todos os
espectadores, que fazem dela uma heroína, e ao próprio patrão, que a castiga com o despedimento.
No fim do dia das eleições, a multidão dos votantes, dispersa-se em todos os sentidos e Parasha,
filmada em plongé, surge-nos isolada, no meio da praça deserta. Está de novo sozinha e sem-abrigo.
Mas, a fama da sua ousadia e uma confusa troca de nomes, põem a correr o boato de que ela teria sido
eleita, em representação do sindicato das trabalhadoras domésticas, para a Assembleia Municipal. Na
casa da Praça Trubnaia, todos se preparam para a acolher em festa. As escadas da casa estão
finalmente asseadas e até mesmo os “burgueses” das relações da madame Galikov que, antes disso, a
desprezava e explorava, prepararam um pequeno banquete para a receber.
No entanto, desfeito o equívoco, Parasha é de novo expulsa da casa dos antigos parões e são apenas
as mãos ávidas dos convidados dos Galikov que se atiram, num expressivo plongé, sobre as requintadas
vitualhas dispostas na mesa.
A sinopse que reproduzimos mais acima diz-nos que o filme é “uma sátira à pequena-burguesia que
sobrevivera à Revolução”. Na verdade, ela não apenas “sobrevivera”, mas, decerta forma, renascera
durante o período da NEP, a “Nova Política Económica” promovida na URSS entre 1921 e 1928.
Apostou-se, então, na iniciativa dos pequenos produtores e comerciantes para revitalizar uma economia
que se encontrava exangue depois da 1ª Guerra Mundial e da guerra civil que se seguiu à tomada do
poder pelos bolchevistas. No entanto, a implementação da NEP dividiu o Partido. Entre os seus
defensores, destacou-se Bukarine. Na sua opinião, dado o subdesenvolvimento económico da URRS, o
socialismo só poderia avançar aí “a passo de tartaruga”. Outros, como Preobajensky, pelo contrário,
consideravam que a industrialização do país teria que passar obrigatoriamente pela colectivização das
terras, embora defendessem que esse processo fosse realizado à medida que os camponeses fossem
reconhecendo as vantagens das grandes explorações colectivas sobre as pequenas propriedades
individuais. E havia ainda quem visse, no enriquecimento dos NEPmen (os pequenos comerciantes e
proprietários, como Galikov) uma traição aos ideais igualitários da Revolução.
Nesta disputa, o filme de Barnet toma partido. Não é por acaso que a parede da sala da casa dos
Galikov, onde se prepara o banquete de recepção a Parusha, está decorada com a fotografia de
Bukarine. Ora, a data da realização do filme coincide com a da aprovação do 1º Plano Quinquenal que
assinala o fim da NEP e o início de radical processo expropriação das pequenas propriedades que vai
mudar a face do país.
Em 1928, é Estaline quem detém o poder. Primeiro, apoiou-se em Bukarine para afastar Trotsky,
Zinoviev, Kamenev. Preobajensky também não escapou. Mas, muito em breve, o seu antigo aliado vai
tornar-se a sua próxima vítima. O seu retrato afixado na sala dos Galikov é uma subtil introdução à
tragédia que se vai seguir. Bukarine, tal muitos outros daqueles e de outros “velhos bolchevistas”, vai ser
condenado à morte nos tristemente famosos Processos de Moscovo, ocorridos nos anos 30. A
colectivização das terras e a “liquidação como classe” dos Kulaks (os camponeses “ricos”) e dos
NEPmen vai realizar-se rapidamente e com a maior violência. O saldo serão muitos milhões de mortos.
Teria Barnet consciência do papel desempenhado pelo seu filme na preparação da opinião pública para
aquilo que estava para vir? Na última cena, o cabeleiro é informado que vai “passar uns anos na prisão”,
acusado de “ofensas físicas” a Parusha...
A mão negra da Inquisição esconde-se por trás de muitas extraordinárias pinturas do século XVII e,
agora, isso não nos impede de as apreciarmos com gosto. Também a sombra do estalinismo paira sobre
o divertido filme de Barnet. Diante de uma obra assim, como posso eu conciliar o meu prazer estético
com o meu repúdio político?
As Operações SAAL (2007) de João Dias
por João Palhares
«1. Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.»
in Artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
«Lá vêm subindo o abismo
Da sombra donde vieram
Já sem medo e sem vergonha
Virados para a luz do dia
Será esta a nossa porta?
Perguntavam um pouco inquietos
Por terem pela vez primeira
Quatro paredes e um tecto.»
José Afonso, in «Barracas ocupação».
Feita a revolução (essa que o Juan Miranda de Giù la testa descreveu aos gritos como um sonho de burgueses posto em prática pelos mais pobres), que mais falta fazer? Normalmente, tudo. E muito antes de José Mário Branco assumir pesadamente que “foi um sonho lindo que acabou,” numa ode cantada a uma amada que podia ser a nossa Revolução, houve um grupo alargado de arquitectos e de moradores que arregaçou as mangas e pôs mãos à obra durante o Processo Revolucionário em Curso. A pretexto de um despacho criado pelo então Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas, tentar-se-ia resolver o problema da habitação e da exclusão em comunidade: os arquitectos desenhavam as casas, os moradores construíam-nas e o Estado pagava os materiais. O projecto chamou-se Serviço de Apoio Ambulatório Local, mas é mais conhecido por “Operações S.A.A.L.”, que é também o nome do filme de João Dias.
As Operações SAAL, o filme, foi feito nas ruas. A caminho de bairros ou de escritórios de arquitectos, em salas de arquivos e com o próprio realizador em campo durante a sua investigação. O estado primordial da demanda retratada, que envolve a reforma de um país e a luta de um povo pelos seus direitos fundamentais, permitiu a João Dias abrir uma discussão com duas horas entre pólos aparentemente irreconciliáveis. Um dos arquitectos que presta depoimento até diz que “agora podemos desabafar” e os intervenientes são confrontados uns com os outros na montagem e, claro, no terreno. Como garantir habitação a pouco custo para muita gente? Como é que se constrói uma casa que agrade a outra pessoa? Como é que se sustenta um programa que depende de reuniões contínuas entre associações de moradores e técnicos do Estado? Quanto duram os projectos originais e quanto desperdício de fundos houve, se, depois, os moradores trocam os materiais usados por outros ou o poder local interrompe os trabalhos? Vale a pena quando, noutras situações, as casas não vão para os moradores mas para arquitectos?
Não há muitos documentários ou reportagens (portugueses ou não) que abracem, desta forma, o contraditório para qualquer dos lados de uma discussão. Normalmente há uma tese a ser defendida, normalmente os depoimentos não são cortados ou deixam-se correr até ao final duma ideia (normalmente, isso também é uma ilusão urdida pela montagem). Mas em As Operações SAAL respira-se o ar de Abril e dos milhares de sonhos possíveis traçados entre a esperança pessoal e o inconsciente colectivo, captados por uma câmara que deixa miúdos acenar-lhe do outro lado da rua e espectadores fortuitos chamarem-lhe de câmara da “TVI”. Lembramo-nos do Glauber Rocha, cineasta brasileiro, em pleno 25 de Abril, a espicaçar miúdos e graúdos pelas ruas de Lisboa n’As Armas e o Povo. “Acredjita na révulução?” “Há quanto tempo você lútá?” Que esperança ainda têm as pessoas de que algo mude no que é essencial nas suas vidas? Ainda estão dispostas ou ainda acreditam em lutar como lutaram pela paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação? “Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa,” gritam os proscritos de hoje, relembrando-nos que continuamos muito longe de dar corpo à Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A resposta é afirmativa, a luta continua.
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
L'arbre, le maire et la médiathèque (1993) de Éric Rohmer
por António Cruz Mendes
O que fazer de terreno abandonado, propriedade do pequeno município de St. Juire, vizinha da bela igreja medieval no centro da povoação? Eis a questão em torno da qual se desenvolve este filme, inserido no ciclo “Lugares Comuns”, tema dos Encontros da Imagem de 2022. Sob as respostas possíveis, escondem-se interesses particulares que, no entanto, como sempre acontece nos filmes de Rohmer, nem sempre são assumidos de uma forma explícita, mas surgem envoltos em “teorias”. E é nisso que, na minha opinião, reside o humor, a ironia, que perpassa todos os seus filmes: o que está em causa são propósitos muito práticos, mas o que se debate são “ideias", longamente argumentadas.
