quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Remember the Night (1939) de Mitchell Leisen



por João Palhares

James Mitchell Leisen nasceu em Menominee, no Michigan, a 6 de Outubro de 1898. O cinema já nos faz recuar dois séculos para ir ao seu encontro nas telas que improvisamos durante a semana, já passou por tanto que não temos outra hipótese senão rever constantemente quais serão os seus altos e baixos, os seus apogeus e os seus períodos negros, as suas revoluções e os seus recuos impostos e reduzidos a padrões e convenções. A história desta arte nunca estará terminada, e a sua novidade também não, portanto talvez até nem faça sentido procurá-la em salas IMAX e ATMOS nos últimos filmes de Ridley Scott ou Eli Roth, mas antes nos filmes nunca vistos de Servando González, Charles F. Haas, William Castle, Roy Huggins, Sidney Salkow, James Edward Grant, Joseph M. Newman, Joseph Anthony, Edward Dein, Dorothy Arzner, John Berry, Frederick de Cordova, Joseph Lerner, Clarence Brown, Richard Carlson, Cy Endfield, Anatole Litvak, Jesse Hibbs, Harry Keller, William Witney, John English, Edward H. Griffith, Tay Garnett, John Cromwell, Erle C. Kenton, Frank Lloyd… ou Mitchell Leisen. 
 
“A teoria dos autores deixa-nos, como qualquer teoria, com possibilidades e questões,” escreveu Peter Wollen em 1969[1]. “Precisamos de desenvolver muito mais uma teoria de performance, da estilística, de modos graduais em vez de modos codificados de comunicação. Precisamos de investigar e definir, construir criticamente a obra de um enorme número de realizadores que até agora só foram compreendidos de forma incompleta. Precisamos de iniciar a tarefa de comparar autor com autor. Há vários problemas específicos que se destacam: a relação de Donen com Kelly e Arthur Freed, os filmes de Boetticher fora do ciclo Ranown, a relação de Welles com Toland (e - talvez mais importante - a de Wyler), os filmes de Sirk fora do ciclo Ross Hunter, a identidade exacta de Walsh e Wellman, a decifração de Anthony Mann. Para além disso, não há razão para que a teoria dos autores não seja aplicada ao cinema inglês, que ainda é totalmente amorfo, não classificado, despercebido. Não precisamos de dois ou três livros sobre Hitchcock e Ford, mas muitos, muitos mais. Precisamos de comparações com autores das outras artes: Ford com Fenimore Cooper, por exemplo, ou Hawks com Faulkner. O trabalho levado a cabo pelos críticos dos Cahiers du cinéma ainda está longe de estar terminado.” 
 
Reitere-se. Pela enésima vez. Não há indústria como a norte-americana na primeira metade do século XX. A fábrica dos sonhos de Hollywood que recebeu todo o talento alemão, austríaco, húngaro, italiano, russo, sueco, dinamarquês, turco, francês, inglês, chinês, mexicano, irlandês, argentino, ucraniano, polaco ou canadiano que lhe bateu à porta; onde o produto final não era decidido previamente em comité, mas batalhado e disputado e discutido durante a escrita, a rodagem e a montagem entre os orgulhos feridos e os receios de insucesso de inúmeros realizadores, actores, produtores e argumentistas, tornando às vezes muito difícil discernir a autoria de um filme, mas concedendo também à empreitada e ao resultado um fulgor apaixonante; onde a adopção de táticas de defesa como sair do estúdio, filmar uma cena sem cortes e sem cobertura ou salvaguardas (grandes planos, campo-contra-campo), aguentar um olhar ou mudar o registo na recitação de um diálogo, era tudo uma forma de garantir que o trabalho realizado não era modificado na montagem ou censurado antes da estreia, mas também estabeleceu a descoberta de uma forma de arte a que se chamou cinema, com os seus próprios códigos, e a descoberta de um criador a que os Cahiers du Cinéma chamaram autor, o cineasta; e onde um jovem bissexual se podia perder sem grandes sonhos ou ideia de vocação e ir jantar com uns amigos que o apresentam a uma realizadora de cinema e a uma argumentista que o põe a trabalhar como figurinista com Cecil B. DeMille. 
 
“A câmara não tem ouvidos,” disse DeMille a Mitchell Leisen, “se o quiseres dizer tens de o pôr na tela.”[2] E ele pôs isso em prática, por exemplo, deixando uma placa com o nome de uma cidade em cima do enquadramento quando chega um comboio da direita e de repente deixa de se estar em terra de nenhures, compondo e distribuindo uma multidão de trezentas pessoas a um braço de distância umas das outras e fazendo passar a ideia em perspectiva de que estão apinhadas e são milhares, pintando serapilheira e criando tapeçarias mais realistas do que relíquias de outrora guardadas em museus e até emprestadas à produção, fazendo uma panorâmica vertical em vez de uma panorâmica horizontal para mostrar a assistência de uma arena e evitar assim mostrar os lugares que não conseguiu preencher com figurantes, ou criando um cortinado de vinte e dois metros de altura para pendurar no topo de um cenário e ocultar o escorrega que possibilita a descida grandiosa de um famoso actor, Douglas Fairbanks de seu nome. E foi aprendendo sobre lentes e distâncias focais e que, quanto maiores forem, menos profundidade de campo se tem na imagem, percebendo que para fazer intuir uma pequena dissonância no plano se pode introduzir uma idosa que sabemos rancorosa a abrir e a fechar uma cortina em segundo plano para ver a filha a chorar aos ombros de um homem que acabou de conhecer. A imagem abre-nos um mundo e um passado que só podemos imaginar ter sido terrível, sem saber até que ponto. E descobriu finalmente que é possível acrescentar camadas melancólicas e sombrias numa comédia com um plano longo em silhueta de amantes preocupados com o futuro, que parece saído de um filme negro, por cima das Cataratas do Niágara. 
 
Lembra-te Daquela Noite é sobre uma ladra, interpretada pela grande Barbara Stanwyck, que é apanhada em flagrante a roubar uma jóia pouco antes do Natal. O advogado dela disserta a dada altura sobre consumismo e tácticas de venda que se aproximam do hipnotismo e que envolvem compras a prestações baratíssimas e empréstimos de produtos sem compromissos, ou assim nos dizem e assim nos apanham. O advogado da acusação paga a fiança e o jantar à ré e são os dois vistos pelo juiz que preside o caso num restaurante, antes de se fazerem ambos à estrada e acabarem perdidos durante a noite no terreno de um homem tacanho que acha que casar é o mínimo que um homem pode fazer. Implicações em barda, para quem tem mentes como um esgoto, e sem sequer chegarmos às casas e às mães de Stanwyck e Fred MacMurray. Dizem-nos que a lei muitas vezes é aplicada sobre equívocos e portanto é preciso ripostar e tentar arranjar uma saída, mas também que é possível exercer a lei com um afinco tal que todos os nossos desejos se concretizam. Discussões destas, lições destas e um final feliz “à Hollywood” atrás das grades, com todas as sombras e dúvidas certeiras de Leisen: um filme de Natal subversivo em 1939 e em 2023. Talvez muito mais em 2023 do que em 1939. Couberam-nos, como a todos os homens, maus tempos para viver.

[1] in «Signs and Meaning in the Cinema», Secker & Warburg, Londres, 1969.
[2] in «Mitchell Leisen, Hollywood Director”, de David Chierichetti, Photoventures Press, Los Angeles, 1995.



segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

324ª sessão: dia 12 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Barbara Stanwyck e Fred MacMurray amanhã à noite na BLCS 

Com o Natal mesmo à porta, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe dois filmes dedicados a esta quadra, como tem sido hábito desde a sua fundação no final do ano de 2015. 

Lembra-te Daquela Noite, realizado por Mitchell Leisen e protagonizado por Barbara Stanwyck e Fred MacMurray, é filme que se poderá ver amanhã à noite às 21h30 no auditório da BLCS. 

Baseada num guião original de Preston Sturges, esta longa-metragem descreve os infortúnios de Lee Leander, a personagem de Stanwyck, que é detida por roubar uma pulseira numa joalharia de Nova Iorque e começa a ser julgada pouco antes do Natal. 

Mitchell Leisen (1898-1972) começou como cenógrafo e figurinista em Hollywood e trabalhou com Cecil B. DeMille ou Allan Dwan, mas talvez seja mais conhecido pelas suas realizações dos anos 30, e particularmente A Morte em Férias, que foi refeito em 1998 por Martin Brest. 

