sábado, 24 de fevereiro de 2018

A Countess from Hong Kong (1967) de Charles Chaplin



por José Oliveira

E cá chegamos ao fim do nosso ciclo repondo a ordem na cronologia do percurso de Charles Chaplin. A Condessa de Hong Kong teve de ser obrigatoriamente a nossa sessão derradeira, para se perceber sem margem para dúvidas tudo o que ela convoca e não convoca, o dentro e o fora, a grande dor apátrida. Arrancada em complicado parto dez anos depois da “afronta” à América com Um Rei em Nova Iorque, Chaplin viveria ainda outros dez anos, mas aí já completamente na Sibéria do cinema, trilhando esta caminhada por mar todas as justificações acabadas para os que usaram as carapuças da ressaca (de lucidez) de Chaplin. 

Antes de embarcamos e depois do desembarque vamos ter um baile, o primeiro onde se confundem Condessas com “mulheres da vida”, o segundo onde as tais “mulheres da vida”, depois de confrontadas com as aparências oficias, sejam elas a lei ou as esposas legítimas, surgem totalmente cristalinas e a verdade a perseguir. “Mulheres da vida” também tornadas mulheres da vida sem aspas, antes lutadoras, pois a culpa para as aspas foi, como quase sempre, do grande outrem que move os peões da humanidade terrestre. No baile com que o filme abre os figurantes olham marcadamente para o marinheiro que poderia ser personagem principal, no fecho os dois amantes estão só contra o mundo planando no sonho estelar definidor da felicidade Chaplinesca. Único filme a cores de Chaplin, prodígio dos Pinewood Studios da sua Inglaterra natal, utilizando uma janela mais rasgada do que o habitual (o 1.85 : 1 ao invés do mais clássico 1.37 : 1, percebendo-se o porquê da opção, entre tantos exemplos, na sequência do mar agitado na qual o próprio Chaplin bate à porta da fortaleza para prevenir a má disposição, numa consonância da técnica com a dramaturgia que só um artista total alcança, dirigindo, focando e vergando conforme), logo nos tira o chão quando Hong Kong nos surge fulgurante como que agarrada pelas garras e ganas de um jovem documentarista com sede de realismo. 

Mas logo vamos para bordo e a coisa pia fino – um estadista americano, Marlon Brando imprevisível, e a sua ideia de paz mundial. A partir daí ainda mais estupefacção: Chaplin a desconstruir Brando, ou a despi-lo, olhando para ele sem conceitos nem preconceitos e surgindo deles palhaçadas, contorcionismos, criancices e tudo o mais que não se esperava do ícone naturalista do método do actors studio; a ele se vai juntar a Condessa de Sophia Loren que no seu momento menos “respeitável” se transforma no Tramp com que Chaplin lá para trás revirou a sociedade e os seus alicerces, em soutien e vestes de animais amestrados de jardim zoológico; a restante pandilha são os polícias, indigentes, os presidentes e os demais líderes de todos os outros filmes. Vários foram os episódios mais ou menos anedóticos da relação entre duas existências bigger than life e de gerações opostas e em certa medida rivais como foram Chaplin e Brando, um dos quais reza que o futuro Padrinho exigiu que o Farrapo aristocrata se ajoelhasse e afirmasse perante todos os presentes que estava perante o maior dos actores; questões de ego ou de mito aparte, é tanto mais impressionante tudo o que passou de um para o outro, de uns para os outros: de Chaplin todo um cosmo de subtilezas e nuances de movimentos e de dizeres, com sucessivas camadas entre o óbvio, como na poesia pura, entre tanto mais; de Brando e de outros “modernos” a tensão e as cordas musculares que passam para as formas cinematográficas constantemente a serem esticadas para lá do concebível classicismo. «A tensão é algo belo» diz-se quando a macacada começa a acalmar, assim como a generosidade que se nota a cada instante. 

O incomensurável cineasta espanhol Víctor Erice afirmou certo dia que antigamente todas as pessoas de qualquer parte do mundo em todas as idades perceberam o cinema de Chaplin, o que ele fez com o corpo e o que ele disse por palavras – e continua-se a perceber, digo eu. E assim o âmago do filme, o tema, começa por ser a comoção – que ele afirma não ter – do diplomata por essa Condessa que está muito mais próxima de uma menina largada às feras do mundo, mais uma órfã Griffthiana, tão distante, tão sozinha, tão triste... é Brando que assim fala, e protegendo-a do mundo que aparentemente não vamos ver no interior do barco, descobre o resultado da busca pela imortalidade da alma de que lhe fala uma sonsa no terceiro baile do filme. E se esse âmago parece tão simples e justo, tudo ainda se irá simplificar mais na extrema complexidade com que se ignora o fora de campo das politiquices, das hierarquias, das dependências, da chantagem e dos álibis retóricos, enfim, das aparências que sempre foram o inimigo público número 1 de Chaplin como do seu Tramp

