quarta-feira, 31 de maio de 2023

Die große Ekstase des Bildschnitzers Steiner (1974) de Werner Herzog



por João Palhares

Não há pior, nem melhor, do que uma página em branco. Relatos das contorções e das provações e das dúvidas que envolve encará-la, e a nós próprios, não faltam. Mas essa imagem significa também um recomeço e um oceano de possibilidades, projectadas por esperanças falsas ou verdadeiras. Há quem resolva o assunto simplesmente começando, movido pela necessidade pura, pelo tudo ou nada, pelo impulso da acção e da aventura. Há quem não o resolva e veja nas projecções ilimitadas do seu potencial a própria solução, encerrando-se em mil projectos sonhados e nunca acabados, continuados uma vírgula de cada vez, terminados num dia idealizado em que também as respostas para os mistérios profundos se materializem, é como ópio para o espírito. “Eu odeio escrever,” disse Sam Peckinpah a William Murray em 1972[1], “passo pelas torturas dos danados. Não consigo dormir e parece-me que vou morrer a qualquer minuto. Eventualmente, tranco-me a mim próprio em qualquer sítio, fora do alcance de uma arma, e avanço com o assunto de um grande impulso só. Sempre estive à volta de escritores e tinha amigos que eram escritores, mas nunca me tinha apercebido dos diabos dos montes de angústia que implica.” 
 
A regra de ouro para a maior parte dos escritores parece ser a adopção duma rotina, seguida à risca, e iniciada preferencialmente de manhã quando se diz que o tempo mais rende, antecipando os horários habituais da sociedade antes de se ser sugado por eles. Não havendo essa possibilidade, tem de ser sempre que se pode e o tempo permite. Mas as coisas parecem correr melhor, para outros, quando o próprio acto de escrever é uma solução para um problema. Ou quando o correr melhor não é uma questão que sequer se coloca, porque a única solução é escrever. Para pagar dívidas, para pôr pão na mesa, para dar diálogos a um actor antes de rodar a sua cena, para cumprir prazos e resolver problemas. E depois há Werner Herzog e Aguirre. “Eu não preciso de me enfiar num mosteiro ou de me retirar para um sítio calmo durante meses sem fim para escrever,” disse Herzog a Paul Cronin[2], “a maior parte do argumento foi escrita num autocarro que ia para Itália com a equipa de futebol de Munique em que eu jogava. Pela altura em que chegámos a Salzburgo, apenas umas horas depois da viagem começar, estava toda a gente bêbeda e a cantar canções obscenas porque a equipa tinha bebido a maior parte da cerveja que levávamos como presente para os nossos adversários. Eu estava sentado com a minha máquina de escrever ao colo. Na verdade, escrevi aquilo tudo quase só com a mão esquerda porque, com a direita, tentava-me defender do nosso guarda-redes estatelado no lugar ao meu lado. Eventualmente, vomitou por cima da máquina de escrever. Algumas das páginas ficaram sem salvação possível e tive de as atirar pela janela fora. Houve belas cenas que se perderam porque eu não me consegui lembrar do que tinha acabado de escrever. Desapareceram para sempre. A vida na estrada é mesmo assim. Mais para a frente, entre jogos de futebol, escrevi furiosamente durante três dias e acabei o guião.” 
 
Werner Herzog disse que Die große Ekstase des Bildschnitzers Steiner é um dos seus filmes mais importantes. Podemo-nos perguntar porque é que disse isso, já que o projecto teve uma data de contrapartidas e contrariedades: teve de ter menos que uma hora de duração, e mesmo assim viu quinze minutos cortados, tinha de ter a presença do próprio realizador, a certa altura os produtores até sugeriram que se acompanhasse outros esquiadores em vez de Steiner, porque achavam que não era ele que ia vencer a competição e bater recordes, a decisão das imagens em câmara lenta implicava uma enorme precisão no enquadramento dos esquiadores durante os saltos, o próprio Steiner mostrou receio de que algumas das coisas que disse durante a rodagem fossem utilizadas na montagem final. Enfim. Quando se diz e se mostra e se acredita que um atleta é um artista, então o artista tem de ser um atleta e aguentar a neve e a pressão e o receio de que as coisas não possam correr pelo melhor. Durante o processo, pode descobrir que a narração é uma via para a sua obra futura, que as citações podem ser feitas com aspas e mesmo assim confundidas e apropriadas, que um documentário é uma ficção pegada e que o êxtase e a poesia são verdades descritíveis e demonstráveis. No salto duma centena e dezenas de metros, por breves momentos suspensos num transe no ar, os saltadores de esqui arriscam a vida esquecendo-se da própria vida e da morte, esquecendo-se de si próprios e do mundo, portanto que desafio poderá ser escrever ou filmar o que quer que seja por comparação? A página em branco e o grande salto entrelaçam-se. Se é possível alguém se superar a si próprio a dezenas de metros de altitude por quase duzentos metros de comprimento então tudo é possível. Até o impossível.

