domingo, 31 de março de 2024

337ª sessão: dia 2 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Documentário de Susana de Sousa Dias na BLCS 

Este mês de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Sindicato dos Professores do Norte e a outras entidades para promover um ciclo dedicado aos cinquenta anos do 25 de Abril. As sessões realizam-se às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O ciclo, intitulado “50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril?”, inicia-se terça-feira à noite com a exibição de Natureza Morta de Susana de Sousa Dias. Assumindo-se como um documentário que procura fazer um retrato de 48 anos de ditadura em Portugal sem qualquer tipo de comentário ou discurso adicional, o filme será apresentado pelo produtor Ansgar Schaefer. 

Susana de Sousa Dias nasceu em Lisboa a 22 de Janeiro de 1962, tendo apenas 12 anos quando se deu a revolução do 25 de Abril. Talvez mais conhecida pelos documentários 48 e Luz Obscura, lançados em 2009 e 2017, respectivamente, estreou-se na realização com o primeiro episódio da série “História do Cinema Português”, para a qual contribuíram também Manuel Mozos, Jorge Queiroga, Jorge Paixão da Costa, Margarida Cardoso ou Ricardo Nogueira. 

Em 2005, realiza Natureza Morta - Visages d’une dictadure, utilizando apenas actualidades, reportagens de guerra, documentários de propaganda ou fotografias de prisioneiros políticos. O filme foi co-produzido pela Kintop, a Amip e a Arte France «La Lucarne», vencendo o Prémio Atalanta Filmes no festival de cinema Doclisboa de 2005. 

“O Natureza Morta surgiu do desejo de reflectir nessas imagens aparamente iguais a todas as das centenas de milhares de prisioneiros políticos já mantidos em cativeiro a nível mundial,” escreveu Susana de Sousa Dias na sua nota de intenções publicada no dossier de imprensa do filme. “Essas imagens levaram-me a outras imagens do mesmo período.” 

“Todas elas foram o resultado de uma certa forma de poder que era exercido,” continuava Sousa Dias, “actualidades, reportagens de guerra, documentários feitos para o Ministério de Propaganda para além de material que não chegou à montagem final, imagens de arquivo, principalmente a preto e branco. Contribuem todas para um vasto espectro de documentação visual que revela este período mais do que nunca.” 

As sessões deste mês ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star e do Sindicato dos Professores do Norte têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 27 de março de 2024

We Can't Go Home Again (1973) de Nicholas Ray



por António Cruz Mendes

We Can’t Go Home Again foi apresentado pela primeira vez em Cannes, em 1973, à margem do Festival e, depois disso, dado como perdido. Sabe-se que Nicholas Ray, que tinha feito mais de 9 horas de filmagens, não se encontrava particularmente satisfeito com essa montagem de 110 m. e continuou depois disso a tentar novas versões. Trabalhava ainda nesse filme quando morreu em 1979. Podemos considerá-lo, portanto, como uma obra inacabada. No entanto, esse non finito, tal como o da Pietá Rondanini, de Miguel Ângelo, acabou por ser visto como num aspecto indissociável da sua essência. We Can’t Go Home Again, diz-nos João Bénard da Costa, “é uma ‘capela imperfeita’, no rigoroso sentido em que o objectivo não era a perfeição, mas um tamanho rasgar de horizontes que lhes não consente o fecho”. 

É ainda Bénard da Costa quem nos conta a história atribulada da versão que vemos hoje deste filme: “Depois da morte de Nick, Susan Ray a viúva, resolveu montar o que o cineasta já tinha alinhado. De nove horas de filme, fez uma versão de 93 minutos que foi estreada em 1980, no Festival de Roterdão e no fim desse ano foi distribuída comercialmente nalguns países. Depois, a cópia de Roterdão ardeu e salvaram-se algumas (raras) entre as quais a que existe em Portugal, adquirida pela Fundação Calouste Gulbenkian”. Porém, “é nesta cópia, incompleta, imperfeita, com múltiplas deficiências técnicas, som frequentemente dessíncrono, mutilado e multiforme, que We Can’t Go Home Again prefigura a trágica carreira do seu autor e a sua luta por uma expressão derradeira, só aproximativamente conseguida”. 

