sábado, 16 de agosto de 2025

412ª sessão: dia 18 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


“A Raiz do Coração”, esta segunda com o Lucky Star – Cineclube de Braga no Theatro Circo

Em Agosto, o Lucky Star - Cineclube de Braga apresenta quatro filmes menos conhecidos do realizador português Paulo Rocha. O título do ciclo “Paulo Rocha e os Paroxismos” evoca a intensidade narrativa, estética e simbólica que atravessa toda a obra do cineasta. O cinema de Paulo Rocha é feito de excessos sensoriais, rupturas formais e momentos de exaltação — paroxismos que desafiam a narrativa convencional e aproximam o espectador de uma experiência cinematográfica sensível e transformadora. As sessões deste ciclo ocorrem às segundas-feiras durante o mês de Agosto, no Theatro Circo, às 21h30.

Esta segunda, 18 de Agosto, é exibido o filme A Raiz do Coração. O musical político de Paulo Rocha que desafia convenções. Lisboa, em plena campanha eleitoral e sob o calor das festas de Santo António, torna-se palco de uma fábula político-sexual onde o real se mistura com o fantástico. A história acompanha um candidato populista em ascensão que se envolve com Silvia, uma travesti sedutora e enigmática, e cuja relação ameaça ruir as suas ambições. Entre perseguições, chantagens e rituais populares, cruza-se também Vicente, um polícia implacável, e Ju, figura ambígua que tudo observa. Num clima de festa e tensão, cada personagem enfrenta as raízes mais profundas do coração.

Produzido ao longo de vários anos de maturação criativa, o projeto nasceu da vontade de fundir géneros improváveis: musical, farsa, romance e distopia. A banda sonora, composta por José Mário Branco, e diálogos por Regina Guimarães, marcam o compasso da ação e intensifica a atmosfera de excesso e sedução. O elenco é liderado por Luís Miguel Cintra, que interpreta múltiplas personagens, e por Joana Bárcia, Melvil Poupaud e António Durães, acompanhados por Isabel Ruth num dos seus papéis mais enigmáticos. 

Estreado em 2000 no Festival de Locarno e exibido no Festival de Cinema de Turim, A Raíz do Coração conquistou ainda duas nomeações nos Globos de Ouro portugueses — Melhor Atriz (Isabel Ruth) e Melhor Atriz Secundária (Joana Bárcia). Entre elogios à ousadia formal e divisões críticas quanto ao seu excesso estético, o filme permanece uma peça singular do cinema português contemporâneo. Nesta sessão especial, os espectadores terão a oportunidade rara de revisitar — ou descobrir — um título que, mais de duas décadas depois, continua a desafiar convenções e a expandir os limites da narrativa cinematográfica em Portugal.

As sessões do Lucky Star ocorrem durante o mês de agosto no Theatro Circo às segundas-feiras, às 21h30. A entrada custa quatro euros para público geral e dois euros com o cartão quadrilátero. Os sócios do cineclube têm entrada livre, mediante disponibilidade de lugares e reserva antecipada.

Até segunda!


terça-feira, 12 de agosto de 2025

Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988) de Paulo Rocha



por António Cruz Mendes
 
Máscara de Aço contra Abismo Azul foi realizado em 1988. Em 1887 nasceu Amadeo de Souza-Cardoso e o início do filme oferece-nos uma perspectiva da inauguração da grande exposição de obras do pintor realizada por essa ocasião na Fundação Calouste Gulbenkian. A imagem de visitantes ilustres e de figuras irreconhecíveis recortam-se e entrecruzam-se como sombras projectadas sobre o painel Começar, de Almada Negreiros, no átrio do edifício da Fundação. Visitam a exposição, ouvem-se fragmentos das habituais conversas de circunstância e, estranhamente, entre os convidados, circulam trabalhadores que transportam painéis com réplicas de fragmentos de grandes dimensões de obras do pintor.
 
O filme de Paulo Rocha é assim: entre o documentário e a ficção, uma colagem de imagens suportada pelo comentário em off de vozes de um homem e de uma mulher. Pertencem a Máscara de Ferro e Abismo Azul, duas personagens criadas pelo pintor. O primeiro encarna perfil masculino, enérgico e arrogante; a segunda uma imagem feminina delicada e sensual. Vemo-las logo nas imagens iniciais, habitando um cenário construído com fragmentos de pinturas de Amadeo. Anunciam a realização de um “jantar de artistas” onde, a convite de Almada Negreiros, se teriam reunido conhecidas figuras do modernismo português. E, enquanto Abismo Azul tenta celebrar Almada, Máscara de Ferro proclama num tom autoritário: “Nos próximos cem anos será assim: “Amadeo-Pessoa, Pessoa-Amadeo. Mais ninguém”! Serão elas que nos vão conduzir ao longo do filme numa visita guiada à vida e à obra de Amadeo.
 