No seu livro dedicado ao realizador, e abordando a questão da autoria deste filme, David Chierichetti escreve que “embora Leisen tenha alterado consideravelmente as intenções de Sturges na sua direcção de Lembra-te Daquela Noite, quase todos os diálogos no filme permanecem o trabalho de Sturges. Leisen seleccionou o que queria do guião, mas não re-escreveu nada pessoalmente.” 

“Houve pouca necessidade de revisão durante a produção,” continua ele, “e uma vez que Sturges estava no estúdio da Paramount, Leisen mandava-o sempre chamar quando era necessário escrever umas falas para colmatar lacunas graves ou acrescentar uma piada. Embora os dois homens não fossem grandes amigos pessoalmente, cada um respeitava o talento do outro. Apesar de todo o desbaste de Leisen, Sturges parece ter ficado satisfeito com Lembra-te Daquela Noite. De todos os filmes que escreveu mas não realizou para a Paramount, Easy Living e Lembra-te Daquela Noite são os únicos de que Sturges gostou o suficiente para comprar cópias em 16mm.” 

“Em última análise, Lembra-te Daquela Noite é uma obra belíssima,” conclui, “e a maior parte do crédito pertence a Leisen. Se o mesmo guião tivesse sido filmado por outro realizador ou mesmo pelo próprio Sturges, podia ser igualmente bom, mas seria certamente diferente.” 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Ma nuit chez Maud (1969) de Éric Rohmer



por Estela Cosme

Jean-Louis é um homem viajado, regressado ao seu país cheio de princípios e convicções que definem a sua vida. Sabe quem é, onde esteve e com quem. Tem o seu trabalho, o seu carro e as suas crenças. Jean-Louis é tão confiante que até declara que vai casar com uma mulher que ainda não conheceu. Qual é a probabilidade de estar certo? 
 
A determinação do protagonista parece inabalável, tal como a fé que o leva à missa aos domingos de manhã. Mas um dia por mero acaso depara-se com o seu antigo colega de liceu, Vidal, superando a mais pequena probabilidade de reencontro. Jean-Louis afirma-se como um homem de ciência, em conflito com a sua crença católica, mas isto não o impede de participar numa discussão sobre o filósofo e matemático Blaise Pascal, cuja cidade natal é precisamente aquela onde se encontram. 
 
É a "Aposta de Pascal" que incentiva a troca de ideias entre os amigos. Esta teoria resume-se à ideia que deveríamos viver com a suposição de que Deus existe pois será menos castigador se se acreditar quando ele não existe do que não crer e descobrir que Ele afinal existe. O melhor será então jogar pelo seguro e apostar na escolha menos danosa. Para Jean-Louis, essa aposta chama-se Françoise, a mulher loira e católica que vê na missa e com quem está determinado a casar. É a sua hipótese com mais futuro e esperança. 
 
Mas o seu plano é posto em causa quando acontece outro golpe de azar. Vidal convida o seu amigo ao apartamento de Maud, uma divorciada cética cuja sala de estar está mobilada com a sua cama. Os três debatem sobre filosofia e sobre Pascal e como se aplicam às suas vidas e aos seus relacionamentos. Maud rapidamente se interessa por Jean-Louis que, apesar de estar decidido a ir-se embora, é persuadido por Maud a ficar para evitar os perigos do repentino nevão. Seduzido pelo seu jogo de raciocínio e pelo seu charme, Jean-Louis hesita mas acaba por desvendar a Maud a sua duvidosa moralidade cristã, em permanente conflito com a sua vida amorosa. A noite acaba com Maud nua debaixo dos lençóis e com Jean-Louis desmascarado ao seu lado, tentado pela promessa sedutora de Maud. 
 
No dia seguinte, Jean-Louis rejeita os avanços de Maud, embora façam planos para se reunirem. Mais outro inesperado acaso o leva a conhecer finalmente Françoise nas ruas gélidas de Clermont, convidando-a a conhecerem-se. Isto não o dissuade de passar o resto do dia com Maud, apesar de saber que não é com ela que estão as suas melhores probabilidades de amor e casamento. À saída da casa de Maud, reencontra-se com Françoise mais uma vez, insistindo em salvá-la do gelo da estrada, oferecendo-lhe boleia a casa. Mais um infortúnio o impede de regressar, obrigando-o a passar mais um serão a falar da sua filosofia de vida com a mulher que deseja. Jean-Louis acaba mais uma noite noutra cama estranha, desta vez sozinho. 
 
Françoise acorda Jean-Louis na manhã seguinte, confessando o seu amor antes de ambos irem assistir à habitual missa. Françoise revela mais tarde que teve um caso com um homem casado, o que leva Jean-Louis a partilhar o seu próprio com uma mulher não identificada (Maud). Enquanto a neve cai sobre Clermont, iniciam a sua relação ao prometer não falar outra vez do assunto. 
 
No entanto, a sorte do destino bate à porta de novo. Passados cinco anos, Jean-Louis e Françoise encontram Maud numa praia em pleno verão, levando os ex-amantes a pôr a conversa em dia. No meio de tanta surpresa, o mais inesperado é a revelação de que as duas mulheres já se conhecem, ligadas pelo seu passado em Clermont. Maud, sempre tentadora, despede-se mas promete o reencontro quando passarem outros cinco anos, destinada a ser sempre a carta imprevisível no baralho de vida de Jean-Louis. 
 
Quando ele regressa à companhia de Françoise, a mulher que ele escolheu de forma tão certeira, apercebe-se também que ela está na sua vida graças à teia do destino. Apesar da íngreme probabilidade, ela própria foi a amante do ex-marido de Maud. Jean-Louis confessa que foi com Maud que esteve na noite antes de se conhecerem mas jura que é uma questão do passado, tal como o caso de Françoise, o qual ele não menciona. O casal termina na praia, levando o filho em direção ao mar. De momento não há nevão para causar mais voltas inesperadas. 
 
Por coincidência ou não, a cena final retoma o que Jean-Louis disse no seu primeiro encontro com Françoise: "a minha vida é toda ela feita de acasos." Qual é a probabilidade de ele ter acertado?



segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

323ª sessão: dia 05 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Clássico de Éric Rohmer para ver na biblioteca 
 
Com o Natal mesmo à porta, o Lucky Star – Cineclube de Braga, nas primeiras duas terças-feiras do mês de Dezembro, vai exibir dois filmes dedicados a esta quadra festiva, como tem sido hábito desde a sua fundação no final do ano de 2015. 
 
A Minha Noite em Casa de Maud, de 1969, considerado o terceiro volume dos Seis Contos Morais de Éric Rohmer apesar de ter sido rodado e estreado depois do quarto, A Coleccionadora, é o filme que se exibe amanhã à noite às 21h30 no auditório da BLCS. 
 
Nomeado para os Óscares de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Argumento Original, o filme retrata o regresso de um jovem engenheiro à cidade de Clermont-Ferrand durante a semana de Natal. Quando um amigo o encontra por acaso, convida-o para um jantar na casa de uma amiga divorciada, Maud, e durante o dia de Natal falarão os três um pouco sobre tudo, da moral à religião. 
 
Éric Rohmer nasceu em 1920 em Tulle e faleceu em Paris há treze anos. Foi cineasta, crítico de cinema, jornalista, romancista, argumentista e professor. Associado ao movimento da Nouvelle Vague, foi director dos Cahiers du Cinéma entre 1957 e 1963. 
 
Na sua biografia de 2014 sobre Rohmer, Éric Rohmer - biographie, publicada pelas Éditions Stock, Antoine de Baecque e Noël Herpe escrevem que o filme “vai-se tornar também (quem teria acreditado?) um êxito francês. O filme manter-se-á muito tempo em cartaz, e totaliza até hoje mais de um milhão de entradas. O que faz dele o maior sucesso comercial da carreira de Rohmer, tratando-se certamente da sua obra mais austera. Como é que se explica este paradoxo?” 
 
“Por seu lado,” continuam de Baecque e Herpe, “Cottrell apresenta uma resposta un bocado trivial. «Rohmer não era idiota: sabia que se escolhesse como intérpretes Françoise Fabian (que era a protegida de Pierre Lazareff), ou Marie-Christine Barrault (que era a mulher de Daniel Toscan du Plantier, na altura assistente do publicitário Bleustein-Blanchet), ia aumentar as probabilidades de o seu filme ser apoiado pela imprensa…».” 
 