Desde logo, a nossa atenção foca-se na sua novidade formal. E, nessa matéria, damos a palavra a Serge Daney: “Uma parte do material foi filmado em vídeo, ou em 16 transposto para vídeo, retrabalhando por um sintetizador óptico. Todas as sequências em vídeo foram depois transferidas para 16mm até à transposição final para um écran formado por vários écrans, écran que em si mesmo é um prodígio de trabalho técnico. As sequências que deviam ser montadas juntas eram projectadas em transparência, por cinco projectores funcionando simultaneamente e, depois, eram filmadas por uma câmara de 35. A fotografia arqueada (em forma de ventre) que serve de quadro e de pano de fundo às múltiplas imagens assim produzidas foram uma ideia de último minuto de Nick, tanto ao nível das filmagens como ao laboratório. O número de écrans varia durante o filme, mas o formato básico utiliza, em geral, quatro: um grande para os 16mm, em baixo e à esquerda, dois mais pequenos, ao alto à esquerda e em baixo, à direita e outro (8mm) ao alto, à direita. Por vezes, uma quarta imagem, em 35mm, sobrepõe-se a todas as outras. E apesar da inicial complexidade da concepção, o filme é linear e narrativo, com o grande écran em baixo e à esquerda a contar a história e os mais pequenos, a terem, como Nick disse, um papel ‘suplementar’”. 

We Can’t Go Home Again fez-me recordar as combine paintings que Robert Rauschenberg fazia desde os últimos anos da década de 50: obras híbridas, entre a pintura e a escultura, onde se reuniam pinturas, fotografias e outros objectos, obras que nos oferecem uma imagem sincrética e polifacetada, ao mesmo tempo expressionista e “pop”, da sociedade americana da 2a metade do século XX. Também no filme de Ray se reúnem imagens, muitas vezes sincrónicas, por vezes muito distorcidas, com uma cor expressionista e roçando a abstracção, de manifestações e motins populares, diálogos e depoimentos pessoais, “citações” de outros filmes seus, um fragmento irrisório do que poderia ser um filme policial. Muitos pequenos filmes dentro de um filme maior que engloba tudo isso. 

Pouco depois do seu início, assistimos a um diálogo de Nicholas Ray com um grupo de estudantes. Perguntam-lhe: “És o novo professor?” “Acho que sim”; “Achas?”; “Sou, Sim”; “Não és velho de mais para seres um professor novo?” (as vozes misturam-se, outras intervêm). Depois, um lembrou-se: “Não foste realizador de Hollywood?”; “Não foste tu quem dirigiu Rebel Without a Cause?”. “Fui.”; “E They Live by Night?”. “Também.”; “E não fizeste aquele filme sobre os esquimós com Anthony Quinn?”. “Fiz.”; “E não fizeste aquele filme com Bogart?”. “Fiz.”; “Então o que é que fazes aqui?”. We Can’t Go Home Again será, talvez, a sua forma de tentar responder a esta pergunta. 

“Aqui” é o Harpur College da Universidade de Binghamton e quem o interroga são alunos de cinema. As relações de Nicholas Ray com “Hollywood” nunca foram fáceis e o último filme que aí realizou, Fifty-Five Days at Peking, foi um fracasso de bilheteira. Depois disso, Ray tentou na Europa outras oportunidades para filmar mas, não tendo tido sorte, aceitou esse lugar de professor. As universidades, nos EUA, eram, então, polos importantes da efervescência em que se encontrava o país. Estavam em causa a discriminação racial, a guerra do Vietname, a moral sexual... Acreditava-se na possibilidade de inventar novas formas de viver. Nicholas Ray, sensível a este espírito, resolve formar uma nova comunidade com os seus alunos e, com eles, realizar este filme. 

Aos poucos, no meio das muitas histórias e referências que nele se entrecruzam, vão-se destacando as personagens de Leslie e de Tom, que procuram um lugar para si num mundo em convulsão e mudança. Nelas, ecoa a lembrança de Jim, de Judy e de Plato as personagens centrais de Fúria de Viver (Rebel without a cause), também eles são jovens que procuram um reconhecimento das suas escolhas, sabendo que elas nunca poderão ser aquelas que os seus pais fizeram. “Não podemos voltar para casa”. 

