quarta-feira, 26 de abril de 2023

291ª sessão: dia 2 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Aguirre” abre ciclo Herzog na biblioteca 
 
O ciclo “Werner Herzog - Verdade, poesia e êxtase”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com o Goethe-Institut, inicia-se Terça-Feira dia 2 de Maio às 21h30 na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva com a exibição de Aguirre, a cólera de Deus
 
A quinta longa-metragem de Werner Herzog centra-se na personagem de Lope de Aguirre, conquistador espanhol que, depois de se separar do destacamento de Gonzalo Pizarro, se rebelou contra a coroa espanhola e desceu o Rio Amazonas com a filha e um pequeno grupo de soldados, nobres e escravos em busca de El Dorado. 
 
No livro de entrevistas a Paul Cronin, A Guide for the Perplexed, Herzog discute as paisagens do seu filme dizendo que “as selvas e os desertos situam-se nos pontos extremos das paisagens que este planeta tem para oferecer, e ambos têm uma enorme força visual. Também se vingam ambos de idiotas como eu que os desafiam querendo fazer filmes lá.” 
 
“Como bávaro, tenho uma afinidade pela fertilidade da selva,” continua ele, “pelos sonhos febris e pela exuberância física do local. Para mim, as selvas sempre representaram uma forma intensificada da realidade, embora na verdade não sejam desafios particularmente difíceis. Uma selva é só mais uma floresta; a ideia de serem sítios perigosos é mito das agências de viagens.” 
 
Werner Herzog nasceu na cidade de Munique a 5 de Setembro de 1942. Filho de Elisabeth Stipetić e Dietrich Herzog, cresceu durante a 2ª Guerra Mundial e, depois da casa onde moravam ser bombardeada pelas forças aliadas, mudou-se com a mãe para a aldeia remota de Sachrang, nos Alpes de Chiemgau, onde viveu sem água corrente e telefone. 
 
Associado ao movimento do Novo Cinema Alemão, junto a cineastas também muito importantes como Rainer Werner Fassbinder, Werner Schroeter, Hans-Jürgen Syberberg, realizou a primeira curta-metragem aos dezanove anos e lançou a primeira longa, Sinais de Vida, em 1968, vencendo o Grande Prémio do Júri do décimo oitavo Festival Internacional de Cinema de Berlim. 
 
Vai ser possível apreciar parte da obra deste grande cineasta durante o mês de Maio. Das próximas sessões do mês, farão parte Fitzcarraldo, A Canção de Bruno S., Fuga de Laos e Lições da Escuridão e O Grande Êxtase do Entalhador Steiner
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

A Idade da Terra (1980) de Glauber Rocha



por Alexandra Barros

O último filme de Glauber Rocha, e aquele em que procurou levar mais longe uma forma revolucionária de fazer cinema, fortuitamente é exibido no dia da Revolução dos Cravos. A militância cultural de Glauber Rocha e a sua militância política foram inseparáveis e, por isso, durante a ditadura militar, esteve vários anos exilado em diversos países e continentes. Encontrava-se na Europa em abril de 1974 e aterrou em Portugal no dia 26. Nos dias que se seguiram à revolução filmou e participou nas emoções vividas nas ruas portuguesas. Esses testemunhos deram origem ao filme As Armas e o Povo, o mais célebre filme da revolução, de acordo com a Cinemateca Portuguesa. 
 
A ideia de Revolução – política e cultural - é fundamental no pensamento e na obra de Glauber Rocha, que considerava que para exprimir a essência ou a alma da cultura dos países do Terceiro Mundo e para abordar a realidade, lutas e aspirações dos seus povos eram necessárias formas revolucionárias de representação, novos processos criativos, novas formas de fazer cinema. É n’ A Idade da Terra que Glauber Rocha mais profundamente mergulha em “águas” inexploradas. Dessa experiência emerge uma obra insólita e classificada, por muitos, como impenetrável. Glauber Rocha acreditava, no entanto, que no futuro lhe seria feita justiça, tal como sucedera com Terra em Transe (de 1967), em que críticos de primeira hora vieram, mais tarde, a converter-se em admiradores. 
 
