quinta-feira, 22 de maio de 2025



por Catarina Bernardo 

Uma Mulher sob Influência não é apenas um drama sobre saúde mental, mas também é um retrato devastador da fragilidade humana diante das expectativas sociais. Sobre como a sociedade não consegue lidar com aqueles que fogem aos padrões vigentes.
 
O filme leva-nos a conhecer Mabel, uma mulher incompreendida por aqueles que a rodeiam, que tenta corresponder ao papel de esposa e mãe ideal, construídos socialmente. Ao longo do filme, a protagonista sente-se cada vez mais sufocada por um ambiente que exige contenção, normalidade e obediência.
 
Cassavetes tentou criar um retrato humano e autêntico de uma mulher vista como “louca” por aqueles que lhe são próximos. Na verdade, é uma mulher sensível, generosa e amorosa, cuja instabilidade emocional é uma consequência das pressões sociais e que piora, ao longo do filme, devido à falta de compreensão e sensibilidade da sua família.
 
O realizador mostra-nos como as emoções e as relações humanas são complexas e não lineares, compostas por sentimentos contraditórios, gestos ambíguos e com falhas frequentes de comunicação. A forma como os personagens ao redor de Mabel (incluindo o marido, Nick) lidam com a sua saúde mental, revela a profunda falta de ferramentas emocionais com que muitas pessoas enfrentam a diferença. Nick ama Mabel, mas a sua reação é marcada pela impulsividade, censura ou repreensão e, por vezes, violência emocional. O filme mostra que a verdadeira "doença" pode estar numa sociedade incapaz de escutar, acolher e aceitar a fragilidade do outro.
 
Quanto a instabilidade emocional de Mabel se acentua, é internada num hospital psiquiátrico durante seis meses, não apenas como medida terapêutica (ineficaz), mas também como gesto de silenciamento por parte de sua família. O internamento não consegue ajudar Mabel, nem as suas dificuldades são compreendidas pelos demais. Este serve apenas para afastá-la, de modo a preservar, de certa forma, a imagem da família. O realizador retrata este aspecto para fazer uma crítica ao modo como as instituições, as pessoas e a sociedade, em geral, encara a doença psiquiátrica, sendo, por isso, incapaz de compreender, oferecer apoio e ajudar ativamente. As soluções simplistas e desumanizadoras, como o confinamento, parecem servir apenas para afastar a pessoa com doença psiquiátrica para não perturbar a convivência familiar e em sociedade.
 
A crítica proposta pelo diretor ressalta a tendência da sociedade em excluir ou reprimir o indivíduo, ao invés de enfrentarem as questões emocionais e psicológicas de maneira saudável. Esse afastamento reflete a recusa em lidar com a complexidade da saúde mental em prol de um padrão normativo estabelecido que define o que é ser “normal”.
 
No desfecho do filme, ao retornar do hospital psiquiátrico, Mabel emerge sem a espontaneidade que anteriormente a definia. Sua identidade foi gradualmente apagada durante o período de internação, levando-a a uma condição de subordinação. Essa transformação simboliza a perda da autenticidade e da liberdade emocional, resultante da tentativa de controlo e exclusão promovida pela sua família.
 
Cassavetes optou por uma mise-en-scène naturalista, trazendo um estilo mais cru e realista que resulta numa autenticidade emocional que se distancia do típico filme clássico de Hollywood. O filme tem aparência documental devido ao uso de câmara à mão e do recurso aos planos longos. O facto de utilizar bastante luz natural nas cenas, transmite uma sensação claustrofóbica e íntima do ambiente doméstico. A proximidade da câmara nos rostos dos atores, uma característica marcante nos filmes de Cassavetes, contribui para intensificar essa sensação de intimidade e desconforto.
 
Inicialmente, John Cassavetes tinha escrito e idealizado esta obra para ser uma peça de teatro, que seria interpretado por sua esposa, Gena Rowlands. No entanto, ela considerou que não seria uma boa ideia, pois a carga emocional da personagem Mabel seria tão intensa que se tornaria desgastante ter de interpretá-la diariamente. A própria atriz chegou a comentar que, após as gravações do filme, precisou de uma pausa para recuperar do impacto emocional causado pelo papel.
 