O seu comportamento, por vezes autodestrutivo, é um pedido de ajuda. Mas, só eles se poderão ajudar a si mesmos e, tal como Jim e Judy, apenas no seu amor podem encontrar a salvação: “Take care of each other. It’s your only chance of survival. All the rest is vanity”, é a mensagem do filme. 

Nicholas Ray recusa ser a figura paternal que Leslie e Tom reclamam. É “um professor que não ensina”. Limita-se a ouvir e a registar com a sua câmara os acontecimentos que se vão desenrolando à sua volta. E, no final, encena o seu suicídio, como se, depois de concluída a história dos dois jovens amantes e terminado o filme que a conta, estivesse dita a última palavra e já nada mais houvesse para viver.



domingo, 24 de março de 2024

336ª sessão: dia 26 de Março (Terça-Feira), às 21h30


“We Can’t Go Home Again” terça à noite na BLCS 
 
Este mês de Março, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe quatro longas-metragens do cineasta norte-americano Nicholas Ray no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O ciclo, intitulado “Mais do que cinema - Os filmes de Nicholas Ray”, termina terça-feira às 21h30 com a exibição de We Can’t Go Home Again, filme que resultou de um convite que o Harpur College fez a Nicholas Ray para lá dar palestras. Depois de Ray receber um contrato de dois anos para trabalhar como professor, aproximou-se de alguns seus alunos e mudaram-se todos para uma casa fora do campus universitário para formar uma comuna cinematográfica. O filme passará com legendas em inglês.
 
Nicholas Ray nasceu Raymond Nicholas Kienzle Jr. em Galesville, no Winsconsin, em 1911, falecendo aos 67 anos em Nova Iorque, a 16 de Junho de 1979. Trabalhou no sistema de estúdios de Hollywood durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta, chamando a atenção dos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam também realizadores. 
 
Influenciou ainda toda uma geração de jovens cineastas durante a década de setenta, alunos e admiradores como os americanos Jim Jarmusch, Dennis Hopper e Jon Jost ou o alemão Wim Wenders, que terminou com ele uma última obra, Lightning Over Water, conhecido entre nós como “Nick’s Movie - Um Acto de Amor”. 
 
“Nicholas Ray não podia regressar a Hollywood,” escreveu o crítico norte-americano Bill Krohn sobre este filme, “de que se tinha divorciado mal, portanto nesse sentido o desabrigo era algo que tinha em comum com os jovens insatisfeitos nas suas aulas, que estavam a começar a universidade perto do final do sinistro terceiro ano da administração Nixon. ‘Eu não quero ir para casa para os meus pais,’ diz uma rapariga no filme. ‘Ainda acham que sou virgem. Querem que seja virgem de novo!’” 
 
“A perda da inocência é punida com o desabrigo (o Éden desaparecido),” terminava Krohn, “portanto em We Can’t Go Home Again a comuna formada com o propósito de fazer o filme torna-se uma família substituta, uma das muitas que surgiram nessa época por muitas razões. Esta foi chamada à existência pela solidão do cineasta e—embora não seja dito—pelas intimações de mortalidade que o tinham começado a assombrar. Este novo herói de Ray chama-se Nick.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

Bitter Victory (1957) de Nicholas Ray



por Jean-Luc Godard

Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rosselini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Agora, há o cinema. E o cinema é Nicholas Ray. 

Porque permanecemos insensíveis perante as fotografias de Cruel Vitória, embora saibamos que são fotografias do mais belo dos filmes? Porque nada exprimem. Eis. Enquanto que uma só fotografia de Lilian Gish basta para simbolizar O Lírio Quebrado, uma só de Charles Chaplin Um Rei em Nova Iorque, uma só de Rita Hayworth A Dama de Xangai, até mesmo uma só de Ingrid Bergman Helena e os Homens, a fotografia de Curd Jürgens perdido no deserto, ou de Richard Burton na tela. Um abismo separa a fotografia do filme. Um abismo que é um mundo. Um mundo que é o cinema moderno. 

