quinta-feira, 30 de março de 2023

287ª sessão: dia 4 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“Deus e o Diabo na Terra do Sol” esta terça-feira 
 
A segunda longa-metragem de Glauber de Andrade Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol, inserida no ciclo “Glauber Rocha - O Eterno Revolucionário”, é a proposta do Lucky Star - Cineclube de Braga para dia 4 de Abril às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Estreado no Festival de Cannes de 1964, em Maio, o filme conta com as presenças de Geraldo Del Rey e Yoná Magalhães como um casal de fugitivos perseguido pelo enigmático António das Mortes, interpretado por Maurício do Valle. Esta personagem entraria noutro filme de Glauber, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, conhecido na Europa como António das Mortes

Segundo Rogério Sganzerla, cineasta brasileiro associado a outro movimento artístico desses anos, o cinema marginal, “a grande ideia de Rocha foi a de reunir uma reduzidíssima equipe, uma câmera velha e partir para os sertões pensando em filmar uma epopeia.” 

No mesmo texto de 1966, Sganzerla escreve que “em Deus e o Diabo tudo é tão controvertido, tão pretensioso, tão proposto, tão falso (“tudo está na cara”, diz o autor) que o filme chega a ser realmente coerente, humilde e definitivo.” 
 
Filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha, Glauber Rocha estudou Direito mas cedo se interessou por cinema, dedicando-se ao cineclubismo, fundando uma produtora e realizando duas curtas-metragens em 1959, A Cruz na Praça e Pátio, antes de se estrear nas longas-metragens em 1962 com Barravento
 
Parte da obra deste grande vulto do cinema mundial foi este ano alvo de uma reposição nas salas pela distribuidora Nitrato Filmes, de Santa Maria da Feira. Será possível ver ou rever então seis dos seus filmes em todo o país: Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, Der Leone Have Sept Cabeças e A Idade da Terra
 
O Lucky Star - Cineclube de Braga exibirá quase todo o ciclo, ficando de fora apenas Barravento, com Antonio Pitanga e Luiza Maranhão e Der Leone Have Sept Cabeças, com a presença especial de Jean-Pierre Léaud. As próximas sessões deste ciclo serão O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, no dia 11, Terra em Transe, no dia 18, e A Idade da Terra, no dia 25 de Abril. 
 
Como sempre, as sessões do cineclube ocorrem às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

L'accademia delle Muse (2015) de José Luis Guerín



por Joaquim Simões

A Academia das Musas é um filme que se desenvolveu enquanto foi filmado. José Luis Guerín começou por querer fazer uma experiência com Raffaele Pinto, professor de Filologia Italiana na Universidade de Barcelona, tendo-o conhecido através da sua edição da Vita Nuova, de Dante Alighieri, que inspirou um filme anterior do realizador (En la ciudad de Sílvia). Depois de ter sido convidado pelo professor a experimentar cinematograficamente nas suas aulas, o realizador começou por fazer aquilo a que chama geralmente um documentário: apontar e filmar a realidade, neste caso a realidade das aulas de um projeto do intitulado “Academia das Musas”, uma série de aulas dedicadas à importância das musas na poesia, tanto como objeto desta como inspiração dos artistas masculinos, e consequentemente, do seu papel civilizacional. A dada altura, o material que Guerín havia recolhido, analisado e montado até então, fez surgir a possibilidade de um filme com um propósito, uma narrativa, e o realizador mudou a sua abordagem, passando do âmbito documental para a ficção. 

Utilizando o professor e as suas alunas como personagens, assim como uma outra professora da universidade para representar o papel da esposa do professor, A Academia das Musas pega no tema do projeto pedagógico que se propôs a documentar e aplica-o à própria estrutura do filme: as alunas do professor surgem como as suas musas. Os diálogos entre o professor e alunas passam a acontecer fora da sala de aula, individualmente, e em lugares suspeitos para uma relação meramente pedagógica: conversas em carros, em cafés e hotéis. As aulas e estes encontros são contrapostos com as conversas (e os silêncios) entre o professor e a sua mulher, que discutem a sua relação e o método de ensino do professor quando começa a ser óbvio que este envolve relações amorosas com as alunas. 