[1] in «Sam Peckinpah: Playboy Interview, William Murray, Playboy, 1972.
[2] in «Werner Herzog: A Guide for the Perplexed - Conversations with Paul Cronin», de Paul Cronin, Faber & Faber Limited, Londres, 2014.



Lektionen in Finsternis (1992) de Werner Herzog



por João Palhares

Numa sessão do ciclo “Cinema, jornalismo e liberdade”[1], promovida pelo Cineclube Gardunha em parceria com o Jornal do Fundão nas comemorações do seu 4000º número, José Manuel Barata-Feyo partilhou uma história dos seus tempos de televisão, na RTP, sobre a cobertura da guerra do Golfo. Ele tinha comunicado à estação que não se passava nada na capital da Jordânia, e que o melhor se calhar era voltar para Portugal, mas a redacção central disse-lhe que havia desacatos todos os dias à frente da embaixada americana e que os outros canais os estavam a difundir sob a manchete de “Jordânia a ferro e fogo”. Na verdade, o que se passava, era que todos os dias desciam vinte a trinta pessoas por uma avenida de Amã até chegarem à frente da embaixada e começarem a gritar palavras de ordem contra os Estados Unidos da América, incendiando bandeiras. O hotel onde estava hospedada toda a imprensa internacional era mesmo em frente à embaixada americana e, acompanhando esse grupo, sessenta ou setenta câmaras esperavam por eles sentados e enquadravam-nos em contra picado para parecerem uma multidão. 
 
Então, quando a redacção central pediu a Barata-Feyo que fizesse uma peça para abrir o telejornal com “a capital da Jordânia a ferro e fogo”, o jornalista falou com o seu operador de câmara, Jorge Guerreiro, e disse-lhe para filmar os manifestantes a descer a avenida. Quando chegassem aos muros da embaixada, juntava-se então às câmaras das outras televisões. Como já era um jornalista sabido e vivido, entregou a peça tarde e a más horas certamente para ninguém verificar o conteúdo e o telejornal abriu assim com as suas imagens e de Guerreiro anunciadas como a guerra em primeira mão num escalar da violência fabuloso. Escusado será dizer que, depois deste episódio, a RTP não voltou a pedir reportagens do género a Barata-Feyo. 
 
A cobertura da guerra do Golfo beneficiou das possibilidades técnicas trazidas pelos satélites, pela artilharia militar equipada com câmaras e pelas imagens de visão nocturna, o que permitiu que um canal como a CNN, que desde a sua génese se dedicava às notícias 24 horas por dia, difundisse a guerra em directo a partir de um hotel em Bagdad com enviados especiais. Só que se a técnica evoluiu, as regras apertaram quase na mesma medida, e o exército americano só libertava a informação que queria libertar, limitando ainda os acessos aos cenários de guerra e as entrevistas aos soldados a certos jornalistas, o que na prática resultava no chamado pool de imprensa que fazia proliferar as mesmas imagens horas a fio por todo o mundo. 
 
Werner Herzog, como é óbvio, não gostava dessas imagens, mas viu o potencial imagético dos incêndios dos poços de petróleo por parte do exército iraquiano no final da guerra quando os viu como toda a gente em 1991. "O mundo andava a ser saturado noite e dia com imagens dos poços de petróleo em chamas no Kuwait,” disse Herzog a Paul Cronin[2], “mas através dos filtros das notícias na televisão. Lembro-me de assistir àquelas transmissões e de saber que estava a testemunhar um acontecimento momentoso que tinha de ser registado, mas de forma singular, para a memória da humanidade. As estações e os canais por cabo tinham filmado aquilo de forma totalmente errada; aquele estilo de reportagem de tablóide, com os seus trechos de oito segundos, habituou rapidamente o público aos horrores, e toda a gente se tinha esquecido demasiado cedo daqueles campos espectaculares dum óleo ardente sereno e escuro como breu que cobria a paisagem. Eu estava à procura de imagens doutro tipo, algo de muito diferente, algo de mais duradouro. Queria ver aqueles planos a rolar em takes longos e quase intermináveis. Só assim é que as imagens podiam revelar o seu verdadeiro poder.” 
 