Paulo Rocha, informa-nos o próprio realizador, não pretendeu realizar um “documentário didáctico” sobre a obra de Amadeo de Souza-Cardoso, nem um “retrato psicológico do artista”. Em vez disso, quis apoiar-se em relatos da vida de Amadeo e em imagens das suas obras para nos dar uma visão impressiva dos primeiros tempos do modernismo em Portugal, tempos de ruptura polémica com tradições naturalistas fortemente enraizadas. Para isso, diz-nos ainda Paulo Rocha, “tentei filmar esse período da sua pintura com um estilo diferente, como se a câmara fosse um pincel na mão do próprio Amadeo, com as suas cores e as suas formas”.
 
Como se sabe, o ecletismo é uma característica da obra de Souza-Cardoso. Em Portugal, o distanciamento da tradição naturalista começou pelo apreço dado por alguns artistas à caricatura e é também por aí que ele começa. Porém, ao contrário de Rafael Bordalo Pinheiro ou de Leal da Câmara, Amadeo não se interessa pela caricatura com o instrumento de crítica política, mas pela possibilidade que ela lhe oferece de experimentar novas formas. Entretanto, com o apoio do seu pai e do estimado tio Chico, parte para Paris, para estudar arquitectura. Um projecto que rapidamente abandona para se entregar à pintura. No meio artístico parisiense, relaciona-se com pintores, escultores e poetas e descobre o cubismo e o futurismo. Os futuristas celebram a máquina e a velocidade e tentam captar imagens de corpos em movimento. O motivo dos cubistas é estático, pode ser uma natureza-morta, quem se movimenta é o artista, que nos oferece dele uma justaposição de imagens fruto da sua observação sob diferentes perpectivas. Amadeo é um experimentalista. Não se sujeita a nenhum código de representação. Desenha figuras, animais e paisagens com formas estilizadas e ressonâncias simbolistas. Inspiram-no a arte africana e motivos da tradição popular. Recorre tanto aos processos do cubismo, como aos do futurismo e ensaia a abstracção. Para ele, o mundo da arte é um território onde não existem fronteiras e não teme fazer pinturas que, sabe-o bem, desagradam ao gosto dominante e, inclusive, ao daqueles que lhe são caros, como o tio Chico.
 
O filme permite-nos retomar os passos da aventura de Amadeo nesse mundo em larga medida desconhecido dos portugueses. Imagens da casa de Manhufe levam-nos às suas origens, uma família abastada de proprietários rurais, tradicionalista e monárquica, que, no entanto, não quis cortar as asas aos sonhos do jovem Amadeo que, desde criança, mostrava um grande interesse pelo desenho. Mostra-nos retratos da família e dos seus amigos e confidentes, imagens das suas obras, ouvem-se depoimentos de Lúcia, com quem haveria de casar, do próprio pintor, interpretado por Vítor Norte, e extractos da sua correspondência. Contam-se episódios da sua vida. A câmara percorre a superfície das suas obras intercalando essas paisagens pictóricas com outras dos sítios que frequentou. Representam-se cenas da vida do pintor, interpretadas por Vítor Norte. Num cenário construído à imagem das suas obras, Máscara de Aço e Abismo Azul, recitam versos de Rimbaud. O carácter fragmentário do cubismo transporta-se para o filme que assim nos vai oferecendo as peças de um puzzle que nos permitirão construir o quadro da sua vida.
 
Perto do final, sequências alternam imagens de pinturas de Amadeo com imagens da Grande Guerra. O seu eclodir obrigou o pintor a regressar a Portugal, onde exposições das suas obras realizadas no Porto e em Lisboa, em1916, foram motivo de controvérsia e escândalo. Quando a guerra terminou e Souza-Cardoso preparou-se para regressar a França, foi atingido pela “gripe espanhola” e morreu. Lúcia Souza-Cardoso conseguiu preservar os seus quadros. Porém, foram precisos algumas décadas para que o seu valor fosse plenamente reconhecido. Só mais tarde, as palavras de Almada Negreiros ditas a propósito da exposição realizada na Liga Naval de Lisboa terão sido totalmente compreendidas: “Amadeo foi a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX. Portanto, começa já hoje, vai à exposição na Liga Naval de Lisboa, tapa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a vida não é assim”. 
 
 

sábado, 9 de agosto de 2025

411ª sessão: dia 11 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


“Máscara de Aço contra Abismo Azul”, esta segunda com o Lucky Star – Cineclube de Braga no Theatro Circo

Em Agosto, o Lucky Star - Cineclube de Braga apresenta quatro filmes menos conhecidos do realizador português Paulo Rocha. O título do ciclo “Paulo Rocha e os Paroxismos” evoca a intensidade narrativa, estética e simbólica que atravessa toda a obra do cineasta. O cinema de Paulo Rocha é feito de excessos sensoriais, rupturas formais e momentos de exaltação — paroxismos que desafiam a narrativa convencional e aproximam o espectador de uma experiência cinematográfica sensível e transformadora. As sessões deste ciclo ocorrem às segundas-feiras durante o mês de Agosto, no Theatro Circo, às 21h30.

