terça-feira, 12 de agosto de 2025

Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988) de Paulo Rocha



por António Cruz Mendes
 
Máscara de Aço contra Abismo Azul foi realizado em 1988. Em 1887 nasceu Amadeo de Souza-Cardoso e o início do filme oferece-nos uma perspectiva da inauguração da grande exposição de obras do pintor realizada por essa ocasião na Fundação Calouste Gulbenkian. A imagem de visitantes ilustres e de figuras irreconhecíveis recortam-se e entrecruzam-se como sombras projectadas sobre o painel Começar, de Almada Negreiros, no átrio do edifício da Fundação. Visitam a exposição, ouvem-se fragmentos das habituais conversas de circunstância e, estranhamente, entre os convidados, circulam trabalhadores que transportam painéis com réplicas de fragmentos de grandes dimensões de obras do pintor.
 
O filme de Paulo Rocha é assim: entre o documentário e a ficção, uma colagem de imagens suportada pelo comentário em off de vozes de um homem e de uma mulher. Pertencem a Máscara de Ferro e Abismo Azul, duas personagens criadas pelo pintor. O primeiro encarna perfil masculino, enérgico e arrogante; a segunda uma imagem feminina delicada e sensual. Vemo-las logo nas imagens iniciais, habitando um cenário construído com fragmentos de pinturas de Amadeo. Anunciam a realização de um “jantar de artistas” onde, a convite de Almada Negreiros, se teriam reunido conhecidas figuras do modernismo português. E, enquanto Abismo Azul tenta celebrar Almada, Máscara de Ferro proclama num tom autoritário: “Nos próximos cem anos será assim: “Amadeo-Pessoa, Pessoa-Amadeo. Mais ninguém”! Serão elas que nos vão conduzir ao longo do filme numa visita guiada à vida e à obra de Amadeo.
 
Paulo Rocha, informa-nos o próprio realizador, não pretendeu realizar um “documentário didáctico” sobre a obra de Amadeo de Souza-Cardoso, nem um “retrato psicológico do artista”. Em vez disso, quis apoiar-se em relatos da vida de Amadeo e em imagens das suas obras para nos dar uma visão impressiva dos primeiros tempos do modernismo em Portugal, tempos de ruptura polémica com tradições naturalistas fortemente enraizadas. Para isso, diz-nos ainda Paulo Rocha, “tentei filmar esse período da sua pintura com um estilo diferente, como se a câmara fosse um pincel na mão do próprio Amadeo, com as suas cores e as suas formas”.
 
Como se sabe, o ecletismo é uma característica da obra de Souza-Cardoso. Em Portugal, o distanciamento da tradição naturalista começou pelo apreço dado por alguns artistas à caricatura e é também por aí que ele começa. Porém, ao contrário de Rafael Bordalo Pinheiro ou de Leal da Câmara, Amadeo não se interessa pela caricatura com o instrumento de crítica política, mas pela possibilidade que ela lhe oferece de experimentar novas formas. Entretanto, com o apoio do seu pai e do estimado tio Chico, parte para Paris, para estudar arquitectura. Um projecto que rapidamente abandona para se entregar à pintura. No meio artístico parisiense, relaciona-se com pintores, escultores e poetas e descobre o cubismo e o futurismo. Os futuristas celebram a máquina e a velocidade e tentam captar imagens de corpos em movimento. O motivo dos cubistas é estático, pode ser uma natureza-morta, quem se movimenta é o artista, que nos oferece dele uma justaposição de imagens fruto da sua observação sob diferentes perpectivas. Amadeo é um experimentalista. Não se sujeita a nenhum código de representação. Desenha figuras, animais e paisagens com formas estilizadas e ressonâncias simbolistas. Inspiram-no a arte africana e motivos da tradição popular. Recorre tanto aos processos do cubismo, como aos do futurismo e ensaia a abstracção. Para ele, o mundo da arte é um território onde não existem fronteiras e não teme fazer pinturas que, sabe-o bem, desagradam ao gosto dominante e, inclusive, ao daqueles que lhe são caros, como o tio Chico.
 
O filme permite-nos retomar os passos da aventura de Amadeo nesse mundo em larga medida desconhecido dos portugueses. Imagens da casa de Manhufe levam-nos às suas origens, uma família abastada de proprietários rurais, tradicionalista e monárquica, que, no entanto, não quis cortar as asas aos sonhos do jovem Amadeo que, desde criança, mostrava um grande interesse pelo desenho. Mostra-nos retratos da família e dos seus amigos e confidentes, imagens das suas obras, ouvem-se depoimentos de Lúcia, com quem haveria de casar, do próprio pintor, interpretado por Vítor Norte, e extractos da sua correspondência. Contam-se episódios da sua vida. A câmara percorre a superfície das suas obras intercalando essas paisagens pictóricas com outras dos sítios que frequentou. Representam-se cenas da vida do pintor, interpretadas por Vítor Norte. Num cenário construído à imagem das suas obras, Máscara de Aço e Abismo Azul, recitam versos de Rimbaud. O carácter fragmentário do cubismo transporta-se para o filme que assim nos vai oferecendo as peças de um puzzle que nos permitirão construir o quadro da sua vida.
 
Perto do final, sequências alternam imagens de pinturas de Amadeo com imagens da Grande Guerra. O seu eclodir obrigou o pintor a regressar a Portugal, onde exposições das suas obras realizadas no Porto e em Lisboa, em1916, foram motivo de controvérsia e escândalo. Quando a guerra terminou e Souza-Cardoso preparou-se para regressar a França, foi atingido pela “gripe espanhola” e morreu. Lúcia Souza-Cardoso conseguiu preservar os seus quadros. Porém, foram precisos algumas décadas para que o seu valor fosse plenamente reconhecido. Só mais tarde, as palavras de Almada Negreiros ditas a propósito da exposição realizada na Liga Naval de Lisboa terão sido totalmente compreendidas: “Amadeo foi a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX. Portanto, começa já hoje, vai à exposição na Liga Naval de Lisboa, tapa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a vida não é assim”. 
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário