quinta-feira, 9 de outubro de 2025


por Jessica Sérgio Ferreiro
 
Para o tema Argumentários foram escolhidos dois filmes: Porto da Minha Infância, de Manoel de Oliveira, e João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, de Manuel Mozos. Ambos exploram a memória como matéria central da narrativa, recorrendo extensivamente a imagens de arquivo e a uma abordagem reflexiva do tempo passado, vivenciado através do cinema. A câmara funciona como um “órgão exossomático”, capaz de exteriorizar, registar e preservar a memória pessoal e coletiva, permitindo simultaneamente a revisitação do que foi experienciado.
 
Nestes filmes, o cinema transforma-se em um espaço de contemplação e documentação, em que a história, o afetivo e o subjetivo se cruzam, desvelando a dimensão íntima e pública da memória cultural. Como Roland Barthes sugere em A Câmara Clara (1980), a fotografia não regista apenas o passado, mas também antecipa o futuro, um futuro vivido, a condição inevitável do ausente ou do desaparecimento do “isso é” para um “isso foi”. Este “esmagamento do tempo” que, tal como Barthes, John Berger, em Modos de Ver (1999 [1972]), descreve, é o que torna a fotografia poderosa, pois coloca-nos em contato directo com a efemeridade da vida, enquanto simultaneamente conecta o passado com o devir. Assim, a fotografia não é apenas um registo visual, mas um meio de reflexão existencial sobre o tempo e a condição humana. O cinema detém a mesma capacidade, cujo fardo do fluxo temporal é impresso na imagem em movimento. Logo, o cinema é capaz de reconstruir a realidade, influenciando a nossa compreensão histórica e cultural.
 
Assim, estes dois filmes, a par dos dois vultos do cinema nacional (Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa), são testemunhos dos lugares e tempos passados que, como um ente vivo, retornam e devolvem a memória aos lugares transmudados. Como exemplarmente nos mostram, o cinema é uma arte capaz de transcender o seu propósito e destino imediato: é ao mesmo tempo, arquivo e reinvenção, memória e revelação, a própria história do cinema e história do Homem. Em Porto da Minha Infância, Manoel de Oliveira regressa à cidade natal para a reencenar, como quem revisita em sonho a sua própria vida, onde o tempo e a memória coexistem no mesmo espaço. O Porto torna-se palco e personagem de uma autobiografia que é, ao mesmo tempo, um ensaio sobre o próprio acto de recordar, como nos indica a epígrafe que abre o filme: “Recordar momentos dum passado longínquo é viajar fora do tempo”.
 
O filme articula-se como um dispositivo da memória, onde o real e o imaginado se fundem num só. Oliveira convoca imagens de arquivo, fotografias e pequenas reconstituições teatrais, juntamente com imagens de alguns dos seus filmes ou, ainda, do primeiro filme português (Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança de Aurélio da Paz dos Reis, de 1896), misturando o documento e a performance numa estrutura que reflecte a própria natureza do cinema enquanto arte da representação e como documento com potencial histórico. Ao colocar o seu corpo e a sua voz em cena, o realizador transforma o gesto autobiográfico num acto de autoencenação, onde o cineasta-filósofo observa o seu passado à distância, mas também dentro da ficção que ele próprio constrói. E não é a própria imaginação e “re-imaginação”, através do acto de recordar e de contar “estórias”, parte constituinte da própria História do homem? Ainda neste sentido, evocando os momentos da sua juventude vividos nas ruas do Porto com os seus companheiros de boémia, entre eles o escritor Adolfo Casais Monteiro, Manoel de Oliveira recorda os tempos da ditadura e a censura a que ambos foram sujeitos, mencionando o subsequente exílio de Monteiro e a poesia que dele derramou, resultado da saudade sentida e do repúdio ao regime Nazi e aos horrores da guerra que originara. Manoel de Oliveira relembra também os filmes que não pôde fazer, tal como Gigantes do Douro, obra interditada que remanesce apenas como esboço, existindo, contudo, como espectro ou fantasma invisível de um passado que, através da citação e da nomeação, se materializa e inscreve como “algo” real com presença histórica.
 
