quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Remember the Night (1939) de Mitchell Leisen



por João Palhares

James Mitchell Leisen nasceu em Menominee, no Michigan, a 6 de Outubro de 1898. O cinema já nos faz recuar dois séculos para ir ao seu encontro nas telas que improvisamos durante a semana, já passou por tanto que não temos outra hipótese senão rever constantemente quais serão os seus altos e baixos, os seus apogeus e os seus períodos negros, as suas revoluções e os seus recuos impostos e reduzidos a padrões e convenções. A história desta arte nunca estará terminada, e a sua novidade também não, portanto talvez até nem faça sentido procurá-la em salas IMAX e ATMOS nos últimos filmes de Ridley Scott ou Eli Roth, mas antes nos filmes nunca vistos de Servando González, Charles F. Haas, William Castle, Roy Huggins, Sidney Salkow, James Edward Grant, Joseph M. Newman, Joseph Anthony, Edward Dein, Dorothy Arzner, John Berry, Frederick de Cordova, Joseph Lerner, Clarence Brown, Richard Carlson, Cy Endfield, Anatole Litvak, Jesse Hibbs, Harry Keller, William Witney, John English, Edward H. Griffith, Tay Garnett, John Cromwell, Erle C. Kenton, Frank Lloyd… ou Mitchell Leisen. 
 
“A teoria dos autores deixa-nos, como qualquer teoria, com possibilidades e questões,” escreveu Peter Wollen em 1969[1]. “Precisamos de desenvolver muito mais uma teoria de performance, da estilística, de modos graduais em vez de modos codificados de comunicação. Precisamos de investigar e definir, construir criticamente a obra de um enorme número de realizadores que até agora só foram compreendidos de forma incompleta. Precisamos de iniciar a tarefa de comparar autor com autor. Há vários problemas específicos que se destacam: a relação de Donen com Kelly e Arthur Freed, os filmes de Boetticher fora do ciclo Ranown, a relação de Welles com Toland (e - talvez mais importante - a de Wyler), os filmes de Sirk fora do ciclo Ross Hunter, a identidade exacta de Walsh e Wellman, a decifração de Anthony Mann. Para além disso, não há razão para que a teoria dos autores não seja aplicada ao cinema inglês, que ainda é totalmente amorfo, não classificado, despercebido. Não precisamos de dois ou três livros sobre Hitchcock e Ford, mas muitos, muitos mais. Precisamos de comparações com autores das outras artes: Ford com Fenimore Cooper, por exemplo, ou Hawks com Faulkner. O trabalho levado a cabo pelos críticos dos Cahiers du cinéma ainda está longe de estar terminado.” 
 
Reitere-se. Pela enésima vez. Não há indústria como a norte-americana na primeira metade do século XX. A fábrica dos sonhos de Hollywood que recebeu todo o talento alemão, austríaco, húngaro, italiano, russo, sueco, dinamarquês, turco, francês, inglês, chinês, mexicano, irlandês, argentino, ucraniano, polaco ou canadiano que lhe bateu à porta; onde o produto final não era decidido previamente em comité, mas batalhado e disputado e discutido durante a escrita, a rodagem e a montagem entre os orgulhos feridos e os receios de insucesso de inúmeros realizadores, actores, produtores e argumentistas, tornando às vezes muito difícil discernir a autoria de um filme, mas concedendo também à empreitada e ao resultado um fulgor apaixonante; onde a adopção de táticas de defesa como sair do estúdio, filmar uma cena sem cortes e sem cobertura ou salvaguardas (grandes planos, campo-contra-campo), aguentar um olhar ou mudar o registo na recitação de um diálogo, era tudo uma forma de garantir que o trabalho realizado não era modificado na montagem ou censurado antes da estreia, mas também estabeleceu a descoberta de uma forma de arte a que se chamou cinema, com os seus próprios códigos, e a descoberta de um criador a que os Cahiers du Cinéma chamaram autor, o cineasta; e onde um jovem bissexual se podia perder sem grandes sonhos ou ideia de vocação e ir jantar com uns amigos que o apresentam a uma realizadora de cinema e a uma argumentista que o põe a trabalhar como figurinista com Cecil B. DeMille. 
 