O slogan “Primeiro estranha-se e depois entranha-se” - criado originalmente por Fernando Pessoa para uma campanha publicitária da Coca-Cola - poderia ter sido concebido para este excêntrico filme. A Idade da Terra foi mal recebido, pela crítica e pelo público em geral, quando estreou no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 1980, mas - ao longo dos anos - críticos, estudiosos e cinéfilos têm vindo a reconhecer o seu valor artístico e impacto no meio cultural brasileiro. É um filme que provoca reacções extremadas, com as opiniões a expressarem ora máxima admiração (classificando-o como: obra-prima, ousado, provocador, arte) ora máxima aversão (por parte de quem o vê como: pretensioso, inacessível, entediante). Apesar desta falta de unanimidade é actualmente considerado um dos mais importantes filmes na história do cinema brasileiro. 
 
Sem fio narrativo, caótico no conteúdo e na forma, “compreender” este filme parece-me tarefa impossível, por muitos visionamentos que eu possa vir a fazer. Porém, compreensão não foi o que o realizador pretendeu, da parte dos espectadores. Nas suas próprias palavras: “É um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, anti-literário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí. [...] Não é para ser contado, só dá para ser visto.”[1] A Idade da Terra parece um vulcão, jorrando continuamente novas imagens, símbolos e referências culturais, uma lava de misticismo, religião, poesia, sexualidade e política, com foco particular em temas como: o imperialismo, o colonialismo, a liberdade, a miséria, a pobreza. As cores são saturadas; os diálogos/discursos são gritados e histéricos; a música e os sons são densos e intensos; os tempos e os lugares são múltiplos e coexistentes. Num momento as personagens estão imersas na selva tropical, à beira de um imenso charco; no seguinte, a profundidade de campo alarga-se e, ao fundo, na outra margem do “charco”, avistamos o Rio de Janeiro. A cidade cosmopolita e a selva tropical são afinal planos distintos de um mesmo “palco”. Filme e rodagem do filme são indistinguíveis. A música brasileira, principalmente a ritualizada, mística, religiosa, tem uma forte presença no filme. De rituais lascivos no primitivo Jardim do Éden somos transportados para as coreografias ensaiadas dos actuais desfiles do Carnaval carioca, sempre mergulhados em ritmos hipnóticos, através dos quais o Homem tem procurado, desde os primeiros tempos, o transe, o êxtase, a transcendência. Porém, mais que filmar o transe, Glauber Rocha quer induzi-lo nos espectadores, comunicar com eles através do inconsciente, diluir as barreiras entre o que está na tela e o que está fora dela. Este cinema não pretende contar histórias. Quer actuar e ser História. A descolonização começa por ser cultural. “A Idade da Terra [...] materializa os signos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, as santas em revolucionárias. Tudo isso está no filme [...] O filme oferece uma sinfonia de sons e imagens ou uma anti-sinfonia que coloca os problemas fundamentais de fundo. A colocação do filme é uma só: é o meu retrato junto ao retrato do Brasil.” “Meu estilo de filmar está profundamente ligado à cultura popular brasileira. Os que são considerados símbolos e alegorias não são abstrações, senão expressões diretas de elementos da cultura popular. É um cinema feito sobre o povo e com a colaboração popular de sua cultura. [...] O cinema latino-americano tem dois caminhos: um, que é o cinema-documentário, informado de denúncia e agitação política e social [...]. No meu caso, por uma deficiência profissional, já que não tenho capacidade para fazer documentários, faço filmes de ficção ligados à realidade latino-americana, com uma linguagem que expressa os mitos.” “Não há vantagem alguma em fazer filmes de conteúdo revolucionário se, na forma, você imita a Nouvelle Vague francesa, o expressionismo alemão ou o comercialismo norte-americano. O problema dos cineastas do Terceiro Mundo é encontrar um estilo próprio.”[2] “O que interessa é a criação. A linguagem estabelecida, em qualquer arte, cansa.”[3]
 