Esta segunda, 11 de Agosto, é exibido o filme Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988) O título, retirado de duas das suas obras, simboliza a tensão entre a tradição e a modernidade, mas também entre o crítico e a inspiração artística, presença tanto na pintura como neste gesto cinematográfico de Rocha. 

Com interpretações de Fernando Heitor, Inês de Medeiros, Vítor Norte, entre outros, a obra percorre episódios da vida do pintor e referências ao universo modernista, como o movimento Orpheu e as influências do Futurismo. Exibido inicialmente em Lisboa, em 1988, o filme viria a integrar a programação do Festival de Pesaro, em Itália, no ano seguinte, e tem sido ao longo do tempo redescoberto em ciclos e retrospetivas — como em 2017, aquando da sua reposição em cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa e lançamento em DVD, no âmbito das comemorações do centenário do artista.

Máscara de Aço Contra Abismo Azul é uma viagem visual e sensorial pela arte moderna portuguesa, onde Paulo Rocha funde o vanguardismo de Amadeo de Souza-Cardoso com as inquietações do presente. Entre colagens de imagens, sons e texturas, fragmentos históricos e pulsões poéticas, o filme explora as contradições da criação artística, confrontando a rigidez das formas (a “máscara de aço”), com a fluidez da imaginação. 

Mais do que uma biografia filmada, é um exercício de liberdade formal, onde o cinema se aproxima da pintura para dar corpo a um dos nomes mais inquietos e inovadores da arte portuguesa do século XX.

As sessões do Lucky Star ocorrem durante o mês de agosto no Theatro Circo às segundas-feiras, às 21h30. A entrada custa quatro euros para público geral e dois euros com o cartão quadrilátero. Os sócios do cineclube têm entrada livre, mediante disponibilidade de lugares e reserva antecipada.
 
Até segunda-feira! 




quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987) de Paulo Rocha



por Alexandra Barros
 
O Desejado começa com uma morte anunciada e termina com um nascimento. No início do filme, João (a figura central do filme) é chamado à cabeceira do moribundo, Manuel, seu “padrinho”, para ser incumbido de uma missão na Índia, de contornos políticos. Esta missão colocará em marcha os acontecimentos que culminarão no nascimento que fecha o filme. O bebé, que João toma à sua guarda, é oficialmente fruto dos amores de Tiago e de Antónia. Tiago é possivelmente filho de João. João é possivelmente (mas não assumidamente) filho (bastardo) de Manuel. Manuel é assumidamente pai de Antónia. Antónia está no centro de um triângulo amoroso, formado por Tiago, João e ainda um misterioso terrorista italiano.
 
Entre a morte anunciada do talvez-pai e o nascimento do talvez-filho, João envolve-se em jogos amorosos e políticos, conquista mulheres e poder, é desejado por todas e todos, sem nunca dar totalmente o que esperam dele e sem nunca (se) entender completamente o que quer dos outros. Acende paixões e provoca expectativas, mas mantém-se aquém do que nele é projectado. As mulheres esperam dele um amor exclusivo e devotado, que nunca se cumpre. A classe política espera dele a salvação do país, mas as suas vitórias e glórias políticas são necessariamente efémeras. Como D. Sebastião, João tem uma corte de crentes que se agarram aos mais diversos desejos, embora, no fundo, possivelmente saibam que nunca serão realizados. Um desejo, mesmo que condenado à frustração, pode ainda assim ser preferível quer ao vazio deixado pela impossibilidade de regressar a um passado saudoso, quer à antevisão de um futuro sem brilho.
 
O Desejado é baseado numa obra-prima da literatura japonesa, Genji Monogatari[1], escrito há mil anos por Murasaki Shikibu. A adaptação deste clássico japonês foi o primeiro projecto que Paulo Rocha desejou realizar[2], ainda nos seus tempos de estudante de cinema. Embora tal ambição não seja surpreendente, dada a sua profunda admiração e conhecimento da cultura japonesa, é notável que tenha conseguido realizar o projecto mais de vinte anos depois, transformando a história de um “aristocrata” japonês do século XI num retrato de Portugal no pós-Revolução de Abril. Nas palavras de Paulo Rocha: "Durante os dez anos que passei no Japão, percebi que, aos poucos, os rostos de alguns dos meus amigos portugueses se sobrepunham às personagens do livro do príncipe Genji: os seus amores, as suas agonias, os seus suicídios e as suas ambições políticas tinham muito em comum com a história fantástica escrita há mil anos"[3]. Talvez esta sobreposição não seja assim tão singular ou assombrosa se considerarmos que as complexidades do amor e do desejo, a transitoriedade do sucesso e do poder e os ciclos de ascensão e queda são traços da natureza humana, ou das sociedades, que atravessam espaços, tempos e culturas.
 