“A câmara não tem ouvidos,” disse DeMille a Mitchell Leisen, “se o quiseres dizer tens de o pôr na tela.”[2] E ele pôs isso em prática, por exemplo, deixando uma placa com o nome de uma cidade em cima do enquadramento quando chega um comboio da direita e de repente deixa de se estar em terra de nenhures, compondo e distribuindo uma multidão de trezentas pessoas a um braço de distância umas das outras e fazendo passar a ideia em perspectiva de que estão apinhadas e são milhares, pintando serapilheira e criando tapeçarias mais realistas do que relíquias de outrora guardadas em museus e até emprestadas à produção, fazendo uma panorâmica vertical em vez de uma panorâmica horizontal para mostrar a assistência de uma arena e evitar assim mostrar os lugares que não conseguiu preencher com figurantes, ou criando um cortinado de vinte e dois metros de altura para pendurar no topo de um cenário e ocultar o escorrega que possibilita a descida grandiosa de um famoso actor, Douglas Fairbanks de seu nome. E foi aprendendo sobre lentes e distâncias focais e que, quanto maiores forem, menos profundidade de campo se tem na imagem, percebendo que para fazer intuir uma pequena dissonância no plano se pode introduzir uma idosa que sabemos rancorosa a abrir e a fechar uma cortina em segundo plano para ver a filha a chorar aos ombros de um homem que acabou de conhecer. A imagem abre-nos um mundo e um passado que só podemos imaginar ter sido terrível, sem saber até que ponto. E descobriu finalmente que é possível acrescentar camadas melancólicas e sombrias numa comédia com um plano longo em silhueta de amantes preocupados com o futuro, que parece saído de um filme negro, por cima das Cataratas do Niágara. 
 
Lembra-te Daquela Noite é sobre uma ladra, interpretada pela grande Barbara Stanwyck, que é apanhada em flagrante a roubar uma jóia pouco antes do Natal. O advogado dela disserta a dada altura sobre consumismo e tácticas de venda que se aproximam do hipnotismo e que envolvem compras a prestações baratíssimas e empréstimos de produtos sem compromissos, ou assim nos dizem e assim nos apanham. O advogado da acusação paga a fiança e o jantar à ré e são os dois vistos pelo juiz que preside o caso num restaurante, antes de se fazerem ambos à estrada e acabarem perdidos durante a noite no terreno de um homem tacanho que acha que casar é o mínimo que um homem pode fazer. Implicações em barda, para quem tem mentes como um esgoto, e sem sequer chegarmos às casas e às mães de Stanwyck e Fred MacMurray. Dizem-nos que a lei muitas vezes é aplicada sobre equívocos e portanto é preciso ripostar e tentar arranjar uma saída, mas também que é possível exercer a lei com um afinco tal que todos os nossos desejos se concretizam. Discussões destas, lições destas e um final feliz “à Hollywood” atrás das grades, com todas as sombras e dúvidas certeiras de Leisen: um filme de Natal subversivo em 1939 e em 2023. Talvez muito mais em 2023 do que em 1939. Couberam-nos, como a todos os homens, maus tempos para viver.

[1] in «Signs and Meaning in the Cinema», Secker & Warburg, Londres, 1969.
[2] in «Mitchell Leisen, Hollywood Director”, de David Chierichetti, Photoventures Press, Los Angeles, 1995.



segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

324ª sessão: dia 12 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Barbara Stanwyck e Fred MacMurray amanhã à noite na BLCS 

Com o Natal mesmo à porta, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe dois filmes dedicados a esta quadra, como tem sido hábito desde a sua fundação no final do ano de 2015. 

Lembra-te Daquela Noite, realizado por Mitchell Leisen e protagonizado por Barbara Stanwyck e Fred MacMurray, é filme que se poderá ver amanhã à noite às 21h30 no auditório da BLCS. 

Baseada num guião original de Preston Sturges, esta longa-metragem descreve os infortúnios de Lee Leander, a personagem de Stanwyck, que é detida por roubar uma pulseira numa joalharia de Nova Iorque e começa a ser julgada pouco antes do Natal. 

Mitchell Leisen (1898-1972) começou como cenógrafo e figurinista em Hollywood e trabalhou com Cecil B. DeMille ou Allan Dwan, mas talvez seja mais conhecido pelas suas realizações dos anos 30, e particularmente A Morte em Férias, que foi refeito em 1998 por Martin Brest. 