“Em todo o caso,” terminam eles, “a sua mais-valia em termos de glamour. Mais a sério, parece que que os cronistas e os espectadores foram sensíveis (contra todas as expectativas) precisamente àquilo que tinha repelido os financiadores.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Chibusa yo eien nare (1955) de Kinuyo Tanaka



por Alexandra Barros

Para que serve a poesia (e a arte em geral) e de onde vem? O que forma a nossa identidade? O que é ser mulher? O que é que nos faz felizes? Estas são questões centrais na história contada em Para sempre mulher

A mulher do título é Fumiko, personagem inspirada na poeta japonesa Fumiko Nakajo (1922-1954), nome grande da poesia tanka. Tanka é uma forma poética tradicional japonesa, caracterizada por poemas curtos, com uma estrutura específica de cinco versos e um total de 31 sílabas. Relativamente ao haiku, que é mais curto e mais focado na natureza, a poesia tanka permite uma expressão mais ampla de emoções e pensamentos pessoais. Geralmente, aborda temas como o amor, a natureza, a saudade e reflexões sobre a vida. É uma forma de poesia apreciada pela sua capacidade de transmitir, num formato conciso, sentimentos profundos e momentos emotivos. 

Para sempre mulher está povoado por diversos poemas tanka escritos por Fumiko. De acordo com a própria, descrevem realisticamente a sua história, tal como ela é. Para contar essa história Kinuyo Tanaka constrói as suas próprias “rimas” visuais e narrativas, como por exemplo: temas visuais recorrentes e pontos e contrapontos narrativos, onde cruza desvalorização e reconhecimento, prisão e liberdade, conquistas e perdas, amores e desamores. 

Ponto: Fumiko aguenta-se num casamento infeliz, por dever de respeito pelas convenções sociais. Contraponto: As suas agruras tornam-se a matéria da sua poesia. Ponto: Fumiko ama um outro poeta, Taku, mas não é correspondida. Contraponto: Taku, no entanto, admira a sua poesia e consegue que ela seja publicada numa revista reputada. Ponto: Fumiko divorcia-se. É-lhe descoberto um cancro da mama e perde os seios para se salvar. Essa perda assegura a sua liberdade, pois sabe que não sofrerá pressões para se voltar a casar. Contraponto: Por ter deixado de se sentir mulher, sente-se perdida como artista. Ponto e contraponto: Perde a vontade de escrever, na época em que vê o seu trabalho reconhecido e aclamado. Ponto e contraponto: A doença traz até si um jornalista de Tóquio que admira a sua obra, Ôtsuki. Com esse encontro, conhece finalmente a ventura de uma paixão correspondida e vive os dias mais felizes da sua vida, apesar de sentir a morte a aproximar-se velozmente. 

Recorrências, paralelismos e oposições: 
- Os triângulos
a) O triângulo das relações sentimentais de Fumiko: o marido que não ama e por quem não é amada; Taku, o amigo a quem devota o seu amor, mas perde inesperadamente, devido a morte súbita; Ôtsuki, o seu amante sem futuro, com quem inicia uma apaixonada relação quando a doença já a conduz irremediavelmente para a morte. 
b) O triângulo que “causa a doença” de Fumiko: Fumiko ama secretamente Taku, que é casado com Kinuko, sua grande amiga. 
- O espelho 
O que lhe devolve o espelho em diversos momentos do filme? O seu corpo doente; a amiga cujo lugar desejaria ocupar; o amante. 
- Conquistas e perdas 
Quando perde os seios, Fumiko conquista a liberdade para ser quem quer, mas simultaneamente é devastada pelo sentimento de perda de identidade. 
- Os banhos 
Dois banhos são preparados por Kinuko: o primeiro para o seu marido; mais tarde, prepara um segundo para a amiga, que vem a confessar ter desejado banhar-se na mesma banheira que Taku. 
- A doença 
Fumiko acredita que a doença é um castigo pelo seu amor imoral por Taku, mas é a doença que trará até si um admirador que a venera e a sua única paixão correspondida. 
- Os medicamentos 
Fumiko reprovava o marido por tomar medicamentos com efeitos danosos. Implora-os nas noites de insónia. 
- As mãos 
No hospital, Fumiko estende as mãos vazias, ansiando por comprimidos que aliviem o seu extremo sofrimento. Mais tarde, nas suas mãos sem vida é colocado um telegrama anunciando a chegada ansiada do amante. 
- O corredor 
Fumiko percorre um corredor do hospital e descobre com horror que conduz à morgue. Mais tarde, os filhos fazem o mesmo percurso acompanhando o corpo sem vida da mãe. 
- As grades 
As grades do quarto de hospital são semelhantes às grades da morgue, destino anunciado na altura em que Fumiko vive a vida mais intensamente, sentindo-se realizada como artista e como mulher. 
- Os seios 
Os seios perdidos de Fumiko são evocados pelos montes que enquadram o lago onde os filhos lançam flores em sua homenagem. 

Pelas paisagens ou estados da natureza que ecoam emoções e formas humanas, pelos poemas curtos sobre o quotidiano, pela forma como os poemas surgem sobrepostos nas cenas, e também pelo encontro do protagonista com um poeta japonês, ocorreu-me que Paterson, de Jim Jarmusch, poderá ter em Para sempre mulher uma das suas fontes de inspiração. Em todo o caso, Para sempre mulher é um filme intemporal e universal. A realização pessoal e o reconhecimento artístico, os conflitos morais, os males e bonanças do amor são temas que pertencem a qualquer tempo e lugar. Para sempre, Kinuyo Tanaka!



segunda-feira, 27 de novembro de 2023

322ª sessão: dia 28 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


“Para Sempre Mulher” esta semana no cineclube 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

Amanhã exibe-se Para Sempre Mulher, terceira longa-metragem de Kinuyo Tanaka. Este seu filme centra-se na personagem de Fumiko, interpretada por Yumeji Tsukioka, mãe de dois filhos que se separa do marido toxicodependente depois de um incidente grave e se muda para casa da mãe. Aí, dedica-se à poesia com os incentivos de um tutor que conhece num círculo de poesia. 

O guião de Para Sempre Mulher, cujo título japonês se traduz literalmente por “Os Peitos Eternos”, foi escrito por Sumie Tanaka, romancista e argumentista japonesa nascida a 11 de Abril de 1908 e que faleceu no ano 2000, conhecida sobretudo pelos guiões que escreveu para Mikio Naruse e Kinuyo Tanaka, com quem voltou a trabalhar nos anos 60 no guião de Mulheres da Noite

“Tanaka Kinuyō (1910-1977) foi uma actriz famosa,” escreveu o crítico espanhol Miguel Marías em 2006, “favorita de Mizoguchi e muito presente nas filmografias de Ozu e Naruse... e de quase todos os cineastas japoneses que fizeram cinema entre 1924 e 1976, uma vez que participou em 214 filmes. É muito menos sabido que entre 1953 e 1962 dirigiu seis filmes. Já consegui ver cinco deles até 1990, e desde então que quatro se contam entre os que mais me emocionam e admiram de tudo o que vi.” 

“Talvez o melhor seja Chibusa yo eien mare (1955),” continua ele, “que ao que parece quer dizer “Peitos eternos”; para mim é a obra cinematográfica máxima dirigida por uma mulher, e nenhuma feita por um homem me parece superior. Mas podia dizer o mesmo das duas primeiras que realizou, Carta de Amor (1953) e A Lua Ascendeu (1954/5), que nalguns dias se alternam em passar a ser a minha preferida... e quase o mesmo das três últimas. Ou seja, uma carreira de realizadora breve, mas extraordinária e além disso variada.” 

Toda a obra de Kinuyo Tanaka está agora disponível em Portugal graças aos esforços da The Stone and the Plot e é portanto uma oportunidade única para a conhecer. 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-feira!

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Tsuki wa Nabarinu (1955) de Kinuyo Tanaka



por António Cruz Mendes

Kinuyo Tanaka produziu e interpretou vários filmes de Yazujiro Ozu e a influência deste grande mestre do cinema japonês é bastante evidente nesta segunda realização de Tanaka. Podemos percebê-la, por exemplo, nos enquadramentos das cenas de interior, estudados ao pormenor, como se fossem quadros de uma pintura clássica, e filmados por uma câmara quase fixa, postada rente ao chão. Contudo, seria injusto vermos a realizadora deste belíssimo filme, simultaneamente poético e teatral, que denota já uma assinalável maturidade estética, como uma mera epígona de Ozu. 
 