É neste sentido que é possível dizer-se que Cruel Vitória é um filme anormal. Não já nos interessamos pelos objectos, mas por o que entre eles há, por o que agora se torna também objecto. Nicholas Ray obriga-nos a olhar como real o que, até ele, nem por irreal olhávamos, o que não olhávamos simplesmente. Cruel Vitória assemelha-se a um desses desenhos onde se pede às crianças que descubram um caçador por entre um emaranhado de linhas aparentemente sem outra significação. 

Importa não dizer que por detrás do ataque dos comandos ingleses ao Q.G. de Rommel se esconde o símbolo da nossa época, porque não há por detrás nem por defronte. Cruel Vitória é o que é. Não temos dum lado a realidade, que seria o conflito de Leith e do capitão Brand, e do outro a ficção, que seria o combate da coragem e da cobardia, do medo e da lucidez, do isto e do aquilo. Não se trata nem de realidade nem de ficção, nem de uma sobrepondo-se à outra. Trata-se doutra e bem diversa matéria. Creio que diria que de estrelas e de homens que gostam de olhar as estrelas e sonhar. 

Esplendorosamente montado, Cruel Vitória é superiormente interpretado por Curd Jürgens e por Richard Burton. É a segunda vez depois de E Deus Criou a Mulher que acreditamos na personagem de Curd Jürgens. Quanto a Richard Burton que sempre se soube salientar em todos os seus precedentes filmes é, dirigido por Nicholas Ray, absolutamente sensacional. Importa pouco que se lhe chame um Wilhelm Meister 1958. Porque seria também pouco dizer que Cruel Vitória é o mais goethiano dos filmes. Que interessa refazer Goethe, ou refazer seja o que for, D. Quixote ou Bouvard e Pécuchet, J’accuse ou Voyage au bout de la nuit, uma vez que já o foram? Que é o medo, o amor, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a morte? Qual a sua importância, quando olhamos as estrelas? 

Nunca antes as personagens de um filme pareceram tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes. Confrontados com as ruas desertas de Benghazi ou com as dunas, pensamos de repente e pelo espaço de um segundo noutra coisa - os snack-bars nos Campos Elísios, uma rapariga de quem se gostava, e, tudo e mais alguma coisa, mentiras, a perfídia das mulheres, a futilidade dos homens, jogar nas slot machines. Porque Cruel Vitória não é um reflexo da vida, é a própria vida transformada em filme, vista por detrás do espelho em que o cinema a intercepta. É ao mesmo tempo o mais directo e o mais secreto dos filmes, o mais subtil e o mais bruto. Não é cinema, é mais do que cinema. 

Como se pode falar de um filme destes? Qual é o sentido de dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman enquanto Curt Jürgens observa é montado com um brio fantástico? Talvez esta tenha sido uma das cenas durante as quais fechámos os olhos. Porque Cruel Vitória faz-nos fechar os olhos, como o sol. A verdade cega-nos. 

in «Au delà des étoiles», Cahiers du Cinéma nº 79, Janeiro de 1958.



segunda-feira, 18 de março de 2024

335ª sessão: dia 19 de Março (Terça-Feira), às 21h30


“Cruel Vitória” para ver no cineclube 
 
Este mês de Março, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe quatro longas-metragens do cineasta norte-americano Nicholas Ray no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O corrente ciclo, intitulado “Mais do que cinema - Os filmes de Nicholas Ray”, continua terça-feira às 21h30 com a exibição de Cruel Vitória, com Richard Burton e Curd Jürgens nos papéis de um capitão e de um major que são entrevistados para liderar uma missão perigosa atrás das linhas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, na Campanha do Deserto Ocidental. 
 
Nicholas Ray nasceu Raymond Nicholas Kienzle Jr. em Galesville, no Winsconsin, em 1911, falecendo aos 67 anos em Nova Iorque, a 16 de Junho de 1979. Trabalhou no sistema de estúdios de Hollywood durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta, chamando a atenção dos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam também realizadores. 
 
Influenciou ainda toda uma geração de jovens cineastas durante a década de setenta, alunos e admiradores como os americanos Jim Jarmusch, Dennis Hopper e Jon Jost ou o alemão Wim Wenders, que terminou com ele uma última obra, Lightning Over Water
 
“Nunca antes as personagens de um filme pareceram tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes,” escreveu Jean-Luc Godard sobre este filme. “Confrontados com as ruas desertas de Benghazi ou com as dunas, pensamos de repente e pelo espaço de um segundo noutra coisa - os snack-bars nos Campos Elísios, uma rapariga de quem se gostava, tudo e mais alguma coisa, mentiras, a perfídia das mulheres, a futilidade dos homens, jogar nas slot machines.” 
 