Apesar do filme parecer improvisado em algumas partes, os atores seguiram o guião. No entanto, os gestos, o silêncio e as pausas ao longo do filme transmitem uma sensação de improvisação e uma profunda sensibilidade emocional. 
 
 

domingo, 18 de maio de 2025

397ª e 398ª sessão: dia 20 e 22 de Maio (Terça e Quinta-feira), às 21h30 e 20h30, respectivamente


“Uma Mulher Sob Influência” de John Cassavetes e “Aqueles Que Ficaram (Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem)” de Marianela Valverde, esta terça e quinta
 

Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação cultural Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

Esta terça-feira 20 de maio, exibimos o filme Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes e no dia 22 de maio, quinta-feira, será exibido o filme Aqueles Que Ficaram Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem (2024) de Marianela Valverde.

Em Uma Mulher Sob Influência, Mabel (Gena Rowlands) é uma dona de casa em constante batalha com seus demónios internos e com o peso simbólico de ser mulher, enquanto o seu marido, Nick (Peter Falk), tenta lidar com as consequências da sua saúde mental fragilizada. Nesta trama visceral e sensível, Cassavetes explora os limites do amor, da sanidade e da família, oferecendo um retrato cru e imersivo das relações humanas no contexto doméstico. O filme é notável pela improvisação dos diálogos e pela performance de Gena Rowlands, bem como pela abordagem inovadora e realista, sem recorrer a artifícios cinematográficos convencionais.

Com um olhar intimista e profundamente humano, Aqueles Que Ficaram Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem explora as marcas deixadas pela ditadura do Estado Novo em Portugal. Através de relatos de 28 familiares, filhos e filhas de opositores políticos, o filme investiga o legado de uma época de repressão e como as histórias pessoais se entrelaçam com a memória coletiva. Uma reflexão poderosa sobre resistência, identidade e os ecos do passado no presente. A sessão contará com a presença da realizadora e investigadora Marianela Valverde.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. As sessões especiais, no gnration ocorrem às quintas, às 20h30, e têm entrada livre.

Até a próxima terça e quinta-feira!


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Rostos (1968) de John Cassavetes



por Alexandra Barros
 
Segundo a sabedoria popular, quem vê caras não vê corações. Neste filme, porém, é através dos rostos que Cassavetes procura captar e revelar o que se passa nos corações. O que querem mostrar as suas personagens e o que querem elas que não se veja?
 
Pertencentes à classe média da América dos anos 60, vivem em casas grandes, profusamente decoradas e perfeitamente apetrechadas com os objetos e equipamentos vinculados ao “greatAmerican Way of Life. Têm bons carros, conforto material e financeiro e, nalguns casos, cargos sonantes. Procuram projetar uma imagem de sucesso através da “qualidade de vida” que alcançaram. Bebem muito, cantam, dançam e riem espalhafatosamente, ostensivamente. Mas as risadas hiperbólicas são, em grande medida, auto-ilusões. Richard, Jeannie, Maria e os que os rodeiam, não riem porque estão felizes. Riem para não se confrontarem com o facto de se sentirem inadequados, inseguros, incapazes de comunicar, receosos de amar, sós. Tendo crescido numa sociedade dominada pelo consumismo, terão acreditado que a felicidade lhes seria proporcionada pelos bens materiais que o poderoso marketing se vai encarregando de impor.
 
O que lhes falta então? Estar bem consigo próprios, com os outros e com a vida, em geral. Querem ser acarinhados, desejados, admirados, mas começam a aperceber-se que aquilo que alcançaram ao longo da vida de pouco lhes serve para obter o que realmente desejam. São estes desejos, angústias e conflitos interiores que interessam a Cassavetes. Para os revelar, procura registar com a câmara os trejeitos involuntários, as micro-expressões, tudo o que não pode deixar de irromper na superfície das personas que todos criamos para interagir com os outros nas mais variadas circunstâncias: no trabalho, em eventos sociais ou mesmo na intimidade. Hoje, esta dissociação entre quem queremos parecer e quem realmente somos está mais exposta do que nunca nas redes sociais, com curadoria cuidada de perfis e publicações, para transformar os seus utilizadores nas pessoas sensíveis, engajadas, divertidas, corajosas, informadas, inteligentes, ou seja lá o que for que dê likes e aprovação.
 
