quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Donovan's Reef (1963) de John Ford


por António Cruz Mendes

Andrew Sarris, em The John Ford Movie Mistery, diz-nos que “há realizadores que descobrem o mundo, há outros que o inventam. Ford, como a maior parte dos grandes cineastas de Hollywood, pertence à segunda categoria. Àquela onde o cinema é o sonho e não o documento”. Não duvidaremos da verdade desta sentença se recordamos os muitos westerns realizados por Ford, pedras basilares da visão mítica da “conquista do oeste” construída pelo cinema americano durante a primeira metade do século XX, mas a sua justeza torna-se particularmente evidente quando vemos A Taberna do Irlandês.
 
Em 1963, quando o realizou, John Ford tinha já 70 anos e 140 filmes no seu currículo. Entretanto, o estilo de vida e os gostos do público americano foram-se modificando e isso refletia-se na produção cinematográfica. A era clássica dos westerns, das narrativas épicas protagonizadas por heróis impolutos que encarnavam a vitória da civilização sobre a barbárie, estava a chegar ao fim. O movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King e, mais tarde, a guerra do Vietname, traduziram-se na realização de filmes que ofereciam uma visão diferente, talvez mais realista, seguramente mais crítica, da história americana e diz-se que John Ford se enquadrava mal nesse ambiente. A realização de A Taberna do Irlandês teria sido uma forma de fugir, física e emocionalmente, de um lugar onde já não se sentia bem.
 
Apesar da recepção crítica não lhe ter sido favorável, o filme foi um êxito de bilheteira. Tratase, de facto, de uma divertida comédia e nela, diz-nos João Bénard da Costa, “o velho mestre já não se dá ao trabalho de enraizar o seu sonho, ou de o justificar. Limita-se a pintá-lo, e a pintar-se através dele, com a amizade, com a felicidade”.
 
Na imaginária ilha da Polinésia onde decorre a história, todas as personagens são felizes e têm bom coração. Por vezes, fala-se da pobreza dos seus habitantes, mas ela só se entrevê no estado do telhado da igreja. Aliás, a participação dos nativos reduz-se às cenas coreografadas das suas reuniões festivas e é essencialmente decorativa. As homéricas cenas de pancadaria com que Donovan e Gilhooley comemoram os seus aniversários assemelham-se mais aos populares combates de wrestling do que a verdadeiras agressões físicas. Delas, os lutadores saem praticamente ilesos e a única coisa que sofre verdadeiros danos é o mobiliário da taverna. O próprio Marquês de Lage, que representa na ilha o governo francês e que começa por se queixar por ter sido nela desterrado, com o seu permanente sorriso e a sua ingénua e transparente “malvadez”, acaba por se tornar numa personagem simpática. Amelia, quando aí aporta, ostenta uma figura esfíngica que contrasta com a vida simples e despreocupada dos ilhéus, mas o seu mergulho no momento do desembarque anuncia-nos desde esse primeiro instante que essa couraça não é sólida e que rapidamente se vai desfazer.
 
As magníficas paisagens, a alegria das gentes, a simpatia das crianças, o altruísmo do pai, a relação que, passados os primeiros desentendimentos, se vai estabelecendo entre ela e Donovan, são os elos de uma história de aprendizagem donde Amelia sai transfigurada.
 
O Happy End é inevitável e a festa de Natal anuncia já a próxima reunião da família Dehdam. O quadro da princesa Manulani, exibido em lugar de destaque na casa do pai, o seu nome na lápide que homenageia os heróis da guerra contra o Japão, a homenagem prestada pelos nativos a Sally, sua herdeira, e, por fim, uma confidência do Marquês, são as peças de um puzzle que, reunidas, põem fim a todos os quid pro quo. E o próprio Donovan era, afinal, um par de Amelia, pois também ele era dono de uma pequena companhia de navegação. No último momento, a previsível união dos dois acaba por se cumprir.
 