Apesar de o filme passar progressivamente do reino documental para a ficção, e isso se tornar óbvio através da ubiquidade da câmara em situações manifestamente comprometedoras, a genuinidade das conversas do professor e das alunas mantém sólida a verosimilhança documental que é imprescindível para a força do filme como exploração do tema do romance como parte de um processo pedagógico, ou da pedagogia como justificação para o romance. 

Um filme de grandes planos, caras e vozes, A Academia das Musas não deixa de conseguir tornar as limitações necessárias da sua forma, nomeadamente o trabalho com atores sem experiência, em poderosas formas de expressão. As conversas, filmadas maioritariamente através de vidros como forma de proceder com discrição, criam através destes reflexos uma noção “singularmente abstrata e literária, confrontando de um modo poético a palavra íntima do interior com a violência do exterior”.



quarta-feira, 22 de março de 2023

286ª sessão: dia 28 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Filme de José Luis Guerín na BLCS 

Inserido no ciclo “Sou do Tamanho do que Aprendo – Histórias sobre Educação”, promovido pelo Lucky Star – Cineclube de Braga durante o mês de Março a desafio do Sindicato de Professores do Norte (SPN), que celebra este ano o seu quadragésimo aniversário, A Academia das Musas, do cineasta espanhol José Luis Guerín, é a proposta do cineclube para dia 28 às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS). 

Conhecido por Innisfree (1990), Comboio de Sombras (1997) e Dans la ville de Sylvia (2007) , Guerín é um cineasta, argumentista e produtor espanhol que nasceu em Barcelona em 1960. Aos 23 anos, e depois de realizar Los motivos de Berta, em 1983, convidou o crítico espanhol Miguel Marías para apresentar a sua obra, em Madrid. Este disse-lhe que tinha de ver o filme, primeiro, e gostar, o que acabou por acontecer. Quando perguntou ao jovem realizador porque o tinha escolhido, este disse-lhe que fora por causa das críticas que tinha lido, assinadas por si, mas especialmente uma sobre Lancelote do Lago de Robert Bresson. 

Apesar de ser um filme espanhol, Innisfree é falado em inglês e gaélico. É sobre a rodagem de O Homem Tranquilo, filme de John Ford protagonizado por John Wayne e Maureen O'Hara, e situa- se no povoado de Cong, condado de Mayo, na Irlanda, evocando as paisagens do filme do cineasta norte-americano quase quarenta anos passados da sua produção. 

Exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 1997, Comboio de Sombras valeu a Guerín o Meliés de Prata do Festival de Cinema de Sitges e o Grande Prémio do Fantasporto, em Portugal. Recria o desaparecimento dum fotógrafo francês nos anos 20 do século passado. Dans la ville de Sylvia é uma produção hispano-francesa sobre o regresso dum jovem artista a Strasbourg à procura de Sylvia, mulher que conheceu seis anos antes. 

A Academia das Musas é a última longa-metragem do cineasta catalão. Como nos diz a sinopse, trata da abordagem pedagógica dum professor de Filologia, com um projecto que “pretende regenerar o mundo através da poesia”. Interpretado por Raffaele Pinto, no papel do professor, encerrará o ciclo promovido pelo cineclube durante o mês de Março dedicado à educação. 

As sessões de cinema do Lucky Star – Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, a partir das 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utilizadores da Biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

Mashgh-e Shab (1989) de Abbas Kiarostami



por Alexandra Barros

Trabalhos de Casa é uma investigação em forma de filme (nas palavras de Kiarostami) sobre essa ferramenta pedagógica. Partindo das suas próprias dificuldades em ajudar os filhos a realizar as suas tarefas escolares e sem ideias pré-definidas sobre o que o filme deveria ser, Kiarostami decide interrogar alunos do ensino primário de uma escola iraniana acerca do tema. 