Assim, e na sua busca permanente da verdade pela poesia, convocou o operador de câmara da BBC, Paul Berriff, que tinha um visto de rodagem, o piloto de helicóptero experiente Jerry Grayson, e o director de fotografia aérea Simon Werry. O resultado foi Lições da Escuridão, dividido em treze curtos capítulos, um delírio poético pleno de invenções que se tornou possível para o cineasta alemão numa época de revelações estrondosas, e que aí como nos anos seguintes lhe permitiram decidir que, em cinema, e no documentário como na ficção, os factos podem servir maiores desígnios, que uma citação não é uma citação, que um sinal de proibido é uma tentativa de comunicação por parte duma raça de extraterrestres, os seres humanos, que uma postura resoluta de trabalho é uma insistência de criança em brincar com o fogo, que os objectos de estudo não têm de ser nomeados para serem visíveis e óbvios, que o turismo é crime e que o universo, esse mistério físico e abstracto que nos baralha há milénios, não sabe o que é um sorriso. A informação não é conhecimento, em milhões de anos podemo-nos transformar nos dinossauros e nos fósseis de outros seres, mais inteligentes do que nós, que viajando através do fogo e da poeira e dos destroços, numa linha recta que parte de François Couperin e termina em Dante, passando por Wagner, Grieg, Mahler e Pascal, acabarão por descobrir que houve um inferno que uma vez se chamou planeta Terra e um demónio que por lá se passeou e hoje conhecemos como ser humano. 

 “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.”

[1] «Conversa entre José Manuel Barata-Feyo e Rui Pelejão sobre o filme Network e jornalismo», disponível no canal do YouTube do Cineclube Gardunha.
[2] in «Werner Herzog: A Guide for the Perplexed - Conversations with Paul Cronin», de Paul Cronin, Faber & Faber Limited, Londres, 2014.



quinta-feira, 25 de maio de 2023

295ª sessão: dia 30 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Duas médias-metragens de Werner Herzog para ver na biblioteca 
 
Lições da Escuridão (1992) e O Grande Êxtase do Entalhador Steiner (1974), de Werner Herzog, são as apostas do Lucky Star - Cineclube de Braga para a noite de terça-feira no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. A sessão encerrará o ciclo “Werner Herzog - Verdade, poesia e êxtase”, promovido pelo cineclube em parceria com o Goethe-Institut de Portugal. 
 
Sobre o primeiro filme, rodado no Kuwait no início dos anos noventa, o cineasta alemão disse a Paul Cronin que “o mundo andava a ser saturado noite e dia com imagens dos poços de petróleo em chamas no Kuwait, mas através dos filtros das notícias na televisão. Lembro-me de assistir àquelas transmissões e de saber que estava a testemunhar um acontecimento momentoso que tinha de ser registado, mas de forma singular, para a memória da humanidade.” 
 
“As estações e os canais por cabo tinham filmado aquilo de forma totalmente errada”, continuou ele, “aquele estilo de reportagem de tablóide, com os seus trechos de oito segundos, habituou rapidamente o público aos horrores, e toda a gente se tinha esquecido demasiado cedo daqueles campos espectaculares dum óleo ardente sereno e escuro como breu que cobria a paisagem. Eu estava à procura de imagens doutro tipo, algo de muito diferente, algo de mais duradouro. Queria ver aqueles planos a rolar em takes longos e quase intermináveis. Só assim é que as imagens podiam revelar o seu verdadeiro poder.” 
 
O Grande Êxtase do Entalhador Steiner foi rodado nos anos setenta e marcou a estreia de Werner Herzog como repórter e narrador num dos seus filmes. É sobre Walter Steiner, saltador de esqui alemão muito celebrado durante essa década mas cujo ofício era a carpintaria, e sobre a sua busca pelo recorde do mundo no salto de esqui em recintos da Alemanha e da antiga Jugoslávia. 
 
Considerado pelo cineasta alemão como um dos seus filmes mais importantes, há um grande sentido de afinidade com Steiner por parte de Herzog, que disse a Paul Cronin que “sempre me senti próximo dos saltadores de esqui. Eu cresci em cima de esquis e, como todas as crianças em Sachrang, sonhava em tornar-me um grande saltador de esqui e em campeão nacional.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

Little Dieter Needs to Fly (1997) de Werner Herzog



por Joaquim Simões

Dieter Dengler é um homem assombrado pela morte à qual escapou, ou antes, pela qual foi rejeitado. Viu amigos morrerem da maneira mais violenta e gráfica possível. Um deles vem por vezes dizer-lhe que tem frio nos pés, por isso Dieter nunca baixa a capota do carro, mesmo no calor do Verão. E ao entrar em casa fecha e abre a porta repetidamente, para saborear a liberdade: quando esteve preso na selva do Vietname as portas nunca se abriam. 