Originalmente sem créditos iniciais ou finais, e sem uma ordem estabelecida de montagem das várias cenas, a sequência pela qual eram projectadas as bobinas do filme era deixada deliberadamente ao critério do projeccionista. Conceptualmente, o filme prenuncia a era da navegação digital e virtual. A ambição de fazer emergir múltiplos percursos e sentidos através de um conjunto desordenado de numerosas referências e justaposições, remete para uma outra revolução que estava a ser preparada. De forma intuitiva, sem formulação “técnica” ou filosófica, os conceitos de hiperlink, de leitura não-sequencial, de uma rede de conteúdos infinitamente “navegável” presidem à criação da Idade da Terra. Uma década mais tarde, esses mesmos conceitos estiveram na base de um acontecimento que viria a mudar o mundo: o nascimento da World Wide Web.




quinta-feira, 20 de abril de 2023

290ª sessão: dia 25 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Para ver na biblioteca: “A Idade da Terra” 
 
A última longa-metragem de Glauber Rocha, A Idade da Terra, vai ser exibida pelo Lucky Star - Cineclube de Braga dia 25 de Abril às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, encerrando assim o ciclo “Glauber Rocha - O Eterno Revolucionário”. 
 
A Idade da Terra é inspirado num poema de Castro Alves e é um retrato da situação política e cultural do Brasil no final dos anos 70. É protagonizado por vários colaboradores regulares do cineasta brasileiro, contando ainda com a participação do próprio Glauber e da filha, Paloma. 
 
O filme concorreu ao Leão de Ouro do Festival de Veneza, em 1980, mas o júri presidido pela argumentista e actriz italiana Suso Cecchi d’Amico preferiu dar o prémio a Atlantic City de Louis Malle, ex-aequo com Gloria de John Cassavetes, escolhendo assim, e não sem grande polémica, a via proposta pelas grandes produtoras e pelas grandes distribuidoras. 
 
No obituário que escreveu dedicado a Glauber Rocha, o importante crítico francês Serge Daney aborda A Idade da Terra, dizendo que “nesse filme em que já não enganava ninguém, em que estava sozinho com o seu delírio, Glauber fazia voltar à nossa memória um sonho esquecido, esse de outro cinema, outra coisa que não o “made in USA”.” 
 
“Porque isto existiu, em várias épocas,” continuava Daney, “essa ideia de que os cineastas de todos os continentes podiam arranjar as imagens de forma diferente, propor ao cinema outra coisa que não o seu triste devir-televisão ou o seu sinistro devir-museu. Um cinema de montagem, físico e discordante, um cinema-ópera para variar da opereta americana. Isto existiu outrora.” 
 
No dia 25 de Abril será então possível, depois de Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e Terra em Transe, conferir qual foi a alternativa que Glauber Rocha, esse “eterno revolucionário”, nos concedeu à tal “opereta” que todos conhecemos e continuamos a consumir desde o nascimento da sétima arte. 
 
A Idade da Terra acabou por ser o último filme realizado por Rocha, que vivia em Sintra e estava a preparar um filme chamado “Império de Napoleão”, em colaboração com o crítico e documentarista português Manuel Carvalheiro. Faleceu aos 42 anos a 22 de Agosto de 1981 na Clínica Bambina, no Rio de Janeiro, depois de ser transferido dum hospital lisboeta. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha



por Joaquim Simões

Terra em Transe é um flashback na hora da morte de Paulo Martins escritor e idealista de uma ferocidade tal que a desilusão trágica é o único destino possível para ele. É assim que o filme começa, na iminência de um golpe de estado, o falhanço espetacular do seu projeto, a queda da única esperança política de Eldorado - cidade fictícia que Rocha criou como símbolo da esperança, do sonho inalcançável. E Paulo atira-se a uma morte que podia evitar, ignorando as palavras Brechtianas da companheira Sara, que lhe diz “não precisamos de heróis”. Ele grita “eu preciso cantar” e atravessa uma barreira policial, sendo inevitavelmente atingido. Na areia, moribundo, mas gracioso, aponta a metralhadora para o céu; o seu último poema são as memórias que vemos em filme. 