O filme, com o formato de um documentário, centra-se em grandes planos desses alunos captados durante a série de entrevistas. Estas imagens são recorrentemente intercaladas por imagens do operador de câmara a apontar-nos/-lhes a sua lente, uma decisão de montagem tomada por Kiarostami em função das declarações, nem sempre sinceras, que recolheu. Caso exemplar é o da reacção à pergunta “Preferes ver desenhos animados na televisão ou fazer os trabalhos de casa?”. Todas as crianças declaram a sua preferência pelos últimos. Estas respostas, tão claramente distorcidas pela vontade de “ficar bem na fotografia”, colocam em evidência o lado performativo dos depoimentos, induzido pelas circunstâncias em que decorrem. O efeito do observador, fenómeno com especial relevância na física quântica, designa as modificações que o processo de observação produz no objecto observado. Por exemplo, para que um electrão possa ser detectado é necessário que um fotão interaja com ele; porém, essa interacção altera necessariamente o estado inicial do electrão. Analogamente, por estarem sob o “olhar” de uma câmara de filmar, o comportamento dos filmados está sujeito ao efeito do observador

Mas não é só (nem principalmente) por causa do efeito do observador que a “verdade” de um documentário é dúbia. Mais do que o que é filmado, o que nos é dado a ver é determinado por como é filmado. No início do filme, vemos todos os alunos da escola alinhados no pátio para a endoutrinação diária. Em resposta a uma voz de comando, as crianças clamam em uníssono louvores aos seus líderes religiosos e políticos e dirigem ataques agressivos aos inimigos e ao mundo dos “infiéis”. Captadas em grandes planos, as imagens sugerem um grupo coeso, convicto e disciplinado. No final do filme, regressamos aos “cânticos” de adoração e ódio, mas agora a câmara aproxima-se das crianças e o som é eliminado. O que vemos então não podia estar mais longe do que vimos anteriormente. Esta cena, que a censura desejou suprimir, fala demasiado alto e o que diz não fica bem na “fotografia oficial”. 

O filme abre janelas para a sociedade iraniana e através delas avistamos: pais preponderantemente incapazes de ajudar os filhos nas suas tarefas escolares por serem analfabetos ou não estarem familiarizados com os novos métodos e conteúdos educativos; ambientes escolar e familiar fortemente marcados pelo autoritarismo, repressão, medo; uma sociedade que perpetua e incentiva o belicismo e a violência física e emocional. Todos os miúdos sabem o que é um castigo, e já todos foram sujeitos a actos de punição. Aliás, os castigos corporais, exercidos pelos pais sobre os filhos, são vistos pelos últimos como necessários e desejáveis (ou pelo menos, assim o afirmam). Por outro lado, as crianças desconhecem o que é um incentivo e nunca foram encorajadas ou recompensadas, mesmo quando tiveram excelentes resultados. 

Também assistimos a duas entrevistas feitas a pais. Um deles, muito informado sobre os métodos educativos de vários outros países (que considera mais civilizados), discorre longamente sobre os danos e inconvenientes dos TPC[1]. O tema vem sido debatido há décadas, por todo o mundo, com diversas objeções aos TPC a serem apontadas consistentemente. É o caso do agravamento da desigualdade de oportunidades provocado pelos mesmos. Devido à diversidade de situações sócio-económicas das famílias dos alunos, existirão crianças com boas condições materiais e adequado apoio educativo familiar na realização das tarefas escolares, enquanto outras ver-se-ão em desvantagem por não disporem nem dos meios físicos e materiais necessários (espaço, equipamento informático, ...), nem de ajuda educativa. Outra grande questão, transversal a todos os meios sócio-económicos, é o atrito e a tensão que os TPC provocam entre pais e filhos. No final do dia de trabalho, os pais estão pouco disponíveis (por causa dos afazeres domésticos, por exemplo) e sem paciência ou energia para acompanhar a realização dos TPC. Os filhos, depois de muitas horas passadas em salas de aula, querem estar com os amigos e a família, dedicar-se a hobbies e a actividades extra-curriculares ou “simplesmente” divertirem-se e descansar. Aliás, tudo práticas importantes para o desenvolvimento pessoal e social das crianças. A falta de tempo para as mesmas é uma questão que preocupa o referido pai. 

Outro pai expõe com lucidez os traumas que entende ter provocado no filho pela sua própria falta de habilidade ou competência para lidar com as dificuldades escolares que era suposto ter ajudado o filho a ultrapassar. Num efeito bola de neve, os problemas e as ansiedades de um alimentam os problemas e ansiedades do outro num crescendo de angústias e dificuldades. 

Apesar de Trabalhos de Casa reflectir o Irão do final dos anos 80, é um filme intemporal e universal. Mais que uma investigação filmada sobre o sistema educativo iraniano, é um filme sobre relações humanas, particularmente sobre o lado performativo das mesmas, a perpetuação inquestionada de hábitos e comportamentos ao longo de gerações, os problemas de comunicação, os equívocos na avaliação e compreensão do outro, as relações de poder. É, além disso, um filme muito kiarostamiano, no que nele emerge da sua continuada reflexão sobre a (im)possibilidade de chegar à verdade através do acto de filmar.

[1] Trabalhos Para Casa.



segunda-feira, 20 de março de 2023

285ª sessão: dia 21 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Filme de Abbas Kiarostami na BLCS 

Trabalhos de Casa, do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, é a proposta do Lucky Star – Cineclube de Braga para hoje às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O filme insere-se no ciclo “Sou do Tamanho do que Aprendo – Histórias sobre Educação”, promovido pelo cineclube a desafio do Sindicato de Professores do Norte, que celebra o seu quadragésimo aniversário este ano. E será precisamente nesta sessão que se celebrará a efeméride. 

Abbas Kiarostami nasceu em Junho de 1940 na cidade de Teerã, no Irão, e faleceu em Paris há sete anos. Foi cineasta, argumentista, poeta, fotógrafo e produtor de cinema e deixou-nos grandes obras- primas como O Passageiro (1970), Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1989), Close Up (1990), E a Vida Continua (1994) ou Cópia Certificada (2010). 

Trabalhos de Casa, de 1989, foi financiado pelo departamento de cinema do Kanoon, o Instituto para o Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Adolescentes. É um inquérito ao sistema educacional iraniano e consiste quase exclusivamente de entrevistas a pais e alunos da escola primária Shahid Masumi. É centrado maioritariamente nos mais pequenos, que falam sobre o excesso de trabalhos de casa e os castigos que recebem por não os fazerem. 

O filme de 1989 estreia este ano em Portugal graças à Midas Filmes, que distribuiu em sala também este ano o filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo?. É portanto uma oportunidade única para conhecer um grande cineasta, que começou a ser acolhido pelo ocidente precisamente a partir deste segundo filme, aquando da sua projecção no Festival de Locarno. 

O maior elogio que se fez a este iraniano foi o do cineasta francês Jean-Luc Godard, que disse que “o cinema começa com Griffith e acaba com Kiarostami.” No festival de Cannes de 1997, o júri presidido por Isabelle Adjani premiou Kiarostami e o seu filme O Sabor da Cereja com a Palma de Ouro, o prémio máximo do certame, ex-aequo com A Enguia de Shôhei Imamura. 

As sessões de cinema do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, a partir das 21h30. A entrada custa 1 euro para estudantes e utilizadores da Biblioteca e 3 euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 15 de março de 2023

The Miracle Worker (1962) de Arthur Penn



por João Palhares

Antes de ser filme, “The Miracle Worker” foi um episódio da mítica série de antologia “Playhouse 90” (difundida entre 1956 e 1960 na CBS e onde se revelaram talentos como Robert Mulligan ou John Frankenheimer; no episódio, os papéis de Anne Sullivan e Helen Keller couberam a Teresa Wright e Patricia McCormack, respectivamente), bem como uma peça de teatro estreada com as depois duas actrizes do filme, Anne Bancroft e Patty Duke, nos mesmos papéis. Tanto o episódio de televisão, como a peça, tiveram por trás as forças criativas de William Gibson, autor dos guiões, Arthur Penn, como realizador e encenador, e Fred Coe, como produtor. 

A história de Anne Sullivan e Helen Keller é conhecida. São crianças do século XIX e conheceram-se porque os pais da segunda, já bastante desesperados, e depois de lerem sobre a educação de Laura Bridgman, também surda e cega como a filha deles, consultaram um especialista em Boston para os aconselhar. Este encaminhou-os para Alexander Graham Bell, que na altura trabalhava com crianças surdas. E este encaminhou-os para a Perkins School for the Blind, que lhes mandou Anne Sullivan, então com vinte anos. Helen Keller tinha seis. Depois daquilo que foi descrito por quase toda a gente como “um milagre”, e numa altura em que o foco era mais sobre Keller e menos sobre Sullivan, Mark Twain entregou uma fotografia a Annie Sullivan em que lhe chamava “milagreira”[1]. O título da obra de Gibson, Penn e Coe é daí retirado. 