Neste caso, debate-se, por exemplo, a relação campo-cidade. Onde é preferível viver? Nos tempos modernos, no campo ainda haverá camponeses? Na época do tele-trabalho, actividades tipicamente urbanas não poderão trasladar-se para o campo, beneficiando com outra qualidade de vida muitos trabalhadores? E a chegada de novos residentes, ou até mesmo de turistas, não vai dinamizar a economia local, beneficiando os antigos residentes? Todas as ideias se definem melhor quando se afirmam contra um opositor que as contrariam e é Bérénice Beaurivage, a companheira de Julien Dechaumes, o Presidente da Câmara de St. Juire, quem vai desempenhar esse papel. A contradição cidade-campo resolve-se levando a cidade para o campo, como defende Julien, ou o campo para a cidade, como defende Bérénice?
Mais prosaicamente, sabemos que o simpático Presidente, derrotado nas eleições regionais, pretende apresentar-se como candidato do
PSF às próximas eleições legislativas. Para isso, tem de vencer outros prováveis candidatos, apresentando-se à direcção do seu Partido como sendo aquele que mais apoio reúne entre a população do seu círculo eleitoral. Portanto, como demonstrá-lo?
Estamos no tempo de François Mitterrand, que quis assinalar a sua passagem pela Presidência da República com a realização de um conjunto de grandiosos projectos arquitectónicos. O Instituto do Mundo Árabe, o Grand Arche de La Défense, as obras do Louvre assinaladas pela famosa pirâmide, o Parque de La Villette... Por que não realizar no seu próprio município, algo de semelhante? Surge assim o projecto da Mediateca, um imenso centro cultural e desportivo, com uma dimensão pouco adequada às verdadeiras necessidades dos actuais habitantes daquela pequena povoação.
Evidentemente obra de um prestigiado arquitecto, o projecto de Dechaumes conta com defensores e opositores. Entre estes, destaca-se Marc Rossignol. A sua tese: a identidade de um lugar, a sua beleza, invalidam qualquer intervenção, mesmo que ela se pretenda respeitosa da envolvente natural ou construída. Uma majestosa árvore está ameaçada pela construção do grande complexo cultural e desportivo que o Presidente ambiciona construir. Mesmo estando ela, talvez, velha e doente, merecerá a pena condená-la para que possa ser construído um estacionamento para os automóveis dos futuros visitantes da mediateca?
Aqui ecoa um outro debate travado, entre Julien e Bérénice, onde intervêm também Blandine Lenoir, jornalista, e Regis Lebrun-Blondet, director de uma revista política mensal e primo por afinidade de Dechaumes: serão os ecologistas de esquerda ou reaccionários em oposição radical à modernidade e ao progresso? As suas ideias, não se conjugam elas perfeitamente com a política cultural da direita baseada na intransigente defesa da tradição? Talvez as razões ecologistas possam ser pontualmente invocadas tanto pela direita e como pela esquerda, quando isso mais lhes convém... Não é o próprio Regis Lebrun-Blondet, também ele, “ecologista” quando se trata de proteger a casa que tem na província? E, afinal, o que é “ser de esquerda”? Será Dechaumes, senhor de uma magnífica propriedade, “de esquerda”, como ele próprio pretende, ou comportar-se-á ele como um grand seigneur, um “janota”, como diz Bérénice, guia e protector dos seus pobres e incultos munícipes?
E Rossignol, que não é um “filho da terra”, mas alguém que nela se refugiou dos tempos modernos que abomina, defenderá ele interesses próprios ou os daqueles que nessa aldeia residem? Em todo o caso, as concepções do “bem comum” de Dechaumes e de Rossignol parecem inconciliáveis.
Como é que se há-de resolver a questão? A solução, que parece ser simples, foi apresentada por uma criança, Zoé, a filha do professor, e acabou por se concretizar, em parte por causa de um artigo da revista de Lebrun-Blondet. Artigo esse que foi escrito porque, por mero acaso, Blandine pôde presenciar uma entrevista de Dechaumes com o director da revista; entrevista essa que a levou a escrever um artigo sobre os “jovens turcos” do PSF; artigo que apareceu truncado e deformado, por iniciativa do director que, movido por estranhas razões, o transformou numa reportagem sob o impacto da mediateca na vida de St. Juire, onde se destaca o depoimento do professor Rossignol; e que, pôde ser assim publicado porque, na altura, Blandine, estava longe de Paris, a acompanhar uma missão da UNICEF ao Senegal...