Desiludido primeiro pela tirania da direita e depois pela fraqueza da esquerda, Paulo atravessa o espetro político sem encontrar nele um lugar, mas a sua alma poética é incapaz de se resignar ou de viver cinicamente: é um homem que tem de ir até ao fim. Ao acompanharmo-lo nessa viagem exaltada, por vezes febril, passamos por danças, tumultos e rituais, uma mistura única de religião, política, pobreza e tropicalismo, o caldeirão tumultuoso que era o Brasil na década de 60. 

O privilégio da memória na montagem é a liberdade absoluta. E o filme flui como uma associação livre que nos lembra dos sonhos de Fellini cortados com a brusquidão de Godard, num violento frenesim sociopolítico em que singram apenas como idealistas os temperamentos ferozes como o de Paulo Martins, talvez semelhante ao de Glauber Rocha. Apesar desta fluidez, nunca ficamos muito tempo sem ouvir o som de disparos e explosões, normalmente em off, que são um despertar constante para o artifício do filme e ao mesmo tempo para a realidade angustiante que Eldorado, ou seja, o Brasil, atravessa. 

Um filme marcante no seu tempo, e ainda hoje, Terra em Transe foi, como não é surpreendente, censurado na altura do seu lançamento por “denegrir a imagem do Brasil” e por ser considerado subversivo e irreverente com a igreja, acabando por ser exibido em Cannes depois de protestos por parte de cineastas franceses e brasileiros, e no Brasil apenas na condição de ser dado um nome ao personagem do padre representado por Jofre Soares. Em Portugal manteve-se censurado até ao 25 de Abril. E hoje é apresentado no cineclube.


quinta-feira, 13 de abril de 2023

289ª sessão: dia 18 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“Terra em Transe” terça às 21h30 na BLCS 
 
Premiada no Festival de Cannes e no Festival de Locarno em 1967, Terra em Transe, terceira longa-metragem do cineasta Glauber Rocha, será exibida pelo Lucky Star - Cineclube de Braga dia 18 às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
As estreias de Barravento, de Glauber Rocha, Ganga Zumba, de Cacá Diegues, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol, também de Rocha e O Desafio, de Paulo Saraceni, transformaram o chamado Cinema Novo brasileiro num fenómeno global, acompanhado por revistas na altura importantes como a Positif e os Cahiers du Cinéma

Terra em Transe é lançado no seguimento dessa atenção universal e generalizada, que permitiu a criação de condições de produção, distribuição e continuidade para todo o cinema brasileiro, e que culminou com as fundações da distribuidora DIFILM - Distribuidora de Filmes Ltda. e a produtora Mapa Filmes do Brasil, no ano de 1965. 
 
Escrito por Glauber e com Jardel Filho, Glauce Rocha e Paulo Autran nos principais papéis, o filme ambienta-se na república fictícia de Eldorado, onde sobe ao poder um tecnocrata chamado Porfírio Diaz, interpretado por Autran, que é combatido publicamente pelo jornalista Paulo Martins, interpretado por Filho, seu antigo apoiante e protegido. 
 
Em entrevista ao cineasta Rogério Sganzerla, em 1966, e quando este lhe pergunta se Terra em Transe é uma continuação de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha responde-lhe que é “antes um desdobramento das minhas ideias. Não sei bem se será mais falho ou mais concreto. Desta vez, será uma tentativa de exprimir no plano mais urbano certos conflitos que me parecem fundamentais no Brasil de hoje.” 
 
Enumerando esses conflitos, na mesma entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Glauber elenca “a negação dos valores tradicionais e a incerteza quantos aos novos valores. Este ponto crítico é o transe. O transe entre o inconsciente e o consciente de uma civilização, entre o sono e o despertar – o ponto crítico entre o êxtase e a lucidez.” 
 