A vida do pequeno Dieter foi moldada desde a infância pela guerra e pela morte. Quando era criança assistiu ao bombardeamento da sua vila, e um avião passou a rasar por cima da sua casa, tão perto da sua janela que o viu a aproximar-se como um espetro, uma visão “indescritível”. A partir desse momento decidiu que queria voar. Herzog, conterrâneo de Dieter e também ele uma vítima da miséria da Alemanha pós-guerra, dá a este veterano a oportunidade de contar a sua história, captando-a com o seu experiente olho documental. Mais tarde irá tornar esta história fantástica numa ficção em Rescue Dawn

Depois da segunda guerra a Alemanha não podia ter uma força aérea; para concretizar o seu sonho, Dieter teria de emigrar para os Estados Unidos. Com dezoito anos, trinta cêntimos no bolso e muita fome embarcou num navio. Dois anos passados no Texas a descascar batatas e outros dois a viver numa carrinha na Califórnia, a trabalhar e a estudar; finalmente conseguiu entrar na marinha. O pequeno Dieter começou a voar e foi diretamente para o Vietname. 

“Visto de cima, o Vietname não parecia real. Dieter viu-se no papel não só de piloto, mas de soldado envolvido numa guerra. Embora fosse tudo muito real, tudo lá em baixo parecia abstrato”, relata Herzog. Um dia despenhou-se, e o que tinha visto de cima como uma mera abstração iria rodeá-lo durante os próximos seis meses. A morte voltava para o assombrar, e tão perto esteve dela que a chegou a considerar a sua única amiga. Mas ela não o quis e Dieter foi salvo. 
 
A história de Dieter é tão alucinante que desafia a credulidade do espectador habituado às ficções de guerra; nem a maior parte dos filmes de ação chega a tais exageros: só a realidade é que não tem limites. Ao longo da narração de Dieter Dengler, vamo-nos apercebendo e sendo cada vez mais assoberbados pela capacidade de resistência e coragem de que este homem foi capaz. Não só passou por eventos traumáticos com uma capacidade de resiliência e foco surpreendentes, como é agora capaz de relatar todos os eventos eloquentemente e com todo o pormenor. 

Herzog, no entanto, não se limita a fazer o registo passivo da narração de Dieter Dengler, acompanhada por imagens ilustrativas, como seria o expectável num documentário banal. O realizador desafia o sujeito a enfrentar mais uma vez o trauma, a embrenhar-se novamente na selva que o engoliu e cuspiu passados seis meses. Num plano que poderá parecer cruel, Herzog põe-no a correr pela selva de mãos atadas atrás das costas, escoltado por vietnamitas com espingardas. Embora fosse tudo a fingir o seu coração batia violentamente, admite, como se fosse real. E foi.



domingo, 21 de maio de 2023

294ª sessão: dia 23 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Filme sobre o aviador Dieter Dengler na biblioteca 
 
O documentário Fuga de Laos, de Werner Herzog, vai ser exibido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, esta terça-feira às 21h30. Será a quarta sessão do ciclo “Werner Herzog - Verdade, poesia e êxtase”, promovido pelo cineclube em parceria com o Goethe-Institut de Portugal.  

Dieter Dengler, o retratado em Fuga de Laos, foi um aviador norte-americano nascido na Alemanha que combateu na guerra do Vietname. Nos anos sessenta, foi capturado em Laos pelo Pathet Lao e entregue ao exército do Vietname do Norte, que o levou para um campo de prisioneiros perto da aldeia de Par Kung. 
 
Torturado e esfomeado, sobrevivendo com um punhado de arroz por dia que tinha de dividir com outros cinco prisioneiros de guerra, Dengler juntou-se aos americanos Eugene DeBruin e Duane W. Martin e ao tailandês Phisit Intharathat numa fuga do campo. DeBruin e Martin ficaram para trás e foram dados como desaparecidos, Dangler e Intharathat sobreviveram. 
 
Nos anos noventa, Werner Herzog foi convidado por uma estação de televisão alemã para fazer parte duma série chamada “Viagens para o Inferno”, inicialmente para descrever as suas próprias experiências durante a rodagem de Fitzcarraldo num documentário. Mas como tinha lido sobre Dengler, preferiu fazer um filme sobre ele e localizou-o para uma entrevista. 
 
No livro Guide for the Perplexed, o cineasta alemão disse a Paul Cronin que “um dos melhores exemplos de estilização em qualquer dos meus filmes vem no final de Fuga de Laos, na cena rodada na base aérea de Davis-Monthan perto do Tucson, no Arizona, um cemitério de aviões com dezenas de milhares de aeronaves desactivadas dispostas em filas, a perder de vista; só aeronaves de horizonte a horizonte.” 
 