Saído da televisão, que nessa altura era um campo de experimentação e ensaios fabuloso para quem começava a trabalhar e para quem acabava a carreira, e no rescaldo da estreia da peça na Broadway, Arthur Penn era a escolha óbvia para realizar o filme. E ao realizá-lo, foi-se apercebendo instintivamente dos ajustes que tinha de fazer na transposição para cinema por forma a continuar a servir a estória e as interpretações. Os casos sintomáticos talvez sejam mesmo os dois grandes embates provocados pelas birras de Helen Keller à mesa. No primeiro, a câmara segue os movimentos abruptos das duas, culminando nas panorâmicas frenéticas que acompanham Bancroft a puxar Patty Duke violentamente para a cadeira, enquanto os planos se sucedem quase disparados para ilustrar a grande tensão entre a educadora e a sua discípula; no segundo, a montagem é mais pausada e os movimentos de câmara adequam-se ao crescendo da grande revelação e descoberta individual que equipara o signo ao significante, e que transforma a linguagem no instrumento dos nossos sonhos. A descoberta colectiva de que, afinal, não são só para quem ouve e para quem vê. Os tropeções, as chapadas, as quebras, os balbucios, os gritos, os toques e os empurrões equiparam-na a uma luta de vida ou de morte para atravessar o vale do silêncio e da escuridão. 

Houve quem acusasse Penn de ser demasiado barroco e expressionista, neste filme, mas se calhar foi só expressivo. Quando as personagens e os actores abrem o caminho, talvez não se possa ficar só atrás a assistir, é preciso arriscar estar errado, assumir as consequências, ir com eles até ao fim dum gesto inaudito e por mais desconfortável que este seja, esperar que seja lá que resida o princípio de todas as coisas. O berço da linguagem. A palavra inaugural.

[1] Nas margens da fotografia de Samuel Clemens a fumar um cachimbo sentado, e além da assinatura, consegue-se ler “To Mrs. John Sullivan Macy with warm regard & with limitless admiration of the wonders she has performed as a miracle-worker.”



quarta-feira, 8 de março de 2023

Rebel Without a Cause (1955) de Nicholas Ray



por António Cruz Mendes

Nas condições de que dispomos, não vai ser possível tirar todo o partido do cinemascope… Mas isso não nos vai impedir de confirmar ser este, “provavelmente, o mais comovente dos filmes de Ray”, tal como nos diz a sinopse do Público que transcrevemos. 
 
Personagens emocionalmente fragilizadas, perdidas num mundo que lhes é estranho, um mundo regido por normas a que não se adaptam nem entendem, estão presentes em muitos filmes de Nicholas Ray e, desde logo, na sua primeira obra, They Live by Night, a história de dois jovens enamorados, perseguidos pela polícia. 
 
Nos Estados Unidos, os anos 50 foram uma época de prosperidade económica. Nasceu, então, uma nova cultura protagonizada por jovens que puderam prolongar os seus estudos e que, dotados de um poder de compra antes desconhecido e livres da necessidade de trabalhar, procuram a sua própria identidade em conflito com a geração dos seus pais, ainda presos à moral puritana ainda dominante. 
 
Em Fúria de Viver, o fosso geracional que separa Jim, Judy e Plato das suas famílias torna-se evidente logo nas primeiras sequências e dele resulta um sentimento de insegurança que os três tentam compensar com comportamentos desafiantes. Numa das primeiras sequências do filme, todos eles se encontraram detidos por delitos menores numa esquadra da polícia. 
 
Jim procura no pai, submisso perante a fria autoridade da mãe e da avó, um apoio que ele não lhe consegue dar; Judy deseja do seu pai um amor que este repele; e Plato, que já não tem pai, viu-se abandonado pela mãe no dia do seu aniversário. As suas vidas decidir-se-ão num drama que se concentra em 24 h, entre duas cenas nocturnas, e que se desenvolve em três momentos fundamentais: o primeiro é o do planetário; o segundo, o da “chicken run”; e o terceiro, o da casa abandonada. 
 