A história termina em happy-end: O projecto megalómano não se concretiza e Dechaumes abre as portas da sua propriedade aos habitantes da aldeia que aí confraternizam alegremente. Mas, também poderia acabar de outra maneira. E também aqui Rohmer expõe, sub-repticiamente, uma outra teoria, enunciada em voz-off. Ouvimo-la num discurso, aliás bastante redundante e aborrecido, num rádio, em casa de Blandine, enquanto, em cena, se passa algo que nos distrai, sem qualquer relação com ele. Trata-se dos “imponderáveis na história”. Logo no início do filme, vemos o professor Rossignol a explicar aos seus alunos a função da conjunção “se”. É por ela que se iniciam os títulos dos capítulos em que o filme se divide: “E se...”
quarta-feira, 12 de outubro de 2022
Zéfiro (1994) de José Álvaro de Morais
por João Acciaiuoli Catalão
«Eu acho que o essencial no cinema (...) não é a história, é a maneira como é contada ou os sentimentos e as emoções que ela nos causa, e a capacidade (que tem) de despoletar associações.»
José Álvaro Morais
O convite era para escrever sobre um filme. Que tem por título o nome de um vento favorável. Mas vou falar antes sobre uma ilha. Não a ilha que o filme também é, no arquipélago singular e rarefeito do José Álvaro Morais, mas a ilha em que este se tornou no meu próprio espaço identitário. Os filmes tornam-se ilhas quando os habitamos de alguma forma. Quando se rompe uma espécie de membrana permeável que os envolve. E eles se entranham e enraízam nas nossas vivências e memórias. Revi o Zéfiro em 1994 no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Onde existe uma espécie de cais de pedra circular a meio. Revi o filme com a presença do José Álvaro Morais, que o apresentou num ciclo dedicado ao cinema português. Tinha acabado de voltar ao Brasil nessa altura. E estava ainda bem presente a viagem que havia feito a Mértola. Pouco antes de embarcar para o Rio de Janeiro. Por causa do filme, que tinha visto em Lisboa. A Mértola e às Minas de São Domingos. O lugar mais próximo onde foi possível encontrar alojamento. Conjugaram-se assim nesse momento decisivo de inflexão a aura mítica que Mértola ganhara e as ruínas a céu aberto da mineração. Num contexto agudizado pela abertura da temporada de caça, que tinha tomado conta do hotel e das redondezas. Mértola é também um ponto de inflexão no filme viagem de José Álvaro Morais. É lá que se intercetam os dois planos condutores do filme. A viagem ficcionada em tons poéticos e a narrativa geográfica e histórica com que esta se entrelaça. Quando Luis Miguel Cintra, narrador de mapas e paisagens, transpõe o estúdio fechado e irrompe no castelo da vila, que foi reconstruída sobre os sedimentos de uma anterior comunidade islâmica. E a figura feminina a cavalo, que acompanha o percurso do jovem fugitivo em direção ao sul, ganha ali sepultura. Porque em Mértola estamos a três passos, ou a três irmãos como refere o filme, da antiga amálgama cultural existente na entrada do Mediterrâneo. A três passos de um estado de convivência harmonioso e tolerante entre os povos do sul da península que tanto fascina o olhar do realizador do filme. E o impele na sua saga de reedificação identitária do país. Antes da invasão devastadora dos reis cristãos do norte. Como defende o arqueólogo Cláudio Torres, que é consultor científico neste trabalho. Que foi recusado pela RTP por ter mais do que duplicado a duração prevista. E que foi por isso podado numa versão televisiva mais ligeira (Margem Sul, 1994). Segundo ele, a islamização desse território a sul do Tejo foi vinculada por mecanismos da paz e da cooperação e não por imposição guerreira. Que é a visão histórica que o filme assume e em que assenta estruturalmente. É apontado o quanto a génese dos trabalhos de José Álvaro Morais parte do plano pessoal e das relações de proximidade do realizador. Como a que cria com o Teatro da Cornucópia. E é referida igualmente a sua tenacidade face às adversidades que marcaram o seu percurso cinematográfico. Cujos projetos iniciais, depois de regressar a Portugal, e na sequência do exílio e formação em cinema na Bélgica, foram os documentários Cantigamente Nº 3, para a RTP, e Ma femme chamada Bicho, sobre o casal Arpad e Vieira da Silva, para a Fundação Calouste Gulbenkian. Ambos realizados através do Centro Português de Cinema. Ambos em que o diretor não foi a primeira escolha. Se já tinham decorrido quase sete