O Desejado é ainda alicerçado num traço identitário português, desde logo sinalizado no título do filme. O sebastianismo, mito português com vertentes nacionalistas, utópicas e messiânicas permeia a sociedade portuguesa desde que o “Encoberto” desapareceu na Batalha de Alcácer Quibir, em 1578. Em tempos conturbados ou de crise, invoca-se recorrentemente um salvador da pátria: D. João IV (salvador da independência), o Marquês de Pombal (salvador reformista), Mouzinho de Albuquerque (salvador do império ultramarino), Salazar (salvador da soberania e da tradição), Álvaro Cunhal (salvador da revolução social), Mário Soares (salvador da democracia), Sá Carneiro (o salvador que foi sabotado), Passos Coelho (salvador do país endividado)... Até o primeiro-ministro actual se apresenta como alguém que salvará o país se o deixarmos trabalhar. Os traumas e sonhos do povo português, simbolizados ou evocados pelo sebastianismo, são talvez até mais visíveis agora do que nos anos que se seguiram ao 25 de abril. Veja-se quão elevada é a frequência das seguintes atitudes, tanto na classe política como às mesas dos cafés: a nostalgia de um Portugal idealizado; a glorificação do passado e a frustração com o presente; as desilusões sistemáticas e rapidamente suscitadas por cada novo governo; a crença em líderes supostamente capazes de resolver os problemas de forma “mágica”; as dificuldades em reconhecer e aceitar os erros do nosso passado imperial, colonial e ditatorial, sem querer apagá-los da história ou carregá-los eternamente na forma de culpa colectiva.
 
No final, Paulo Rocha acrescenta ao xadrez do filme tecido com linhas de vários passados e de vários presentes, umas ténues linhas de futuro. O filme termina com um nascimento, que poderá simbolizar crença no porvir, num recomeço. O bebé, que João toma nos seus braços, configura uma oportunidade de começar de novo, de fazer melhor. No entanto, o bebé vem marcado pela tragédia de um duplo suicídio e pelas dúvidas acerca da sua paternidade. A nebulosidade que envolve tanto a paternidade de Tiago (o pai oficial do bebé) como a paternidade de João (o putativo pai), estende-se sobre esta criança, que tanto pode ser filho de um como do outro. Estaremos perante um recomeço ou um novo ciclo marcado pelas mesmas dores e feridas do passado (infidelidade, perda, incerteza, fraqueza, fracasso, abandono, rejeição, solidão, …)? 
 

[1] O Romance de Genji

[1] “Desde os meus tempos do IDHEC que queria filmar O Romance de Gengi [...]  É o meu projecto mais antigo.”, in “Paulo Rocha No Cinema Português”, de Carlos Melo Ferreira, disponível em: https://cinema.fcsh.unl.pt/index.php/revista/article/view/86

[1] Citação transcrita do Catálogo do Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1987 (evento em que o filme estreou) e disponível em: https://www.torinofilmfest.org/en/13-festival-internazionale-cinema-giovani/film/o-desejado/les-montagnes-de-la-lune/1761
 
 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

410ª sessão: dia 4 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


“O Desejado ou As Montanhas da Lua” de Paulo Rocha, esta segunda com o Lucky Star – Cineclube de Braga no Theatro Circo

Em Agosto, o Lucky Star - Cineclube de Braga apresenta quatro filmes menos conhecidos do realizador português Paulo Rocha. O título do ciclo “Paulo Rocha e os Paroxismos” evoca a intensidade narrativa, estética e simbólica que atravessa toda a obra do cineasta. O cinema de Paulo Rocha é feito de excessos sensoriais, rupturas formais e momentos de exaltação — paroxismos que desafiam a narrativa convencional e aproximam o espectador de uma experiência cinematográfica sensível e transformadora. As sessões deste ciclo ocorrem às segundas-feiras durante o mês de Agosto, no Theatro Circo, às 21h30.

Paulo Rocha será conhecido sobretudo por Verdes Anos, o seu primeiro filme e o grande marco do chamado Cinema Novo português. Portuense, imortalizou os seus conterrâneos e a sua cidade com filmes como Mudar de Vida e O Rio do Ouro. Apaixonado pela cultura nipónica desde sempre, tornou-se adido cultural da embaixada portuguesa na cidade de Tóquio, estudando afincadamente a vida e a obra de Wenceslau de Moraes, escritor e militar da Marinha Portuguesa que viveu grande parte da sua vida no Japão. Esta sua obsessão deu origem a pelo menos quatro filmes: A Ilha dos Amores, de 1982, A Ilha de Moraes, de 1984, ambos rodados no Japão, e O Desejado ou As Montanhas da Lua, de 1987, adaptação de um grande clássico da literatura japonesa, e Portugaru-san - O Senhor Portugal em Tokushima, de 1993, filme gravado em vídeo para a RTP e baseado no espectáculo homónimo do Teatro Maizum, com dramaturgia e encenação de Silvina Pereira.