Uma componente feminista será um dos seus traços distintivos. “Para mim”, diz-nos Kinuyo Tanaka, “o período da guerra (1939-45) foi como se tivéssemos caído num buraco. E para sair desse buraco, convenci-me de que seria necessário que as mulheres tomassem o comando, a começar pelo comando do cinema”. Vemos essas mulheres em Carta de Amor e vamos vê-las em A Lua Ascendeu e Para Sempre Mulher, como prostitutas, amantes ou poetisas. Vão ser elas as protagonistas dos filmes de Kinuyo Tanaka. São elas que apontam os caminhos da modernidade num Japão onde o peso de tradições ancestrais ainda se continuava a fazer sentir na condição feminina.

A própria Kinuyo Tanaka protagonizou este movimento de emancipação, particularmente a partir do momento em que decidiu afirmar-se como realizadora. 

Como actriz, tinha já uma longa carreira, onde se incluem quinze filmes sob a direcção de Mizoguchi. Entre eles, o notável Contos da Lua Vaga. Foi, aliás, depois dessa experiência que Kinuyo Tanaka decidiu experimentar passar para o outro lado da câmara, o que mereceu a oposição de outros realizadores, do seu marido e mesmo de Mizoguchi que se recusou a escrever a carta de recomendação indispensável para a sua inscrição no sindicato dos realizadores japoneses. Essa recomendação obteve-a ela de Keisuke Kinoshita, o autor de Balada de Kinoshita (1948), que também lhe cedeu o argumento para Carta de Amor. Mizoguchi, pelo contrário, mesmo depois da realização deste seu primeiro filme ter sido selecionado para a edição de 1954 do Festival de Cannes, no final da rodagem de O Intendente Sansho, quando ela lhe comunicou a sua intenção de realizar um outro, terá replicado: “Deixa-te disso. Não vale a pena”. 

O seu conselho não foi escutado. Kinuyo Tanaka obteve, então, o apoio de Ozu, que lhe ofereceu o guião de um filme que ele próprio não pôde realizar, A Lua Ascendeu, e que abordava temas que lhe eram caros: o relacionamento entre pais e filhos, o casamento e a emancipação feminina, e que Tanaka vai tratar de uma forma exemplar. 

O filme é uma comédia romântica onde as três personagens femininas personificam três diferentes atitudes face ao amor que, de certa forma, espelham diferentes atitudes políticas perceptíveis no Japão do pós-guerra. Aparentemente, Chizuru encontra-se ainda presa a uma memória passada e Ayako encerra-se no presente, adoptando uma atitude expectante. Só Setsuku toma nas suas mãos a tarefa de construir o futuro. De facto, todas elas sonham com uma nova vida, algo distante, fora de cena, que Setsuku identifica com Tóquio, contraponto de Nara, antiga capital do Japão, agora uma pequena povoação parada no tempo, onde vive com a sua família. 

Mokichi Asai é interpretado por Chishu Ryo, um dos actores favoritos de Ozu e Kinuyo Tanaka faz a figura de Chizuru. Mas, de facto, quem personifica aquele anseio de viver e de ser capaz de decidir da sua própria vida, de trilhar novos caminhos sem temer desafiar velhas convenções que podemos reconhecer na biografia da realizadora, a “mulher que toma o comando”, vencendo as hesitações dos homens aqui representados por Shôji, é Setsuku (Mie Kitahara), a mais nova das três irmãs. No final, banhado pela lua que ascende no céu, o amor triunfa e novos horizontes se abrem diante das filhas do sr. Asai.



segunda-feira, 20 de novembro de 2023

321ª sessão: dia 21 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Segunda longa-metragem de Kinuyo Tanaka no auditório da BLCS 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

Amanhã é exibido A Lua Ascendeu, da actriz e realizadora japonesa Kinuyo Tanaka, nascida em 1909 e falecida em 1977. Esta sua segunda obra centra-se nas vidas de um pai viúvo e as suas três filhas: a mais velha, Chizuru, que regressou a casa depois da morte do marido, a do meio, Ayako, que já se pode casar mas se deixa ficar em casa com o pai, e a mais nova, Setsuko, que se quer mudar para a capital. 

Baseado num guião original de Yasujiro Ozu oferecido a Tanaka, e adaptado por Ryosuke Saito, o filme conta com as participações de Chishū Ryū, Shūji Sano, Hisako Yamane, Yōko Sugi, Mie Kitahara, Shōji Yasui, Ko Mishima e a própria Kinuyo Tanaka no papel de Yoneya. A longa-metragem marca ainda a estreia da jovem Shōji Yasui em cinema, nascida Masao Yomo, que adoptou o nome da sua personagem neste filme como nome artístico. 

Sobre este filme e sobre a realizadora, escreveu a crítica e programadora Maria João Madeira que “o título do filme de Kinuyo Tanaka (1909-1977), parece querer dizer que há uma lua a cintilar algures no alto. The Moon has Risen. Consta que andou apagado durante umas décadas, afastado do cânone do cinema clássico japonês que, rendido a Tanaka actriz, tardou a acolher Tanaka realizadora. Eu não acredito em estigmas mas que os há, há?” 

“O caso mais nitidamente aproximável,” continuou, “é o de Ida Lupino (1918-1995), à luz do cânone americano: um longo e reconhecido percurso de actriz e actriz de grandes realizadores, uma curta e pouco vista obra como realizadora e realizadora de grandes filmes, sensivelmente pela mesma época em que, no Japão dos anos 1950/60, Tanaka dirigia os seus ao arrepio da norma masculina.” 

Toda a obra de Kinuyo Tanaka está agora disponível em Portugal graças aos esforços da The Stone and the Plot e é portanto uma oportunidade única para a conhecer. Para a semana, no dia 28 de Novembro, o cineclube exibirá o seu terceiro filme, Para Sempre Mulher

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

domingo, 19 de novembro de 2023

Koibumi (1953) de Kinuyo Tanaka



por António Cruz Mendes

Carta de amor é um melodrama construído sobre um tema político apresentado de uma forma quase subliminar. O contexto da narrativa é o do pós-guerra. Depois dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rendeu-se e foram colocados sob a dominação dos EUA. A continuidade do Imperador apenas foi tolerada por ele ter renunciado a todos os seus poderes e, à humilhação da derrota militar e de um poder político tutelado por estrangeiros, somou-se o impacto cultural da presença americana que ameaçava as antigas tradições culturais que conferiam uma identidade própria ao orgulhoso Império do Sol Nascente. 

Recusando as transformações sociais que na sequência disso ocorreram, Yukio Mishima, o renomado autor de O Templo Dourado, suicidou-se em 1970, praticando o ritual do seppuku (mais conhecido entre nós por haraquiri), depois do falhanço de uma quixotesca tentativa de golpe de militar que teria como objectivo restaurar o antigo poder imperial. No filme de Kinuyo Tanaka, o velho Japão rebaixa-se na figura das prostitutas que se vendem aos soldados americanos e Reikichi, um soldado desmobilizado, ganha a vida escrevendo-lhe as “cartas de amor” que elas lhes dirigem para conseguirem sacar-lhes mais algum dinheiro. O seu irmão montou uma banca onde vende a American Home e outras revistas americanas em segunda mão. E é neste contexto que Reikichi, que vive só e amargurado por ter visto o seu grande amor preterido por um casamento de conveniência e depois de cinco anos de separação, finalmente reencontra a sua amada para ficar a saber que, também ela, depois de enviuvar, passou a viver dos donativos de um soldado americano de quem teve um filho. Um soldado que, diz-lhe ele, podia ter sido aquele que matou o seu marido. 

O filme resolve-se, portanto, neste conflito íntimo vivido por Reikichi, entre o seu amor por Michiko e a repugnância que lhe suscita a sua “traição”. Em paralelo, a partir de um longo flash back, conhecemos a história de Michiko, do seu amor, sempre adiado, por Rekichi e das razões que explicam as suas difíceis opções. 
 