Enfim, quem terá saído vencedor nessa “guerra de sexos” que, durante grande parte do filme, se travou entre Donovan e Amelia? Será que, no fim, a “ilha” venceu “Boston” ou foi “Boston” quem domesticou a “ilha”? Não é evidente o resultado dessa contenda. Amelia era uma executiva ciosa da sua autoridade e independência e até tinha vencido Donovan numa corrida de natação. Mas, agora, afirma Donovan, será ele quem, no casal, “vestirá as calças”. E a relação entre os dois começa com uma amigável e paternal sova. Por outro lado, o ambiente da casa do Dr. Dehdam não deixa de ser bastante “bostoniano” e Donovan decidiu passar a taverna ao seu amigo Gilhooley… Nessa disputa, os dois pratos da balança terão acabado por ficar mais ou menos equilibrados.
 
 
 

sábado, 7 de dezembro de 2024

374ª sessão: dia 10 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


John Ford e John Wayne regressam a Braga 
 
Em Dezembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga celebra a época natalícia como tem feito desde o início da sua actividade, em 2015. Para cumprir a tradição, as duas primeiras semanas de Dezembro serão dedicadas ao ciclo “Um Natal com John Ford - Bright Star of the Early Western Sky” e serão exibidos, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, dois filmes do emblemático realizador americano que aludem às festividades. 
 
Na próxima terça-feira dia 10 de Dezembro, às 21h30, exibe-se o filme A Taberna do Irlandês de 1963, realizado por John Ford e com direcção de fotografia de William H. Clothier. O filme é baseado num conto de Edmund Beloin adaptado por James Michener, com argumento escrito por Frank S. Nugent e James Edward Grant. 

Um veterano da segunda guerra, Thomas Gilhooley (Lee Marvin), abandona o cargueiro onde trabalha para chegar a Haleakaloha, na Polinésia Francesa. Aí, vive Michael Donovan (John Wayne), antigo camarada de Gilhooley que tem um bar na ilha, o “Donovan’s Reef”. Partilhando o dia de aniversário, os dois amigos têm a tradição de andar ao soco nesse dia, atraindo visitantes e habitantes locais. A trama intensifica-se quando uma jovem aristocrata de Boston, Amelia Dedham (Elizabeth Allen), parte em busca do pai para resolver uma contenda legal e a sua jornada se cruza com a de Donavan. 
 
No seu livro The John Ford Movie Mystery, publicado em 1975, e evocando a obra de Jean Renoir e de William Shakespeare, Andrew Sarris escreve que o filme “é o Déjeuner sur L’Herbe de Ford, como o Déjeneur sur L’Herbe é A Tempestade de Renoir: a mais acabada depuração da serenidade e sabedoria dum velho artista.” 
 
A citação é lembrada na folha da Cinemateca de João Bénard da Costa sobre A Taberna do Irlandês, que elucida ainda que o filme foi rodado em Kauai, no Havai, não apenas para servir a narrativa da obra, mas para concretizar, também, a última viagem de barco até ao pacífico com o Araner, iate que pertencia a Ford e que foi usado em várias filmagens ao longo de trinta anos. A Taberna do Irlandês, para além das suas cenas de acção, comédia e romance, presenteia-nos, ainda, com uma cena de Natal épica e bem humorada, ideal para fecharmos o ciclo nesta época natalícia. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

3 Godfathers (1948) de John Ford



por Estela Cosme

Dezembro é sinónimo de abundância de narrativas tradicionais, inseparáveis da época natalícia, com elementos cristãos bem familiares: o nascimento de um menino, três homens guiados por uma estrela no céu, e claro, John Wayne. À primeira vista, "Um Natal com John Ford", o título deste ciclo de dezembro, poderá soar estranho, um paradoxo à espera de explicação. Afinal, como é que o derradeiro realizador do western pode conter na sua obra um filme que se encaixa na época natalícia, e que recria uma das passagens bíblicas mais emblemáticas? Na verdade, John Ford fê-lo de forma fascinante, e fê-lo mais que uma vez. 

"Os 3 Padrinhos" foi um romance de Peter B. Kyne, publicado em 1913, sobre um trio de ladrões de bancos que se tornam padrinhos de um recém-nascido após encontrar a sua mãe moribunda na sua fuga pelo deserto. A estória foi inicialmente publicada na revista The Saturday Evening Post no ano anterior, e foi adaptada para o grande ecrã já em 1916, num filme mudo com o título em inglês The Three Godfathers. John Ford realizou a sua primeira versão em 1919, sob o título Marked Men, um filme de 50 minutos que atualmente se considera perdido. No entanto, o romance ficou com Ford ao longo da sua vida, e veio a adaptá-lo novamente em 1948, com o título 3 Godfathers (o "the" desaparece do título, possivelmente para se distinguir das adaptações prévias). 