Poder-se-á ver este filme na próxima sessão de cinema do Lucky Star na biblioteca, inserida no ciclo dedicado a Glauber Rocha que terminará no dia 25 de Abril com o seu último filme, A Idade da Terra. As sessões ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 12 de abril de 2023

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) de Glauber Rocha



por António Cruz Mendes

António das Mortes começou por se chamar O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Este título, que se diz ter sido aquele que Glauber Rocha preferia, remete- nos para a lenda do combate entre S. Jorge e o Dragão. Sylén, uma cidade na Líbia, vivia sob a chantagem de um dragão que, sob a ameaça de a aniquilar, todos os anos exigia o sacrifício de uma donzela. A próxima vítima seria a própria filha do rei. Mas, S. Jorge resgata-a, enterrando a sua lança nas goelas do monstro, e desposa-a, trazendo-a com ele para a Inglaterra. 

O sentido alegórico da lenda é evidente. A própria iconografia da vitória de S. Jorge sobre o Dragão, consagrada por inúmeras pinturas, está presente no filme de Glauber Rocha na cena da morte do coronel, o “Dragão” personificado na figura de um homem cego ao sofrimento que provoca e à miséria que o rodeia. Corisco, o cangaceiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol, já se identificava como um “S. Jorge”. E, em António das Mortes, um filme que se encontra na sequência daquele que vimos na passada semana, aquilo que está em causa continua a ser a revolta dos trabalhadores sem terra do sertão brasileiro contra a ganância dos “coronéis” que a exploravam como pastagens para a criação de gado. 
 
A associação da mitologia cristã à luta de classes não se esgota, aliás, nessa representação alegórica, mas encontra-se presente em todas as manifestações do grupo de “beatos” que resistem à opressão animados por uma confusa fé redentora. De resto, há sequências do filme que foram encenadas como se de rituais religiosos se tratassem. Veja-se, por exemplo, a cena do duelo entre António das Mortes e Coirana, presos por um lenço que os dois seguram com os dentes, empunhando as suas catanas e defrontando-se no meio de um semicírculo de beatos e cangaceiros, ao som de batuques e melopeias. 

A presença asfixiante da paisagem nordestina à qual o colorido vibrante do filme oferece um relevo particular, associado a uma revolta metafísica contra a pobreza, aos cânticos e danças extasiantes e às cenas de extrema violência a que assistimos (a sequência da denúncia da infidelidade de Laura e do assassinato de Mattos é particularmente impressiva) pode, por vezes, dar-nos uma impressão de excesso. No entanto, tudo isso é consentâneo com a dimensão quase operática do filme, onde a música assume um protagonismo evidente, comentando os acontecimentos e oferendo-nos um guião narrativo indispensável ao seu entendimento. Veja-se, como exemplo, o longo plano-sequência onde o coronel, transportado numa espécie de andor e seguido pelos seus jagunços, se dirige ao lugar onde se travará a luta final, enquanto se ouve uma canção que nos fala dos feitos do lendário Lampião. 

Os recursos convocados para nos contar a história de António das Mortes, “matador de cangaceiros” que, com a morte de Corisco julgava ter acabado com essa laia de bandidos, mas que acabou por seguir o caminho desses “ladrões de honestidade”, são os mais variados. Glauber Rocha fala-nos, por exemplo, da influência de Eisenstein. Penso que ela é particularmente evidente na montagem paralela das cenas patéticas do funeral de Mattos e da eufórica reunião dos beatos e cangaceiros. A elas, seguir-se- á, por um lado, a matança executada pelos jagunços do Mata-Vacas e, por, outro, a adesão de António das Mortes à causa da Dona Santa e dos miseráveis. Mas, a “síntese” daquela contradição, o duelo final que culmina com a morte de Mata-Vacas e do Coronel bem que podia ter sido filmado por Sam Peckinpah. 