No seu livro dedicado ao realizador, e abordando a questão da autoria deste filme, David Chierichetti escreve que “embora Leisen tenha alterado consideravelmente as intenções de Sturges na sua direcção de Lembra-te Daquela Noite, quase todos os diálogos no filme permanecem o trabalho de Sturges. Leisen seleccionou o que queria do guião, mas não re-escreveu nada pessoalmente.” 

“Houve pouca necessidade de revisão durante a produção,” continua ele, “e uma vez que Sturges estava no estúdio da Paramount, Leisen mandava-o sempre chamar quando era necessário escrever umas falas para colmatar lacunas graves ou acrescentar uma piada. Embora os dois homens não fossem grandes amigos pessoalmente, cada um respeitava o talento do outro. Apesar de todo o desbaste de Leisen, Sturges parece ter ficado satisfeito com Lembra-te Daquela Noite. De todos os filmes que escreveu mas não realizou para a Paramount, Easy Living e Lembra-te Daquela Noite são os únicos de que Sturges gostou o suficiente para comprar cópias em 16mm.” 

“Em última análise, Lembra-te Daquela Noite é uma obra belíssima,” conclui, “e a maior parte do crédito pertence a Leisen. Se o mesmo guião tivesse sido filmado por outro realizador ou mesmo pelo próprio Sturges, podia ser igualmente bom, mas seria certamente diferente.” 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Ma nuit chez Maud (1969) de Éric Rohmer



por Estela Cosme

Jean-Louis é um homem viajado, regressado ao seu país cheio de princípios e convicções que definem a sua vida. Sabe quem é, onde esteve e com quem. Tem o seu trabalho, o seu carro e as suas crenças. Jean-Louis é tão confiante que até declara que vai casar com uma mulher que ainda não conheceu. Qual é a probabilidade de estar certo? 
 
A determinação do protagonista parece inabalável, tal como a fé que o leva à missa aos domingos de manhã. Mas um dia por mero acaso depara-se com o seu antigo colega de liceu, Vidal, superando a mais pequena probabilidade de reencontro. Jean-Louis afirma-se como um homem de ciência, em conflito com a sua crença católica, mas isto não o impede de participar numa discussão sobre o filósofo e matemático Blaise Pascal, cuja cidade natal é precisamente aquela onde se encontram. 
 
É a "Aposta de Pascal" que incentiva a troca de ideias entre os amigos. Esta teoria resume-se à ideia que deveríamos viver com a suposição de que Deus existe pois será menos castigador se se acreditar quando ele não existe do que não crer e descobrir que Ele afinal existe. O melhor será então jogar pelo seguro e apostar na escolha menos danosa. Para Jean-Louis, essa aposta chama-se Françoise, a mulher loira e católica que vê na missa e com quem está determinado a casar. É a sua hipótese com mais futuro e esperança. 
 
Mas o seu plano é posto em causa quando acontece outro golpe de azar. Vidal convida o seu amigo ao apartamento de Maud, uma divorciada cética cuja sala de estar está mobilada com a sua cama. Os três debatem sobre filosofia e sobre Pascal e como se aplicam às suas vidas e aos seus relacionamentos. Maud rapidamente se interessa por Jean-Louis que, apesar de estar decidido a ir-se embora, é persuadido por Maud a ficar para evitar os perigos do repentino nevão. Seduzido pelo seu jogo de raciocínio e pelo seu charme, Jean-Louis hesita mas acaba por desvendar a Maud a sua duvidosa moralidade cristã, em permanente conflito com a sua vida amorosa. A noite acaba com Maud nua debaixo dos lençóis e com Jean-Louis desmascarado ao seu lado, tentado pela promessa sedutora de Maud. 
 
No dia seguinte, Jean-Louis rejeita os avanços de Maud, embora façam planos para se reunirem. Mais outro inesperado acaso o leva a conhecer finalmente Françoise nas ruas gélidas de Clermont, convidando-a a conhecerem-se. Isto não o dissuade de passar o resto do dia com Maud, apesar de saber que não é com ela que estão as suas melhores probabilidades de amor e casamento. À saída da casa de Maud, reencontra-se com Françoise mais uma vez, insistindo em salvá-la do gelo da estrada, oferecendo-lhe boleia a casa. Mais um infortúnio o impede de regressar, obrigando-o a passar mais um serão a falar da sua filosofia de vida com a mulher que deseja. Jean-Louis acaba mais uma noite noutra cama estranha, desta vez sozinho. 
 