Há um indivíduo que liga todas estas adaptações, Harry Carey, ator que foi uma das grandes estrelas de westerns na época do cinema mudo, e posteriormente apareceu em dramas como Mr. Smith Goes to Washington (para o qual esteve nomeado ao Óscar). Carey participou no filme de 1916 e também na primeira adaptação de Ford, com quem colaborou frequentemente, e por isso Ford dedicou o épico de 1948 à sua memória, com a dedicação "Bright Star of the early western sky..." ("Estrela Brilhante do céu matinal do oeste [=western]"). O filme começa então sob a sombra de um gigante (o cavalo na cena da dedicação era o seu favorito), o que se torna mais evidente quando sabemos que o filho de Carey, Harry Carey Jr., interpreta um dos papéis principais, sucedendo ao pai no mundo dos westerns (tornando-se então na estrela brilhante do céu do oeste seguinte). 

John Ford acredita em milagres, e frequentemente é pelas mãos de John Wayne que os faz acontecer. Em Os 3 Padrinhos, encontramos um conto de redenção e sacrifício, retratando os personagens dos Três Reis Magos numa dimensão aprofundada e raramente vista. Seria de esperar que o trio de Wayne, Carey Jr. e Pedro Armendáriz fossem três ladrões de bancos perfeitamente competentes, mas as nossas expectativas caem em falso quando tudo corre mal e os ladrões são forçados a fugir para o deserto castigador, feridos e sem o dinheiro roubado. Ainda pior, perdem os seus cavalos enquanto continuam a ser perseguidos pelo xerife. Tag Gallagher, no seu livro sobre Ford escreve que neste filme “os homens maus são ingénuos e respeitosos, e inaptos. Um leva um tiro, eles bebem a água toda, perdem os cavalos, têm de consultar livros para orientação, e vacilam no suicídio. E a civilização fornece um comboio através do qual a milícia os flanqueia.” 

Contudo, quando achamos que a lei está bem perto de apanhar Robert, William e Pedro, surge um teste de moralidade, de intervenção praticamente divina. Encontram uma mãe numa carroça que nos momentos antes da morte os nomeia padrinhos do seu filho recém-nascido, e pelo qual eles têm agora que atravessar o deserto para tentar salvá-lo. Batizado com os nomes dos seus padrinhos, Robert William Pedro Hightower irá testar o caráter dos ladrões, que já não temem pelas suas vidas, mas sim pela do afilhado. 

Equipados com pouco mais que leite, um manto e versos da bíblia, o trio zela pelo bem-estar da criança apesar das condições adversas. Quando se torna impossível resistir a elas, o espírito de sacrifício prevalece, e com a ajuda certa no momento certo (o deserto castiga mas também salva), o menino chega são e salvo a New Jerusalem e o milagre natalício concretiza-se. A lei apanha John Wayne exausto e de rastos, mas virtuoso e vitorioso. 

Torna-se difícil distinguir qual é o verdadeiro fio condutor do filme, se é o mito cristão ou o mito americano. Afinal, John Wayne transforma-se em herói redimido porque é um cowboy com consciência ou porque Deus colocou no seu caminho uma oportunidade de altruísmo? Na verdade, são ambos os mitos que jogam um com o outro para criar um conto de bravura inesperada, onde uma criança é salva graças à intervenção divina, mas também graças ao heroísmo de figuras emblemáticas do Faroeste, forjadas a ferro e fogo pela terra do indomável espírito americano. Ford proporciona-nos então uma magnífica saga em que o western e o espírito natalício se unem, onde o salvamento milagroso de um menino não só salva as almas de três ladrões fugitivos, mas também restabelece a crença a uma povoação no meio do deserto com sede de justiça. E para os habitantes do Arizona, só falta mesmo que o pequeno Robert William Pedro transforme em vinho a pouca água do deserto.