“Porque Cruel Vitória não é um reflexo da vida,” continuava o franco-suíço, “é a própria vida transformada em filme, vista por detrás do espelho em que o cinema a intercepta. É ao mesmo tempo o mais directo e o mais secreto dos filmes, o mais subtil e o mais bruto. Não é cinema, é mais do que cinema.” 
 
“Como se pode falar de um filme destes,” terminava. “Qual é o sentido de dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman enquanto Curt Jurgens observa é montado com um brio fantástico? Talvez esta tenha sido uma das cenas durante as quais fechámos os olhos. Porque Cruel Vitória faz-nos fechar os olhos, como o sol. A verdade cega.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 13 de março de 2024

Bigger than Life (1956) de Nicholas Ray



por Alexandra Barros

Os romanos acreditavam que o álcool libertava as pessoas das amarras das conveniências sociais. Sob o efeito do vinho, as pessoas revelariam o que de facto sentem e pensam: In vino veritas / No vinho está a verdade. Bigger Than Life parece ter como subtexto (ou melhor, como um dos seus subtextos) uma variante deste adágio: In cortisone veritas / Na cortisona está a verdade. 

Pai e marido estimado, tanto quanto professor considerado, Ed vai-se transformando num déspota cada vez mais violento e psicótico, à medida que reforça secretamente a dose dos analgésicos que toma. A cortisona foi-lhe prescrita para aliviar as dores decorrentes de uma doença incurável, diagnosticada após um inesperado colapso físico. Quando tem alta do hospital, regressa a casa num estado de grande euforia. Está também invulgarmente egocêntrico e autoritário, comportando-se como se Lou, sua mulher, existisse para servi-lo. Até que o estado de graça que a convalescença lhe concedeu é dado por terminado. Quando Lou pousa violentamente a chaleira com que repetidamente trouxe água a ferver para preparar o banho exigido pelo marido, o espelho em que Ed se mirava, estilhaça-se em pequenos fragmentos. Ed está agora frente a frente com um puzzle desmontado do seu rosto sofrido. E, para se reconstruir, recorre aos comprimidos que eliminam instantaneamente as aflições da alma tanto quanto as do corpo. 

Mais do que o alívio das dores, Ed parece procurar na cortisona a sensação de agigantamento que a droga lhe proporciona. Para nos dar acesso ao turbilhão de emoções induzidas pela cortisona, Ray recorre a metáforas visuais onde o corpo transformado de Ed revela o seu mundo interior. Quando Ed regressa à escola, depois do internamento hospitalar, esta parece uma miniatura perante o seu corpo descomunal. Mais tarde, é a sombra desmesurada do seu corpo drogado que persegue, aterroriza e encurrala o próprio filho (Richie), numa casa tornada demasiado pequena para as suas enormes ambições. É tal o superpoder que a droga lhe parece oferecer, que Ed chega a convencer-se que sabe mais que Deus: “God was wrong”[1], brada num momento de total alucinação. 

Sob o efeito da medicação, Ed recusa “portar-se bem”. Quando obriga a mulher a escolher um vestido numa loja luxuosa, não se deixa intimidar pelos narizes empinados com que são recebidos. É rude, prepotente, gasta dinheiro de forma irreflectida. Na inauguração de uma exposição de desenhos dos seus alunos, afronta a comunidade escolar criticando de forma feroz as obras das crianças, os respectivos pais e a própria instituição a que pertence. Em casa, expressa a intenção de abandonar o lar e a família, onde se sente atrofiado, para se dedicar inteiramente aos seus interesses pessoais: o estudo e a investigação. O que se passará com o bom Ed? - interroga-se a família e os amigos. Nicholas Ray disseminou pelo filme vários indícios que insinuam que este aparentemente transfigurado Ed talvez não seja assim tão diferente do Ed “normal”. As manifestações de um desejo de evasão do sufoco do lar e da rotina, por exemplo, estiveram sempre lá: por toda a casa estão espalhados grandes cartazes com imagens de lugares longínquos. 

Num momento de lucidez, Ed apercebe-se das suas oscilações entre Dr Jeckyl e Mr. Hyde[2], mas a vontade de suprimir as dores fala mais alto que o propósito de sufocar Mr. Hyde. O preço elevado do poder da medicação acaba por ser cobrado. Provavelmente estava escrito na bula com as letras pequeninas com que se ocultam os senãos das pílulas douradas. Ed é novamente internado. Desta vez, o colapso é provocado pelos efeitos secundários das doses elevadas de cortisona. Não há curas milagrosas para os nossos males. As fugas à realidade oferecidas por poções mágicas, sejam elas legais ou não, são ilusórias. No fundo do túnel que abrem à frente dos consumidores parece existir A LUZ. Esta acaba por revelar-se um fogo que tudo consome. Ray tinge de vermelho a cena que culmina no desfalecimento de Ed. 

Quando Ed acorda da sedação induzida no seu segundo internamento hospitalar, reage fortemente à luz proveniente de uma grande lâmpada circular. Apavorado, suplica: “Apaguem o sol”. A cortisona deu-lhe asas, mas estas afinal eram de cera[3]. Sabe que uma próxima queda poderá ser fatal e chama a si a mulher e o filho, refugiando-se no porto seguro do calor familiar e da vida doméstica. De acordo com João Bénard da Costa, chegámos “ao momento dos filmes de Ray que normalmente provoca maior perplexidade: o aparente happy end.”[4] No quarto hospitalar, todos parecem aliviados com o regresso à normalidade. O filme fecha com Ed pedindo que Lou e Richie se aproximem mais e mais (“Closer, closer!”) e puxando-os a si como se quisesse encerrar-se dentro da família[5]. Que significado tem esta imagem? Será o óbvio e típico hollywoodiano final em que a felicidade foi (re)conquistada? Citando novamente João Bénard da Costa: com Nicholas Ray, “Nunca disso se trata, mas da suprema irrisão.”

[1] Deus estava enganado. 
[2] O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson 
[3] Ícaro, figura da mitologia grega, escapou do labirinto do Minotauro com umas asas de cera. Ignorou os avisos do pai para não voar muito alto; aproximou-se do sol, que lhe derreteu as asas, e caiu no mar, onde se afogou. 
[5] Em inglês, “closer” significa mais perto e “to close” significa fechar.



segunda-feira, 11 de março de 2024

334ª sessão: dia 12 de Março (Terça-Feira), às 21h30


“Atrás do Espelho”, com James Mason, na BLCS 

Este mês de Março, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro longas-metragens do cineasta norte-americano Nicholas Ray no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O ciclo, intitulado “Mais do que cinema - Os filmes de Nicholas Ray”, continua terça-feira às 21h30 com a exibição de Atrás do Espelho, a décima terceira longa-metragem de Ray, realizada em 1956 a cores e em Cinemascope, sobre um professor e pai de família, interpretado por James Mason, obrigado a trabalhar num segundo emprego para conseguir pagar as contas. Os seus desmaios frequentes levam-no a iniciar um tratamento experimental com cortisona. 

Nicholas Ray nasceu Raymond Nicholas Kienzle Jr. em Galesville, no Winsconsin, em 1911, falecendo aos 67 anos em Nova Iorque, a 16 de Junho de 1979. Trabalhou no sistema de estúdios de Hollywood durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta, chamando a atenção dos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam também realizadores. 

Influenciou ainda toda uma geração de jovens cineastas durante a década de setenta, alunos e admiradores como os americanos Jim Jarmusch, Dennis Hopper e Jon Jost ou o alemão Wim Wenders, que terminou com ele uma última obra, Lightning Over Water, de 1980, conhecido em Portugal como “Nick’s Movie - Um Acto de Amor”. 

“A minha finalidade,” disse Nicholas Ray sobre este filme, “não era falar da cortisona, mas da perpétua passagem do ‘remédio que pode ser um mal’ ao ‘mal que pode ser um remédio’. Aliás o tema interessava-me porque, na nossa época, havia imensa gente que acreditava em curas milagrosas: esperavam-nas no plano económico, político, religioso, emocional, depois de três sessões passadas deitados num divã mole; iam aos bares com a esperança de que com três copos tudo se recompusesse; iam à igreja com a esperança de que, depois de ouvir três sermões, tudo voltasse a entrar na ordem; entravam na política, convencidos que com três reuniões acabavam com todos os males do mundo.” 

“Mas não é assim que as coisas se remedeiam,” terminava o cineasta. “A minha personagem encontra um sucedâneo para a realidade quotidiana, mas esse sucedâneo leva-o a julgar-se o centro do mundo e a detestar todos os que amava e que o amam.” 

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

In a Lonely Place (1950) de Nicholas Ray



por Rute Castro

Nicholas Ray, nascido a 7 de agosto de 1911, na pacata cidade de Galesville, no Wisconsin, Estados Unidos, foi um dos cineastas mais queridos e influentes da sua geração. A sua paixão pela sétima arte levou-o a desbravar novos caminhos, desafiando constantemente as normas estabelecidas por Hollywood. Além de realizar o emocionante In a Lonely Place, Ray brindou o mundo com outras obras-primas, como Rebel Without a Cause (1955), protagonizado pelo jovem e talentoso James Dean, e Johnny Guitar (1954), com a icónica Joan Crawford. A sua personalidade excêntrica e apaixonada pela arte cinematográfica fez dele um cineasta verdadeiramente singular. 

O seu estilo era caracterizado pela utilização de planos longos, pela fluidez da câmara e pela ênfase na mise en scène. Mais do que meramente técnico, Ray empregava meticulosamente a mise en scène para transmitir profundidade emocional e subtexto narrativo nas suas obras. Além disso, era conhecido pela sua capacidade de extrair atuações memoráveis de seus atores, mergulhando nas complexidades da psique humana e explorando os lados obscuros da natureza humana, temas intrínsecos ao cinema noir

In a Lonely Place foi uma oportunidade para Ray explorar esses temas de forma complexa e desafiadora, além de oferecer uma crítica incisiva à hipocrisia presente na indústria cinematográfica de Hollywood. Ao criticar a hipocrisia dessa indústria, Ray não apenas contextualiza a história dentro de um cenário específico, mas também oferece uma crítica social mais ampla. O ambiente de falsidade e superficialidade em que os personagens operam serve como pano de fundo para explorar questões mais profundas sobre a autenticidade, a identidade e a alienação na sociedade moderna. Esta abordagem audaciosa e multifacetada do realizador ressoou profundamente entre os críticos de cinema, especialmente os influentes membros dos Cahiers du Cinéma

O trabalho de Ray é um marco no desenvolvimento do cinema noir, pois para ele este género não se limitava apenas a elementos estilísticos, era uma forma de expressão que mergulhava nas profundezas da alma humana, revelando as contradições e os conflitos latentes na sociedade contemporânea, representava mais do que apenas um estilo visual ou narrativo, era uma forma de arte que refletia as ansiedades e angústias da sociedade pós-guerra. Em In a Lonely Place, Ray capturou essa essência de forma magistral, explorando não apenas o submundo de Los Angeles, mas também os abismos da alma humana. A personagem de Dix Steele, interpretada brilhantemente por Humphrey Bogart, personifica as contradições e conflitos morais que permeiam o film noir. A sua luta entre o desejo de redenção e a inevitabilidade do seu próprio destino ecoa preocupações existenciais com que todos nós nos identificamos. Além disso, a relação entre Dix e Laurel Gray, encarnada por Gloria Grahame, é um microcosmo das complexidades das relações humanas no mundo de Ray. A tensão entre confiança e desconfiança, amor e paranoia, é habilmente explorada, revelando camadas profundas de significado que vão além do enredo superficial. 

Assim, In a Lonely Place destaca-se como mais do que apenas um filme noir excecional, é uma obra-prima que transcende os limites do género, oferecendo uma análise perspicaz da condição humana e das contradições inerentes à experiência humana. É através dessa lente crítica e sensível que o legado de Nicholas Ray continua a ressoar, inspirando gerações de cineastas e cinéfilos a explorar os recessos mais sombrios da psique humana com coragem e compaixão. 