Esta segunda, 4 de Agosto, é exibido O Desejado ou As Montanhas da Lua, adaptação livre do “Romance de Genji” de Shikibu Murasaki, com Luís Miguel Cintra e Manuela de Freitas nos papéis principais. Foi parcialmente rodado no Mosteiro de Tibães. Esta sessão conta com a presença de Manuel Mozos e Carlos Gonçalo, assistente de montagem e de produção, respectivamente.

O filme retrata um cenário político em convulsão, João, protegido e sucessor político de um velho líder político, ascende no poder através do carisma e da manipulação. Quando João é encarregue de trazer de volta Antónia, filha do seu mentor e figura rebelde, vê-se confrontado com sentimentos e dilemas que abalam as suas certezas. Entre jogos de poder, desejo e a herança político-ideológica, Paulo Rocha constrói um drama denso e simbólico sobre identidade e impermanência.


As sessões do Lucky Star ocorrem durante o mês de agosto no pequeno auditório do Theatro Circo às segundas-feiras, às 21h30. A entrada custa quatro euros para público geral e dois euros com o cartão quadrilátero. Os sócios do cineclube têm entrada livre, mediante disponibilidade de lugares e reserva antecipada.
 
Até segunda!


quarta-feira, 30 de julho de 2025

O Grande Engarrafamento (1979) de Luigi Comencini



por António Cruz Mendes
 
Numa das últimas sequências do filme, uma rapariga canta em cima do capot de um carro: “Engarrafamento, paresia da vida”. Poderá o filme ser lido ser lido como uma metáfora de uma vida paradoxalmente paralisada por um progresso alimentado por um insaciável desejo consumo? Os carros acumulam-se. Vêm-se carcaças de automóveis amontoadas na berma e carros parados na estrada. Quem se desloca de carro é facilmente ultrapassado por quem anda a pé ou de bicicleta. Mas, isso pouco importa, porque, diz-nos alguém, eles já não são sobretudo veículos de transporte, mas símbolos de status. O Jaguar de De Benedetti é invejado por um jovem. “Quanto custa?”, quer ele saber. Não importa se está parado como os outros.
 
O dinheiro é rei onde tudo pode ser reconduzido à condição de mercadoria. “Ou se é bom ou se é pobre”, explica-nos o político “socialista”, para quem a pobreza anda sempre acompanhada pela maldade. Com dinheiro, tudo se pode comprar: um Jaguar, uma garrafa de água ou uma mulher. O avvocato De Benedetti pede ao seu lacaio para prometer um contrato à rapariga que canta porque ela o excita e o fã de Montefoschi, um actor famoso, está disposto a trocar os favores da sua esposa por um lugar de motorista na Cinecittá, porque gosta muito de cinema.
 
Há uma criança adormecida no banco traseiro de um carro. Na verdade, ela está a dormir há muitos anos. A “parálise da vida”, essa misteriosa doença do sono para a qual os médicos não encontram cura, não será também ela a expressão metafórica de uma sociedade alienada?
 
Estas podem se possíveis linhas interpretativas de O Grande Engarrafamento. Porém, para Luigi Comencini, “um filme deve suscitar sentimentos e não representar ideias”. Esse monumental engarrafamento de que o filme nos dá conta serve-nos, antes de tudo, como um pretexto para nos contar pequena histórias – a do pai que quer convencer a filha a abortar, porque não quer manchar o nome da família com um descendente filho de pai incógnito; a do político que vê numa burla que deixou inacabada uma obra pública uma oportunidade de negócio; a do casal que, romanticamente, se prepara para comemorar as suas bodas de prata, mas que um pequeno percalço basta para nos informar da fragilidade do seu relacionamento; a do “breve encontro” do motorista da Bimbo com a rapariga do violão, brutalmente interrompido por uma violação em grupo… Histórias que, no seu conjunto, nos dão uma imagem impressiva da vida e da sociedade italiana nos finais dos anos 70.
 
