Com Noite de Estreia, encerramos o ciclo que dedicamos a John Cassavetes. Do realizador, já nos deu conta Jessica Ferreiro na Folha de Sala que redigiu para Sombras, onde nos chama a atenção para o lugar ocupado por ele no chamado “cinema independente” americano: os seus filmes são de baixo orçamento, dispensam grandes recursos técnicos e afastam-se dos cânones dominantes em Hollywood para nos oferecer uma imagem crua da vida de pessoas comuns. Um pequeno grupo de actores e de figurantes repete-se em várias das suas obras, o que contribui também para que todas elas compartilhem um evidente “ar de família”.
O filme que apresentamos hoje debruça-se sobre o mundo do teatro, da vida das pessoas que lhe dão forma – dramaturgos, encenadores, actores e daqueles que mais de perto os acompanham. Algumas cenas decorrem no palco. A câmara, fixa e em posição frontal, oferece-nos então a perspectiva do espectador. Outras vezes, perscruta os bastidores, aproxima-se das personagens e sonda o seu multifacetado mundo interior.
Mas, aqui, queria sobretudo destacar o papel de Gena Rowlands, que morreu há dez meses com 94 anos de idade e que foi uma atriz excepcional. Neste ciclo que dedicamos a Cassavetes pudemos vê-la em Rostos e em Uma mulher sob influência e, agora, podemos comprovar de novo a sua excelência em mais um filme do seu marido.
Em Noite de estreia, Gena Rowlans interpreta um duplo papel, como Virgínia e como Myrtle Gordon. Virgínia é a personagem central de uma peça de teatro, “A segunda mulher”, escrita por Sarah Goode e encenada por Many Victor. É ela que, vendo arrefecer a paixão que já sentiu pelo seu companheiro, decide visitar o seu primeiro marido, agora casado com uma outra mulher, de quem teve vários filhos. A presença de Myrtle no boçal e confuso meio doméstico onde é introduzida é patética. A sua juventude e as suas paixões inscrevem-se num passado que ela percebe já não ser recuperável. E a mesma intuição está presente em Myrtle que, na peça, contracena com Maurice, o seu próprio marido. Ficção e realidade confundem-se. Quando se ensaia a cena em que ele a esbofeteia, quem é que a agride de facto?
Sabemos da importância do Actors Studio na formação de muitos actores, nos Estados Unidos. Inspirado no “método” de Stanislavski, aí desenvolvido por Lee Strasberg, pretende-se que os actores não se limitem a “representar”, usando técnicas convencionais, mas se fundam com a personagem que interpretam, descobrindo neles próprios o tipo de afinidades que as caracterizam. Myrtle sabe que, interpretando Virgínia, é a perda da sua própria juventude que terá de assumir. Virgínia colar-se-á à
sua própria pele e mostrá-la-á aos olhos do seu público como a “velha” que Sarah Goode já é e que ela recusa com todas as suas forças poder vir a ser. Assim, a sua interpretação torna-se impraticável, os ensaios decorrem de uma forma caótica, a tensão entre a actriz, a autora e o encenador evolui num crescendo e, à medida que se aproxima da noite de estreia, adivinha-se um estrondoso fracasso.
O acidente que vitima uma sua admiradora vai potenciar esta situação. O fantasma da jovem atropelada surge à actriz sob a forma da jovem Myrtle e, por fim, tudo se decide num combate mortal entre as duas. Só assassinando esse fantasma Myrtle poderá encarnar Virgínia.
Finalmente, chega a noite de estreia. Myrtle chega ao teatro destroçada, mas, com a ajuda de muito café, consegue recompor-se. No palco, ela e Maurice improvisam. Perante o desconforto de Sarah Goode e o olhar irónico de Many Victor, afastam-se do guião e transformam “A segunda mulher” numa comédia. O público reage efusivamente. O teatro que, afinal, é fingimento, venceu.
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