In a Lonely Place é uma jornada emocional e intelectual que deixou uma marca indelével na minha memória cinematográfica. A interpretação magistral de Humphrey Bogart como Dix Steele é nada menos que arrebatadora, transmitindo a complexidade e a vulnerabilidade de um homem cuja fachada de dureza esconde uma alma atormentada. A química entre Bogart e Gloria Grahame, que interpreta Laurel Gray, é eletrizante, capturando a essência de um relacionamento carregado de tensão e desejo. Cada enquadramento meticulosamente elaborado por Nicholas Ray parece uma obra de arte em si mesma, revelando nuances emocionais e simbolismo subliminar que enriquecem a narrativa de forma profunda e comovente. Em particular, a cena do interrogatório de Dix é um momento de pura intensidade, onde a fragilidade da personagem é exposta de maneira visceral. É essa profundidade emocional e intelectual que torna In a Lonely Place numa experiência cinematográfica verdadeiramente inesquecível, uma obra que ressoa muito para lá das fronteiras do género noir e continua a inspirar reflexões sobre a condição humana. 

Considerado um dos melhores filmes noir de todos os tempos, In a Lonely Place é uma obra-prima do cinema americano dos anos 50. A realização de Nicholas Ray é exemplar, criando uma atmosfera claustrofóbica e tensa que acompanha a deterioração mental do protagonista. Humphrey Bogart e Gloria Grahame entregam atuações memoráveis, dando vida a personagens complexas e multifacetadas.

Nota: O cinema noir, também conhecido como film noir (do francês, "filme negro"), é um género cinematográfico que emergiu principalmente nos Estados Unidos durante a década de 1940 e alcançou o seu auge de popularidade na década de 1950. Esse estilo cinematográfico é caracterizado por uma atmosfera sombria, personagens moralmente ambíguos, narrativas complexas e visual marcante, frequentemente caracterizado pelo uso de luzes e sombras contrastantes.



domingo, 3 de março de 2024

333ª sessão: dia 5 de Março (Terça-Feira), às 21h30


“Matar ou não Matar” é a próxima sessão do Lucky Star 
 
Este mês de Março, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro longas-metragens do cineasta norte-americano Nicholas Ray no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O novo ciclo, intitulado “Mais do que cinema - Os filmes de Nicholas Ray”, inicia-se terça-feira às 21h30 com a exibição de Matar ou não Matar, a quarta longa-metragem de Ray, realizada em 1950, sobre um argumentista de Hollywood que não tem um filme bem sucedido desde os anos trinta e com Humphrey Bogart e Gloria Grahame nos principais papéis. 
 
Nicholas Ray nasceu Raymond Nicholas Kienzle Jr. em Galesville, no Winsconsin, em 1911, falecendo aos 67 anos em Nova Iorque, a 16 de Junho de 1979. Trabalhou no sistema de estúdios de Hollywood durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta, chamando a atenção dos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam também realizadores. 
 
Ray influenciou ainda toda uma geração de jovens cineastas durante a década de setenta, alunos e admiradores como os americanos Jim Jarmusch, Dennis Hopper e Jon Jost ou o alemão Wim Wenders, que terminou com ele uma última obra, Lightning Over Water, de 1980, conhecido entre nós como “Nick’s Movie - Um Acto de Amor”. 
 
“Aquilo em que se repara em Matar ou não Matar é a vivacidade e a firmeza dos gestos e dos movimentos,” escreveu Bernard Eisenschitz no seu livro essencial dedicado ao cineasta norte-americano, Roman Américain - Les vies de Nicholas Ray, publicado em 1990, “a firmeza dos riscos tomados com os dois actores ao sabotá-los de forma deliberada.” 
 
“Bogart, uma presença física,” continuava ele, “envelhecido, despojado da sua aura, de pijama ou com as mangas da camisa enroladas por cima de braços peludos — já não é o ícone na inevitável camisa branca imaculada dos seus últimos filmes na Warner (Key Largo).” 
 
Num ensaio escrito para a revista britânica Sight and Sound, no Inverno de 1966, a actriz Louise Brooks diz que este filme “lhe deu um papel que ele podia interpretar com complexidade porque o orgulho na sua arte, o egoísmo, o alcoolismo, a escassez de energia golpeada com tacadas fulminantes de violência da personagem do filme, o argumentista, eram também partilhadas pelo verdadeiro Bogart.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!