A arte de Luigi Comencini manifesta-se sobretudo num registo trágico-cómico que é frequente no cinema italiano. É nesse “contacto sempre mantido com a vitalidade maravilhosa da comédia italiana”, diz-nos Georges Legrand, “que Comencini se afirmou como um autor de filmes, no pleno sentido da palavra”. Em O Grande Engarrafamento não faltam pequenas notas de humor. Desde logo, os cartazes de “Respeite o limite de velocidade” e de “Modere a velocidade” que se podem entrever na berma da estrada, ou o rapaz que, diante dos carros parados, pede boleia para Nápoles. Há uma evidente ironia nas sequências que nos mostram o moribundo que, numa ambulância, impedida de chegar ao hospital, faz contas à indemnização que poderá receber se, por exemplo, lhe amputarem uma perna; ou a multidão de pessoas adultas a alimentar-se com comida para bebés; ou aquela onde a notícia de uma vitória futebolística da Itália faz, por momentos, esquecer as misérias da longa espera e dá azo a manifestações de júbilo patriótico; a do marido que, descobrindo a traição da mulher, ameaça “atirar-se para baixo de um carro”, obviamente, parado; ou, ainda, a que nos mostram um jovem que anseia por um encontro amoroso e que acaba por alcançar uma espécie de orgasmo através das batidas que provoca com o seu automóvel. Enfim, a própria situação de carros impedidos de andar tem a sua comicidade. Mas, trata-se de um humor ácido que nos oferece uma visão pessimista da humanidade e do mundo em que vivemos.
 
Em todo o filme, apenas uma breve nota de esperança: numa das cenas finais, quando, finalmente, parece que os carros vão retomar a sua marcha, a rapariga que foi violada e o motorista da Bimbo, estacionados lado a lado, estendem os braços e dão as mãos. 
 
 

domingo, 27 de julho de 2025

409ª sessão: dia 29 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“O Grande Engarrafamento” de Luigi Comencini, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star - Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Esta terça-feira, 29 de julho, encerramos o ciclo com a antestreia de “O Grande Engarrafamento” (1979), de Luigi Comencini. Após esta sessão, a distribuidora Nitrato lançará oficialmente a versão restaurada em agosto, passando, a partir desse mês, a estar disponível para exibição nos cinemas comerciais.

O filme retrata um dia aparentemente banal em Roma, quando um engarrafamento gigantesco paralisa a autoestrada nos arredores da cidade. À medida que as horas passam sem solução à vista, condutores e passageiros — de várias classes sociais, idades e origens — veem-se forçados a confrontar os seus medos, frustrações e hipocrisias. Entre pequenas histórias e grandes tensões, revela-se um microcosmo da sociedade italiana (e europeia) dos anos 70, onde a alienação e o absurdo da vida moderna se misturam com humor ácido e crítica social. O Grande Engarrafamento é uma parábola tragicómica sobre a incapacidade coletiva de avançar — literal e metaforicamente.

Luigi Comencini foi um renomado realizador italiano, nascido em 1916. Começou a sua carreira como documentarista e foi um dos fundadores da Cinemateca Italiana. Ao longo das décadas de 1950 a 1970, afirmou-se como um mestre da commedia all’italiana. Filmes como “Pane, amore e fantasia” (1953), “Tutti a casa” (1960) e “Lo scopone scientifico” (1972) revelam o seu talento para retratar personagens comuns em situações de crise.

Em 1979, “O Grande Engarrafamento” foi selecionado para competição no Festival de Cannes, concorrendo à Palma de Ouro. Embora não tenha ganho o prémio principal, a sua presença em Cannes marcou a projeção internacional da obra. Luigi Comencini foi sempre reconhecido nos festivais mais prestigiados, tendo recebido posteriormente o Leão de Ouro de Carreira em Veneza, em 1987.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O Charme Discreto da Burguesia (1972) de Luis Buñuel



por Estela Cosme
 
Lugar certo, dia errado. É um mal-entendido que inicia este filme sobre um grupo de amigos desencontrados e que o destino os impede de se sentarem juntos à mesa mais do que uma vez. Este grupo de burgueses tudo tenta para poder partilhar uma refeição, mas as forças do mundo absurdo e irónico de Buñuel são mais fortes. Mesmo quando o apetite é grande, o azar é maior.
 
O grupo é impedido de continuar com a sua refeição um total de sete vezes, nas quais não se reúnem as condições mínimas para um convívio agradável e ininterrupto (até a comida e a bebida falham). Certamente, à terceira seria de vez (ou à quarta ou quinta). Tudo parece ir contra os planos deste grupo, que parece remar contra uma corrente de péssimos timings e de sonhos inoportunos.
 
Esta é uma comédia filmada de forma muito direta e sem rodeios, nada do seu estilo nos parece indicar que estamos perante uma sátira mordaz até que vemos um morto a ser velado no restaurante onde os amigos tentam jantar. O falecido é o dono do estabelecimento e os choros são da viúva, agora rodeada dos empregados do marido, à espera que a funerária o coloque num caixão, como dita a tradição cristã. Como é lógico, perde-se o apetite (a causa da morte não é revelada, pelo que intoxicação alimentar não está fora de questão) e o jantar é adiado outra vez. Esta é a segunda tentativa falhada numa saga cheia de imprevistos e transtornos (quer hilariantes quer macabros) para este grupo de amigos.
 