“O Dieter fala dos pesadelos que teve imediatamente a seguir ao resgate,” continua Herzog na mesma entrevista a Paul Cronin, “e de como os amigos o levavam à noite da cama e o embalavam numa cabine de piloto, onde dormia. Ele diz que só se sentia seguro dentro dum avião. Tudo isto é verdade, embora eu tenha escolhido a base por causa das imagens deslumbrantes. O Dieter nunca tinha estado em Davis-Monthan, e a sua fala “Isto é o paraíso dos pilotos” foi escrita por mim.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Stroszek (1977) de Werner Herzog



por António Cruz Mendes

Herzog é muitas vezes referido como um “romântico”, o que me parece perfeitamente válido quando pensamos em filmes como Aguirre, a cólera de Deus, ou Fitzcarraldo, que pudemos ver nas duas últimas sessões. O interesse de Herzog por indivíduos excepcionais, vivendo em situações limite e por histórias susceptíveis de serem lidas como metáforas da condição humana, está também presente em A Canção de Bruno S. No entanto, o registo deste filme, ao contrário dos anteriores, é cruamente realista. A libertação de Bruno, logo na primeira sequência, é descrita como um processo burocrático: inventariam-se pertences, fazem-se perguntas das quais se sabe antecipadamente as respostas, preenche-se uma ficha e dão-se “bons conselhos” prontamente acatados (mas, logo imediatamente violados). Já não nos encontramos diante de misteriosas e ameaçadoras florestas virgens, mas de processos ordinários e situações facilmente reconhecíveis. E Bruno não é um visionário que alimenta paixões quiméricas e sonhos desmedidos. É apenas um pobre diabo, que anseia por uma vida comum. 
 
“Stroszek” não é, aliás, uma personagem inteiramente ficcionada. Bruno S. é Bruno Schleinstein, operário e músico autodidacta que Herzog descobriu quando, em 1970, viu o documentário Bruno der Schwarze - Es blies ein Jäger wohl in sein Horn [Bruno, o Negro – Um dia um caçador tocou a sua trompa], e que recrutou como actor principal para O Enigma de Kasper Hauser (1974) e, depois, para este filme, onde se vêm sequências filmadas na sua própria casa e ele toca os seus próprios instrumentos. Sabe-se de Bruno Schleinstein que era filho de uma prostituta, que foi frequentemente agredido quando era criança e que passou boa parte da sua vida em instituições psiquiátricas. A história do miúdo obrigado a segurar, de pé, os lençóis que urinou durante a noite passou-se realmente com ele e a cena da humilhação e espancamento de Bruno pelos dois bandidos de Berlim, replica situações realmente vividas por Schlenstein. 

Quanto a Stroszek, sabemos que é um miserável, que esteve preso por delitos que terá cometido sob a influência do álcool, e que saiu da cadeia, onde fez amigos e contava com pessoas que se preocupam com ele, para enfrentar um mundo ainda mais violento e impiedoso. Num diálogo com Eva, a prostituta que tenta proteger e que o acompanha, com Scheltz, nessa tentativa falhada de refazer a vida nos Estados Unidos, diz que as portas da cadeia continuam escancaradas à sua espera. 

Aquilo que podemos observar no deprimente descampado onde se instala no Wisconsin é o desabar do seu “sonho americano”. A princípio, a casa pré-fabricada que vai habitar ainda se pode parecer com um lar, habitado por essa estranha família formada por Bruno S., Eva e Scheltz, onde existem afectos e cumplicidades. Mas, rapidamente, ressurgem os problemas económicos, Eva volta a prostituir-se e Scheltz aliena-se em estranhas pesquisas sobre “magnetismo animal” e efabula teorias da conspiração. Bruno está de novo sozinho, mais uma vez humilhado pelos que o rodeiam, e o facto de não falar inglês apenas acentua a sua sensação de estranheza, o absurdo do mundo onde está condenado a viver. 

Os seus últimos actos, a tentativa caricata de assalto a um banco que se transforma no roubo à mão armada de uma caixa registadora de uma lojeca, podem ser vistos, de resto, como uma tentativa desesperada de regresso à cadeia, aquela espécie de refúgio onde o filme se inicia. Cumpre-se o círculo que um camião desgovernado desenha numa das últimas sequências do filme. 

A Canção de Bruno S. oferece-nos, através da experiência de Stroszek, uma visão desalentada da vida. Herzog resume-a na sequência final das caixas onde, metendo uma moeda, se podem ver imagens de animais a fazer habilidades. Numa delas, uma galinha dança em círculos. Assim seria a vida: inserimos uma moeda numa jukebox e dançamos enquanto a música dura.



sexta-feira, 12 de maio de 2023

293ª sessão: dia 16 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“A Canção de Bruno S.” na BLCS 
 
O próximo filme do ciclo “Werner Herzog - Verdade, poesia e êxtase”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com o Goethe-Institut de Portugal, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, é A Canção de Bruno S., a segunda colaboração de Herzog com Bruno Schleinstein.  

Bruno Schleinstein nasceu a 2 de Junho de 1932, passando grande parte da adolescência e da juventude entre hospícios, casas de correcção e prisões. Werner Herzog soube da sua existência através dum documentário de 1970, Bruno der Schwarze – Es blies ein Jäger wohl in sein Horn, de Lutz Eisholz, em que Schleinstein é um dos retratados.  