Acerca de Cassavetes, diz-se muito que amava os atores. Sendo um realizador devotado à exploração da natureza humana, Cassavetes procurava obter performances que fossem, de alguma forma, reveladoras. O que lhe interessava era, essencialmente, o que os atores, através das personagens que encarnavam, lhe poderiam dar, e como é que ele, por sua vez, poderia transmitir essas revelações aos espectadores. Por isso, os atores tinham liberdade para improvisar e interpretar as personagens como entendessem. Por isso, os seguia com a câmara na mão e, tantas vezes, preenchia o ecrã com os seus rostos. Neste filme, esses grandes planos estão provavelmente mais presentes do que em qualquer outro. O título do filme evoca, aliás, a importância destes close-ups. Cada rosto é simultaneamente um “palco” para a imagem que a personagem quer projetar e uma janela (mais ou menos) mal fechada para o que lhe vai na alma.
 
Richard e Maria formam o casal que está no centro do filme. Estão perdidos individualmente e estão perdidos um para o outro, cada um acantonado nos seus egoísmos e nos seus descontentamentos. Farto do seu dia vazio fora de casa, Richard quer-se deitar e quer, principalmente, o consolo da intimidade física. Maria, farta do seu dia vazio em casa, quer sair para ver um filme: “Hoje há um filme de Bergman aqui perto.”, ao que Richard responde: “Esta noite não me apetece ficar deprimido”. Instantes depois confrontar-se-á com uma evidência: ele e Maria estão tão deprimidos quanto as personagens dos filmes de Bergman.
 
Esta referência a Bergman num filme que é ele próprio bergmaniano não é o único momento de metacinema de Rostos. Richard, presidente de administração de uma empresa de investimentos financeiros, é responsável por selecionar filmes em que vale a pena investir. No início do filme, ele e outros membros da indústria do cinema preparam-se para ver um filme, que será submetido ao seu julgamento. Quando o visionamento arranca, o título Rostos enche o (nosso) ecrã, criando uma justaposição ambígua entre o filme a que estamos a assistir e o filme-dentro-do-filme, sujeito à avaliação de Richard. Esta inside joke evoca os problemas que o próprio Cassavetes teve com os estúdios de Hollywood, nomeadamente a proscrição após os confrontos com o produtor do seu filme anterior. 
 
Produzido pelo próprio realizador e amigos, e com baixo orçamento, Rostos foi feito graças à dedicação e boa vontade dos atores e técnicos que nele trabalharam. Foi aclamado pela crítica e recebeu vários prémios em festivais de cinema, tendo até sido nomeado para três Óscares, os prémios mais importantes do sistema que o rejeitara. É unanimemente considerado um dos mais icónicos filmes de Cassavetes e, em 2011, foi selecionado para preservação no National Film Registry dos EUA, pela sua relevância cultural, histórica e estética. 
 
 

domingo, 11 de maio de 2025

396ª sessão: dia 13 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Rostos” de John Cassavetes, esta terça-feira
 
Para o mês de Maio, o Lucky Star - Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration, nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

Esta terça-feira, 13 de maio, exibimos o filme Rostos (1968), de Cassavetes. Num bar, Richard e Freddie conhecem Jeannie, uma call-girl que os leva para sua casa. Ao retornar, Richard tem uma discussão com sua esposa, Maria, e decide voltar para Jeannie. Maria, por sua vez, resolve também passar a noite fora. Assim, inicia-se uma noite carregada de tensão emocional e revelações íntimas sobre os limites do amor e do casamento. A narrativa acompanha a desintegração do relacionamento do casal através de confrontos e diálogos intensos.

A partir de experiências que testemunhou, Cassavetes retrata a inquietação que muitos casamentos da classe média americana da época exalavam, fruto da incapacidade das pessoas comunicarem genuinamente e estabelecerem ligações emocionais profundas. Cassavetes afirmou que o propósito fundamental da obra era expor o quão raramente os seres humanos escutam e conversam de forma autêntica.