Carta de amor é, como já se disse, o primeiro filme realizado por Kinuyo Tanaka. Porém ele denota já uma grande maturidade. As sequências do reencontro e a da separação de Reikichi e Michiko são belíssimas, e a montagem alternada da sequência final oferece-nos uma emotiva, mas sóbria e elegante conclusão. Aliás, a relação de Kinuyo Tanaka com o cinema é muito anterior à sua experiência como realizadora. Antes disso, já ela se tinha destacado como actriz e, como produtora, tinha sido responsável por vários filmes dos grandes mestres do cinema japonês, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu. Depois de Carta de Amor, realizou ainda mais cinco filmes que, agora, por feliz iniciativa da distribuidora The Stone and the Plot, foram finalmente exibidos em Portugal. De Kinuyo Tanaka, o nosso cineclube exibirá, ainda, nas duas próximas sessões, A lua ascendeu e Para sempre mulher.



segunda-feira, 13 de novembro de 2023

320ª sessão: dia 14 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Primeiro filme de Kinuyo Tanaka para ver no cineclube 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

A partir de amanhã, o foco será sobre Kinuyo Tanaka, actriz e realizadora japonesa nascida em 1909 e falecida em 1977. Como intérprete, foi mesmo uma das mais famosas actrizes do Japão e apareceu em mais de 200 filmes, trabalhando com cineastas tão importantes como Yasujiro Ozu, Hiroshi Shimizu, Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse e Akira Kurosawa. 

Foi premiada no Japão e em Berlim, ganhando o Urso de Ouro para Melhor Actriz em 1975 pela sua interpretação em Sandakan hachibanshokan bohkyo de Kei Kumai. 

Entre 1953 e 1962, Tanaka realizou seis longas-metragens, tornando-se a segunda mulher japonesa a trabalhar como realizadora depois de Tazuzo Sakane, que fez quinze filmes durante os anos trinta e quarenta, conhecendo-se apenas o paradeiro de um deles, Kaitaku no Hanayome, um filme de propaganda produzido pelos estúdios Manchukuo em 1943. 

Distribuída recentemente pela The Stone and the Plot, toda a obra de Kinuyo Tanaka está agora disponível em Portugal. Dos seis filmes da realizadora, o cineclube exibirá, para já, apenas os primeiros três: Carta de Amor amanhã à noite, A Lua Ascendeu no dia 21 e Para Sempre Mulher no dia 28. 

Carta de Amor é a adaptação de um romance de Fumio Niwa, que escreveu o guião com Keisuke Kinoshita, sobre um homem que cinco anos depois do final da Segunda Guerra consegue um emprego a traduzir cartas de amor de prostitutas japonesas dirigidas a soldados americanos. 

Num texto para o projecto Sala de Projecção, precisamente sobre a obra de Tanaka, Maria João Madeira descreveu Carta de Amor como um filme “em que se reflectem as feridas do pós-guerra numa sociedade que prosseguia brutal no olhar que lançava às mulheres. A essa brutalidade responde um grande plano da personagem interpretada por Yoshiko Kuga, já perto do fim, que tem de ser visto para que se sinta o acossamento, a dor, a incredulidade, a recusa de mais palavras, a convulsão e a contenção.” 

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Le fantôme de la liberté (1974) de Luis Buñuel



por Luis Buñuel

Este novo título, já presente numa frase de A Via Láctea (“a vossa liberdade não passa de um fantasma”), pretendia ser uma discreta homenagem a Karl Marx, àquele “espectro que percorre a Europa e se chama o comunismo”, no início do Manifesto. A liberdade, que na primeira cena do filme é uma liberdade política e social (esta cena é baseada em acontecimento reais, o povo espanhol gritava de facto “Viva os grilhões” a favor do regresso dos Bourbons, por ódio às ideias liberais introduzidas por Napoleão), essa liberdade adquire rapidamente um novo sentido, a liberdade do artista e do criador, tão ilusória quanto a anterior. 

O filme, muito ambicioso, difícil de escrever e de realizar, foi algo frustrante. Inevitavelmente, alguns episódios são melhores que outros. Mas não deixa de ser um dos filmes que fiz que prefiro. A sua dinâmica é interessante, gosto da cena de amor no quarto da estalagem entre a tia e o sobrinho, também gosto da busca da rapariga que se perdeu (uma ideia que tinha há muito tempo), a visita dos dois comandantes da polícia ao cemitério, uma longínqua recordação do Sacramental de San Martín, e o final no jardim zoológico, aquele olhar insistente da avestruz que parece ter pestanas falsas. 

Hoje, quando penso nisto, creio que A Via Láctea, O Charme Discreto da Burguesia e O Fantasma da Liberdade, todos nascidos de um argumento original, forma uma espécie de trilogia, ou melhor, de tríptico, como na Idade Média. Encontram-se nos três filmes os mesmos temas, por vezes até as mesmas frases. Falam da procura da verdade, da qual há que fugir assim que pensamos tê-la encontrado, do implacável ritual social. Falam da indispensável busca, do acaso, da moral pessoal, do mistério que há que respeitar. 
 
A título de pormenor, indico que os quatro espanhóis que fuzilam os franceses no princípio do filme são José Luis Barros (o mais alto), Serge Silberman (com uma faixa sobre a testa), José Bergamín em pessoa, de padre, e eu próprio, escondido debaixo da barba e da sotaina de um frade.

in «O meu último suspiro», Edições Fenda, Lisboa, 2006.



terça-feira, 7 de novembro de 2023

319ª sessão: dia 07 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Escritor Manuel da Silva Ramos em Braga com novo livro 

No mês de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro filmes, iniciando o mês com um lançamento e uma carta branca ao escritor covilhanense Manuel da Silva Ramos e promovendo um pequeno ciclo de três filmes dedicado à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka. 

Assim, no dia 7 de Novembro, terça-feira, apresentar-se-á o livro A Mulher do periquito e outras estórias, de Manuel da Silva Ramos, na livraria 100ª Página às 18h30, com as presenças do autor e de António Ferreira, promotor dos programas “Livros com Rum” e “Leitura em Dia”, difundidos semanalmente pela RUM - Rádio Universitária do Minho. 

Ainda no dia 7 às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Silva Ramos apresentará o filme escolhido por si para esta ocasião, O Fantasma da Liberdade de Luis Buñuel, conversando depois com o público sobre o filme e o mítico realizador espanhol. Esta obra é a penúltima longa-metragem de Buñuel, contando com interpretações de Michel Piccoli e Monica Vitti. 

“O acaso controla tudo,” escreveu Buñuel na sua auto-biografia, O Meu Último Suspiro, publicada entre nós pela editora Fenda em 2006. “A necessidade, que está longe de ter a mesma pureza, só aparece mais tarde. Se tenho uma fraqueza por algum dos meus filmes, é por O Fantasma da Liberdade, porque tenta precisamente trabalhar este tema.” 

“Fantasiei muitas vezes com o meu argumento ideal,” continua o realizador, “que começaria num momento perfeitamente banal—um pedinte a atravessar a rua, por exemplo. Ele vê uma mão a surgir da porta aberta de um carro luxuoso e a atirar um charuto Havana meio fumado para a rua. O pedinte pára de repente para apanhar o charuto, há outro carro que o atinge, e ele morre imediatamente.” 

“A partir deste acidente único,” propõe por fim Buñuel, “surge uma série infindável de perguntas: O que é que o pedinte estava a fazer na rua àquela hora? Porque é que o homem a fumar o charuto o deitou fora nesse preciso momento? As respostas a perguntas como estas provocam outras perguntas, assim como tantas vezes nos encontramos perante encruzilhadas complicadas que levam a outras encruzilhadas, até labirintos cada vez mais fantásticos.” 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até logo!

A Ilha dos Amores (1982) de Paulo Rocha



por Joaquim Simões

Numa entrevista de 1998, Paulo Rocha diz que A Ilha dos Amores “é uma espécie de longo gráfico das várias tentações e zangas que eu tive com temas chineses, macaístas, japoneses de várias cores e feitios, lisboetas e europeus, (...) a ideia de fazer um poema com todas as línguas, o conceito de colagem onde estivessem todas as civilizações.” 

A estrutura desta portentosa obra fílmica possui na base uma estrutura organizada em cantos que é facilmente associada a Os Lusíadas, embora, na verdade, esta divisão seja uma herança do autor de uma das mais antigas obras da literatura oriental, as Nove Canções de Chu Yuan (340 a. C. – 278 a. C.). Este poeta exerceu o cargo de primeiro-ministro numa região e num contexto administrativo que viria, com outros estados, a formar a futura China. Desterrado para o Sul, Chu Yuan recolheu entre as populações primitivas que ali viviam um conjunto de canções xamanísticas que reescreveu de uma forma erudita. Quando Paulo Rocha descobriu esta figura maior da identidade chinesa, assim como a articulação das matérias subjacentes ao poema referido, encontrou nas referidas canções a solução para dar corpo e alma e, como ele disse, a “forma e o fundo” a um projeto que inicialmente seguia um rumo muito mais próximo da narrativa clássica. 