Em 1974, o cineasta alemão desafiou Bruno S. a ser o protagonista daquela que seria a sua sexta longa-metragem, O Enigma de Kaspar Hauser, sobre o misterioso Hauser, um jovem que cresceu em cativeiro e se apresentou à civilização aos dezasseis anos sem saber dizer uma palavra. Intriga o mundo há dois séculos e inspirou o poema de Paul Verlaine, Gaspard Hauser chante
 
Versando sobre as parecenças entre Schleinstein e Hauser, que passaram por isolamentos e maus-tratos semelhantes por parte da sociedade, João Bénard da Costa, na sua folha da Cinemateca sobre esta obra, escreveu que “o tema do filme, se é o da implacável perseguição que se abate sobre Kaspar Hauser, é sobretudo o da implacável perseguição que se abate sobre Bruno S.” 
 
Para A Canção de Bruno S., Herzog, que quis compensar o amigo Schleinstein da desfeita de o ter preterido a Klaus Kinski para protagonista de Woyzeck, inspirou-se na experiência de vida do seu actor nos hospícios e nas casas de correcção e levou-o depois para os Estados Unidos com Eva Mattes e Clemens Scheitz em busca do sonho americano. 
 
Bruno S. faleceu a 11 de Agosto de 2010. Era músico auto-didacta e tocava piano, acordeão, metalofone e sinetas, fazendo concertos em pátios interiores com baladas ao estilo do século XVII e XIX enquanto ganhava a vida como empilhador. Era membro do movimento NO!art, dedicado a combater a sociedade de consumo. 
 
Ao longo do mês, será possível ver ainda neste ciclo Fuga de Laos, no dia 23, e Lições da Escuridão e O Grande Êxtase do Entalhador Steiner, sessão-dupla que encerra a programação mensal no dia 30 de Maio. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Fitzcarraldo (1982) de Werner Herzog



por Alexandra Barros

Durante a década de 1890, no auge da Febre da Borracha, um dos seus grandes exploradores, Carlos Fermín Fitzcarrald, pôs em execução um projecto ambicioso: transportar um navio a vapor através de uma montanha peruana, para explorar os recursos de uma zona de difícil acesso. Baseado nessa figura e nessa história, este filme, onde Herzog regressa à selva amazónica quase uma década depois de aí filmar Aguirre, a cólera de Deus, configura um impressionante retrato do próprio Herzog. Contra tudo e contra todos, para filmar “com verdade”[1], o realizador insistiu em transportar um barco de 300 toneladas através de uma montanha, justapondo ao desígnio da personagem principal a sua própria quimera. As imagens dessa aventura foram classificadas pelo próprio como uma “grande metáfora”, mas quando questionado sobre o quê, respondeu que ainda não sabia. Contudo, mesmo que não saibamos ou desejemos decifrá- las, as imagens do navio a escalar a montanha dificilmente deixarão alguém indiferente. Assombradoras e poéticas, são imagens inesquecíveis. 

As metáforas visuais são o meio através do qual Herzog procura chegar a verdades mais profundas do que as alcançadas através da observação ou vivência do real. “Há estratos mais profundos de verdade no cinema, e existe uma verdade que é poética e extática. É misteriosa, elusiva e só pode ser atingida através da fabricação, imaginação e estilização.”[2] “Não se trata de uma mentira, mas de uma espécie de verdade intensificada”.[3] Na demanda dessas verdades poéticas, privilegia imagens que despertam sensações e sentimentos em detrimento das que contêm significados explícitos. Para construir as suas metáforas visuais, procura imagens nunca vistas em lugares de difícil acesso ou inóspitos (selva amazónica, Antártida, a cratera de um vulcão em erupção, ...), faz encenações ficcionadas de eventos e histórias recorrendo a métodos peculiares ou mesmo controversos (por exemplo, durante a rodagem de Coração de Gelo (1976), os actores trabalharam sob hipnose), recontextualiza imagens de arquivo de forma a apontarem a novos sentidos. Nos seus filmes, a fim de criar os almejados momentos de revelação e de êxtase não recua perante colossais obstáculos, mesmo que envolvam colocar-se e à sua equipa em sofrimento extremo ou perigo de vida, tal como sucedeu na rodagem de Fitzcarraldo e de Aguirre

