sábado, 17 de fevereiro de 2018

A King in New York (1957) de Charles Chaplin



por João Palhares

Sabe-se com certeza pelo que Chaplin teve que passar até chegar a Um Rei em Nova Iorque, feito já no velho continente e sem nenhum dos seus colaboradores regulares. Apesar de o querermos muitas vezes ignorar, e sobretudo nos tempos que correm, porque é a esquerda que está a fazer as vezes da direita conservadora e das brigadas dos bons costumes, as celebridades são alvos fáceis para os pregadores da moral, carregados às costas pelos meios de comunicação, que são capazes de tudo por um furo jornalístico e às vezes movidos apenas por vinganças pessoais, provocando os receios de investidores, que querem que um filme ou um programa ou um álbum paguem os seus custos no mercado. Se estes vêem que um artista anda envolto em polémicas (verdadeiras ou falsas, não interessa) cortam os fundos e cancelam os contratos sem pensar duas vezes, às vezes até agradecendo. Sempre foi este o método e a ordem dos acontecimentos, do julgamento popular de Roscoe “Fatty” Arbuckle (ainda hoje vilipendiado por Hollywood sem se poder defender, quando os jurados do seu julgamento escreveram na declaração do seu veredicto que “a absolvição não é suficiente para Roscoe Arbuckle. Achamos que lhe foi cometida uma grande injustiça”) às difamações constantes a Michael Jackson (talvez culpado apenas de ser uma pessoa muito estranha e muito magoada, além de um artista fabuloso), passando pela corrente purificadora e censória dos anos setenta e oitenta que escolheu como alvos Clint Eastwood, Sam Peckinpah, John Milius, Michael Cimino ou Sylvester Stallone no cinema e Prince, Jackson, Donna Summer, os N.W.A ou Frank Zappa na música, entre muitos outros e não só na América. 

Hoje em dia e no rescaldo das centenas de acusações a Harvey Weinstein em Hollywood, Louis C.K. e Kevin Spacey, até ver, perderam tudo, Woody Allen e Quentin Tarantino andam a ser difamados numa demonstração de justiça de uma hipocrisia gritante, que por não ter mais alvos humanos, ataca agora as palavras, as imagens e os filmes de certos cineastas como se pudessem servir de provas em tribunal. Falam de problemas de representação e de falta de heróis ou histórias que representem as minorias, querem que mostrem uma sociedade que não existe, que deixem de mostrar a injustiça e a violência porque são coisas imorais. É uma limpeza totalmente irrazoável e que lembra mesmo as perseguições das brigadas dos bons costumes (“If it looks like censorship and it smells like censorship, it is censorship”, dizia Zappa nos anos oitenta), além de considerar o cinema do passado como um desfile de mulheres fracas e de minorias ainda mais fracas. São as lições de Roland Barthes levadas ao ridículo, o colonialismo representado pela bandeira francesa e pelo homem negro que a saudava, seguidas da linha de pensamento que grita “escravatura”, “injustiça”, “abominação” e “patriarcado”. Que subtileza, que sofisticação, não é? 

Em 1995, Michael Jackson respondia a acusações de racismo por causa de They Don’t Care About Us (no videoclip da canção, realizado por Spike Lee, censuraram a palavra “judeu”) dizendo que “eu sou a voz dos acusados e dos atacados. Eu sou a voz de toda a gente. Sou o skinhead, sou o judeu, sou o homem negro, sou o homem branco. Não era eu quem estava a atacar. É sobre as injustiças para com os jovens e como o sistema os pode acusar injustamente. Fico com raiva e indignação por poder ser tão mal interpretado.” São palavras que podiam ter sido ditas por Charles Chaplin e que são demonstradas em toda a sua obra, que mergulha a fundo nos meandros e nas consequências dessa representatividade, da neve do Alaska ao Oeste americano, da França à Tomânia, das ruas mais sórdidas aos quartos de hotéis mais luxuosos, dos dormitórios públicos aos ringues de boxe, dos barcos de imigrantes aos cruzeiros transpacíficos, das fábricas aos centros de emprego, dos bares aos bancos, dos parques públicos aos centros de reabilitação, dos restaurantes de cinco estrelas à sopa dos pobres, etc, etc.

Chaplin também se mostrava ciente desse facto no trabalho com os actores, interpretando os seus papéis para lhes mostrar como queria que uma cena fosse feita. Assim, na rodagem de A Condessa de Hong Kong foi Marlon Brando, foi Sophia Loren e foi Tippi Hedren. Não está nada mal para representatividade, pois não? Em Um Rei em Nova Iorque, Chaplin é um rei deposto que é roubado pelo seu primeiro ministro; que tem planos atómicos que não quer usar para bombas nucleares, como o acusam e como querem os seus ministros, mas para tornar possível uma “utopia”. Foge para a América, autoproclamada “land of the free”, para descobrir que também lá se perseguem as pessoas ideologicamente, que também lá se acusam as pessoas injustamente, tal como no seu país, chamado Estróvia. Como nos lembrou João Bénard da Costa, a escolha de um rei como personagem não é uma escolha inocente, reforça o ridículo de se acusar alguém de ser comunista pelas companhias que frequenta, neste caso um miúdo de dez anos, obrigado pelo governo a dizer nomes, para salvar os pais, numa das cenas mais comoventes da obra de Chaplin, num dos filmes mais tristes da obra de Chaplin.

O verso de que o rei Shahdov não se lembrava no jantar planeado pela comunicação social nas suas costas era "Thus conscience does make cowards of us all". Dá que pensar, não é?

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