Porque fora breves planos de ligação e os bailes, antes da chegada aos cais, o mundo estará concentrado numa sala de estar, num quarto com duas camas, a casa de banho que será outro fora-de-campo, e os infindáveis esconderijos cedidos à imaginação de cada qual. Logo desde cedo o filme se tornará num Jogo das Escondidas, ou num Jogo da Apanhada, conforme o lado, a formação e a inocência de quem o joga. Jogos a uma primeira vista inofensivos, cinefilamente Lubitchianos ou de uma sofisticação de encenação puramente prazerosa, mas que olhados bem de perto e para lá do brilho do cast revelam todos os perigos para que Chaplin foi alertando a entrarem no ninho do amor, ou no ninho da infância onde tais jogos se dão; revelam ainda uma sede de liberdade trucidante no casal de Brando e de Loren e de alguns mais não-figurantes; são as guerras demenciais de O Grande Ditador ou o vagabundo largado nas trincheiras em Shoulder Arms, são os combates de boxe não pedidos e por isso justiceiramente adulterados em The Champion nos quais o vagabundo mete KO não só os campeões do ringue mas várias figuras castradoras que detêm poder, as estátuas da liberdade atadas em O Imigrante, e resumindo, a ciência e os maquinismos usados ao contrário e em desfavor dos desfavorecidos - é tudo isso a querer matar o intimismo, e as crianças desmultiplicadas por Chaplin a não deixarem. 

E num filme em rodopio e em sede de fuga muitos se irão juntar às brincadeiras, todos eles podendo dispensar os passaportes para saltarem os muros imperiais, acontecendo casamentos com a mesma mulher e trocas de casais, espreitadelas e traições sem pecado nem multa, balançando-se a fábula entre a máxima inocência e o erotismo tão selvático como sugestivo. E é por estes jogos e pelo que hoje em dia seria considerado deboche – nesta nova caça às bruxas século XXI em que todos querem ser limpos e moralmente Deuses – que os ditos de Erice fazem pleno sentido: nestas escondidas e nestas apanhadas com que muitos críticos da época despacharam o filme a bola negra estão todos os genocídios e grandes guerras, a fuga do Pai da Condessa para Hong Kong e a sua tragédia, a prostituição e os suicídios consequentes, a falta de talento e de afectos maquiados pelo cargo político ou pela classe da gravata. 

Um momento significativo dos mecanismos dos jogos das crianças em relação com os jogos dos adultos acontece aquando da primeira vez que Loren é descoberta por um membro da entourage de Brando (uma ambígua personagem interpretada pelo próprio filho de Chaplin, Sydney Chaplin e o seu fardo, que balança entre a protecção cega ao chefe e os bons sentimentos até ao oportunismo do lado negro americano), esse Harvey que até acabará por se fazer de seu esposo, mais um, em mais um faz-de-conta inadjectivável; acontece na casa de banho mas, logo ao lado, na sala de estar, o Brando diplomata e não criança fala das suas noções e ideias para a tal paz mundial... sussurra verdade... compreensão... tolerância... e alternadamente vemos essa descoberta no WC: montagem que nos entrega uma complexificação aí sim moral que ainda hoje, ou sobretudo hoje, separa o trigo do joio, as superfícies higienizadas de uma elevação moral mesmo que se esteja todo borrado: uns poderão considerar que o diplomata se contradiz, os outros, talvez hoje na maioria crianças e velhotes, perceberão logo a enormidade e o fulgor do coração que viu a tristeza num corpo e numa alma e não aguentou compactuar com as forças opostas. 

Enormidade que vem de dentro, assim A Condessa de Hong Kong é também um libelo pelos interiores, pelos quartos e por essas divisões que respondem à violência do caos global e dominante, e que são inseparáveis das entranhas e da sensibilidade humanista: «estamos a ser observados pela lei», diz Brando numa suposta despedida a Loren; e então não só percebemos que a lei vem dos papéis e dos tratados e regras das Entidades referidas sobretudo na banda de som, mas também dos falsos casamentos, dos casais atados por filhos, por obrigações, propinas, salões de beleza, comunhão de bens, hipotecas... todos os lamentáveis e abafados horrores que perfazem a ideia ilusória de felicidade e de sociedade limpa e acabada; tanto no “cinema antigo” em que os berros eram mais honestos como agora num Centro Comercial Colombo da nossa consolação onde normalmente o telemóvel-computador é o principal protagonista, cenas destas doem tanto como a ameaça de um míssil. 

Entre e por tanta diversão A Condessa de Hong Kong é ainda um tratado, uma chapada, um petardo filosófico. A tal rapariga que cita Aristóteles ou é mesmo uma sonsa, ou uma boba da corte, ou nada disso, pois realmente o que se passa em alta velocidade – e por isso quando alguém estaca para olhar para fora de uma janela ou para soltar um micro suspiro ou perscrutar um sorriso invisível tudo abala – vai dos mínimos olímpicos para se viver – andar... falar... pensar... – até à transfiguração e ascese – a alma... a imortalidade... o amor. Acredite-se ou não na transcendência – o filme nada força – vamos sair ou ficar no filme com um futuro presidente de uma nação e uma mulher que já conheceu mil homens unidos numa dança que mesmo que seja a última valeu por tudo. O presente, de que essa mulher falou Aristotelicamente, em diálogo com a eternidade, com que o filme nos presenteia ao terminar. «Não devemos ter medo dos confrontos. Até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas» é uma das suas citações que se vendem em qualquer lado, e é o desafio para continuarmos a sua obra. Que é eterna.

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