Embora os dois filmes tenham muitos pontos em comum, Fitzcarraldo é, para mim, mais extraordinário e mais herzoguiano. Como Aguirre, é a história de um fracasso, mas ao contrário desse filme também é triunfal. Partilha com Aguirre, o misterioso, a tensão e a angústia, mas dá mais lugar ao cómico e ao belo. Em Aguirre há uma força nas imagens relacionada com a sua verdade intrínseca, mas em Fitzcarraldo a obra é indistinguível da criação da obra. Na paleta de ambos os filmes estão “cores” recorrentes na filmografia de Herzog: idealismo, paixão, loucura, beleza, caos, horror, fé, superstição, irracionalidade, absurdo. Tal como Aguirre, foi filmado em territórios longínquos, selvagens e inacessíveis ao homem comum, e tal como nesse filme, as “personagens” principais são: por um lado, uma natureza violenta e indomável, com paisagens misteriosas e que escondem perigos; por outro lado, um anti-herói visionário, descomedido e descontrolado, que não olha a meios para subjugar essa natureza. No coração de Fitzcarraldo está um sonhador excêntrico, com uma obsessão - construir uma Casa da Ópera na selva amazónica e aí levar o lendário tenor italiano Enrico Caruso. Por esse sonho é arrastado para uma missão impossível. O poder do filme, porém, está para além da narrativa, está na sua metanarrativa. Para contar a história de Fitzcarraldo, Herzog entra no universo da história: embrenha-se na selva, contrata uma tribo de índios, puxa um navio a vapor montanha acima, navega nos rápidos turbulentos de um rio incontrolável, persevera face a adversidades e perigos, arrasta para sacrifícios extremos os “seus” homens e os índios. A história filmada acaba por se confundir com a história de filmar essa história e Klaus Kinski representa simultaneamente Fitzcarraldo e Herzog. Com uma fronteira diluída entre realidade e ficção, o filme é um dos mais icónicos casos de arte que imita a vida e vida que imita a arte. Herzog chamou-lhe “o meu melhor documentário”.[4] 
 
Fitzcarraldo, que no primeiro contacto com os índios pretende fazer passar-se por uma das figuras mitológicas indígenas, acaba por ser imolado para aplacar outras figuras desse cosmo. A sua missão fracassa, a de Herzog triunfa. Apesar do muito que correu mal, o realizador consegue finalizar o filme permanecendo fiel à sua visão. Mas será realmente assim? Fitzcarraldo um "falhado" e Herzog um “triunfador”? A rodagem do filme levou Herzog a situações tão extremas que ele declarou, no final: “Eu não devia fazer mais filmes. Devia ir para um asilo de lunáticos”. Herzog parece assumir uma derrota mais derradeira que a de Fitzcarraldo, que aceitado o fracasso, recupera a joie de vivre. A tensão e violência brutais da escalada do navio e da sua descida pelos rápidos, e a fúria e decepção dos homens levados ao limite para nada alcançarem, dão lugar a um final jubiloso. A vida, com os seus dolorosos desencantos, pode revelar-se sobretudo absurda e trágica, mas Fitzcarraldo encanta-se ainda com a música, com o amor, com a partilha com a comunidade daquilo que o faz feliz. Saído do coração das trevas, Fitzcarraldo/Herzog abraça o mundo. “Acordo e estou apaixonado pelo mundo”, afirmou Herzog em entrevista a Grazia Paganelli[5]. A mim, apaixona-me a paixão pelas coisas do mundo de Herzog. Nesta época de cinismo, o romantismo é o novo punk.

[1] Fitzcarraldo é provavelmente o mais extremo e icónico caso de Herzog levar à prática a sua convicção de que para bem contar uma experiência, deverá primeiro vivê-la.
[2] “Herzog on Herzog: Conversations with Paul Cronin”, Werner Herzog.
[3] Entrevista de David Gordon Smith a Werner Herzog, Spiegel International, 12/2/2010.
[4] Les Blank acompanhou a rodagem de Fitzcarraldo e fez sobre ele um dos mais notáveis documentários sobre a realização de filmes, Burden of Dreams (1982), tão amado e exaltado por críticos e público como o próprio objecto sobre o qual se debruça.
[5] “Sinais de Vida, Werner Herzog e o Cinema”, Grazia Paganelli, 2009.



quinta-feira, 4 de maio de 2023

292ª sessão: dia 9 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Fitzcarraldo” terça-feira às 21h30 na biblioteca 

O ciclo “Werner Herzog - Verdade, poesia e êxtase”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com o Goethe-Institut de Portugal, continua na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva com a exibição de Fitzcarraldo, a quarta colaboração de Herzog com Klaus Kinski. 

Ambientado na região de Iquitos no Peru, no início do século XX, Fitzcarraldo, estreado em 1982 na antiga República Federal da Alemanha (a Portugal, chegou em 1983), é sobre Brian Fitzgerald (interpretado por Kinski), barão da borracha apaixonado por ópera e pelo tenor italiano Enrico Caruso, e sobre o seu sonho em construir uma grande ópera no meio da selva da Amazónia. 

