quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Chibusa yo eien nare (1955) de Kinuyo Tanaka



por Alexandra Barros

Para que serve a poesia (e a arte em geral) e de onde vem? O que forma a nossa identidade? O que é ser mulher? O que é que nos faz felizes? Estas são questões centrais na história contada em Para sempre mulher

A mulher do título é Fumiko, personagem inspirada na poeta japonesa Fumiko Nakajo (1922-1954), nome grande da poesia tanka. Tanka é uma forma poética tradicional japonesa, caracterizada por poemas curtos, com uma estrutura específica de cinco versos e um total de 31 sílabas. Relativamente ao haiku, que é mais curto e mais focado na natureza, a poesia tanka permite uma expressão mais ampla de emoções e pensamentos pessoais. Geralmente, aborda temas como o amor, a natureza, a saudade e reflexões sobre a vida. É uma forma de poesia apreciada pela sua capacidade de transmitir, num formato conciso, sentimentos profundos e momentos emotivos. 

Para sempre mulher está povoado por diversos poemas tanka escritos por Fumiko. De acordo com a própria, descrevem realisticamente a sua história, tal como ela é. Para contar essa história Kinuyo Tanaka constrói as suas próprias “rimas” visuais e narrativas, como por exemplo: temas visuais recorrentes e pontos e contrapontos narrativos, onde cruza desvalorização e reconhecimento, prisão e liberdade, conquistas e perdas, amores e desamores. 

Ponto: Fumiko aguenta-se num casamento infeliz, por dever de respeito pelas convenções sociais. Contraponto: As suas agruras tornam-se a matéria da sua poesia. Ponto: Fumiko ama um outro poeta, Taku, mas não é correspondida. Contraponto: Taku, no entanto, admira a sua poesia e consegue que ela seja publicada numa revista reputada. Ponto: Fumiko divorcia-se. É-lhe descoberto um cancro da mama e perde os seios para se salvar. Essa perda assegura a sua liberdade, pois sabe que não sofrerá pressões para se voltar a casar. Contraponto: Por ter deixado de se sentir mulher, sente-se perdida como artista. Ponto e contraponto: Perde a vontade de escrever, na época em que vê o seu trabalho reconhecido e aclamado. Ponto e contraponto: A doença traz até si um jornalista de Tóquio que admira a sua obra, Ôtsuki. Com esse encontro, conhece finalmente a ventura de uma paixão correspondida e vive os dias mais felizes da sua vida, apesar de sentir a morte a aproximar-se velozmente. 

Recorrências, paralelismos e oposições: 
- Os triângulos
a) O triângulo das relações sentimentais de Fumiko: o marido que não ama e por quem não é amada; Taku, o amigo a quem devota o seu amor, mas perde inesperadamente, devido a morte súbita; Ôtsuki, o seu amante sem futuro, com quem inicia uma apaixonada relação quando a doença já a conduz irremediavelmente para a morte. 
b) O triângulo que “causa a doença” de Fumiko: Fumiko ama secretamente Taku, que é casado com Kinuko, sua grande amiga. 
- O espelho 
O que lhe devolve o espelho em diversos momentos do filme? O seu corpo doente; a amiga cujo lugar desejaria ocupar; o amante. 
- Conquistas e perdas 
Quando perde os seios, Fumiko conquista a liberdade para ser quem quer, mas simultaneamente é devastada pelo sentimento de perda de identidade. 
- Os banhos 
Dois banhos são preparados por Kinuko: o primeiro para o seu marido; mais tarde, prepara um segundo para a amiga, que vem a confessar ter desejado banhar-se na mesma banheira que Taku. 
- A doença 
Fumiko acredita que a doença é um castigo pelo seu amor imoral por Taku, mas é a doença que trará até si um admirador que a venera e a sua única paixão correspondida. 
- Os medicamentos 
Fumiko reprovava o marido por tomar medicamentos com efeitos danosos. Implora-os nas noites de insónia. 
- As mãos 
No hospital, Fumiko estende as mãos vazias, ansiando por comprimidos que aliviem o seu extremo sofrimento. Mais tarde, nas suas mãos sem vida é colocado um telegrama anunciando a chegada ansiada do amante. 
- O corredor 
Fumiko percorre um corredor do hospital e descobre com horror que conduz à morgue. Mais tarde, os filhos fazem o mesmo percurso acompanhando o corpo sem vida da mãe. 
- As grades 
As grades do quarto de hospital são semelhantes às grades da morgue, destino anunciado na altura em que Fumiko vive a vida mais intensamente, sentindo-se realizada como artista e como mulher. 
- Os seios 
Os seios perdidos de Fumiko são evocados pelos montes que enquadram o lago onde os filhos lançam flores em sua homenagem. 