Mas afinal quem são estas pessoas para além dos seus inconvenientes? O que as une em amizade ou, talvez, em mera proximidade? Os três homens são parceiros no negócio ilícito da droga, facilitado graças à mala diplomática do Embaixador da República de Miranda, também ele envolvido num caso amoroso com uma das mulheres do grupo, por sua vez casada com um dos sócios do embaixador. Ela também é irmã de uma das outras integrantes do grupo. A terceira mulher é casada com o outro sócio do Embaixador. É por isso um grupo de pessoas reunidas por conveniência e circunstância e, claro, estatuto social. No entanto, mais nada sabemos sobre a vida íntima destas pessoas que se sentam à mesa. Fora dos seus empregados e conhecidos, das suas casas opulentas e dos seus carros de luxo, nada sabemos sobre a sua família mais extensa ou sobre as suas ocupações profissionais. Poucos detalhes são dados sobre a sua personalidade ou sobre os seus interesses, para além da bebida que preferem à mesa. Nada sobre eles é profundo ou distinguível, e por isso o seu charme é meramente discreto, longe de ser notável.
 
Esta é então uma história de uma classe social insípida, cuja única preocupação são os seus deleites carnais e a sua agenda social. Os inconvenientes que lhes surgem são a coisa mais interessante sobre eles, sejam eles obras do acaso ou do inconsciente. Não é de estranhar que Buñuel prefira por vezes mostrar os sonhos das outras pessoas que nem sequer pertencem ao grupo, e que parecem entram nas vidas destas personagens para lhes trazer uma partilha desafiante, um catalisador para refletir e mudar.
 
Contudo, o comportamento do grupo permanece inalterado e focado no seu único objetivo: jantar. Como consequência, este torna-se mais difícil de alcançar e nem no reino dos sonhos ele é atingido. Aliás, neste filme tudo o que é real parece um sonho, e tudo o que é um sonho parece real. Não podemos ter certeza de nada, nem do final, nem mesmo quando este parece ser permanente (não o é).
 
A imagem mais marcante do filme é repetida várias vezes e, inclusive, repete-se na cena final: o grupo de amigos caminha por uma estrada no meio do nada. O destino parece ser o mesmo de sempre: uma sala de jantar. Mas suspeitamos que, uma vez mais, o desfecho será sempre o mesmo e a refeição ficará suspensa. Infelizmente para estes burgueses, a fome, ao contrário do charme, nunca é discreta. 
 
 

domingo, 20 de julho de 2025

408ª sessão: dia 22 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“O Charme Discreto da Burguesia” de Luis Buñuel, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star - Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Esta terça-feira, 22 de Julho, exibimos o filme O Charme Discreto da Burguesia (1972) de Buñuel. Neste filme, um grupo de amigos da alta burguesia tenta repetidamente reunir-se para jantar, mas é constantemente interrompido por situações absurdas, surreais ou inexplicáveis. À medida que os encontros fracassam, o filme mergulha em sonhos dentro de sonhos, desmontando com ironia feroz os rituais, hipocrisias e a falsa moral da classe dominante. Buñuel mistura comédia e crítica social num dos seus filmes mais emblemáticos e desconcertantes.

Luis Buñuel foi um dos mais influentes cineastas do século XX. Nascido em Espanha, em 1900, e falecido no México em 1983, construiu uma carreira que atravessou vários países (Espanha, França, México) e diversas fases estilísticas. A sua obra é marcada por uma crítica mordaz à religião institucionalizada, à hipocrisia da burguesia, à repressão do desejo, ao autoritarismo e ao vazio existencial. Elementos como o sonho, o acaso, o absurdo e o simbolismo são recorrentes nos seus filmes, que frequentemente rompem com a narrativa linear.

Entre os seus trabalhos mais emblemáticos contam-se Um Cão Andaluz (1929), em parceria com Salvador Dalí, Viridiana (1961), censurado na Espanha franquista, Belle de Jour (1967), com Catherine Deneuve, e O Charme Discreto da Burguesia (1972), vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, tendo sido ainda nomeado para Melhor Argumento Original. Recebeu ainda o prémio de Melhor Filme da Sociedade Nacional de Críticos de Cinema dos EUA e foi nomeado para o BAFTA de Melhor Filme em Língua Não Inglesa. Foi exibido em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. Com uma filmografia provocadora, Buñuel é uma referência incontornável no cinema moderno que inspirou várias gerações de cineastas.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quarta-feira, 16 de julho de 2025

A Máquina de Matar Pessoas Más (1952) de Roberto Rosselini



por Alexandra Barros
 
A Máquina de Matar Pessoas Más arranca com uma belíssima cena em que vemos o cenário do filme a ser montado: “Eis o que precisamos: um dia e um mar calmos, com nuvens brancas no céu. Depois, uma montanha de cartão, deserta, muda e triste, que vou tapar com casas. Aqui, é a Câmara Municipal, com a sua fonte, e as belas casas, em que vivem os ricos. Agora que já expliquei a cena, irei apresentar as personagens: trapaceiros, intrujões e canalhas, inúteis, dissimulados, tolos, espezinhados e prepotentes, resmungões e descontentes. Sejam belos ou feios, todos se parecem um pouco connosco.” Com um passe de magia, a maquette de cartão é transformada no seu modelo real, Amalfi, uma pequena aldeia piscatória, situada aos pés de uma montanha íngreme, na costa sudoeste de Itália, não longe de Nápoles.
 
