Máscara de Aço contra Abismo Azul foi realizado em 1988. Em 1887 nasceu Amadeo de Souza-Cardoso e o início do filme oferece-nos uma perspectiva da inauguração da grande exposição de obras do pintor realizada por essa ocasião na Fundação Calouste Gulbenkian. A imagem de visitantes ilustres e de figuras irreconhecíveis recortam-se e entrecruzam-se como sombras projectadas sobre o painel Começar, de Almada Negreiros, no átrio do edifício da Fundação. Visitam a exposição, ouvem-se fragmentos das habituais conversas de circunstância e, estranhamente, entre os convidados, circulam trabalhadores que transportam painéis com réplicas de fragmentos de grandes dimensões de obras do pintor.
O filme de Paulo Rocha é assim: entre o documentário e a ficção, uma colagem de imagens suportada pelo comentário em off de vozes de um homem e de uma mulher. Pertencem a Máscara de Ferro e Abismo Azul, duas personagens criadas pelo pintor. O primeiro encarna perfil masculino, enérgico e arrogante; a segunda uma imagem feminina delicada e sensual. Vemo-las logo nas imagens iniciais, habitando um cenário construído com fragmentos de pinturas de Amadeo. Anunciam a realização de um “jantar de artistas” onde, a convite de Almada Negreiros, se teriam reunido conhecidas figuras do modernismo português. E, enquanto Abismo Azul tenta celebrar Almada, Máscara de Ferro proclama num tom autoritário: “Nos próximos cem anos será assim: “Amadeo-Pessoa, Pessoa-Amadeo. Mais ninguém”! Serão elas que nos vão conduzir ao longo do filme numa visita guiada à vida e à obra de Amadeo.
Paulo Rocha, informa-nos o próprio realizador, não pretendeu realizar um “documentário didáctico” sobre a obra de Amadeo de Souza-Cardoso, nem um “retrato psicológico do artista”. Em vez disso, quis apoiar-se em relatos da vida de Amadeo e em imagens das suas obras para nos dar uma visão impressiva dos primeiros tempos do modernismo em Portugal, tempos de ruptura polémica com tradições naturalistas fortemente enraizadas. Para isso, diz-nos ainda Paulo Rocha, “tentei filmar esse período da sua pintura com um estilo diferente, como se a câmara fosse um pincel na mão do próprio Amadeo, com as suas cores e as suas formas”.
Como se sabe, o ecletismo é uma característica da obra de Souza-Cardoso. Em Portugal, o distanciamento da tradição naturalista começou pelo apreço dado por alguns artistas à caricatura e é também por aí que ele começa. Porém, ao contrário de Rafael Bordalo Pinheiro ou de Leal da Câmara, Amadeo não se interessa pela caricatura com o instrumento de crítica política, mas pela possibilidade que ela lhe oferece de experimentar novas formas. Entretanto, com o apoio do seu pai e do estimado tio Chico, parte para Paris, para estudar arquitectura. Um projecto que rapidamente abandona para se entregar à pintura. No meio artístico parisiense, relaciona-se com pintores, escultores e poetas e descobre o cubismo e o futurismo. Os futuristas celebram a máquina e a velocidade e tentam captar imagens de corpos em movimento. O motivo dos cubistas é estático, pode ser uma natureza-morta, quem se movimenta é o artista, que nos oferece dele uma justaposição de imagens fruto da sua observação sob diferentes perpectivas. Amadeo é um experimentalista. Não se sujeita a nenhum código de representação. Desenha figuras, animais e paisagens com formas estilizadas e ressonâncias simbolistas. Inspiram-no a arte africana e motivos da tradição popular. Recorre tanto aos processos do cubismo, como aos do futurismo e ensaia a abstracção. Para ele, o mundo da arte é um território onde não existem fronteiras e não teme fazer pinturas que, sabe-o bem, desagradam ao gosto dominante e, inclusive, ao daqueles que lhe são caros, como o tio Chico.
O filme permite-nos retomar os passos da aventura de Amadeo nesse mundo em larga medida desconhecido dos portugueses. Imagens da casa de Manhufe levam-nos às suas origens, uma família abastada de proprietários rurais, tradicionalista e monárquica, que, no entanto, não quis cortar as asas aos sonhos do jovem Amadeo que, desde criança, mostrava um grande interesse pelo desenho. Mostra-nos retratos da família e dos seus amigos e confidentes, imagens das suas obras, ouvem-se depoimentos de Lúcia, com quem haveria de casar, do próprio pintor, interpretado por Vítor Norte, e extractos da sua correspondência. Contam-se episódios da sua vida. A câmara percorre a superfície das suas obras intercalando essas paisagens pictóricas com outras dos sítios que frequentou. Representam-se cenas da vida do pintor, interpretadas por Vítor Norte. Num cenário construído à imagem das suas obras, Máscara de Aço e Abismo Azul, recitam versos de Rimbaud. O carácter fragmentário do cubismo transporta-se para o filme que assim nos vai oferecendo as peças de um puzzle que nos permitirão construir o quadro da sua vida.
Perto do final, sequências alternam imagens de pinturas de Amadeo com imagens da Grande Guerra. O seu eclodir obrigou o pintor a regressar a Portugal, onde exposições das suas obras realizadas no Porto e em Lisboa, em1916, foram motivo de controvérsia e escândalo. Quando a guerra terminou e Souza-Cardoso preparou-se para regressar a França, foi atingido pela “gripe espanhola” e morreu. Lúcia Souza-Cardoso conseguiu preservar os seus quadros. Porém, foram precisos algumas décadas para que o seu valor fosse plenamente reconhecido. Só mais tarde, as palavras de Almada Negreiros ditas a propósito da exposição realizada na Liga Naval de Lisboa terão sido totalmente compreendidas: “Amadeo foi a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX. Portanto, começa já hoje, vai à exposição na Liga Naval de Lisboa, tapa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a vida não é assim”.
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