Pelas paisagens ou estados da natureza que ecoam emoções e formas humanas, pelos poemas curtos sobre o quotidiano, pela forma como os poemas surgem sobrepostos nas cenas, e também pelo encontro do protagonista com um poeta japonês, ocorreu-me que Paterson, de Jim Jarmusch, poderá ter em Para sempre mulher uma das suas fontes de inspiração. Em todo o caso, Para sempre mulher é um filme intemporal e universal. A realização pessoal e o reconhecimento artístico, os conflitos morais, os males e bonanças do amor são temas que pertencem a qualquer tempo e lugar. Para sempre, Kinuyo Tanaka!



segunda-feira, 27 de novembro de 2023

322ª sessão: dia 28 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


“Para Sempre Mulher” esta semana no cineclube 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

Amanhã exibe-se Para Sempre Mulher, terceira longa-metragem de Kinuyo Tanaka. Este seu filme centra-se na personagem de Fumiko, interpretada por Yumeji Tsukioka, mãe de dois filhos que se separa do marido toxicodependente depois de um incidente grave e se muda para casa da mãe. Aí, dedica-se à poesia com os incentivos de um tutor que conhece num círculo de poesia. 

O guião de Para Sempre Mulher, cujo título japonês se traduz literalmente por “Os Peitos Eternos”, foi escrito por Sumie Tanaka, romancista e argumentista japonesa nascida a 11 de Abril de 1908 e que faleceu no ano 2000, conhecida sobretudo pelos guiões que escreveu para Mikio Naruse e Kinuyo Tanaka, com quem voltou a trabalhar nos anos 60 no guião de Mulheres da Noite

“Tanaka Kinuyō (1910-1977) foi uma actriz famosa,” escreveu o crítico espanhol Miguel Marías em 2006, “favorita de Mizoguchi e muito presente nas filmografias de Ozu e Naruse... e de quase todos os cineastas japoneses que fizeram cinema entre 1924 e 1976, uma vez que participou em 214 filmes. É muito menos sabido que entre 1953 e 1962 dirigiu seis filmes. Já consegui ver cinco deles até 1990, e desde então que quatro se contam entre os que mais me emocionam e admiram de tudo o que vi.” 

“Talvez o melhor seja Chibusa yo eien mare (1955),” continua ele, “que ao que parece quer dizer “Peitos eternos”; para mim é a obra cinematográfica máxima dirigida por uma mulher, e nenhuma feita por um homem me parece superior. Mas podia dizer o mesmo das duas primeiras que realizou, Carta de Amor (1953) e A Lua Ascendeu (1954/5), que nalguns dias se alternam em passar a ser a minha preferida... e quase o mesmo das três últimas. Ou seja, uma carreira de realizadora breve, mas extraordinária e além disso variada.” 

Toda a obra de Kinuyo Tanaka está agora disponível em Portugal graças aos esforços da The Stone and the Plot e é portanto uma oportunidade única para a conhecer. 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-feira!

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Tsuki wa Nabarinu (1955) de Kinuyo Tanaka



por António Cruz Mendes

Kinuyo Tanaka produziu e interpretou vários filmes de Yazujiro Ozu e a influência deste grande mestre do cinema japonês é bastante evidente nesta segunda realização de Tanaka. Podemos percebê-la, por exemplo, nos enquadramentos das cenas de interior, estudados ao pormenor, como se fossem quadros de uma pintura clássica, e filmados por uma câmara quase fixa, postada rente ao chão. Contudo, seria injusto vermos a realizadora deste belíssimo filme, simultaneamente poético e teatral, que denota já uma assinalável maturidade estética, como uma mera epígona de Ozu. 
 
Uma componente feminista será um dos seus traços distintivos. “Para mim”, diz-nos Kinuyo Tanaka, “o período da guerra (1939-45) foi como se tivéssemos caído num buraco. E para sair desse buraco, convenci-me de que seria necessário que as mulheres tomassem o comando, a começar pelo comando do cinema”. Vemos essas mulheres em Carta de Amor e vamos vê-las em A Lua Ascendeu e Para Sempre Mulher, como prostitutas, amantes ou poetisas. Vão ser elas as protagonistas dos filmes de Kinuyo Tanaka. São elas que apontam os caminhos da modernidade num Japão onde o peso de tradições ancestrais ainda se continuava a fazer sentir na condição feminina.

A própria Kinuyo Tanaka protagonizou este movimento de emancipação, particularmente a partir do momento em que decidiu afirmar-se como realizadora. 

Como actriz, tinha já uma longa carreira, onde se incluem quinze filmes sob a direcção de Mizoguchi. Entre eles, o notável Contos da Lua Vaga. Foi, aliás, depois dessa experiência que Kinuyo Tanaka decidiu experimentar passar para o outro lado da câmara, o que mereceu a oposição de outros realizadores, do seu marido e mesmo de Mizoguchi que se recusou a escrever a carta de recomendação indispensável para a sua inscrição no sindicato dos realizadores japoneses. Essa recomendação obteve-a ela de Keisuke Kinoshita, o autor de Balada de Kinoshita (1948), que também lhe cedeu o argumento para Carta de Amor. Mizoguchi, pelo contrário, mesmo depois da realização deste seu primeiro filme ter sido selecionado para a edição de 1954 do Festival de Cannes, no final da rodagem de O Intendente Sansho, quando ela lhe comunicou a sua intenção de realizar um outro, terá replicado: “Deixa-te disso. Não vale a pena”. 

O seu conselho não foi escutado. Kinuyo Tanaka obteve, então, o apoio de Ozu, que lhe ofereceu o guião de um filme que ele próprio não pôde realizar, A Lua Ascendeu, e que abordava temas que lhe eram caros: o relacionamento entre pais e filhos, o casamento e a emancipação feminina, e que Tanaka vai tratar de uma forma exemplar. 

O filme é uma comédia romântica onde as três personagens femininas personificam três diferentes atitudes face ao amor que, de certa forma, espelham diferentes atitudes políticas perceptíveis no Japão do pós-guerra. Aparentemente, Chizuru encontra-se ainda presa a uma memória passada e Ayako encerra-se no presente, adoptando uma atitude expectante. Só Setsuku toma nas suas mãos a tarefa de construir o futuro. De facto, todas elas sonham com uma nova vida, algo distante, fora de cena, que Setsuku identifica com Tóquio, contraponto de Nara, antiga capital do Japão, agora uma pequena povoação parada no tempo, onde vive com a sua família. 

Mokichi Asai é interpretado por Chishu Ryo, um dos actores favoritos de Ozu e Kinuyo Tanaka faz a figura de Chizuru. Mas, de facto, quem personifica aquele anseio de viver e de ser capaz de decidir da sua própria vida, de trilhar novos caminhos sem temer desafiar velhas convenções que podemos reconhecer na biografia da realizadora, a “mulher que toma o comando”, vencendo as hesitações dos homens aqui representados por Shôji, é Setsuku (Mie Kitahara), a mais nova das três irmãs. No final, banhado pela lua que ascende no céu, o amor triunfa e novos horizontes se abrem diante das filhas do sr. Asai.



segunda-feira, 20 de novembro de 2023

321ª sessão: dia 21 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Segunda longa-metragem de Kinuyo Tanaka no auditório da BLCS 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

Amanhã é exibido A Lua Ascendeu, da actriz e realizadora japonesa Kinuyo Tanaka, nascida em 1909 e falecida em 1977. Esta sua segunda obra centra-se nas vidas de um pai viúvo e as suas três filhas: a mais velha, Chizuru, que regressou a casa depois da morte do marido, a do meio, Ayako, que já se pode casar mas se deixa ficar em casa com o pai, e a mais nova, Setsuko, que se quer mudar para a capital. 

Baseado num guião original de Yasujiro Ozu oferecido a Tanaka, e adaptado por Ryosuke Saito, o filme conta com as participações de Chishū Ryū, Shūji Sano, Hisako Yamane, Yōko Sugi, Mie Kitahara, Shōji Yasui, Ko Mishima e a própria Kinuyo Tanaka no papel de Yoneya. A longa-metragem marca ainda a estreia da jovem Shōji Yasui em cinema, nascida Masao Yomo, que adoptou o nome da sua personagem neste filme como nome artístico. 

Sobre este filme e sobre a realizadora, escreveu a crítica e programadora Maria João Madeira que “o título do filme de Kinuyo Tanaka (1909-1977), parece querer dizer que há uma lua a cintilar algures no alto. The Moon has Risen. Consta que andou apagado durante umas décadas, afastado do cânone do cinema clássico japonês que, rendido a Tanaka actriz, tardou a acolher Tanaka realizadora. Eu não acredito em estigmas mas que os há, há?” 

“O caso mais nitidamente aproximável,” continuou, “é o de Ida Lupino (1918-1995), à luz do cânone americano: um longo e reconhecido percurso de actriz e actriz de grandes realizadores, uma curta e pouco vista obra como realizadora e realizadora de grandes filmes, sensivelmente pela mesma época em que, no Japão dos anos 1950/60, Tanaka dirigia os seus ao arrepio da norma masculina.” 

Toda a obra de Kinuyo Tanaka está agora disponível em Portugal graças aos esforços da The Stone and the Plot e é portanto uma oportunidade única para a conhecer. Para a semana, no dia 28 de Novembro, o cineclube exibirá o seu terceiro filme, Para Sempre Mulher

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

domingo, 19 de novembro de 2023

Koibumi (1953) de Kinuyo Tanaka



por António Cruz Mendes

Carta de amor é um melodrama construído sobre um tema político apresentado de uma forma quase subliminar. O contexto da narrativa é o do pós-guerra. Depois dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rendeu-se e foram colocados sob a dominação dos EUA. A continuidade do Imperador apenas foi tolerada por ele ter renunciado a todos os seus poderes e, à humilhação da derrota militar e de um poder político tutelado por estrangeiros, somou-se o impacto cultural da presença americana que ameaçava as antigas tradições culturais que conferiam uma identidade própria ao orgulhoso Império do Sol Nascente. 

Recusando as transformações sociais que na sequência disso ocorreram, Yukio Mishima, o renomado autor de O Templo Dourado, suicidou-se em 1970, praticando o ritual do seppuku (mais conhecido entre nós por haraquiri), depois do falhanço de uma quixotesca tentativa de golpe de militar que teria como objectivo restaurar o antigo poder imperial. No filme de Kinuyo Tanaka, o velho Japão rebaixa-se na figura das prostitutas que se vendem aos soldados americanos e Reikichi, um soldado desmobilizado, ganha a vida escrevendo-lhe as “cartas de amor” que elas lhes dirigem para conseguirem sacar-lhes mais algum dinheiro. O seu irmão montou uma banca onde vende a American Home e outras revistas americanas em segunda mão. E é neste contexto que Reikichi, que vive só e amargurado por ter visto o seu grande amor preterido por um casamento de conveniência e depois de cinco anos de separação, finalmente reencontra a sua amada para ficar a saber que, também ela, depois de enviuvar, passou a viver dos donativos de um soldado americano de quem teve um filho. Um soldado que, diz-lhe ele, podia ter sido aquele que matou o seu marido. 

O filme resolve-se, portanto, neste conflito íntimo vivido por Reikichi, entre o seu amor por Michiko e a repugnância que lhe suscita a sua “traição”. Em paralelo, a partir de um longo flash back, conhecemos a história de Michiko, do seu amor, sempre adiado, por Rekichi e das razões que explicam as suas difíceis opções. 
 
Carta de amor é, como já se disse, o primeiro filme realizado por Kinuyo Tanaka. Porém ele denota já uma grande maturidade. As sequências do reencontro e a da separação de Reikichi e Michiko são belíssimas, e a montagem alternada da sequência final oferece-nos uma emotiva, mas sóbria e elegante conclusão. Aliás, a relação de Kinuyo Tanaka com o cinema é muito anterior à sua experiência como realizadora. Antes disso, já ela se tinha destacado como actriz e, como produtora, tinha sido responsável por vários filmes dos grandes mestres do cinema japonês, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu. Depois de Carta de Amor, realizou ainda mais cinco filmes que, agora, por feliz iniciativa da distribuidora The Stone and the Plot, foram finalmente exibidos em Portugal. De Kinuyo Tanaka, o nosso cineclube exibirá, ainda, nas duas próximas sessões, A lua ascendeu e Para sempre mulher.



segunda-feira, 13 de novembro de 2023

320ª sessão: dia 14 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Primeiro filme de Kinuyo Tanaka para ver no cineclube 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

A partir de amanhã, o foco será sobre Kinuyo Tanaka, actriz e realizadora japonesa nascida em 1909 e falecida em 1977. Como intérprete, foi mesmo uma das mais famosas actrizes do Japão e apareceu em mais de 200 filmes, trabalhando com cineastas tão importantes como Yasujiro Ozu, Hiroshi Shimizu, Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse e Akira Kurosawa. 

Foi premiada no Japão e em Berlim, ganhando o Urso de Ouro para Melhor Actriz em 1975 pela sua interpretação em Sandakan hachibanshokan bohkyo de Kei Kumai. 

Entre 1953 e 1962, Tanaka realizou seis longas-metragens, tornando-se a segunda mulher japonesa a trabalhar como realizadora depois de Tazuzo Sakane, que fez quinze filmes durante os anos trinta e quarenta, conhecendo-se apenas o paradeiro de um deles, Kaitaku no Hanayome, um filme de propaganda produzido pelos estúdios Manchukuo em 1943. 

Distribuída recentemente pela The Stone and the Plot, toda a obra de Kinuyo Tanaka está agora disponível em Portugal. Dos seis filmes da realizadora, o cineclube exibirá, para já, apenas os primeiros três: Carta de Amor amanhã à noite, A Lua Ascendeu no dia 21 e Para Sempre Mulher no dia 28. 

Carta de Amor é a adaptação de um romance de Fumio Niwa, que escreveu o guião com Keisuke Kinoshita, sobre um homem que cinco anos depois do final da Segunda Guerra consegue um emprego a traduzir cartas de amor de prostitutas japonesas dirigidas a soldados americanos. 