Suspeitamos que o dia calmo anunciado no prólogo não vai durar quando dois amigos americanos explicam às mulheres que os acompanham como planeiam ficar ricos, transformando o cemitério local num resort turístico. O cemitério é vendido aos americanos, secretamente, pelo próprio presidente da Câmara. “Meus senhores, isto é uma comédia.”, fora anunciado no prólogo deste filme, rodado entre 1948 e 1950. Em 2025, o presidente dos Estados Unidos anuncia, com orgulho e grande pompa, um plano para transformar Gaza na Riviera do Médio Oriente, e partilha nas redes sociais um vídeo criado com recurso a IA desta idealizada “estância balnear com hotéis, estátuas douradas, dinheiro a cair do céu, iates, bailarinas exóticas, Elon Musk a comer iguarias locais e Donald Trump e Netanyahu deitados numa espreguiçadeira a beber cocktails”[1]. A realidade supera sempre a ficção.
 
Alegando interesses públicos, o presidente da Câmara tenta apropriar-se também da herança de D. Amália, a usurária a quem toda a comunidade deve dinheiro. Essa tentativa coloca-o na lista negra de Celestino, o fotógrafo da aldeia, a quem um estranho forasteiro (que Celestino crê ser Santo André, o padroeiro de Amalfi) deu o poder de matar através da fotografia. Inicialmente reticente em usar tal poder, rapidamente este o inebria e pequenos ou grandes egoísmos, ganâncias e prepotências passam a ser castigados sem qualquer reflexão. A solução para os problemas do mundo vem a revelar-se mais complexa que a simples eliminação dos “maus”. A própria distinção entre “maus” e “bons” começa a ser difícil de efectuar. A máquina de matar pessoas será divina ou demoníaca?
 
O filme levanta várias questões morais e filosóficas. O bem e o mal são entidades absolutas e facilmente distinguíveis? A quem cabe decidir quem são os bons e os maus? Que consequências tem o fazer justiça pelas próprias mãos?
 
Por outro lado, o filme evoca o papel da fotografia como instrumento de poder e manipulação, ou o conceito de fotografia como arma letal, ideias exploradas por pensadores como Susan Sontag[2] e Roland Barthes[3], e realizadores como Michelangelo Antonioni[4] e Michael Powell[5], entre outros. Para o bem e para o mal, uma imagem tanto é capaz de expor como de distorcer a realidade, ao congelar um momento ou mostrando pessoas e acontecimentos a partir de perspectivas específicas. O fotojornalismo, através da denúncia de situações, pode determinar a mudança de percepção sobre acontecimentos e circunstâncias pouco visíveis ou distantes (como a fotografia da “menina do Napalm”). A exposição de fotografias privadas quer por paparazzi, quer por fugas de informação ou cyberbullying pode revelar mentiras e hipocrisias, destruir reputações, causar danos psicológicos e financeiros, por vezes em nome de causas nobres e boas intenções, outras assumidamente por lucro, vinganças pessoais, chantagem emocional, etc.
 
Rossellini não ficou satisfeito com este filme em que se afastou do neorrealismo engajado e crítico dos célebres Roma, Cidade Aberta (1945) ou Alemanha, Ano Zero (1948). No entanto, a combinação de comédia, sátira, fantasia e fábula moral, com elementos característicos do neorrealismo, como: cenários reais, cenas documentais e actores não profissionais, seria considerada ousada e inovadora, por parte da crítica. O filme é visto actualmente como uma obra significativa dentro do seu trajecto, um ponto de transição entre o Rossellini neorrealista e o Rossellini filosófico e espiritual. Apesar da aparente leveza do filme, ele prenuncia, através do microcosmo amalfitano, desenvolvimentos culturais e políticos globais (o poder das imagens; a desigualdade crescente no acesso e distribuição de riqueza; os excessos, bizarrias e non-sense de projectos turísticos; a tendência para o uso abusivo do poder mesmo pelos mais bem-intencionados, ...) e explora questões que têm hoje uma relevância acrescida, face a esses desenvolvimentos. 
 

[1] Fonte: https://www.dn.pt/internacional/dinheiro-a-cair-do-céu-e-luxo-trump-divulga-filme-de-faixa-de-gaza-transformada-em-destino-turístico

[2] Susan Sontag, Sobre a Fotografia (1977)

[3] Roland Barthes, A câmara clara (1980)

[4] Blow-Up, Michelangelo Antonioni (1966)

[5] Peeping Tom, Michael Powell (1960)