domingo, 13 de abril de 2025

392ª sessão: dia 15 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Great Yarmouth: Provisional Figures de Marco Martins, esta terça-feira
 
Para o mês de abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta um ciclo de cinema intitulado “(Sobre)vivências num Mundo Inóspito. Olhares sobre exclusões e resistências” que conta com a parceria do Fórum Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o projeto Migra Media Acts do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. O ciclo é composto por filmes que representam criticamente a vulnerabilidade humana e as condições político-económicas que a potenciam, dando a conhecer problemáticas e formas de resistência.

Esta terça-feira, 15 de abril, o ciclo prossegue com o filme Great Yarmouth: Provisional Figures (2022), de Marco Martins. O realizador português, muito conhecido pelo premiado filme Alice, de 2005, pertence à primeira leva de cineastas formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema e tem vindo a realizar filmes de autor desde os anos 90. Great Yarmouth: Provisional Figures foi nomeado na categoria Golden Shell Prize no San Sebastián Internacional Film Festival e ganhou vários prémios em diferentes categorias no Guadalajara Internacional Film Festival (Festival ibero-americano) e nos Prémios Sophia, em Portugal, em 2024.

O filme aborda a situação socioeconómica dos imigrantes portugueses em Great Yarmouth, três meses antes do Brexit, explorando as dinâmicas entre migração e exploração laboral numa região caracteriza-da pelo alto índice de desemprego e pelo apoio expressivo à saída do Reino Unido da União Europeia. A narrativa foca-se na personagem Tânia, uma ex-trabalhadora fabril portuguesa, que chefia uma rede de recrutamento de mão de obra imigrante para as fábricas de peru locais. A rede funciona explorando portugueses recém-chegados, acomodando-os em condições precárias em antigos hotéis da cidade.

Antes das gravações começarem, os atores passaram por uma preparação imersiva onde trabalharam ao lado dos trabalhadores da fábrica, para melhor incorporarem os papéis. Durante o filme o realizador incluiu alguns elementos simbólicos, como, por exemplo, um homem que observa as aves em migração, que subtilmente faz um paralelismo aos movimentos dos migrantes dentro da narrativa.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça-feira!

quinta-feira, 10 de abril de 2025

La Rebelión de las Flores (2022) de Maria Laura Vasquez



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme A Flor do Buriti (2022), de Renée Nader Messora e João Salaviza, exibido na semana passada, expressava preocupações ecológicas e abordava os diferentes tipos de violência contra povos ancestrais. O recurso ao cinema, não somente como ferramenta de denúncia e activismo político, mas como meio visual de representação cultural (de uma estética inclusive) e de comunicação da História Oral destas nações, é, enquanto tal, um gesto subversivo e decolonial que contraria paradigmas de pensamento hegemónicos e modos convencionais de representação.
 
No alinhamento da programação deste ciclo, La Rebelión de Las Flores (2022), de Maria Laura Vasquez, dá continuidade e complementa o filme anterior, expondo, numa perspectiva cinematográfica e documental diferente, os problemas e os modos de resistir postos em prática na actualidade, bem como a relação estreita destes com os desafios globais.
 
O recurso ao cinema por parte de nações indígenas tem vindo a ganhar maior importância, ou visibilidade, desde o emblemático filme The Kayapo: Out of the Forest, de 1989, no qual os Kayapo do Brasil pegam nas câmaras de filmar para registar a sua cultura, como forma de resistir às ameaças constantes (e arquisseculares) de apagamento do seu povo e do seu modo de vida, de par com a luta, inclusive legal, para salvaguardar o direito à terra e à sua preservação, denunciando já a lógica extractivista global e prejudicial para o meio ambiente. O trabalho de campo e a realização do documentário contou com a colaboração próxima do antropólogo Terence Turner.
 
La Rebelión de las Flores acompanha um grupo de mulheres indígenas argentinas que, em 2019, ocuparam o Ministério do Interior, em Buenos Aires. Vindas de diversas regiões e nações indígenas da Argentina (Mapuche, Qom, Guaraní, Diaguita, Huarpe, Tonokote, Charrúa, entre outras), com a presença da carismática activista e Weychafe Mapuche Moira Míllan, exigem o diálogo direto com o Ministro do Interior para exigir o restabelecimento dos seus direitos, denunciando a violência estrutural contra seus corpos e os seus territórios.
 
O grupo de mulheres acusam, corajosamente, as empresas privadas, as grandes corporações e a conivência do Estado na prática de vários crimes e tipos de violência contra as suas comunidades e territórios, delatando as ameaças de expropriação para exploração mineira e/ou construção de barragens que submergirão a vários metros de profundidade os seus territórios, bem como a falta de água e a sua contaminação pela extração mineral, causando a infertilidade dos solos e, subsequentemente, a pobreza e a fome. Relatam, ainda, os ataques com incêndios, os raptos e o espancamento de jovens ou, ainda, a violação das meninas como forma de opressão para os obrigar a abandonar as suas casas e terras ancestrais.
 
A ocupação levada a cabo por estas mulheres não é apenas um protesto político, é também um gesto espiritual, põe avante uma cosmovisão indígena e/ou ecofeminista, bem como uma filosofia e modo de conhecimento imbuído no corpo em relação com a natureza (memória, história oral, práticas culturais, etc.). Acto, o qual, na partilha, a produção de conhecimento e a necessidade de um novo pacto social e político ganha expressividade nas ruas da capital, quando outras mulheres, não indígenas, e alguns homens se juntam à ocupação, reconhecendo a urgência em encontrar novas soluções para resolver problemas globais, estes com repercussões a vários níveis e pontos geográficos (por vezes com maior impacto sobre alguns grupos de pessoas, geralmente diferenciadas pelo racismo estrutural).
 
A presença da antropóloga Rita Segato, académica de referência na Argentina e não só, no que concerne aos estudos de género e o estudo da violência enquanto matriz da estrutura colonial e patriarcal, é pontual e surge como aliada e mediadora entre a luta das mulheres indígenas e os debates feministas e académicos, reforçando, assim, a necessidade de um debate público e colectivo com visibilidade. Da mesma forma,  a breve presença, mas marcante, de Nora Cortiñas, uma das fundadoras Madres de la Plaza de Mayo que lutou contra o fascismo, nos finais dos anos 70, na Argentina, reforça a ideia de união e unidade entre as várias lutas que, mesmo em épocas e contextos diferentes, têm causas comuns. O documentário colmata, ainda, a invisibilidade mediática e político-institucional destes movimentos sociais e políticos.
 
Os planos de imagem variam entre planos gerais e aproximados, filmados com a câmara à mão (por vezes até com o telemóvel), típicos do documentário, sobretudo quando se regista um evento que decorre no presente, sem a possibilidade de repetição (ex. ocupação do Ministério, vários “delegados” e responsáveis da administração que aparecem para demover o grupo de mulheres da sua missão). Não obstante, este documentário rompe com a lógica tradicional da representação. Em vez de falar “sobre” as mulheres indígenas e/ou de as representar como a “outra”, o filme fala com elas e por meio delas, dando espaço para que expressem suas próprias palavras, cantos, rituais e silêncios, fomentando uma estética da escuta.
 
Grandes planos gerais da natureza queimadas/incendiadas, captados com drone, denunciam os crimes contra a natureza e a própria vida. Contudo, a realizadora alterna esta visão com planos de paisagens naturais imponentes, colocando-os em diálogo com a força das mulheres, o seu potencial criador e gerador de vida, em oposição a um sistema hipertecnológico e hiperindustrial, reprodutor da morte.
 
A Rebelión de las Flores é cada vez mais pertinente, atendendo à crise política actual vivida na Argentina, em que vários grupos de pessoas, as quais compõem grande parte da massa civil, estão sob ataque (inclusive as comunidades LGBTIQ+), ocorrendo várias marchas, manifestações e movimentos de luta contra o governo tido como fascista. A luta destas mulheres indígenas continua e conta com vários aliados (os quais estão sob constantes ameaças, perseguições e aprisionamentos), persistindo enquanto “Movimiento Mujeres y Diversidades Indígenas por el Buen Vivir” e as “Voces de los Territorios”.
 
 

Bibliografia consultada/leituras recomendadas

 

Herrero, Y. (2019). Los cinco elementos de la crisis ecológica y civilizatoria. Libros en Acción / FUHEM Ecosocial.

Lugones, M. (2008). “Colonialidad y género”. Tabula Rasa, 9, 73–101. https://doi.org/10.25058/20112742.182

Salleh, A. (1997). Ecofeminism as politics: Nature, Marx and the postmodern. Zed Books.

Segato, R. L. (2018). La guerra contra las mujeres (5ª ed.). Traficantes de Sueños.

Segato, R. L. (2013). Las estructuras elementales de la violencia: Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Prometeo Libros.

Shiva, V. (1988). Staying alive: Women, ecology and development. Zed Books.

Walsh, C., & Mignolo, W. D. (2018). On decoloniality: Concepts, analytics, praxis. Duke University Press.

 

 

 Folha de Sala

quarta-feira, 9 de abril de 2025

O Teu Nome É (2021) de Paulo Patrício



por Catarina Bernardo
 
A curta-metragem O Teu Nome É não é apenas um documentário que retrata um acontecimento verídico, mas é também um meio de resistência, escuta e homenagem.
 
Os traços frágeis que parecem desenhados à mão levam-nos a conhecer o crime que apesar de chocante, foi pouco noticiado na época, mas que, nos dias de hoje, se tornou num exemplo da luta contra a violência de género, transfobia, desigualdade social e invisibilidade. Uma obra que traz testemunhos reais da vida da Gisberta, tanto de amigos da mesma como de dois dos jovens envolvidos no crime, num retrato complexo de como a sociedade que falhou em proteger uma vida vulnerável, mas, também, na educação dos jovens e na sensibilidade social.
 
O filme conta com vários relatos de pessoas próximas da Gisberta, desde algumas histórias sobre a mesma, o seu estado de saúde e como ela conheceu os dois jovens envolvidos no caso. Os quais relatam alguns momentos vividos com a mesma e os motivos que os levou a cometerem os crimes. Durante o filme, alguns comentários sobre a discriminação de pessoas transexuais são bastante notáveis.
 
O realizador Paulo Patrício recorre à animação não apenas como estratégia para salvaguardar a identidade das testemunhas, mas também como instrumento estético que introduz uma suavidade visual, e a paleta de cores suave ajuda a criar uma atmosfera que respeita a sensibilidade do tema abordado. Esta escolha, longe de atenuar a gravidade dos acontecimentos, proporciona uma maior liberdade criativa na representação dos sentimentos, das memórias e dos espaços, permitindo abordar a violência de forma indireta. Dessa forma, o filme transmite, com sensibilidade e respeito, a dor, o abandono e a solidão de Gisberta, conferindo à narrativa um tom poético e profundamente humano.
 
A animação mantém uma relação constante com o som, respeitando o silêncio, a respiração e os gestos. Essa harmonia cria uma atmosfera de sensibilidade, como se respeitasse o tempo das pessoas para se expressarem.
 
O filme impacta justamente por não ser agressivo, mas sim subtil. Adota uma estética de empatia, evitando o sensacionalismo e escolhendo acolher o espectador, convidando-o a ouvir, sentir e refletir.
 
A história da Gisberta tornou-se um símbolo na luta pelos direitos humanos, contra a violência e a discriminação, e representa uma resistência sobre a necessidade de uma sociedade mais justa e inclusiva. Desde 2021 que o colectivo LGBTIQ+ do Porto tem vindo a realizar debates sobre transfobia e lançou a petição para que o nome da rua onde Gisberta foi assassinada lhe fizesse homenagem. O pedido foi aprovado em 2024 e o nome da rua em questão, situada na freguesia do Bonfim, foi alterado para Gisberta Salce Júnior no mesmo ano, como uma forma de manter viva a memória desta mulher e para que crimes como este não voltem a acontecer. 
 
 

sábado, 5 de abril de 2025

391ª sessão: dia 8 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça, uma longa e uma curta pela dignidade
 
Para o mês de abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta um ciclo de cinema intitulado “(Sobre)vivências num Mundo Inóspito. Olhares sobre exclusões e resistências” que conta com a parceria do Fórum Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o projecto Migra Media Acts do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. O ciclo é composto por filmes que representam criticamente a vulnerabilidade humana e as condições político-económicas que a potenciam, dando a conhecer problemáticas e formas de resistência.

Esta terça-feira, 8 de abril, serão exibidos dois filmes. O primeiro é a estreia nacional de La Rebelión de las Flores (2022), de Maria Vasquez, e o segundo é uma curta de animação O Teu Nome É (2021), de Paulo Patrício.

La Rebelión de las Flores é um documentário que retrata a ocupação pacífica do Ministério do Interior da Argentina por mulheres de diversas nações indígenas, em 2019. Vindas de regiões como Formosa, Chaco, Santa Fé, Misiones, Salta, Neuquén e Chubut, protestaram contra a destruição sistemática de seus territórios e cultura, exigindo o fim do terricídeo e genocídio das comunidades indígenas. Enfrentando a indiferença do Estado e da sociedade, o grupo de mulheres, num acto de protesto e resistência, luta pela urgência de uma forma de vida baseada na reciprocidade e solidariedade entre os povos e a natureza.

A realizadora fez o registo directo do evento, tido como único na história global. Não se tratando mera-mente de uma nova luta, mas de uma exigência ancestral, refere: “Cada cena era um eco dentro de um eco, cenas repetidas incessantemente durante mais de cinco séculos. Ali, as flores nativas rebelaram-se mais uma vez contra 500 anos de desapropriação e opressão”.

O Teu Nome É, de Paulo Patrício, é uma curta-metragem baseada em factos reais que ilustra a história da morte de Gisberta Salce Jr., transexual e sem-abrigo, que foi torturada no Porto em 2006. O registo documental e a animação dão voz aos testemunhos das amigas de Gisberta. Com um estilo visual sensível e envolvente, “O Teu Nome É” revela-se como um poderoso trabalho de memória e de luta contra qualquer tipo de discriminação.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça!


quarta-feira, 2 de abril de 2025

A Flor do Buriti (2023) de Renée Nader Messora e João salaviza


por Estela Cosme
 
O sufoco do medo e da memória são incessantes em A Flor do Buriti, no qual nem a beleza natural da floresta brasileira nos consegue distrair dos horrores vividos e contados pelo povo Krahô no Brasil. O filme narra os eventos deste povo desde 1940, ano em que um massacre matou dezenas de pessoas indígenas que protegiam as suas terras e as suas casas de fazendeiros invasores. Seguiu-se a adesão forçada a um grupo paramilitar durante a ditadura militar nos anos 60, lembrada vivamente pelos membros da comunidade na atualidade. Por sua vez, estes descendentes têm ainda de lutar incessantemente pela proteção do seu território e pelo seu direito a existir em comunidade.
 
A ameaça dos Krahô tem o nome de cupē, uma designação previamente atribuída aos portugueses na época colonial e que agora é usada como referência aos fazendeiros que tanto ameaçam as nações indígenas da região. A ganância levou à violência e ao massacre contra os povos originários que se opuseram ferozmente à exploração das suas terras para a pecuária de larga escala da época moderna. Num mundo em que a vida humana indígena é desprezada e aniquilada para o bem do gado, os fazendeiros surgem como o pior dos males contra a natureza no Brasil contemporâneo. Compete aos Krahô proteger e zelar pela preservação do meio ambiente que os rodeia, assim como o estilo de vida comunitário que acompanha os seus esforços para proteger as suas terras ancestrais.
 
A resistência tem um preço demasiado elevado em todas as épocas retratadas no filme. Os Krahô são perseguidos não só pelos interesses gananciosos dos cupē, bem como pelos interesses opressores de um Estado militarizado e, mais tarde, de um Estado ainda indiferente e, até, hostil à luta e causa indígena. No entanto, o filme demonstra a importância que esta tem para os povos originários que se encontram sem outra alternativa a não ser a recusar vergar-se às forças opressoras do poder global e da criminalidade local.
 
Assistir a um retrato tão poderoso do Krahô não deixa margem para indiferenças por parte dos espectadores, sobretudo quando grande parte da narrativa é vista pelos olhos de Jotàt, uma jovem atormentada nos seus sonhos pelo sofrimento dos seus antepassados. Num mundo percepcionado através do medo, a mãe e o tio fazem tudo para eliminar as inquietudes da filha, embora saibam que as ameaças são reais e o passado se possa vir a repetir.
 
Contudo, as memórias do passado não se podem simplesmente evitar ou até expungir-se da alma, coletiva ou individual. O passado dos Krahô tem um peso incalculável na consciência deste povo e, por isso, ele é retratado pelos próprios com tanta vivacidade e responsabilidade. Assim, o filme presenteia-nos com a sua contribuição incrivelmente marcante. Não é de todo surpreendente que o filme tenha ganho o prémio de Melhor Elenco na sua estreia no Festival de Cannes em 2023.
 
Porém, o filme não se fica por uma mera recriação da história dos Krahô, ensina-nos que, se o passado é cruel, o presente é determinante para que a história seja redirecionada. Este é o motivo que leva dois membros da aldeia, Hyjnõ e Pratpro, à capital brasileira para se encontrarem com membros de outras comunidades indígenas, também elas a enfrentar memórias e eventos traumáticos e a tentar prevenir um futuro igualmente nefasto. Afinal, a união faz a força e é em Brasília onde os Krahô podem finalmente ver a sua realidade espelhada. É lá onde talvez possam encontrar as soluções que tanto procuram para os males que tanto os atormentam.
 
No entanto, quando estamos perto de encontrar algum tipo de resposta, o filme regressa novamente à terra dos Krahô, onde assistimos ao nascimento tão esperado do filho de Hyjnõ. A mãe faz o seu melhor para evitar que o bebé seja sufocado no parto, pois a sombra do medo surge logo à nascença. Pouco tempo depois, a criança está segura no peito da mãe, partilhando já os receios que assolam a sua tribo. Contudo, também nasce com ela a esperança de um mundo melhor, um mundo sem medo e com liberdade. E essa é uma possibilidade que se torna tão sufocante como o medo. 
 
 
 

sábado, 29 de março de 2025

390ª sessão: dia 1 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


A Flor do Buriti esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta um ciclo de cinema intitulado “(So-bre)vivências num Mundo Inóspito. Olhares sobre exclusões e resistências” que conta com a parceria do Fórum Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o projeto Migra Media Acts do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho.
 
O ciclo é composto por filmes que representam criticamente a vulnerabilidade humana e as condições político-económicas que a potenciam, dando a conhecer problemáticas e formas de resistência.

Esta terça-feira, 1 de abril, o ciclo arranca com o filme A Flor do Buriti (2023), de Renée Nader Messora e João Salaviza. A Flor do Buriti explora três momentos da história do povo Krahô, passando pelas ditaduras brasileiras, durante as quais o povo Krakô foi perseguido, massacrado e obrigado a juntar-se a unidades militares, focando-se, ainda, nos desafios contemporâneos. O filme expõe a luta contínua do povo Krahô que, perante velhas e novas ameaças, encontra na sua relação com a natureza e nas tradições antigas modos de resistir.

Esta obra cinematográfica foi filmada em 16mm e o argumento foi escrito com o povo Krahô, envolvendo as comunidades das aldeias de Pedra Branca, Coprêr, Morro Grande e Manoel Alves Pequeno, para que o filme se centrasse nas suas memórias coletivas e luta política.

Desde 2014, esta dupla de realizadores tem vindo a realizar filmes participativos, tendo colaborado anteriormente com o povo Krahô para o filme Cantoria na Aldeia dos Mortos (2019), celebrado em Cannes com o Prémio do Júri. O cineasta João Salaviza ganhou, ainda, em 2009, a Palma de Ouro com Arena na categoria de curta-metragem, tendo sido o primeiro português a receber este prémio.

A Flor do Buriti também foi exibido em vários festivais internacionais, tendo estreado mundialmente na seleção oficial do Festival de Cannes – Un Certain Regard e galardoado com o Prémio de Melhor Elenco. Entre os vários destaques, honras e prémios, o filme também recebeu o Prémio de Melhor Longa-Metragem na 64º edição do Festival dei Popoli em Florença, sendo este o festival de cinema documental mais antigo da Europa.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça-feira!




terça-feira, 25 de março de 2025

Disponível para Amar (2000) de Wong Kar-Wai




por António Cruz Mendes

A solidão, o desejo do amor e a impossibilidade da sua realização, são temas recorrentes na filmografia de Wong Kar-wai. Ainda na nossa última Folha de Sala, a Catarina Bernardo justamente o assinalou a propósito de Felizes Juntos. Podemos igualmente encontrá-los em Chunking Express ou em Anjos Caídos, também exibidos neste ciclo dedicado ao realizador de Hong Kong.
 
Porém, em Disponível para Amar, realizado três anos depois do filme da semana passada, o tom é mais melodramático e o ritmo do filme é radicalmente diferente. À dinâmica trepidante dos filmes anteriores, sucede uma cadência dolente, pontuada por imagens em slow motion e sublinhada pela banda sonora, pela valsa triste de Shigeru Umebayashi e pelas canções de Nat King Cole. São imagens perpassadas por uma condoída melancolia que denotam a fraqueza dos protagonistas perante as circunstâncias e os acasos da vida.
 
Chow Mo-wan, jornalista, e Su Li-zhen, secretária, ao contrário de outras personagens de Wong Kar-wai, não são figuras transgressoras. A sua vida é rotineira e nem a revelação da traição dos seus cônjuges suscita neles uma atitude de revolta. O seu mal-estar permanece sufocado, não se manifesta publicamente. Contudo, a sua situação aproxima-os e, lentamente, a partilha do seu desgosto vai-se transformando em compreensão e cumplicidade. Um caminho que os dois vão percorrendo, assinalado por pequenos gestos e olhares. À medida que a sua afeição se sedimenta, a cor vermelha passa a estar cada vez mais presente, seja nos corredores do hotel onde se encontram seja nos vestidos de Su. Contudo, nenhum deles tem a coragem de assumir a sua paixão.
 
Nunca vimos o rosto do Sr. Chang ou da Sra. Chow, que têm uma passagem muitíssimo fugaz nas primeiras sequências do filme. Sabemos que estão ausentes, mas a sua presença fantasmática será determinante. O patrão de Su mantém uma relação extraconjugal e o amigo de Chow frequenta prostíbulos, mas “nós não seremos como eles”, repetem-nos mais do que uma vez. Em diferentes momentos, close-ups dos seus dedos mostram-nos as suas alianças. O seu respeito pelas convenções, o receio do julgamento dos seus vizinhos, que tratam Su pelo nome do marido, impede-os de assumir o seu amor.
 
Em Disponível para Amar e até à sequência final, não vemos a luz do dia, nem planos abertos. Chow e Su estão sempre presentes, muitas vezes sozinhos, quase sempre alheados dos que os rodeiam. Os espaços claustrofóbicos do prédio onde habitam, percorridos por estreitas escadas e corredores, onde se acotovelam os seus hospedeiros, são uma expressão visual do seu confuso mundo interior, uma solidão povoada pelo olhar insistente dos outros. A câmara parece por vezes espreitar por estreitas aberturas os espaços onde cada um deles se refugia. Parece querer convidar-nos também a nós, espectadores, a sondar furtivamente a sua intimidade. Só à noite, em locais públicos, mas de facto desertos, conseguem reunir-se a sós. Ensaiam, então, confrontações e despedidas… Em vão. O senhor Chang terá regressado ou não a casa, mas a separação é inevitável. E nessa noite de chuva torrencial, a primeira e a última em que os vemos abraçados, Chow anuncia a sua partida para Singapura, onde prosseguirá o seu ofício de jornalista. 
 
As sequências finais decorrem no Cambodja, onde Chow foi cobrir uma visita do General De Gaulle, documentada por imagens de arquivo. Antes disso, em Singapura, ele evocou um antigo costume: quando alguém tem um segredo que não pode revelar dirige-se a uma floresta, abre um buraco numa árvore e guarda-o aí para sempre. É o que ele fará no templo de Angkor Wat, sob o olhar de um jovem monge budista. 
 
 
 

sábado, 22 de março de 2025

389ª sessão: dia 25 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Disponível para amar, de Wong Kar-Wai, esta terça
 
Para o mês de março foi programado um conjunto de filmes do realizador chinês Wong Kar-Wai, para constituir uma pequena retrospectiva deste emblemático realizador. Como habitualmente as sessões ocorrem às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta terça-feira, 25 de março, o ciclo encerra com o filme Disponível para Amar de 2000, também conhecido pelo seu título em inglês In the Mood for Love e considerado uma obra incontornável de Wong Kar-Wai. 

Disponível para Amar é uma poesia visual que explora as complexidades do coração humano. No frenesi das ruas de Hong Kong, dois estranhos encontram-se, unidos por um elo invisível de desejo. Entre encontros fugazes e desencontros dolorosos, as personagens embarcam numa jornada emocionalmente intensa de amor proibido, onde as linhas entre realidade e fantasia se misturam.

Conhecido por improvisar e alterar as narrativas durante a produção fílmica, Wong Kar-Wai também reformulou a história de Disponível para Amar à medida que as filmagens avançavam. Foi inicialmente pensado como sequela do filme Dias Selvagens (1990), com o título “Verão em Beijing”.
 
A cinematografia foi iniciada por Christopher Doyle e concluída por Lee Ping-Bing, ambos contribuindo para a estética pictórica do filme. Apesar da narrativa assentar na Hong Kong dos anos 60, muitas cenas foram filmadas em Bangkok e Tailândia para criar a atmosfera certa.

A actriz Maggie Cheung usa 46 cheongsams (qipaos) diferentes ao longo do filme, concebidos para refletir mudanças subtis nas emoções da sua personagem. O coprotagonista Tony Leung ganhou o prémio de melhor ator em Cannes.

Wong Kar-Wai terá continuado a editar o filme depois do festival, refinando-o para o lançamento nos cinemas e foi, ainda, filmado um final alternativo – um romance mais explícito entre os dois personagens principais – descartado, depois, para manter o tom contido e melancólico do filme. Algumas cenas cortadas sugeriam que a personagem interpretada por Maggie Cheung estava grávida. O filme 2046, de 2004, pode ser visto como uma possível continuação do filme Disponível para Amar, e que completa, assim, juntamente com o filme Dias Selvagens, a "Trilogia do Amor" de Wong Kar-Wai.

Wong Kar-Wai tencionava usar apenas músicas de Nat King Cole, decidindo utilizar, posteriormente, o tema “Yumeji”, de Shigeru Umebayashi, para criar um ambiente idílico e nostálgico.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça!


quarta-feira, 19 de março de 2025

Felizes Juntos (1997) de Wong Kar-Wai



por Catarina Bernardo
 
Um filme sobre solidão, desejo e identidade, que reflete a impossibilidade de certos amores e a busca por um recomeço. Felizes Juntos (1997) transporta-nos para as ruas de Buenos Aires onde conhecemos Lai Yiu-Fai (interpretado por Tony Leung Chiu-Wai, um nome bastante conhecido nas obras de Wong Kar-Wai) e Ho Po-Wing (Leslei Cheung), um casal que vivia em Hong-Kong, mas que decide viajar para a Argentina em busca de um recomeço. Cedo percebemos que a relação na verdade é marcada por um ciclo tóxico de paixão, separações e reconciliações. Presos naquele ambiente estrangeiro, Lai trabalha em diversos empregos numa procura de estabilidade e de uma vida melhor. Já Ho, o mais impulsivo da relação, vive a vida de forma irresponsável, procurando Lai quando este se encontra vulnerável, tornando a relação desgastante.
 
Através de uma atmosfera visual vibrante e ao mesmo tempo melancólica, Christopher Doyle cria uma estética visual bastante distinta. A oscilação entre o preto e o branco e as cores vibrantes conseguem criar um contraste entre momentos de infelicidade ou de felicidade intensa. A saturação do amarelo e do verde transmitem uma sensação de calor e desejo, mas ao mesmo tempo de desinteresse e solidão. Os movimentos de câmara bruscos e instáveis ajudam a reforçar a agitação emocional dos personagens.
 
Sendo o filme maioritariamente filmado na Argentina, transmite uma sensação de deslocamento nos personagens, que são imigrantes de Hong Kong. As condições em que vivem, o espaço claustrofóbico e sujo do pequeno apartamento que partilham simboliza a decadência da relação, enquanto as paisagens da Argentina transmitem a sensação de liberdade e mudança.
 
Com o filme Felizes Juntos, Wong Kar-Wai recebeu o prémio de melhor realizador no Festival de Cannes e tornando-se um dos realizadores mais inovadores do cinema contemporâneo. Felizes Juntos foi inovador no cinema asiático por retratar um relacionamento entre dois homens de uma forma natural e emocionalmente complexa. O filme teve um grande impacto na visibilidade da Comunidade LGBTQ+ em Hong Kong e noutros países asiáticos, onde a homossexualidade enfrentava uma forte repressão.
 
Quase trinta anos depois, este filme continua a ser um símbolo importante para a comunidade, especialmente em Hong Kong e Taiwan, onde teve grande influência. 
 
 
 

sábado, 15 de março de 2025

388ª sessão: dia 18 de Março (Terça-Feira), às 21h30

Felizes Juntos, de Wong Kar-Wai, nesta terça-feira no Lucky Star – Cineclube de Braga
 
Encerrado o ciclo de fevereiro dedicado ao cinema japonês, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou um novo ciclo focado no cinema asiático. Para o mês de março de 2025 foi programado um conjunto de filmes do realizador chinês Wong Kar-Wai. Assim, escolheram-se quatro filmes para constituir uma pequena retrospectiva deste emblemático realizador. Como habitualmente as sessões ocorrerão às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta terça-feira, 18 de Março, o ciclo prossegue com o filme Felizes Juntos de 1997. Obra emblemática do realizador por quebrar tabus, devido à representação de uma relação homossexual de maneira complexa e sensível. A narrativa do filme é baseada no romance “The Buenos Aires Affair” do escritor argentino Manuel Puig, conhecido por explorar temas relacionados à sexualidade e marginalização.
 
A inconfundível cinematografia de Christopher Doyle com composições assimétricas e cores fortes, traz intensidade e uma profundidade melancólica à estória. O director de fotografia recorreu a várias câmaras portáteis para transmitir a sensação de instabilidade do relacionamento dos protagonistas.

O título original em chinês "Chun Gwong Cha Sit", que pode ser traduzido como "A luz esplêndida continua fluindo", alude à poesia e à sensualidade, enquanto o título em inglês, "Happy Together", é uma referência à canção homónima da banda The Turtles, readaptada por Danny Chung para fazer parte da banda sonora do filme. Felizes Juntos valeu a Wong Kar-Wai o prémio de “melhor diretor” no Festival de Cannes, em 1997. O filme é, ainda, considerado uma obra de referência do “Cinema Queer”.
 
Felizes Juntos, tido como uma obra-prima de Wong Kar-Wai, mergulha nas ruas agitadas de Buenos Aires, onde dois amantes enfrentam as marés que oscilam entre amor e desconexão. Num turbilhão de emoções, eles lutam para encontrar sentido na sua relação complexa, navegando pelas profundezas da paixão e da solidão. Entre encontros ardentes e despedidas dolorosas, o filme leva-nos numa jornada emocionalmente intensa, onde a esperança e a melancolia se entrelaçam num abraço eterno.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!

quarta-feira, 12 de março de 2025

Anjos Caídos (1995) de Wong Kar-Wai


por Estela Cosme

O néon está em todo lado na Hong Kong de Anjos Caídos. As cores vivas da atmosfera poluem o ecrã de forma incessante. São muito poucos os sítios em que o verde, o amarelo ou o vermelho nos fogem do olhar, de tal forma que nem notamos que todas as cenas ocorrem durante a noite, como se tudo acontecesse numa madrugada contínua. Mas as cores só se destacam graças ao contraste com o preto das sombras, pois é nos lugares sombrios que as personagens de Wong Kar-Wai se cruzam.

A dualidade das cores só intensifica os dilemas das personagens que encontramos: o assassino que pensa em reformar-se, a sua parceira apaixonada, o criminoso mudo que vende gelados, a sua amante tagarela, a prostituta que se atrai pelo assassino. A câmara mostra-nos close-ups de todas estas personagens em busca de conexão humana nesta cidade noturna, à procura de uma ligação que finalmente enriqueça as suas vidas. Todas elas procuram alguém que fale a sua linguagem ("Speak my language", repete a canção a tocar na jukebox).

Há um sentimento de urgência em todas estas personagens que deambulam pela noite, à procura de uma mudança que ainda não lhes é evidente. O filme foi lançado em 1995 e Hong Kong estaria a preparar-se para a sua transferência territorial para a China em 1997. Isto evidencia personagens marcadas por um presente incerto com ânsias de uma época na qual só o contacto humano pode trazer algum alívio.

 Estamos em plenos anos 90 do último século, onde os objetos materiais são uma tentativa para trazer algum conforto no dia a dia, com tecnologia que agora nos evoca uma grande nostalgia: uma jukebox de CDS, telefones com corda fixados à parede, uma carrinha de vender gelados, uma mini TV, uma câmara de filmar, até secadores de cabelo para as permanentes de outros tempos. Mas tudo são distrações para o que as personagens procuram. Até mesmo para o criminoso que apenas pode relembrar o seu pai, através do vidro de uma televisão, o sabor dos seus cozinhados perdidos à memória.

Este filme foi criado a partir de ideias já pensadas por Kar-Wai para Chungking Express (1994). Aliás, o realizador defendeu que ambos os filmes deveriam ser vistos como um só. No entanto, a realidade de ambos os filmes é bem diferente. Enquanto em Chungking Express a personagem com o número 225 é um polícia, em Anjos Caídos é um criminoso (as personagens são ambas interpretadas pelo mesmo ator, Takeshi Kaneshiro, e são marcadas por infortúnios relacionados com ananás). No filme de 1994, as relações são marcadas pela luz do dia, mas acabam durante a noite. Em Anjos Caídos, elas fazem-se e desfazem-se sob as lâmpadas noturnas. A sensação de otimismo é bem mais forte em "Chungking" e em "Anjos" parece bem mais fatalista, embora em ambos não haja garantias que as relações funcionem. Mesmo assim, as procuras de ligações interpessoais dominam as preocupações das personagens. Infelizmente, elas acabam por ser todas temporárias.

A criação de laços no meio urbano é uma preocupação da nossa contemporaneidade e Wong Kar-Wai apresenta-o de forma visual e emocionalmente potente, sem véus que tapem as frustrações e solidões que as acompanham. Mas também mostra que há momentos em que são possíveis e que podem existir, nem que seja momentaneamente. Na última cena, finalmente, vemos um tom azulado que anuncia o raiar do dia. O zumbido do néon desaparece e apercebemo-nos que nem todas as conexões são duradouras, mas todas elas são eletrizantes.

 

 Folha de Sala

sábado, 8 de março de 2025

387ª sessão: dia 11 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Anjos Caídos de Wong Kar-Wai na próxima terça-feira
 
Encerrado o ciclo de fevereiro dedicado ao cinema japonês, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou um novo ciclo focado no cinema asiático. Para o mês de março de 2025 foi programado um conjunto de filmes do realizador chinês Wong Kar-Wai. Assim, escolheram-se quatro filmes para constituir uma pequena retrospectiva deste emblemático realizador. Como habitualmente as sessões ocorrerão às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta terça-feira, 11 de Março, o ciclo prossegue com o filme Anjos Caídos de 1995. Com uma estética visual arrojada, com a habitual cinematografia de Christopher Doyle, e uma narrativa não linear, o filme captura a essência da solidão urbana e o anseio universal pela conexão humana

Inicialmente, a estória pensada para Anjos Caídos iria ser parte integrante do filme Chungking Express (1994). Filme, o qual, foi exibido na semana passada. Contudo, o desenvolvimento e expansão do enredo de Anjos Caídos favoreceu a produção de um segundo filme que lhe seria inteiramente dedicado, tornando-se uma referência importante na filmografia de Wong Kar-Wai.

Em Anjos Caídos, um assassino profissional, atraído pela sua parceira durante o seu último serviço, questiona-se sobre um possível envolvimento amoroso com esta. Durante esta jornada introspectiva, pelas ruas de Hong Kong, encontra um jovem ladrão, He Zhiwu, que ficou mudo depois de ter ingerido ananás enlatado fora de validade. He Zhiwu é também uma referência ao filme Chungking Express, sendo também uma das personagens do filme. Com o mesmo nome e interpretada pelo mesmo actor, a personagem é igualmente obcecada pela validade das latas de ananás, as quais acabaria por ingerir depois de uma desilusão amorosa.  No entanto, em Chungking Express, He Zhiwu é um detective e em “Anjos Caídos”, é um criminoso.