Porto da Minha Infância pode ser lido como uma reflexão metacinematográfica: Oliveira usa o cinema como espelho da memória e como meio para interrogar a relação entre sujeito, tempo e imagem. Tal como em Histoire(s) du Cinéma, o espaço fílmico torna-se o lugar onde o tempo se materializa, como montagem de fragmentos (de par com a memória humana?), compreendendo indícios de passados no presente, mas também composto por ausências, desaparecimentos, mortes e apagamentos, ou seja, espectros de outrora, presentes, por exemplo, nas ruínas da casa do cineasta, nos lugares extintos, como as pastelarias e o barracão que dera origem ao cinema Batalha, o High-Life. O filme propõe, assim, uma experiência do tempo que se aproxima da filosofia de Bergson: a percepção do tempo é como uma cadeia de instantes separados, momentos e eventos experienciados e recordados. Logo, é uma ilusão semelhante à do cinema, que cria a aparência de movimento a partir da sucessão de fotogramas estáticos. O passado não está atrás de nós, mas no presente, sempre disponível à evocação, seja através dos “lugares de memória” (conceito de Pierre Nora), seja através da própria imagem (material, visualizada ou representada).
 
No plano estético, o filme é exemplificativo do estilo de Manoel de Oliveira: o uso do plano fixo e da palavra como instrumentos de introspecção e reflexão, a composição pensada que expõe o quotidiano de forma poética e a relação entre o teatro e o cinema, são as marcas centrais da sua obra. 
 
Mais do que uma evocação nostálgica, Porto da Minha Infância é um ensaio sobre a própria possibilidade de recordar através das imagens. O Porto que o cineasta filma é uma cidade feita de lembranças. Ao revisitar a sua juventude Oliveira revisita também a história: a sua, a nossa e a de uma arte que, como a memória, vive do que persiste, do que se perde e do se recorda.
 
 
 

domingo, 5 de outubro de 2025

417ª sessão: dia 7 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça, “Porto da Minha Infância” de Manoel de Oliveira no Lucky Star – Cineclube de Braga e os Encontros da Imagem

De 23 de setembro até ao final de outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta, em parceria com os Encontros da Imagem, um ciclo de oito filmes com sessões às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Sob o tema Manifestação de Interesse, a edição de 2025 abre espaço à diversidade de linguagens visuais, explorando as transformações sociais, a memória e noções de identidade. Neste espírito, o cineclube junta-se ao programa com uma seleção que dialoga diretamente com a proposta do festival. 

Na próxima terça-feira, 7 de outubro, exibe-se Porto da Minha Infância, de Manoel de Oliveira. Neste filme, o cineasta regressa às ruas, sons e memórias da sua juventude, compondo um retrato poético da cidade que marcou a sua vida e obra. Misturando imagens de arquivo, encenações e narrativas em voz off, Oliveira transforma o Porto em personagem central, num gesto íntimo de reencontro com o passado e de revisitação da memória através do cinema. 

Manoel de Oliveira, conhecido por um formalismo estético próprio, foi uma figura ímpar no cinema português e internacional, cuja carreira se estendeu por mais de oito décadas, desde os tempos do cinema mudo até ao século XXI. Autor de uma das filmografias mais extensas e singulares do cinema mundial, Manoel de Oliveira assinou obras emblemáticas como Aniki-Bóbó (1942), Acto da Primavera (1963), Amor de Perdição (1979), Francisca (1981), Vale Abraão (1993) ou O Quinto Império (2004). As suas obras centram-se em adaptações literárias, ensaios filosóficos e representações da História e da memória. Explorando o tempo e a palavra, Manoel de Oliveira construiu um universo cinematográfico que atravessa quase um século de história do cinema português.