anos entre a epopeia do leopardo de ouro no Festival de Locarno (O Bobo, 1987) e o nascimento do Zéfiro (1993), foi preciso aguardar outros tantos para ter lugar o parto do filme seguinte (Peixe-Lua, 2000). Um trabalho carregado de cor e conflito interior, onde pulsa o sangue de García Lorca. E que vai alargar a busca e a redescoberta desse sul musical e vibrante à Andaluzia. Ao lado de lá da fronteira, que é onde a viagem de Zéfiro termina. E faz esse percurso atravessando a ondulação das planícies com um veleiro atrelado num jipe. Que tem o mesmo nome desse filme anterior tão presente. Com a morte repentina de José Álvaro Morais a sua obra acaba por ficar precocemente concluída com o filme Quaresma de 2004. Num retorno premonitório ao norte natal e granítico da Covilhã. Por causa de um funeral de família. E é já outro vento que não o Zéfiro que impulsiona depois a turbulência passional da história até às eólicas bem alinhadas da costa da Dinamarca, na segunda parte do filme. Numa paisagem retratada de uma forma higiénica e fria. Que ganha uma leveza inesperada e quase libertadora na resignação parental com que o filme culmina. Zéfiro é a ilha primeira dessa trilogia que finaliza a obra e o universo cinematográfico de José Álvaro Morais. E encarna com poética e intensidade o fascínio do cineasta por
Lisboa. Retratada no filme como um Mediterrâneo em miniatura. E como antecâmara para uma mítica afetiva do sul anterior à formação da nacionalidade. Um “sentimento difícil de explicar” como o filme sublinha. O realizador, que abandonou o curso de medicina em Lisboa, deve ter compreendido a dada altura que essa era provavelmente uma patologia sem cura. Senti um fascínio e uma exaltação semelhantes quando fui também viver para Lisboa. Antes da invasão do turismo. Por causa da cidade em si e pela magnificação relacional então vivida. Refletida nesse Cais das Colunas mítico e coreográfico onde o sul se anuncia ritmicamente. Embora esse apelo viesse para mim de outras latitudes. É na transposição interior desse sul bafejado pelo vento Zéfiro que o filme assenta como ilha. Uma ilha onde o Corto Maltese sugerido por José Álvaro Morais acompanha os navios que chegam e partem do Tejo. Enquanto caminha sobre casas e sedimentos civilizacionais em ruínas. No final do filme troquei umas palavras breves com o realizador. Contei-lhe ter ido até Mértola por causa do seu filme. E fiz referência às cegonhas que filmou em ritual de acasalamento. E que eu não encontrei na minha passagem. Respondeu-me que aquelas cegonhas tinham-se tornado residentes. Que já não faziam mais as migrações costumeiras de inverno. E eu fiquei picado por esse sul cálido e benfazejo a norte que fixava as cegonhas à terra para sempre. E que me dava tanta vontade de voltar a casa. Foi assim que a ilha evoluiu a partir do filme. Uma ilha que aquele bailado do marinheiro a bordo do cacilheiro tão bem sublima. Como um lugar improvável de flamingos. Numa visita mais recente a Pompeia reparei numa casa identificada como sendo de Zéfiro e Flora. O que reforçou a minha consciência do sentido eruptivo da ilha. Porque o Zéfiro que hospedo dentro é uma paisagem indissociável das ruínas. Mas, acima de tudo, porque existe Flora ainda oculta nesse filme. Mas não nos dois filmes seguintes. E porque existe em ambos uma relação primordial profunda. Projetada no presente feito um peixe-lua espectral que nada em silêncio no abismo. Se tu te transformasses em Zéfiro eu transformava-me em mar. Se tu te transformasses em mar eu transformava-me em navio. Se tu te transformasses em navio eu transformava-me novamente em Zéfiro. Se tu te transformasses novamente em Zéfiro eu transformava-me em Flora. Para voltarmos assim ao começo do mundo. A ilha em que o Zéfiro se tornou é parte de um arquipélago renaturalizado pela vegetação bravia. Em estado de redenção suspensa até ao reencontro derradeiro de Zéfiro e Flora. Numa projeção do infinito feita a partir da coluna sem fim de Brancusi. É “um sentimento difícil de explicar”. Porque é uma ilha que se move. E há uma viagem como a de Ulisses pelo meio que não acaba.
Zéfiro e Flora, João Acciaiuoli Catalão
segunda-feira, 10 de outubro de 2022
Nós (2021) de Nelson Fernandes
por Mário Fernandes
«A animação trata problemas sérios, convida à meditação como qualquer filme de Antonioni ou Buñuel.»
Vasco Granja
«Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.»