Anjos Caídos, dirigido por Wong Kar-Wai, mergulha nas vidas solitárias e marginais das ruas de Hong Kong, explorando as jornadas emocionais de personagens que vagueiam pelas sombras da cidade. No meio do caos e a beleza das ruas, o filme Anjos Caídos oferece uma visão cativante e poética da condição humana e seus dilemas.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça-feira !
 


quarta-feira, 5 de março de 2025

Chungking Express (1994) de Wong Kar-Wai






 Por Rute Castro

Wong Kar-Wai, nascido em 1958, consagra-se como um dos realizadores mais originais e admirados do cinema contemporâneo, destacando-se pela sua abordagem intimista e sensorial que rompe com as convenções narrativas lineares. Em Chungking Express, o diretor transforma a realidade urbana de Hong Kong num mosaico visual onde o efémero se converte em poesia.

Importa sublinhar que o título original, que serve como metáfora para descrever Hong Kong como uma “selva de concreto”, enfatiza o paradoxo de uma metrópole densamente povoada, onde, apesar da proximidade física, muitos vivem isolados em mundos interiores particulares.

O estilo de Wong Kar-Wai é marcado pela fusão do rigor formal com uma liberdade expressiva singular. O seu uso inovador das cores, dos enquadramentos e da montagem cria composições que transcendem o tempo e o espaço, convidando o espectador a uma experiência quase meditativa. O realizador explora de forma brilhante a dualidade entre o caos urbano e a solidão pessoal, transformando cada cena num manifesto visual que reflete as contradições da modernidade.

Em Chungking Express, a fragmentação da narrativa é empregue como um recurso para intensificar a subjetividade das emoções, permitindo que a narrativa se construa através de momentos, gestos e olhares, mais do que através de diálogos ou enredos tradicionais. Esta abordagem desafia o espectador a interpretar e a completar a história com base nas sensações evocadas por cada imagem, o que confere ao filme um caráter profundamente pessoal e intimista.

A importância deste filme no panorama mundial deve-se, em grande parte, à capacidade de Wong Kar-Wai de reinventar a linguagem cinematográfica. A sua visão estética, aliada a uma sensibilidade única, revolucionou a forma de contar histórias no cinema, posicionando-o como referência incontornável entre os realizadores contemporâneos. A influência de Chungking Express estende-se para além dos limites do cinema asiático, tendo impactado gerações de cineastas e contribuído para a difusão de novas tendências narrativas e visuais. Este filme não só redefiniu os parâmetros do cinema urbano, mas também se inscreveu como um estudo profundo sobre a natureza efémera das relações humanas e sobre a constante busca de significado num mundo moderno e acelerado.

Wong Kar-Wai demonstra, com este trabalho, a sua maestria em transformar o ordinário em extraordinário. A sua capacidade de capturar momentos fugazes e de imbuí-los de uma beleza melancólica e reflexiva, distinguindo-o como um dos melhores realizadores do mundo contemporâneo. O seu trabalho evidencia uma constante experimentação e uma ousadia estética que o fazem sobressair, sendo Chungking Express um marco irreverente que continua a influenciar e a inspirar o cinema global.

A banda sonora de Chungking Express é tão emblemática como o próprio filme. Na primeira história, a música principal é “Things in Life”, de Dennis Brown, que cria uma atmosfera nostálgica e melancólica. A canção “Baroque”, de Michael Galasso, aparece em momentos chave, complementada por outras faixas instrumentais – “Fornication in Space”, “Heartbreak” e “Sweet Farewell” – que reforçam a sensação de efemeridade e introspeção. Na segunda história, “California Dreamin’”, dos The Mamas & the Papas, assume um papel central, sublinhando os conflitos internos da personagem Faye Wong, que ainda interpreta uma versão de “Dreams” dos The Cranberries, usada também nos créditos finais. Este conjunto musical teve um papel decisivo na introdução do dream pop no mercado de Hong Kong, influenciando não só o panorama musical local, mas também a evolução do Canto-pop.

Resposta crítica e legado: O impacto de Chungking Express na crítica e no público tem sido profundo. O conceituado crítico Roger Ebert classificou o filme com três de quatro estrelas, assinalando que a obra se revela sobretudo para os verdadeiros amantes do cinema, que se deixam envolver pelo estilo singular de Wong Kar-Wai, mesmo que a narrativa não seja convencional. Por outro lado, Janet Maslin, do The New York Times, criticou a energia quase “MTV” do filme, argumentando que o excêntrico comportamento dos personagens, por vezes, beira o exagero. Contudo, tais críticas apenas sublinham a natureza cerebral e desafiante da obra, que, através da sua estética inovadora, convida o espectador a uma reflexão profunda sobre a essência da sétima arte. A influência de Chungking Express estende-se, ainda, aos rankings internacionais – desde uma posição de destaque em sondagens realizadas pelo British Film Institute até à inclusão na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos da revista Time –, confirmando o seu legado duradouro e a sua importância crucial para o cinema mundial

 

 Folha de Sala