A rodagem muito acidentada de “Fitzcarraldo” foi alvo de alguns documentários, como Burden of Dreams, de Les Blank, também de 1982, cujas imagens foram utilizadas pelo próprio Werner Herzog nos seus documentários Werner Herzog - Filmemacher e Mein liebster Feind - Klaus Kinski, este último sobre a relação do realizador com o actor Klaus Kinski. 

Werner Herzog também escreveu sobre os largos meses que passou em Iquitos antes e durante a rodagem do filme no seu livro Eroberung des Nutzlosen, publicado em 2004 na Alemanha. A editora Tinta da China editou o livro em Portugal em Setembro de 2017, com tradução de Manuela Ribeiro Sanches, sob o título de A Conquista do Inútil

“Se virem Fitzcarraldo e tiverem a coragem de prosseguir com os vossos próprios projectos”, disse o realizador alemão a Paul Cronin no livro A Guide for the Perplexed, “então o filme alcançou alguma coisa. Se uma pessoa sair depois de ver um dos meus filmes e já não se sentir tão sozinha, eu alcancei tudo aquilo que me propus a alcançar.” 

“Quando se lê um grande poema”, continuava ele, “sabe-se instantaneamente que há nele uma verdade profunda. Às vezes há momentos de grande introspecção parecidos no cinema, quando se sabe que fomos iluminados. Talvez eu tenha alcançado por vezes esses patamares com os meus próprios filmes.” 

As próximas sessões deste mês serão A Canção de Bruno S., de 1977, no dia 16, Fuga de Laos, de 1997, no dia 23, e Lições da Escuridão, de 1992, e O Grande Êxtase do Entalhador Steiner, de 1974, a sessão-dupla que encerra o ciclo no dia 30 de Maio. 

As sessões do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Aguirre, der Zorn Gottes (1972) de Werner Herzog



por António Cruz Mendes

Herzog foi um dos expoentes do novo cinema alemão e Aguirre, a cólera de Deus é, possivelmente, a sua obra-prima. O filme baseia-se numa história real, mas o seu argumento afasta-se dos factos narrados pelo padre Gaspar de Carvajal para poder salientar nessa expedição em busca do El Dorado a sua dimensão metafórica. Nesse sentido, ele tem sido, por vezes, referido como uma alegoria do III Reich ou como uma variação do tema nietzschiano da “vontade de poder”. Parecem-me interpretações redutoras ou mesmo abusivas. É verdade que o filme debruça-se também, como nota Claude Beylie, sobre a questão do poder e do seu abuso e sublinha a ambígua e doentia relação de fascínio e repulsa que Aguirre exerce sobre os que o seguem na sua suicidária expedição. Mas, aquela dimensão metafórica, remete-nos antes para o esplendor e a estranheza dos significantes erráticos de que nos fala Jean-Pierre Oudart. 

Mais interessantes parecem-me ser as opiniões daqueles que, como Jean Tulard, vêm Herzog como o mais romântico dos realizadores alemães da sua geração e destacam o seu gosto pelos marginais e pelos solitários. Teremos a oportunidade o confirmar nos outros filmes que completam o ciclo que lhe dedicamos. 

Aguirre, interpretado por Klaus Kinski, um actor com quem Herzog manteve uma longa e conflituosa relação, é o protagonista do filme. Mas, a floresta, sumptuosa e inacessível barreira onde se ocultam todos os perigos, as ameaças invisíveis que pendem sobre a vida humana, não tem nele um papel secundário. É penetrada pelo rio, primeiro tumultuoso, depois, assustadoramente silencioso. Por ele erram as balsas dos aventureiros que ousaram desafiar o seu poder. Comanda-os Aguirre. Ursúa, a voz do bom senso, e Guzman, a mediocridade que se compraz em possíveis riquezas, são eliminados. O que motiva Aguirre é o poder, o desejo do absoluto. Aguirre quer conquistar o desconhecido, submete-lo à sua força. Vê-o render-se a si tal como os mortais se rendem à “fúria dos deuses”. É essa húbris que o perderá. Como na mitologia e nas tragédias gregas, a sua arrogância, a sua desmedida, será punida pela ira dos deuses. 

É verdade que a sua expedição se faz também em nome de deus. Atesta-o a presença do padre Carvajal. Mas, não é desse deus que se trata. Ele nada diz ao indígena que leva a Bíblia à orelha para ouvir a sua voz. Os deuses que condenam Aguirre são deuses muito mais antigos, deuses que podemos entender personificados nessa natureza selvagem que os homens querem domar. 

Aguirre é derrotado. Contudo, nas imagens finais, ainda o veremos, sozinho, na sua jangada, coberta pelos corpos dos seus companheiros e invadida por pequenos macacos, de pé, olhos no horizonte, a proclamar os seus sonhos de glória.