No final, António das Mortes segue um caminho que não sabemos onde o conduzirá. A luta dos beatos há-de prosseguir, mas a dele é de outra ordem. Porque, se “negócio de pobre é com o senhor”, o dele “é só com Deus”.



quarta-feira, 5 de abril de 2023

288ª sessão: dia 11 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” na BLCS 

Estreado em 1969, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, conhecido internacionalmente e em Portugal como "António das Mortes", é a proposta do Lucky Star - Cineclube de Braga para dia 11 às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
No rescaldo das premiações em Cannes e em Locarno com Terra em Transe, a sua terceira longa-metragem, Glauber Rocha regressou às paisagens e aos temas de Deus e o Diabo na Terra do Sol fazendo de António das Mortes, que tem uma presença secundária nesse filme, a personagem principal de O Dragão da Maldade
 
Tanto Terra em Transe como O Dragão da Maldade foram produzidos parcial ou totalmente pela produtora fundada em 1965 por Glauber Rocha, Zelito Viana, Walter Lima Junior, Paulo César Seraceni e Raymundo Wanderley Reis, a Mapa Filmes do Brasil, ainda hoje em actividade, embora mais concentrada no restauro de filmes. 
 
A Mapa Filmes do Brasil foi ainda responsável pela produção de obras como O Homem que Comprou o Mundo e Cabra Marcado para Morrer, ambas de Eduardo Coutinho, co-produzindo nos anos 70 com Glauber Rocha, Cabezas Cortadas, uma continuação de Terra em Transe rodada na Catalunha. Há doze anos, a Mapa Filmes produziu o último filme de Paulo César Seraceni, O Gerente, uma das suas últimas produções para cinema. 
 
Em entrevista a Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni, para a revista Cahiers du Cinéma, em 1969, Glauber disse que “eu quis fazer um faroeste bastante objetivo, (…) escolhi quatro ou cinco faroestes que vi e revi para chegar a algumas conclusões. Eu revi Rio Vermelho, El Dorado e Rio Bravo. E disse a mim mesmo: é preciso retomar este espírito, estes gestos feitos em completa intimidade, como nos filmes de Hawks.” 
 
Na mesma entrevista, e continuando a discutir as suas referências para O Dragão da Maldade, confessou que “no momento de filmar, tudo mudava, eu não poderia ficar apenas no nível de meu aprendizado anterior. E esta é uma boa solução: quando se descobre certas referências, é necessário que elas sejam dissolvidas no momento.” 
 
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro será então a próxima sessão do Lucky Star - Cineclube de Braga. As sessões ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha



por João Palhares

Glauber Rocha nasceu e morreu algures, é certo. Cruzou, confundiu e desmistificou os hemisférios. Quis fazer o mesmo com o primeiro e o terceiro mundo, com a riqueza e a pobreza, com deus e o diabo, com a vida e com a morte. Será para sempre a presença nunca descansada, nunca satisfeita, nunca pacificada e maior que a vida que caiu de pára-quedas na revolução dos cravos e se pôs a espicaçar os populares e os militares com enérgicos “acriditá ná révulução?”, “Há quanto tempo você lútá?”, “O sénhô sofreu com á ditadura?”, “O quê achá dá situação atuau?” “Porque é qui não foram ao primeiro di Maio, porqui não estão ná Práça?” Pela mesma altura no congo, em cuba, no peru, em itália, na frança, no chile, em todas as revoluções e em todas as frentes, quem é que o alcança? Também foi ele que, em 1976, aterrou sem cerimónias e sem aviso no velório e no funeral do amigo Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, com uma câmara na mão e como um poeta apaixonado que usa uma caneta, ou um pintor um pincel. Na curta Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Quimera, Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. (1977), que foi o resultado dessas filmagens ainda infames para alguns, diz que aprendeu a filmar com Rossellini, que fazia o mesmo, fazia da câmara uma extensão do próprio corpo e da própria cabeça, dos neurónios criativos (“… fui destacado para entrevistar o Roberto Rossellini, e lá conheci o Di Cavalcanti que me apresentou o próprio Roberto, com a caméra de dezésseis milímitros, saindo pela rua na Bahia e filmando rapidamente lá um sarcófago e outros batuques das ruínas portuguesas barrocas da Bahia com uma rapidez impressionante. Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei o que é que era realmente o negócio de “ideia na cabeça e caméra na mão”. Quer dizer, o Rossellini realmente fazia com a caméra de dezésseis o que Di Cavalcanti faria com um pincel.”), da parcela redentora do ser humano, aquilo que o pode projectar na eternidade. Mas entrou no velório, escrevemos, e fez daquilo um carnaval celebrando a vida e a obra do amigo Di Cavalcanti nem lhe faltando trazer o morto para a festa também (“Agora dá um close na cara dele… barba por fazer, calça Benim azul-marinho, casaco azul claro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons… o cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão de Di Cavalcanti no velório no museu de Arrrrr-ti Moderna.”). Realizou treze longas-metragens e seis curtas-metragens ao longo duns meros vinte anos, viveu quarenta e dois, escreveu certamente milhares de textos e foi uma personalidade fogosa, apaixonante, instigadora e imprescindível para as décadas de 60 e 70. 
 