Não obstante o realizador privilegiar a construção de um filme mosaico, há um fio condutor que não afastou o lado mais prosaico, embora reinterpretado, da vida e do percurso existencial do homem, o escritor e oficial da marinha de guerra Wenceslau de Moraes (interpretado no filme por Luís Miguel Cintra). Português, nascido em Lisboa a 30 de Maio de 1854 e falecido em circunstâncias misteriosas no Japão (suicídio, assassínio, acidente?) a 1 de Julho de 1929. No seguimento de uma série de contrariedades pessoais e desiludido com a política nacional, sobretudo a crise gerada pelo controverso episódio do Mapa Cor-de-Rosa, abandonou Portugal para rumar a Macau nos finais do Século XIX. 
 
Em Macau viveu com uma mulher chinesa, Atchan e estabeleceu amizade com o poeta Camilo Pessanha (no filme interpretado pelo próprio Paulo Rocha). Foi, no entanto, no Japão, que o escritor encontrou a “arte de viver” que o encantou e o fez deixar novamente o passado em busca de uma nova vida. No Japão Wenceslau conheceu e viu morrer duas mulheres, O-Yoné e a sobrinha desta, Ko-Haru. 

A morte é uma presença constante e fantasmagórica neste filme. Como, a dada altura é dito, “O encontro é o início da separação”. Também a vida é o início da morte. Nos últimos anos Wenceslau viveu mergulhado numa profunda e amarga solidão. O próprio escritor diz, numa carta enviada ao amigo Dias Branco: “Vivo de lembranças do passado. Mas o passado parece-me já um sonho, uma coisa que nunca teve realidade. Do futuro não falo, o futuro é para mim a morte e mais nada.”



segunda-feira, 30 de outubro de 2023

318ª sessão: dia 31 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


“Ilha dos Amores” de Paulo Rocha encerra ciclo de cinema 
 
Durante os meses de Setembro e Outubro, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe doze longas-metragens e uma curta em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e é inteiramente dedicado à memória de Carlos Fontes. 
 
O ciclo chega ao fim esta terça-feira à noite, às 21h30, com a exibição de A Ilha dos Amores de Paulo Rocha, o seu grande épico, uma epopeia em nove cantos debruçada sobre a vida de Wenceslau de Moraes, escritor e militar da Marinha Portuguesa que conheceu o Japão em 1889, entre viagens ao serviço da Coroa, instalando-se nesse país que o tinha fascinado 8 anos depois, como cônsul em Kobe. 
 
Explicando o desenvolvimento do seu projecto no Festival de Cannes, em 1982, Rocha disse que “é um projecto que remonta na verdade há catorze anos, antes mesmo da minha ida para o Japão, e cuja realização exigiu uma muito longa preparação, e levantou grandes problemas de ligação entre as diferentes equipas.” 
 
“Mas graças a essa preparação,” prosseguia, “a esse amadurecimento, pude fazer uma rodagem relativamente rápida nos três lugares onde decorre o filme: Portugal (mais de três meses espaçados), o Japão (dezoito dias ao todo) e Macau (três dias). Isso exigiu uma aprendizagem da língua japonesa pelo protagonista Luís Miguel Cintra, um dos maiores actores do teatro português.” 
 
Num texto escrito para a Cinemateca Portuguesa, João Bénard da Costa escreveu que “quando A Ilha dos Amores passou pela primeira vez na Cinemateca (…) abriu um ciclo intitulado “Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento” (…), escrevi então que essa escolha era duplamente emblemática."
 
“Por um lado”, explicava, “porque nenhum outro filme se conhece que tenha repensado, como este, o cerne da gesta portuguesa de quinhentos, enquanto participação no ideal humanista do Renascimento; por outro, porque nenhum outro filme se conhece onde se tenha tentado, como neste, a fusão entre dois imaginários culturais, dois “maravilhosos”, aparentemente tão distantes como os que dominam os códigos de narratividade e de representação da Europa e do Extremo Oriente.” 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras pelas 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

Choses secrètes (2002) de Jean-Claude Brisseau



por João Palhares

Há seis anos, uma secretária de Estado francesa disse na rádio, à France Culture, “agradeço à Cinemateca que tenha adiado a retrospectiva Jean-Claude Brisseau”. Com estas palavras todas, sem tirar nem pôr, agradeceu a uma instituição cultural histórica, numa estação de rádio histórica, que não tivesse feito o seu trabalho, que é exibir filmes. A retrospectiva não aconteceu nos meses seguintes e o realizador em questão morreu menos de dois anos depois, a 11 de Maio de 2019. Em Fevereiro de 2020, os Césares não o incluíram no segmento in memoriam, o que não pode ter sido um lapso inocente. Tanto não foi, que não passou despercebido a Maria-Luisa Garcia Martínez, companheira e colaboradora de sempre do cineasta francês, que escreveu entre muitas coisas certeiras, numa carta aberta aos responsáveis pelos Césares, “os grandes profissionais do cinema”, que “fico siderada com a demonstração da vossa idiotice. Tenho de reconhecer que é uma idiotice notável, realmente, uma idiotice cuja profundidade abissal alcança níveis raramente igualados.” 
 
De Brisseau já se disse e escreveu muita coisa, desde que se aproximou de Éric Rohmer nos anos setenta e pareceu seguir os seus passos no controlo dos meios de produção de um filme com a redução da equipa técnica e artística ao essencial. Era admirador incurável de Alfred Hitchcock, de quem conhecia o Psycho de trás para a frente, e sobre quem e sobre o qual podia dissertar durante horas a fio. Deu o nome de um filme fabuloso de um fabuloso desconhecido, Edward Ludwig, à sua pequena companhia de produção, La Sorcière Rouge, título francês de A Lenda do Bruxa Vermelha, um dos filmes preferidos de John Wayne entre os quase duzentos que interpretou. Falou do que sabia e do que viveu como professor em escolas nos arredores de Paris, trabalho a que se teve de dedicar por uns tempos por não conseguir pagar os estudos no IDHEC (Institut des hautes études cinématographiques, escola fundada por Marcel L'Herbier em 1943 e onde estudaram por exemplo Paulo Rocha ou Alain Resnais). Fez três filmes com Bruno Cremer, actor que tinha trabalhado com Pierre Schoendoerffer, Luchino Visconti, William Friedkin ou Claude Sautet, e alcançou um sucesso comercial inesperado e considerável com Noce blanche
 
*

“Depois de todos os vossos recentes discursos muito, muito deontológicos,” desabafa Luisa Garcia na mesma carta, “vocês, totalmente sozinhos, como adultos, mostraram ao mundo inteiro, em directo para a televisão, que os vossos actos, as vossas decisões, a vossa política em suma, não é nem a democracia, nem o reconhecimento do talento artístico. 
 
“Mas não, nem pensar. É como na fábula de La Fontaine: "dependendo de serem poderosos ou miseráveis, os julgamentos do tribunal farão de vocês brancos ou negros."
 
“E sim, dois pesos e duas medidas. As homenagens todas de um lado, e do outro vilipendiam, até mais, limpam a existência. Entendam bem que falo apenas de vocês e das vossas acções, vocês, decisores dos Césares. 
 
“E impeçamos imediatamente os maliciosos, os fabuladores e outros Tartufos. Jean-Claude Brisseau entregou-se à justiça, não houve violação nenhuma, toque nenhum. O julgamento estabeleceu isso. 
 
“Foi o facto de pedir a actrizes perfeitamente avisadas e consentidoras, de fazer ensaios para as cenas eróticas incluídas em Coisas Secretas, que constituiu o assédio sexual pelo qual foi condenado, e pelo qual pagou há quinze anos. 
 
“Eu sei, eu sei, alguns até dizem que torturou meninas, tornou-se quase uma lenda urbana. 
 
“Até há bem pouco tempo, nas altas esferas, o que as pessoas faziam do rabo delas ou do rabo das outras, sinceramente, deixava-vos indiferentes. Simplesmente não se falava disso. 
 
“Mas não, o que vocês fizeram não tem nada que ver com o caso de assédio sexual. E aí, voltamos ao fundamental: houve sempre uma questão de relação de classes entre uma parte da profissão e Jean-Claude Brisseau, sim, de nível mesmo básico. 
 
“Jean-Claude era da classe operária, filho de empregada doméstica; detonado ainda por cima com a sua "pequena Lili "(essa sou eu) proletária imigrada filha de empregada doméstica, e sim, eu também fui empregada doméstica. Uau, o desprezo que recebemos. Fazia-nos rir quase sempre, estávamos tão contentes por fazer cinema.” 
 
