por João Palhares
James Mitchell Leisen nasceu em Menominee, no Michigan, a 6 de Outubro de 1898. O cinema já nos faz recuar dois séculos para ir ao seu encontro nas telas que improvisamos durante a semana, já passou por tanto que não temos outra hipótese senão rever constantemente quais serão os seus altos e baixos, os seus apogeus e os seus períodos negros, as suas revoluções e os seus recuos impostos e reduzidos a padrões e convenções. A história desta arte nunca estará terminada, e a sua novidade também não, portanto talvez até nem faça sentido procurá-la em salas IMAX e ATMOS nos últimos filmes de Ridley Scott ou Eli Roth, mas antes nos filmes nunca vistos de Servando González, Charles F. Haas, William Castle, Roy Huggins, Sidney Salkow, James Edward Grant, Joseph M. Newman, Joseph Anthony, Edward Dein, Dorothy Arzner, John Berry, Frederick de Cordova, Joseph Lerner, Clarence Brown, Richard Carlson, Cy Endfield, Anatole Litvak, Jesse Hibbs, Harry Keller, William Witney, John English, Edward H. Griffith, Tay Garnett, John Cromwell, Erle C. Kenton, Frank Lloyd… ou Mitchell Leisen.
“A teoria dos autores deixa-nos, como qualquer teoria, com possibilidades e questões,” escreveu Peter Wollen em 1969[1]. “Precisamos de desenvolver muito mais uma teoria de performance, da estilística, de modos graduais em vez de modos codificados de comunicação. Precisamos de investigar e definir, construir criticamente a obra de um enorme número de realizadores que até agora só foram compreendidos de forma incompleta. Precisamos de iniciar a tarefa de comparar autor com autor. Há vários problemas específicos que se destacam: a relação de Donen com Kelly e Arthur Freed, os filmes de Boetticher fora do ciclo Ranown, a relação de Welles com Toland (e - talvez mais importante - a de Wyler), os filmes de Sirk fora do ciclo Ross Hunter, a identidade exacta de Walsh e Wellman, a decifração de Anthony Mann. Para além disso, não há razão para que a teoria dos autores não seja aplicada ao cinema inglês, que ainda é totalmente amorfo, não classificado, despercebido. Não precisamos de dois ou três livros sobre Hitchcock e Ford, mas muitos, muitos mais. Precisamos de comparações com autores das outras artes: Ford com Fenimore Cooper, por exemplo, ou Hawks com Faulkner. O trabalho levado a cabo pelos críticos dos Cahiers du cinéma ainda está longe de estar terminado.”
Reitere-se. Pela enésima vez. Não há indústria como a norte-americana na primeira metade do século XX. A fábrica dos sonhos de Hollywood que recebeu todo o talento alemão, austríaco, húngaro, italiano, russo, sueco, dinamarquês, turco, francês, inglês, chinês, mexicano, irlandês, argentino, ucraniano, polaco ou canadiano que lhe bateu à porta; onde o produto final não era decidido previamente em comité, mas batalhado e disputado e discutido durante a escrita, a rodagem e a montagem entre os orgulhos feridos e os receios de insucesso de inúmeros realizadores, actores, produtores e argumentistas, tornando às vezes muito difícil discernir a autoria de um filme, mas concedendo também à empreitada e ao resultado um fulgor apaixonante; onde a adopção de táticas de defesa como sair do estúdio, filmar uma cena sem cortes e sem cobertura ou salvaguardas (grandes planos, campo-contra-campo), aguentar um olhar ou mudar o registo na recitação de um diálogo, era tudo uma forma de garantir que o trabalho realizado não era modificado na montagem ou censurado antes da estreia, mas também estabeleceu a descoberta de uma forma de arte a que se chamou cinema, com os seus próprios códigos, e a descoberta de um criador a que os Cahiers du Cinéma chamaram autor, o cineasta; e onde um jovem bissexual se podia perder sem grandes sonhos ou ideia de vocação e ir jantar com uns amigos que o apresentam a uma realizadora de cinema e a uma argumentista que o põe a trabalhar como figurinista com Cecil B. DeMille.
“A câmara não tem ouvidos,” disse DeMille a Mitchell Leisen, “se o quiseres dizer tens de o pôr na tela.”[2] E ele pôs isso em prática, por exemplo, deixando uma placa com o nome de uma cidade em cima do enquadramento quando chega um comboio da direita e de repente deixa de se estar em terra de nenhures, compondo e distribuindo uma multidão de trezentas pessoas a um braço de distância umas das outras e fazendo passar a ideia em perspectiva de que estão apinhadas e são milhares, pintando serapilheira e criando tapeçarias mais realistas do que relíquias de outrora guardadas em museus e até emprestadas à produção, fazendo uma panorâmica vertical em vez de uma panorâmica horizontal para mostrar a assistência de uma arena e evitar assim mostrar os lugares que não conseguiu preencher com figurantes, ou criando um cortinado de vinte e dois metros de altura para pendurar no topo de um cenário e ocultar o escorrega que possibilita a descida grandiosa de um famoso actor, Douglas Fairbanks de seu nome. E foi aprendendo sobre lentes e distâncias focais e que, quanto maiores forem, menos profundidade de campo se tem na imagem, percebendo que para fazer intuir uma pequena dissonância no plano se pode introduzir uma idosa que sabemos rancorosa a abrir e a fechar uma cortina em segundo plano para ver a filha a chorar aos ombros de um homem que acabou de conhecer. A imagem abre-nos um mundo e um passado que só podemos imaginar ter sido terrível, sem saber até que ponto. E descobriu finalmente que é possível acrescentar camadas melancólicas e sombrias numa comédia com um plano longo em silhueta de amantes preocupados com o futuro, que parece saído de um filme negro, por cima das Cataratas do Niágara.
Lembra-te Daquela Noite é sobre uma ladra, interpretada pela grande Barbara Stanwyck, que é apanhada em flagrante a roubar uma jóia pouco antes do Natal. O advogado dela disserta a dada altura sobre consumismo e tácticas de venda que se aproximam do hipnotismo e que envolvem compras a prestações baratíssimas e empréstimos de produtos sem compromissos, ou assim nos dizem e assim nos apanham. O advogado da acusação paga a fiança e o jantar à ré e são os dois vistos pelo juiz que preside o caso num restaurante, antes de se fazerem ambos à estrada e acabarem perdidos durante a noite no terreno de um homem tacanho que acha que casar é o mínimo que um homem pode fazer. Implicações em barda, para quem tem mentes como um esgoto, e sem sequer chegarmos às casas e às mães de Stanwyck e Fred MacMurray. Dizem-nos que a lei muitas vezes é aplicada sobre equívocos e portanto é preciso ripostar e tentar arranjar uma saída, mas também que é possível exercer a lei com um afinco tal que todos os nossos desejos se concretizam. Discussões destas, lições destas e um final feliz “à Hollywood” atrás das grades, com todas as sombras e dúvidas certeiras de Leisen: um filme de Natal subversivo em 1939 e em 2023. Talvez muito mais em 2023 do que em 1939. Couberam-nos, como a todos os homens, maus tempos para viver.
[1] in «Signs and Meaning in the Cinema», Secker & Warburg, Londres, 1969.
[2] in «Mitchell Leisen, Hollywood Director”, de David Chierichetti, Photoventures Press, Los Angeles, 1995.