Uma mordaz ironia está presente na sequência do planetário. Confrontados com a vastidão do universo, com o fim inevitável da Terra, os jovens são confrontados com a insignificância cósmica da vida humana. Mas, isso não impede que um grupo de outros “rebeldes sem causa”, chefiado por Buzz, preocupado em “marcar território” e em defender a sua ascendência sobre Judy do eventual rival recém-chegado, desafia Jim para uma luta com navalhas. A pequenez das vaidades bairristas sobrepõe-se à imensidão do cosmos. 

Embora não o deseje, a sua ideia de masculinidade obriga Jim a aceitar o desafio da corrida em direcção ao abismo que decidirá qual deles, Buzz ou Jim, é um medricas. “Medricas” é um qualificativo que ele não pode aceitar porque se identifica com a odiada pusilanimidade que ele reconhece no pai. E, apesar de Jim perceber o seu absurdo, a corrida, arbitrada por Judy e iluminada pelos faróis de duas fileiras de carros, realiza-se – e acaba em tragédia. 
 
Contra a vontade da família, Jim quer assumir a sua responsabilidade na morte de Buzz, mas a sua generosidade esbarra na indiferença da burocracia policial. Na casa abandonada, Jim, Judy e Plato, encontram, então, um refúgio. Um mundo só seu onde a paz e a amizade parecem, finalmente, ser possíveis. No exemplo de Jim, Judy descobre o amor e Plato, a figura paterna por que ansiava. Encenam uma família e brincam como crianças que, afinal, nunca deixaram de ser. Contudo esse mundo a fingir vai ter de se confrontar com a violência, os ódios e os medos que imperam na realidade.



Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes (2017) de Catarina David e Francisco Noronha



por Joaquim Simões

O movimento do rap do Norte, nomeadamente do Grande Porto, é hoje em dia nacionalmente reconhecido. Pouca gente há das gerações que nasceram a partir dos anos 90 que não conheça os Dealema ou o Mundo Segundo, por exemplo, e os artistas de rap e hip-hop que surgem hoje em dia em qualquer lado do país constroem, inevitavelmente, sobre o legado desse movimento. E, no entanto, por detrás dessa explosão que surgiu nos anos 90 e início de 2000 há uma história por contar. Ou havia, até à data de lançamento do filme que se exibe hoje no cineclube. 

Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes é um filme que conta a história do rap no Grande Porto através das pequenas histórias de cada um, “as memórias individuais daqueles que, nas suas vidas, contribuíram, no início sem o saber, para o nascimento e consolidação de uma expressão artística.” (nas palavras dos realizadores). É um documentário com o propósito simples de recolher o testemunho de algumas das pessoas que viveram esse momento efervescente, captando assim o espírito de um lugar e de um tempo: um momento especial onde a sintonia de um pequeno número de pessoas espalhadas por uma grande cidade possibilita uma onda de energia que consegue mudar a cultura. É um documentário que, mais do que factos e histórias, recria um ambiente, um zeitgeist único e efémero. Hoje em dia, roupa XXL e breakdance são uma forma datada de cultura jovem cujo facto de alguma vez ter sequer existido podemos ser levados a considerar com incredulidade, mesmo sendo tão recente, de tal modo foi ultrapassada, mas são documentos como este que mostram como essa mesma cultura foi a forma de uma geração se definir e reivindicar a individualidade que a estagnação social e cultural do seu meio nunca lhes havia dado. 

Através da justaposição de planos da cidade na sua forma atual, gentrificada e mcdonaldizada, com testemunhos de alguns dos protagonistas e participantes do movimento hip-hop na zona do Porto, Gaia e Matosinhos, o documentário enfatiza a singularidade desse fenómeno, inimitável e irrepetível. Os sítios, agora históricos, que albergaram parte desta “cena”, como o bar Comix ou o Hard Club de Gaia - lugares que o tempo transformou impiedosamente em cafés chiques ou mais graciosas ruínas - aparecem-nos diante dos olhos no seu estado atual e mesmo assim não conseguimos deixar de imaginá-los como teriam sido, ao sermos guiados pelos relatos de genuína emoção, contados nas palavras dos próprios mestres da palavra (quem melhor para fazer surgir na imaginação algo que nunca poderá ser testemunhado por quem não esteve lá no momento?) criando, para além da inevitável sensação nostálgica que surge do contraste de tempos diferentes (mesmo para quem não os viveu) uma nova experiência do movimento original do hip-hop e do rap no Porto, esta ao critério da imaginação de cada um.