*

“Eu sou a morte de tudo e sou o nascimento de tudo,” diz o Bhagavad Chita, texto religioso hindu citado em Coisas Secretas e que lhe dá também o nome, “a palavra e a memória, a constância e a misericórdia. E o silêncio das coisas secretas.” Brisseau não devia ter aberto o portal das coisas secretas, só nos fez perceber uma vez mais que quem trabalha nas margens do que é estipulado socialmente, na vida como no trabalho, sempre sorrateiramente para não se suspeitar que “há algo de podre no reino da Dinamarca”, ou é absorvido pela cultura ou é castigado pelo poder. Percebe-se também que o cinema profissional sempre quis a morte do cinema amador, foi ele que gastou a palavra e a tornou pejorativa. “São amadores”, dizem. E a “tradição de qualidade” do cinema francês, atacada por François Truffaut nos anos cinquenta, continua assim mais viva do que nunca. Não se pode falar de sexo. Não se pode falar da morte. Não se pode questionar o dinheiro nem o poder. Não se pode “ousar”. Brisseau quebrou estas regras todas. E, como o que nos move por estes meses é o futuro, ficamos à espera de um dia em que uma ministra ou um ministro diga à France Culture, se ainda existir, que “agradeço à Cinemateca que tenha realizado a retrospectiva Jean-Claude Brisseau.” E que os Césares se mostrem magnânimos e reconheçam os seus erros. Não se sabe, afinal, se não haverá bárbaros à espreita, prontos a irromper por uma orgia de poderosos ao som de Zadok the Priest de George Handel, hino da Liga dos Campeões desde o início dos anos noventa, e dispostos a decepar cabeças e a usurpar o trono.



quinta-feira, 26 de outubro de 2023

317ª sessão: dia 26 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Épico de Brisseau é o penúltimo filme do Ensaio para o Futuro 

Durante os meses de Setembro e Outubro, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe doze longas-metragens e uma curta em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e é inteiramente dedicado à memória de Carlos Fontes. 
 
Perto do final da penúltima semana de Outubro, também penúltima semana do ciclo, exibe-se Coisas Secretas (2002), filme do cineasta francês Jean-Claude Brisseau, amanhã às 21h30. Protagonizado por Coralie Revel e Sabrina Seyvecou, conta a história de duas amigas que decidem escalar a escada social a todo o custo. 
 
Num texto de 2004 publicado no jornal Libération sobre Coisas Secretas, na altura a passar na televisão, o crítico francês Louis Skorecki pergunta “Então e Brisseau? O mínimo que se pode dizer, é que nunca fez de conta que gostava dessa nova vaga que esteve muito tempo proibido de criticar, e que está agora em vias de institucionalização.” 
 
“Brisseau é conhecido na praça de Paris por não saber fechar a boca”, continua ele, “sobretudo nos momentos em que devia, para quem gostava de se juntar ao clã dos iniciados do cinema francês, o que não é verdadeiramente o seu caso. É um caso, Brisseau. Amor excessivo pela verdade e pelo cinema, tudo junto, provoca estragos.” 
 
A páginas tantas do livro de entrevistas a Antoine de Baecque de 2006, L’Ange exterminateur, num excerto traduzido por Bruno Andrade para a FOCO - Revista de Cinema, Brisseau disse que “eu utilizo métodos que não se encaixam com os da maior parte dos outros cineastas, ao recusar os assistentes e os diretores de casting. E é algo frequentemente bastante criticado no meio. Certas pessoas da profissão e eu discutimos bastante sobre essa questão. Diziam-me: “Um filme faz-se com toda uma equipa, é uma catedral, e o metteur en scène é como um arquiteto: ele organiza mas não realiza todas as tarefas...” Seguindo essa concepção, o cineasta está acima de todos, é uma espécie de papá para a equipa do filme.” 
 
“A Christine Gozlan,” prossegue Brisseau, “antiga directora de produção e actual produtora, disse-me um dia a mesma coisa, acrescentando o seguinte: “No cinema francês há um sistema de hierarquia destinado a proteger o metteur en scène. De todo o mundo. Porque os problemas vêm de todo o lado, então colocam-se fusíveis em todo o lado.” Compreendo essa ideia de cinema mas não é a minha, porque para mim, se tudo se passa assim não é o metteur en scène que faz o filme, é a equipa. O metteur en scène diz “sim/não”, dá grandes conselhos, mas não é ele que faz o filme. Mas isso talvez não se possa aplicar aos filmes que têm uma grande amplitude financeira. Neste caso é necessário delegar muito; ora, essa não é a minha maneira de fazer cinema. Num filme eu quero poder mudar as coisas no último instante, quero conhecer verdadeiramente cada membro da equipa, dos actores aos técnicos, e não quero que um ou mais assistentes escolham em vez de mim os actores, os figurantes, os cenários, os posicionamentos.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Crash (1996) de David Cronenberg



por Vítor Ribeiro

[Um contributo, na subscrição do manifesto assinado pelos editores do À pala de Walsh, na defesa e elogio das edições físicas como um dos caminhos de suporte da cinefilia, da diversidade e da transmissão entre gerações das obras, do reconhecimento dos seus autores, da valorização do cinema e da sua linguagem.] 
 
A cinefilia organiza-se nas nossas cabeças, na nossa memória, mas também precisa de outro espaço, de espaço físico. No armário onde junto os filmes (a maioria em DVD), a disposição faz-se pela ordem alfabética do nome dos realizadores, uma questão de organização, claro, mas também do pagamento da dívida à política dos autores, conforme a prescrição dos Cahiers du Cinéma. A parte superior do armário permite que esta estrutura de arrumação seja questionada, com a introdução dos santinhos no altar: cineastas com quem nos deitamos mais vezes, o que permite uma reaprendizagem das nossas filiações, um conjunto de associações, em que se juntam os irmãos Scorsese e Schrader, ou os camaradas de burlesco Chaplin e César Monteiro. 
 
Fui comparar as durações, da cassete VHS e da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara, considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. 
 
Nesse armário, um dos santinhos é, naturalmente, David Cronenberg, onde se inclui a edição em DVD de Crash (1996), que estreou em sala em Portugal, em Outubro de 1996 e que será reposto no dia 7 de Janeiro. Aficionado de Cronenberg e leitor de Ballard, tenho na memória três peregrinações à sala de cinema ao encontro da carne e da máquina, sendo que a primeira terá sido no Nun’Alvares, maravilhoso cinema de cidade, na Guerra Junqueiro, Porto. Alguns meses depois (não me recordo se a janela para a edição em vídeo era de três ou de seis meses), um amigo que trabalhava num clube de vídeo ficou com o encargo de me avisar da chegada do VHS de Crash
 
Recolhi-me com aquele objecto de desejo no domicílio, mas logo nas primeiras sequências algo de estranho aconteceu: pareciam faltar partes das cenas do filme que tinha na memória. Mas, só tive a certeza, já passada mais de metade da duração do filme, na cena que se segue ao encontro dos corpos de Vaughan e Catherine na lavagem automática do carro dele, da sua cama sobre rodas. No domicílio, na mesma cama onde James e Catherine tinham fantasiado com as cicatrizes do corpo estropiado de Vaughan, Catherine encolhida no seu corpo coberto de escoriações, marcado pelos movimentos maquinais de Vaughan, era afagada pelo toque de James e pela música orquestrada de Howard Shore, a substituir as guitarras metálicas que soaram até aí. Cena lindíssima, expressão de intimidade, que aquela edição havia retalhado, talvez para ocultar os genitais de Deborah Unger sugestionados pela versão integral. 
 
Fui comparar as durações, da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara (a internet era ainda pré-histórica e o Google uma quimera), considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. Cheio de convicção, que devo ter carregado com a indignação de quem não está habituado a viver com a censura, escrevi ao distribuidor da edição em VHS. A responda não demorou, lamentavam o erro, tinham utilizado por acidente uma cópia distribuída no Reino Unido (onde a censura de filmes era, talvez ainda seja, comum), mas iriam repor o filme, com a edição correcta. Algumas semanas depois, chegou pelo correio uma nova cassete VHS, com a metragem certa e uma carta de agradecimento, que guardei, mas não sei onde. 
 