Françoise acorda Jean-Louis na manhã seguinte, confessando o seu amor antes de ambos irem assistir à habitual missa. Françoise revela mais tarde que teve um caso com um homem casado, o que leva Jean-Louis a partilhar o seu próprio com uma mulher não identificada (Maud). Enquanto a neve cai sobre Clermont, iniciam a sua relação ao prometer não falar outra vez do assunto. 
 
No entanto, a sorte do destino bate à porta de novo. Passados cinco anos, Jean-Louis e Françoise encontram Maud numa praia em pleno verão, levando os ex-amantes a pôr a conversa em dia. No meio de tanta surpresa, o mais inesperado é a revelação de que as duas mulheres já se conhecem, ligadas pelo seu passado em Clermont. Maud, sempre tentadora, despede-se mas promete o reencontro quando passarem outros cinco anos, destinada a ser sempre a carta imprevisível no baralho de vida de Jean-Louis. 
 
Quando ele regressa à companhia de Françoise, a mulher que ele escolheu de forma tão certeira, apercebe-se também que ela está na sua vida graças à teia do destino. Apesar da íngreme probabilidade, ela própria foi a amante do ex-marido de Maud. Jean-Louis confessa que foi com Maud que esteve na noite antes de se conhecerem mas jura que é uma questão do passado, tal como o caso de Françoise, o qual ele não menciona. O casal termina na praia, levando o filho em direção ao mar. De momento não há nevão para causar mais voltas inesperadas. 
 
Por coincidência ou não, a cena final retoma o que Jean-Louis disse no seu primeiro encontro com Françoise: "a minha vida é toda ela feita de acasos." Qual é a probabilidade de ele ter acertado?



segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

323ª sessão: dia 05 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Clássico de Éric Rohmer para ver na biblioteca 
 
Com o Natal mesmo à porta, o Lucky Star – Cineclube de Braga, nas primeiras duas terças-feiras do mês de Dezembro, vai exibir dois filmes dedicados a esta quadra festiva, como tem sido hábito desde a sua fundação no final do ano de 2015. 
 
A Minha Noite em Casa de Maud, de 1969, considerado o terceiro volume dos Seis Contos Morais de Éric Rohmer apesar de ter sido rodado e estreado depois do quarto, A Coleccionadora, é o filme que se exibe amanhã à noite às 21h30 no auditório da BLCS. 
 
Nomeado para os Óscares de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Argumento Original, o filme retrata o regresso de um jovem engenheiro à cidade de Clermont-Ferrand durante a semana de Natal. Quando um amigo o encontra por acaso, convida-o para um jantar na casa de uma amiga divorciada, Maud, e durante o dia de Natal falarão os três um pouco sobre tudo, da moral à religião. 
 
Éric Rohmer nasceu em 1920 em Tulle e faleceu em Paris há treze anos. Foi cineasta, crítico de cinema, jornalista, romancista, argumentista e professor. Associado ao movimento da Nouvelle Vague, foi director dos Cahiers du Cinéma entre 1957 e 1963. 
 
Na sua biografia de 2014 sobre Rohmer, Éric Rohmer - biographie, publicada pelas Éditions Stock, Antoine de Baecque e Noël Herpe escrevem que o filme “vai-se tornar também (quem teria acreditado?) um êxito francês. O filme manter-se-á muito tempo em cartaz, e totaliza até hoje mais de um milhão de entradas. O que faz dele o maior sucesso comercial da carreira de Rohmer, tratando-se certamente da sua obra mais austera. Como é que se explica este paradoxo?” 
 
“Por seu lado,” continuam de Baecque e Herpe, “Cottrell apresenta uma resposta un bocado trivial. «Rohmer não era idiota: sabia que se escolhesse como intérpretes Françoise Fabian (que era a protegida de Pierre Lazareff), ou Marie-Christine Barrault (que era a mulher de Daniel Toscan du Plantier, na altura assistente do publicitário Bleustein-Blanchet), ia aumentar as probabilidades de o seu filme ser apoiado pela imprensa…».” 
 
“Em todo o caso,” terminam eles, “a sua mais-valia em termos de glamour. Mais a sério, parece que que os cronistas e os espectadores foram sensíveis (contra todas as expectativas) precisamente àquilo que tinha repelido os financiadores.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!