O filme foi rodado em 16mm, com todo o cenário iluminado de modo a permitir maior liberdade de movimento aos actores. Na maioria das cenas, optou-se pela utilização de microfones de lapela para evitar o recurso a equipamentos sonoros mais intrusivos que poderiam comprometer a espontaneidade das interpretações.
 
As filmagens prolongaram-se por seis meses, enquanto a montagem e edição levaram cerca de três anos a ser concluídas. No total, Cassavetes registou perto de 237 mil metros de película. Rostos foi distinguido com três nomeações para os Óscares: Melhor Argumento Original, Melhor Actor Secundário para Seymour Cassel e Melhor Actriz Secundária para Lynn Carlin.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sombras (1959) de John Cassavetes



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme Sombras, primeira longa-metragem do então actor John Cassavetes, não foi, nem é, apenas um primeiro filme, foi um gesto inaugural que rompeu com a gramática clássica de Hollywood e demarcou o “cinema de autor” nos Estados Unidos, propulsionando o cinema independente norte-americano. Produzido com escasso financiamento e limitações técnicas, a sua originalidade e estética resulta destes obstáculos e da vontade de fazer filme sobre “pessoas reais”, como proferido por Cassavetes. Filmado com câmara à mão de 16mm (portátil), Sombras rompe com o formalismo convencional do cinema produzido pelos grandes estúdios e deriva para uma abordagem improvisada, crua e intimista que, influenciado pelo neorrealismo italiano e pela estética documental, remete-nos, ainda, para o Direct Cinema americano e, em certa medida, para o Cinema Verité.
 
Poder-se-á deduzir que a experiência de John Cassavetes enquanto actor terá tido, também, um profundo impacto na forma como realizava e orientava as narrativas fílmicas. Ao dar liberdade aos actores para improvisarem os seus diálogos, a narrativa materializa-se e sedimenta-se na relação, ou seja, na interação espontânea e improvisada entre os actores e as suas personagens, como acontece na vida real. Esta espontaneidade acrescenta profundidade e complexidade às personagens interpretadas, bem como ao emaranhado de relações que compõem a sua realidade social – pequenos mundos interiores oprimidos e conspurcados, mas também impelidos e estimulados pelo exterior e pelo “outro”.
 
Assim, num gesto de resistência, Cassavetes optou pelo risco em vez da convenção: preferiu uma narrativa aberta com personagens em constante transformação (os actores não são profissionais e recorrem à improvisação), em vez de uma história formulaica, baseada em arquétipos, lugares-comuns e clichés. Escolheu a imperfeição deliberada em detrimento de uma produção polida e tecnicamente irrepreensível. A versão final de 1959 resultou da regravação de algumas cenas e de uma nova montagem, após o próprio Cassavetes rejeitar a primeira versão — um processo que procurava reflectir o real e a “verdade” emocional, procurando encaixar a individualidade, suas idiossincrasias e fluidez, em contextos socioculturais determinantes e igualmente complexos, marca central de toda a sua obra cinematográfica.
 
A história do filme gira em torno de três irmãos afro-americanos (dois deles de pele clara) que vivem em Manhattan, nos anos 50: Hugh, um cantor de jazz desiludido; Ben, um jovem irreverente e boémio; Lelia, a irmã mais nova que se envolve com um homem branco que desconhece a sua origem racial. A revelação desencadeia uma crise que expõe o preconceito latente na sociedade, mesmo nas camadas mais liberais. A trama não é linear, é construída em torno de episódios e encontros que exploram temas como identificação/pertença e alienação. A dimensão racial é tratada com ambiguidade: os protagonistas, de pele clara, experienciam crises identitárias que põem em causa os próprios limites da perceção social e racial. 
 
 O filme destaca-se, assim, por abordar o racismo e as complexas dinâmicas interpessoais num país ainda imerso na segregação racial, antes da promulgação do Civil Rights Act de 1964, mas numa época em que a luta contra a segregação já pulsava com força e urgência. Sombras consegue aludir a isto tudo numa narrativa fragmentada, com personagens não unidimensionais e sem rigidez identitária, mas profundamente influenciadas pelo seu contexto, (con)vivências com o “outro” e, ainda, submetidas às imagens dominantes do “ideal” (exemplo: cartaz de Brigitte Bardot que a personagem Lelia observa atentamente).
 
O impacto de Sombras reside tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Do ponto de vista formal, o uso do improviso — especialmente nos diálogos — torna os personagens instáveis, emocionalmente imprevisíveis e, sobretudo, vivas. A câmara à mão, também instável, segue esses impulsos com a fluidez quase documental. No plano temático, o filme propõe uma abordagem subtil e provocadora da questão racial, sobretudo através da performance ambígua da personagem Lelia, à qual se sobrepõe, ainda, a categoria de “mulher”, sua condição, derivas e subversões. O desajuste e o mal-estar em Ben são também gritantes, limitando-se, por vezes, a reagir de forma impulsiva e/ou agressiva ou simplesmente resigna-se à apatia. Hugh, seguro quanto à sua pertença “racial”, esforça-se por corresponder a um ideal de figura paternal e ser capaz de dar suporte emocional, moral e financeiro aos mais novos. Contudo, tem dificuldades em vingar no mundo artístico, devido ao racismo e à cultura de consumo, superficial e chauvinista, que prefere exibições de mulheres seminuas do que à sua performance musical.
 
Assim, as três personagens transitam entre mundos sem verdadeiramente se encaixarem em algum. A crise racial, mas sobretudo existencial, corresponde a crises “identitárias” — pessoal, social e até cinematográfica –, expressadas ou exteriorizadas nos seus constantes reajustes, ou seja, nos reposicionamentos individuais. Em suma, as identidades expressas são meras “sombras”, são situacionais e relacionais, não dependem de uma essência fixa (essa sim “ficcionada”, imaginada, imposta e projectada), mas sim de um âmago em constante construção.
 
Cassavetes rejeita o “panfleto propagandístico” e prefere o incómodo. O racismo não é um “tema” meramente discursivo, é uma presença fantasmática que emerge nos momentos mais mundanos, no quotidiano das personagens. Esse desconforto é amplificado pela estrutura episódica e pela recusa de uma resolução clássica. Sombras termina como começou, com incerteza. O jazz, omnipresente na banda sonora (música de Charles Mingus), não é mero acompanhamento: é a matriz estética do filme. A estrutura narrativa é jazzística — feita de improviso, de rupturas, de variações sobre uma mesma “melodia”. Este estilo musical, que também quebra convenções e privilegia o improviso, faz par e harmonia com os diálogos inventados e com a movimentação da câmara irrequieta, livre e próxima, quase voyeurista, que acompanha os actores sem filtros ou orientações, sem conhecer, ainda, o seu devir. 
 
 

domingo, 4 de maio de 2025

395ª sessão: dia 6 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Sombras” de John Cassavetes, esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga
 
Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration, nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

John Nicholas Cassavetes foi um actor e realizador estadunidense que ficou conhecido como o “pai do cinema independente dos Estados Unidos”. Esta terça-feira, 6 de maio, iniciamos o ciclo com a exibição do filme Sombras (1959).
 
Esta primeira longa-metragem de Cassavetes foi filmada nas ruas de Nova York com uma câmara portátil de 16 mm. A equipa de filmagens era composta maioritariamente por colegas do realizador e voluntários que se ofereceram para ajudar no projeto. As filmagens decorreram na cidade de Nova Iorque, sem autorização para gravar em espaços públicos, o que obrigou toda a equipa e elenco a apressarem-se para captar as cenas antes de serem expulsos pela polícia.
 
Sombras foi incluído no Registo Nacional de Filmes dos Estados Unidos em 1993, pela Biblioteca do Congresso, por ser “cultural, histórica e esteticamente significante”. Devido ao sucesso do filme, o realizador John Cassavetes recebeu várias ofertas de grandes estúdios, o que resultou na realização de dois filmes de estúdio, Too Late Blues (1961) e A Child is Waiting (1963).
 
Com diálogos improvisados, actores não profissionais e uma câmara inquieta, Sombras marca o nascimento do cinema independente americano. John Cassavetes rompe com os padrões de Hollywood para criar um retrato cru e íntimo das relações humanas na Nova Iorque dos anos 1950. Ao som do jazz de Charles Mingus, Sombras mergulha na vida de três irmãos que enfrentam dilemas raciais, afectivos e de identidade. Entre notas dissonantes e silêncios reveladores, Cassavetes constrói um filme tão improvisado quanto a música que o acompanha.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 1 de maio de 2025

A História de Souleymane (2024) de Boris Lojkine



por António Cruz Mendes

Todo o cinema tem uma dimensão política na medida em que nos propõe uma visão do mundo que reflecte interesses, valores e crenças, e recorre a processos retóricos que visam convencer-nos da sua justeza. Apenas existem filmes cuja mensagem política é mais ou menos subliminar e outros onde ela é explícita. Isso pode revelar-se, desde logo, no assunto tratado. É esse o caso de A História de Souleymane. O seu tema é o da imigração, ou melhor, o da condição imigrante e, sobre isso, confrontamo-nos todos os dias com posicionamentos políticos diferentes.

Vivemos todos num mundo cada vez mais pequeno. Chamamos a isso “a globalização”. Sabemos que ela pode assumir diferentes aspectos. Quando falamos de globalização, podemos estar a falar da livre circulação de capitais, de mercadorias ou de ideias. Os meios tecnológicos de que dispomos permitem que ela se faça com uma facilidade e uma rapidez cada vez maior. Mas, podemos estar a falar também dos grandes movimentos migratórios que põem em contacto povos com diferentes costumes e tradições. Confrontamo-nos com as suas consequências, com a forma como ela nos afecta e com as diferentes reacções que suscita. As respostas que lhe damos são necessariamente políticas.

A História de Souleymane é um filme político desde logo pelo seu tema, mas é-o também noutro sentido. O seu final aberto obriga-nos a tomar uma posição: expostas as verdadeiras razões que levaram Souleymane Sangaré a emigrar clandestinamente para França, nós, espectadores, gostaríamos que as autoridades francesas lhe concedessem asilo ou não?

Podemos entender grande parte do filme como um preâmbulo à emocionante cena final onde se vai decidir o seu futuro. Afinal, todas as sequências anteriores, que nos descrevem a violência e a vulnerabilidade da condição do imigrante clandestino e, neste caso, daqueles que trabalham nas plataformas de distribuição da uber (será difícil continuarmos a olhar para essas pessoas com os mesmos olhos depois de temos visto este filme), permanentemente dependentes da boa ou da má vontade de desconhecidos, são uma demonstração prática da força das razões que levam muitas pessoas a suportar essa experiência.

A personagem de Souleymane Sangaré não é interpretada por um actor profissional, mas por alguém que viveu de facto os acontecimentos de que o filme dá conta. Vemo-lo praticamente em todas as cenas. O seu quotidiano decorre num ritmo frenético, a pedalar no meio dos carros, na urgência dos seus contactos com clientes e fornecedores, na corrida para o autocarro que o há-de conduzir ao albergue onde pode dormir, nas fugazes relações que mantém com outros imigrantes ou com Emmanuel, que lhe “aluga” a sua licença de trabalho... O tempo voa, aproxima-se a hora da entrevista com a agente da OFRA e ele tem de memorizar a “história” que lhe poderá dar direito à condição de refugiado.

Entretanto, ficamos a saber dos perigos que enfrentou para poder chegar a França e assistimos à ruptura da sua relação com Kadiatou, a namorada que deixou na Guiné. Depois de conhecida a história de Souleymane, das condições da sua “(sobre)vivência num mundo inóspito” (o tema do ciclo que com este filme se encerra) poderíamos concluir com uma afirmação muito ouvida nos filmes “de tribunal”: “that’s the case”. Cumpre-nos a nós, agora, decidir: Quem merece ser condenado, quem merece o nosso reconhecimento? 

 

 Folha de Sala