Uma dúzia de anos depois, em Maio de 2009, uma Mostra de Ficção Científica – On the Trek – tão peregrina, que só conheceu uma edição, na Casa das Artes de Famalicão. À boleia da ante-estreia europeia(!) do reboot de Star Trek armado por J. J. Abrams, um panorama de cinco dias estrelado por um Programa Ballard, onde recuperámos uma cópia em película de Crash, também em película, Aparelho Voador a Baixa Altitude (2002), o Ballard das ruínas de Tróia por Solveig Nordlund, Videodrome (1983), um Cronenberg sem a escrita mas com o espírito ballardiano, e uma exposição em diálogo com o CCCB: Centre de Cultura Contemporània de Barcelona. E a fechar a On The Trek, Wall-E (2008). Nos primeiros trinta minutos da mais bonita peça do catálogo Pixar, nas ruínas de um novo mundo, despovoado, em que os arranha-céus são já esculturas cobertas de poeira e de tempo, um robô obsoleto, mas trabalhador, arruma e empilha lixo retirado de uma extensa clareira. 
 
Wall-E vai catando vários objectos que arruma no seu atrelado, memorabilia sentimental organizada em prateleiras (onde ele próprio se arruma no fim do dia de trabalho): cassetes VHS, onde ele revê musicais, que também grava no seu dispositivo, um cubo mágico, talheres, relógios, espanta-espíritos, um globo terrestre, objectos e brinquedos, que ele testa e experimenta, cataloga e organiza. Do ecrã de Wall-E solta-se um pedaço de Hello, Dolly! (1969), o tema “It Only Takes a Moment”: não consigo imaginar maior elogio à materialidade. 
 
in «Crash, uma edição censurada», À Pala de Walsh, 31 de Dezembro de 2020. 
 

[O autor deste texto está a preparar uma análise mais aprofundada sobre Crash, que oportunamente partilharemos, talvez até noutra exibição do filme.]



segunda-feira, 23 de outubro de 2023

316ª sessão: dia 24 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Filme de David Cronenberg na próxima sessão do cineclube 

Durante os meses de Setembro e Outubro, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe doze longas-metragens e uma curta em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e é inteiramente dedicado à memória de Carlos Fontes. 
 
A abrir a quarta semana do mês de Outubro, penúltima semana do nosso ciclo, exibe-se Crash (1996), do canadiano David Cronenberg, amanhã às 21h30. Protagonizado por James Spader, Holly Hunter, Elias Koteas, Deborah Kara Unger e Rosanna Arquette, o filme é baseado no romance homónimo de James Graham Ballard, de 1973, publicado entre nós pela Relógio d’Água em 1996 e pela Elsinore em 2016. 
 
Sobre a sua adaptação, Cronenberg disse em 1997 à revista Filmmaker que “é difícil saber como é que se muda em termos da nossa realização. Obviamente, espera-se que se esteja a ficar melhor e mais maduro, mas talvez não. Eu não reli o livro atentamente porque a minha experiência tem sido a de que se tem de estar preparado para trair o livro para lhe ser fiel.” 
 
“Parece um paradoxo,” continuava ele, “mas na verdade não é. Os dois meios são tão diferentes que se tentamos ser literalmente fiéis, falhamos. Portanto temos de nos adaptar a que estamos a fazer uma coisa nova para o grande ecrã que vai ter a sua vida própria e que vai ser filtrada pelo nosso sistema nervoso, pela nossa sensibilidade.” 
 
Numa discussão sobre o seu livro e a actualidade, pela altura da estreia do filme, J.G. Ballard disse que “acho que nos anos noventa nos tornámos muito mais honestos em relação à natureza humana e somos mais abertos à verdade das nossas próprias identidades. Na altura em que escrevi o livro (comecei-o em 1970) a ideia de que as pessoas podiam ter algum tipo de excitação com a ideia de acidentes de carro -- bom, as pessoas simplesmente não conseguiram lidar com isso, acharam que era totalmente insano. Agora as pessoas são muito mais honestas em relação à psicologia de finais do século vinte e, para além disso, conseguem ver a forma como o acidente de carro está incorporado na cultura do entretenimento. Nenhum thriller respeitável de Hollywood tem menos de seis acidentes de carro.” 
 
“E as pessoas percebem a extensão a que a agressão e a libido se incorporam na experiência de conduzir um carro,” prosseguia Ballard. “Qualquer mulher sabe que há por aí imensos homens que não conseguem suportar ser ultrapassados por uma mulher ao volante. Muitos homens acham a condução extremamente competitiva. Obviamente que a experiência de conduzir toca em todos os tipos de tensões agressivas na nossa composição e isso é necessário; afinal, tem de se ser decidido se se faz uma ultrapassagem numa estrada apertada a noventa quilómetros por hora. É preciso canalizar um certo nível de agressão. O meu romance e o filme encaram isso de forma razoável e directa.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

sábado, 21 de outubro de 2023

Holy Motors (2012) de Leos Carax



por Alexandra Barros

Holy Motors acompanha Monsieur Oscar desde a sua saída de casa para o trabalho, de manhã, até ao seu regresso a casa, à noite, no fim de uma lista de actuações agendadas para o dia. Mas nem estas casas são a mesma, nem a família da qual se despede de manhã é a mesma para a qual regressa à noite. M. Oscar é actor de uma estranha forma de arte performativa. Percorre Paris, numa limusine guiada por Céline (sua motorista-secretária-amiga), de encontro a diversas situações, onde encarna personagens detalhadamente descritas nas instruções que recebe diariamente. Transforma-se, ora no “camarim” do interior da limusine, ora não se sabe onde: numa mendiga corcunda, num louco que habita os subterrâneos da cidade, num assassino e num assassinado, num actor de motion capture[1] , no pai de uma (filha real?) adolescente, num vingador que confronta uma das outras personagens que o próprio Oscar interpretou antes, num acordeonista, num moribundo, ... Cada uma destas actuações parece ser parte de uma nunca explicada história. Nalgumas situações pensamos estar perante a vida autêntica de M. Oscar, mas logo de seguida somos deixados na dúvida. Tudo é ambíguo. Nunca percebemos o que realmente se passa. Quem o contrata? Para que servem as actuações? Quem é a audiência e como é que assiste às actuações? Porque é que M. Oscar desempenha estes papéis? Apesar do visível cansaço que o “supervisor” lhe aponta, M. Oscar diz continuar a actuar “pela beleza do gesto”. Mas a beleza de tantos e diversos gestos tem o seu preço. Que gestos são afinal os seus? Num encontro fortuito (ou mais uma actuação?) com Eva Grace, uma colega de profissão que há muito não via (e com quem terá tido uma relação amorosa), ela canta as angústias existenciais e questões identitárias que os afligem. 
“Quem éramos nós? 
Quem éramos quando éramos quem éramos, naquela época? 
Em que nos teríamos tornado se tivéssemos agido de outra forma, naquela época? 
Não existem novos começos. 
Alguns morrem, alguns continuam a viver”. 

Terminado o dia de trabalho, e após estacionar a limusine entre muitas outras na garagem Holy Motors, Céline retira a peruca e coloca uma máscara branca, sem expressão, para regressar a casa. As limusines, finalmente sós, conversam entre si: “Shsss! Estou a tentar dormir. / Não tardarás a dormir, quando estiveres destinada à sucata. / Estamos a tornar-nos inadequadas. / Os homens já não querem máquinas visíveis.”  

Nas palavras de Leos Carax: “As limusines estão em total sintonia com os nossos tempos – ao mesmo tempo vistosas e saloias (…). Comovem-me. Estão ultrapassadas, como velhos brinquedos futuristas do passado. Marcam o fim de uma era, a era das máquinas grandes e visíveis.”, “Holy Motors é uma espécie de ficção científica, nas quais humanos e máquinas estão à beira da extinção, escravos de um mundo cada vez mais virtual. Um mundo do qual as máquinas visíveis, as experiências reais e as ações estão gradualmente a desaparecer“, “Na cena em que o Denis Lavant está coberto por sensores brancos ele é um trabalhador especializado em motion capture. Não muito distante de Chaplin em Tempos Modernos – exceptuando o facto de que o homem já não está preso nas engrenagens da máquina mas nas malhas de uma rede invisível.”[2] 

Estranho e enigmático, Holy Motors, como toda a grande arte, presta-se a múltiplas interpretações. Carax novamente: “O filme é simples se se aceitar que não se sabe para onde se vai.”[3] Mais ou menos como a morte, o envelhecimento, a vida.

[1] Processo em que câmeras captam movimentos dos atores, que serão depois processados digitalmente. É muito utilizado em filmes de animação, onde veio substituir as técnicas tradicionais.