Também foi ele, claro, que nos anos 60 decidiu partir para o sertão brasileiro com pouquíssimos meios para encenar uma alegoria política e religiosa fundadora, uma mitologia nova para o terceiro mundo. Plena de fúria e de sangue, como nos mitos que se conhecem da bíblia sagrada ao sagrado capital, chamou-lhe Deus e o Diabo na Terra do Sol e deu-lhe forma de western para se apropriar doutro mito, o do cinema. E assim dois fazendeiros incautos, um homem e uma mulher como no paraíso, encontram um deus negro e um diabo louro e são perseguidos por um carrasco de cangaceiros chamado António das Mortes. Pontuado por comentários escritos por Glauber Rocha e cantados à guitarra por Sérgio Ricardo, nos termos mais directos possíveis, o filme torna-se um grito primordial de revolta desde muito cedo. “Vou contar uma estória, na verdade é imaginação. Abra bem os seus olhos, para prestar bem atenção. É coisa de deus e diabo, lá nos confins do sertão.” À medida que avançamos assistimos aos pecados e aos sacrifícios que se cometem para tentar erigir uma ideia de civilização, a sociedade atrás de homens e mulheres que se tornam criminosos por não se contentarem nem terem de se contentar com o quinhão que lhes é alotado por meia dúzia de iluminados privilegiados. Deus e o diabo acabam por não parecer assim tão diferentes e os homens descobrem que têm de lutar por si próprios para transformar o sertão em mar e para o paraíso lhes ser devolvido. Como em qualquer epopeia ou mito, há algo de verdadeiro, de factual, e a acção situa-se na época de Corisco e Dadá, cangaceiros conhecidos por esses nomes mas que em tempos se chamaram Cristino Gomes da Silva Cleto e Sérgia Ribeiro da Silva. São personagens do filme e fizeram parte das fileiras do rei do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Foram todos o pesadelo das autoridades brasileiras, entre as duas grandes guerras, mas para um povo fustigado e cansado representaram um sonho e a esperança de que algo mudasse nas suas vidas. Projectando as suas mordaças e as suas amarras nas que tentavam pôr nos cangaceiros, livres no sertão, seguiram as suas aventuras e torceram por eles como libertadores anunciados. Como quem percebe que as coisas não estão bem, ainda hoje, líderes mundiais sempre a gerir um equilíbrio talvez impossível entre a ordem e a liberdade, quando não é a mera subsistência, milhões de pessoas presas ao trabalho e ao dinheiro podem gritar com Corisco quando chega António das Mortes e lhe diz para se entregar: “Eu não me entrego, não. Não me entrego ao tenente, não me entrego ao capitão. Eu me entrego só na morte de parabelo na mão.” E a ambição de contar uma Odisseia ou uma Ilíada do século XX, realiza-se, não se sabe se os séculos não transformarão Manuel em Ulisses e Corisco em Aquiles, perdendo-se o filme e os seus negativos mas sustendo-se o mito. Dezenas de decanos e decanas perdidos no deserto em peregrinação num fim do mundo longínquo qualquer a debitar de memória emprestada os planos e os versos de Glauber Rocha, que viveu e morreu como um cangaceiro e deu novos mundos ao mundo. E nem na morte descansou ou nos deixa a nós descansar.