Porto da Minha Infância estreou no Festival de Veneza em 2001, onde foi premiado, e foi exibido em prestigiados festivais. O elenco inclui Manoel de Oliveira a narrar, bem como Jorge Trêpa e Ricardo Trêpa a interpretar versões da sua juventude e conta com as participações especiais de Agustina Bessa-Luís, Maria de Medeiros, Leonor Silveira, Leonor Baldaque, José Wallenstein e Rogério Samora.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça! 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A Savana e a Montanha (2024) de Paulo Carneiro



por António Cruz Mendes
 
Nesta sessão do Cineclube, estamos perante uma obra de cinema feita com a intensão de impedir uma obra de engenharia. Trata-se, pois, de “cinema militante” e, como tal, a sua apreciação não pode deixar de ser política.
 
Como citadino impenitente, alguém que dificilmente se imagina a viver em Covas do Barroso, tenho que começar por manifestar a minha relutância a respeito de possíveis concepções idealizadas da vida naquelas paragens. Porém, não creio que Paulo Carneiro, que já tinha situado na região de Boticas o seu primeiro filme, Bostofrio (2019), caia nessa tentação. Aquilo que as suas imagens nos revelam não é apenas a beleza das suas serras, ameaçada pela perspectiva da abertura de minas de lítio a céu aberto, mas também a pobreza e o abandono a que se encontram votadas as suas gentes.
 
E nisso se resume o paradoxo do nosso tempo, onde o “progresso” convive com a miséria e os grandes avanços tecnológicos que permitiram a acumulação de uma imensa riqueza nas mãos de alguns, não libertaram muitos mais de uma existência penosa e medíocre. É a consciência dessa desigualdade que encontramos na população de Covas do Barroso. Quem ganha e quem perde com a exploração mineira? Habituados ao esquecimento, é com desconfiança que as pessoas que aí vivem reagem às promessas de mais emprego, zonas de lazer e protecção ambiental. Ouvimo-las dizer que “o lítio vai servir para produzir baterias para os carros dos ricos” e que aqueles que se propõem explorar as minas, “um dia, vão-se embora e deixam-nos os buracos”. É difícil não lhes dar razão. Afinal, é a sua sobrevivência como comunidade com uma identidade própria que está em causa. Em nome de quem pode ser ela sacrificada?
 
O filme de Paulo Carneiro balança entre o documentário e a ficção. Embora protagonizado pela população local, não hesitando quando se trata de nos revelar as condições em que vive e dando-nos conta das conversas e reuniões onde se fala do seu futuro, encena a sua luta recorrendo ao imaginário dos westerns. As imagens das procissões onde se invoca a protecção divina, alternam com desfiles de inspiração carnavalesca onde as gentes do Barroso se reinventam numa trupe de cowboys se prepara para defender a sua causa.
 
Essa ideia, informa-nos Paulo Carneiro, partiu dos próprios residentes. Numa manifestação de evidente ironia, foi essa a forma que engendraram, assumidamente lúdica e caricatural, de dar corpo à sua oposição a processos que vão conhecendo sobretudo pelas notícias que lhes chegam através da comunicação social. De resto, não há lugar para tiros. Não há sobre quem disparar porque os seus inimigos são invisíveis. Ninguém sabe quem se esconde sob o nome de Savannah Resources e que influências detêm sobre aqueles que, no governo, vão decidir sobre o futuro das suas terras. Aliás, nem isso é o mais importante. A fome insaciável de lucros, aquilo que rege a nossa vida económica, só se satisfaz com uma produção e consumo massivos de bens de duvidosa utilidade. O que faz, portanto, sentido não é garantir a prevalência do transporte público, mas sim promover o aumento da produção de carros eléctricos. E, face a isto, a classificação das terras agrícolas do Barroso como “Património da Humanidade” vale muito pouco.
 
E, no entanto, a população de Covas não desiste e diz-nos, como na canção de Carlos Libo, um cantautor local até então desconhecido, “junta-te à luta, vamos vencer”.