Num texto para o projecto Sala de Projecção, precisamente sobre a obra de Tanaka, Maria João Madeira descreveu Carta de Amor como um filme “em que se reflectem as feridas do pós-guerra numa sociedade que prosseguia brutal no olhar que lançava às mulheres. A essa brutalidade responde um grande plano da personagem interpretada por Yoshiko Kuga, já perto do fim, que tem de ser visto para que se sinta o acossamento, a dor, a incredulidade, a recusa de mais palavras, a convulsão e a contenção.” 

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Le fantôme de la liberté (1974) de Luis Buñuel



por Luis Buñuel

Este novo título, já presente numa frase de A Via Láctea (“a vossa liberdade não passa de um fantasma”), pretendia ser uma discreta homenagem a Karl Marx, àquele “espectro que percorre a Europa e se chama o comunismo”, no início do Manifesto. A liberdade, que na primeira cena do filme é uma liberdade política e social (esta cena é baseada em acontecimento reais, o povo espanhol gritava de facto “Viva os grilhões” a favor do regresso dos Bourbons, por ódio às ideias liberais introduzidas por Napoleão), essa liberdade adquire rapidamente um novo sentido, a liberdade do artista e do criador, tão ilusória quanto a anterior. 

O filme, muito ambicioso, difícil de escrever e de realizar, foi algo frustrante. Inevitavelmente, alguns episódios são melhores que outros. Mas não deixa de ser um dos filmes que fiz que prefiro. A sua dinâmica é interessante, gosto da cena de amor no quarto da estalagem entre a tia e o sobrinho, também gosto da busca da rapariga que se perdeu (uma ideia que tinha há muito tempo), a visita dos dois comandantes da polícia ao cemitério, uma longínqua recordação do Sacramental de San Martín, e o final no jardim zoológico, aquele olhar insistente da avestruz que parece ter pestanas falsas. 

Hoje, quando penso nisto, creio que A Via Láctea, O Charme Discreto da Burguesia e O Fantasma da Liberdade, todos nascidos de um argumento original, forma uma espécie de trilogia, ou melhor, de tríptico, como na Idade Média. Encontram-se nos três filmes os mesmos temas, por vezes até as mesmas frases. Falam da procura da verdade, da qual há que fugir assim que pensamos tê-la encontrado, do implacável ritual social. Falam da indispensável busca, do acaso, da moral pessoal, do mistério que há que respeitar. 
 
A título de pormenor, indico que os quatro espanhóis que fuzilam os franceses no princípio do filme são José Luis Barros (o mais alto), Serge Silberman (com uma faixa sobre a testa), José Bergamín em pessoa, de padre, e eu próprio, escondido debaixo da barba e da sotaina de um frade.

in «O meu último suspiro», Edições Fenda, Lisboa, 2006.



terça-feira, 7 de novembro de 2023

319ª sessão: dia 07 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Escritor Manuel da Silva Ramos em Braga com novo livro 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

Assim, no dia 7 de Novembro, terça-feira, apresentar-se-á o livro A Mulher do periquito e outras estórias, de Manuel da Silva Ramos, na livraria 100ª Página às 18h30, com as presenças do autor e de António Ferreira, promotor dos programas “Livros com Rum” e “Leitura em Dia”, difundidos semanalmente pela RUM - Rádio Universitária do Minho. 

Ainda no dia 7 às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Silva Ramos apresentará o filme escolhido por si para esta ocasião, O Fantasma da Liberdade de Luis Buñuel, conversando depois com o público sobre o filme e o mítico realizador espanhol. Esta obra é a penúltima longa-metragem de Buñuel, contando com interpretações de Michel Piccoli e Monica Vitti. 

“O acaso controla tudo,” escreveu Buñuel na sua auto-biografia, O Meu Último Suspiro, publicada entre nós pela editora Fenda em 2006. “A necessidade, que está longe de ter a mesma pureza, só aparece mais tarde. Se tenho uma fraqueza por algum dos meus filmes, é por O Fantasma da Liberdade, porque tenta precisamente trabalhar este tema.” 

“Fantasiei muitas vezes com o meu argumento ideal,” continua o realizador, “que começaria num momento perfeitamente banal—um pedinte a atravessar a rua, por exemplo. Ele vê uma mão a surgir da porta aberta de um carro luxuoso e a atirar um charuto Havana meio fumado para a rua. O pedinte pára de repente para apanhar o charuto, há outro carro que o atinge, e ele morre imediatamente.” 

“A partir deste acidente único,” propõe por fim Buñuel, “surge uma série infindável de perguntas: O que é que o pedinte estava a fazer na rua àquela hora? Porque é que o homem a fumar o charuto o deitou fora nesse preciso momento? As respostas a perguntas como estas provocam outras perguntas, assim como tantas vezes nos encontramos perante encruzilhadas complicadas que levam a outras encruzilhadas, até labirintos cada vez mais fantásticos.” 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até logo!

A Ilha dos Amores (1982) de Paulo Rocha



por Joaquim Simões

Numa entrevista de 1998, Paulo Rocha diz que A Ilha dos Amores “é uma espécie de longo gráfico das várias tentações e zangas que eu tive com temas chineses, macaístas, japoneses de várias cores e feitios, lisboetas e europeus, (...) a ideia de fazer um poema com todas as línguas, o conceito de colagem onde estivessem todas as civilizações.” 

A estrutura desta portentosa obra fílmica possui na base uma estrutura organizada em cantos que é facilmente associada a Os Lusíadas, embora, na verdade, esta divisão seja uma herança do autor de uma das mais antigas obras da literatura oriental, as Nove Canções de Chu Yuan (340 a. C. – 278 a. C.). Este poeta exerceu o cargo de primeiro-ministro numa região e num contexto administrativo que viria, com outros estados, a formar a futura China. Desterrado para o Sul, Chu Yuan recolheu entre as populações primitivas que ali viviam um conjunto de canções xamanísticas que reescreveu de uma forma erudita. Quando Paulo Rocha descobriu esta figura maior da identidade chinesa, assim como a articulação das matérias subjacentes ao poema referido, encontrou nas referidas canções a solução para dar corpo e alma e, como ele disse, a “forma e o fundo” a um projeto que inicialmente seguia um rumo muito mais próximo da narrativa clássica. 

Não obstante o realizador privilegiar a construção de um filme mosaico, há um fio condutor que não afastou o lado mais prosaico, embora reinterpretado, da vida e do percurso existencial do homem, o escritor e oficial da marinha de guerra Wenceslau de Moraes (interpretado no filme por Luís Miguel Cintra). Português, nascido em Lisboa a 30 de Maio de 1854 e falecido em circunstâncias misteriosas no Japão (suicídio, assassínio, acidente?) a 1 de Julho de 1929. No seguimento de uma série de contrariedades pessoais e desiludido com a política nacional, sobretudo a crise gerada pelo controverso episódio do Mapa Cor-de-Rosa, abandonou Portugal para rumar a Macau nos finais do Século XIX. 
 
Em Macau viveu com uma mulher chinesa, Atchan e estabeleceu amizade com o poeta Camilo Pessanha (no filme interpretado pelo próprio Paulo Rocha). Foi, no entanto, no Japão, que o escritor encontrou a “arte de viver” que o encantou e o fez deixar novamente o passado em busca de uma nova vida. No Japão Wenceslau conheceu e viu morrer duas mulheres, O-Yoné e a sobrinha desta, Ko-Haru. 

A morte é uma presença constante e fantasmagórica neste filme. Como, a dada altura é dito, “O encontro é o início da separação”. Também a vida é o início da morte. Nos últimos anos Wenceslau viveu mergulhado numa profunda e amarga solidão. O próprio escritor diz, numa carta enviada ao amigo Dias Branco: “Vivo de lembranças do passado. Mas o passado parece-me já um sonho, uma coisa que nunca teve realidade. Do futuro não falo, o futuro é para mim a morte e mais nada.”