“O Fazedor”, Jorge Luis Borges
Milhares de desenhos, rostos a gerarem-se e a desfazerem-se no desconhecido, cenários fantásticos e mágicos, figuras atormentadas e irónicas: é este o pano de fundo de uma vida a saltar os muros das percepções comuns. Anos de labor incansável de um fazedor discreto, que não integra os circos merdiáticos, no país das galerias ocupadas por quem tem mais padrinhos que talento, no país das rotundas assinadas pela gorda dos Galos de Barcelos.
Nas mãos que pensam deste fazedor, a animação está pelas horas da poesia, sem lucro material, apenas com a satisfação de gerar vida e movimento, frame a frame, num ofício de amor e paciência, demorado e atento. Falo obviamente de Nelson Fernandes (Zina), um artífice refinado em contra-corrente, cuja animação nada tem que ver com exércitos de assalariados, bonecas, hologramas, afterefects, estúrdia de coloridos do milionário Wes Anderson.
Zina, nos antípodas, afirma a veia orgânica dos materiais e da matéria, e logo a poesia, fiscalidade metafórica, que deles retira. Não o mundo cor-de-rosa e postiço do guloso americano, mas o desenho genuinamente animado, na sua concretize e abstracção, a expressão plástica da condição humana e o respirar de uma íntima verdade, que se inscreve na arte moderna, tal como a definiu Baudelaire: «Criar uma magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objecto e o sujeito, o mundo exterior do artista e o artista ele próprio.»
Em Nós, que tanto remete para o “nós” como inquietação colectiva como para os “nós” da solidão que este filme tenta desatar, nada pousa tranquilamente, em descanso; tudo é interrogação muda aos céus, aos mares e aos desertos. Estamos perante a recordação de um sonho catastrófico, em “plano-sequência”, do Homem emparedado na sua loucura? Uma metáfora do artista martirizado, Ícaro de asas cansadas que cai no real quotidiano, e do silêncio a que são votados os proscritos? Uma casa de imagens saqueada, destroçada, simbolizando o drama cósmico do Homem? Um requiem pelo frágil bote da humanidade, afundado nos abismos de plástico (materialmente, literalmente) do oceano? A estupefacção do Homem face à sua circunstância e ao momento histórico? Uma viagem à procura de um outro mundo?
Neste filme sobre a incomunicabilidade, a angústia face ao insondável e a incapacidade humana de lidar com o desconhecido sem causar destruição, a fronteira muda constantemente entre a vida normal e um pesadelo que parece ser mais real. A textura dramática de papel, pele convulsa do filme, é a sagração trémula da ruína, miséria e solidão, união frágil da perenidade e da morte.
No cimo do campanário, força cósmica, um sino plangente (por quem dobra?) expande-se, desce, ecoa, leva a notícia aos confins do silêncio. Uma delicada flor perde as pétalas a um sopro de vento, inocência massacrada por um tanque de guerra. Os relógios interiores do Homem e da flor batem em uníssono com o relógio exterior da torre sineira. O Homem, como a flor no deserto, um ponteiro de sombra. Da raiz ao frutificar das chamas.
Cenas que exemplificam o poder da perfuração desta animação dramática, explosiva, um universo de agitação e malogro, e que projectam as ansiedades comuns desde que o homem é homem, as calamidades domésticas, colectivas e planetárias feitas a mesma carne, o mesmo papel, num preto-e-branco que deflagra como um grito queimado.
Neste filme de destroços e detritos, de cosmos e intimidade, de voos e quedas, a várias mudanças, vertiginoso até à morte em lume brando, sem apelo, o Homem tanto pode ser levantado do chão como esmagado sob o peso de acontecimentos que fazem tremer o mundo.
Chegamos ao dilacerante momento final. Caído dos astros, janelas vazadas pela câmara pergunte , o Homem vinga-se cortando a planta que regara e, já um outro (castigo?), prostra-se no deserto. Da escuridão mais funda da condição humana, sobe uma árvore. Ecce Homo. Pièta. Irrupções de fumo. Sinais de fumo. Veladas cintilações. Ao regaço do fim. No estertor do fim.
P.S.: 24 de Dezembro. Estou a vê-lo na Rua da Cale, nº 82, ao lume de uma mesa de luz onde nascem as formas cinematográficas, como se fosse o seu presépio. Aí está Zina (até quando este país vai ignorá-lo?), recortando as chamas, desafiando a noite, para um clarão breve.
in «Jornal dos Encontros Cinematográficos» de 2021