segunda-feira, 28 de setembro de 2020

177ª sessão: dia 1 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Outubro é mês dos Encontros da Imagem e do habitual ciclo que o cineclube programa por essa ocasião, desta feita centrado no tema de "Génesis". Assim, e como uma espécie de transição, começamos por ir às origens e à estreia como realizador do homem que nos ocupou os meses de Julho e Setembro, Luis Buñuel, com o tratado emotivo, onírico e demencial que deu pelo nome de Um Cão Andaluz. É a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Referindo-se, na sua autobiografia, ao tempo em que começou a experimentar com a montagem e os guiões, Buñuel disse que "uns meses mais tarde, fiz Um Cão Andaluz, que resultou dum encontro entre dois sonhos. Quando cheguei para passar alguns dias na casa de Dalí em Figueras, contei-lhe um sonho que tinha tido em que uma nuvem comprida e aguçada cortava a lua a meio, como uma navalha a cortar um olho. Dalí contou-me imediatamente que tinha visto uma mão coberta de formigas num sonho que tinha tido na noite anterior. 
 
"E se começássemos mesmo por aí e fizéssemos um filme?” perguntou-se ele em voz alta. 

"Apesar da minha hesitação, vimo-nos logo a trabalhar no duro, e em menos de uma semana tínhamos um guião. A nossa única regra era muito simples: Nenhuma ideia ou imagem que se pudesse prestar a uma explicação racional de que tipo fosse seria aceite. Tivemos de abrir todas as portas ao irracional e manter apenas aquelas imagens que nos surpreendessem, sem tentar explicar porquê. A coisa espantosa foi que nunca tivemos o mais pequeno desentendimento; passámos uma semana de identificação total."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa apresenta o filme escrevendo que "em 1925, Luis Buñuel, que nasceu com o século e tinha, portanto, tantos anos quantos ele, partiu para Paris. Para trás, ficava a infância de señorito em Saragoça e Calanda, oito anos nos jesuítas e outros oito em Madrid, a saltar de curso em curso e a conviver com a chamada "geração de 27", de que faziam parte, entre outros, Lorca, Alberti, Dalí, Bergamín, seus amigos íntimos e a quem ficou a dever, nas suas próprias palavras, a orientação futura da sua vida. Já escrevera e publicara poemas, já encenara e representara peças (o D. Juan Tenório de Zorrilla, com Lorca), mas o cinema era apenas um passatempo. «Nessa época» - diz no seu fabuloso livro de memórias Mon Dernier Soupir - «nunca me passou pela cabeça que um dia viria a ser cineasta».

"Foi em Paris que isso lhe começou a passar pela cabeça, quando viu Der Müde Tod de Fritz Lang (pelos vistos, dos filmes que mais vocações de cineastas terá despertado) e quando essa revelação o tornou apóstolo. De 26 a 28, escreveu regularmente sobre cinema para revistas espanholas e francesas e foi assistente de realização de Jean Epstein (Mauprat, La Chute de la Maison Usher) e de Henri Étiévant (La Sirène des Tropiques). Conhecido o "meio", relacionando-se bem, a partir de 27-28, só tem uma ideia: ser cineasta.

"Paris é também o lugar do seu encontro com o grupo surrealista e o tempo da sua adesão expressa ao movimento. Alguns projectos falhados e, finalmente, Um Cão Andaluz."

Já Miguel Marías, em texto publicado na revista Nuestro Cine, escreve que "este filme, aparentemente, é tão absurdo como irreal. O seu onirismo é indubitável e o seu carácter «fantástico» não pode ser rejeitado. Mas se pensamos na definição que André Bretón dá de «surrealidade» no primeiro «Manifeste du surréalisme» (1924), «fusão do sonho e da realidade numa realidade absoluta», veremos que Buñuel não pretendia fazer um filme «irreal», mas estava a tentar chegar ao real por um caminho mais profundo que o chamado «realista». Outra citação de Bretón vai servir para situar o aspecto fantástico deste filme na sua verdadeira dimensão: «o que há de admirável no fantástico é que já não há nada de fantástico: não existe mais nada a não ser o real». 

"Um Cão Andaluz não narra uma história. Os intertítulos destroçam a cronologia, porque as indicações temporais sucedem-se nesta ordem: «Era uma vez…», «Oito anos depois», «Por volta das três da madrugada», «Dezasseis anos antes», «Na primavera», sem que as imagens nos permitam re-estabelecer uma ordem nos acontecimentos disjuntos —mas formal e significativamente relacionados— que o filme nos mostra. Esta destruição do sentido do tempo real é a base de muitos dos filmes mais avançados dos últimos anos, de forma tão manifesta que torna desnecessário citar títulos.

Até Quinta!

Em Outubro, no Lucky Star:




quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Nazarín (1959) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

Nazarín, Grand Prix do Festival de Cannes de 1959, é, disse-o Buñuel nas suas memórias, “um dos meus filmes favoritos”. Trata-se de uma adaptação de uma novela do ciclo espiritualista de Benito Pérez Galdós (1843-1929). No seu filme, Buñuel foi fiel ao nomadismo, ao pacifismo e ao idealismo do Padre Nazário, a personagem criada pelo escritor espanhol, mas altera o final da narrativa conferindo-lhe um caráter mais pessimista: no livro, Nazário consegue superar os seus infortúnios e imagina-se, no final, a pregar a toda a humanidade; no filme, abandonado por todos, caminha, sob a guarda de um soldado e ao som dos tambores, para o lugar onde a justiça dos homens o condenará. 
 
Dos sete aos catorze anos, Buñuel, que se dizia um “ateu pela graça de Deus”, foi educado num colégio jesuíta de Saragoça e essa experiência haveria de o marcar para o resto da sua vida, refletindo-se claramente na sua obra cinematográfica, onde, muitas vezes, descobrimos na forma como vivem a fé cristã, personagens divididas entre uma recusa do autoritarismo e um anseio de espiritualidade, entre a tentação dos prazeres sensuais e o sentimento do pecado. 
 
Quem é o Padre Nazário? A sua figura tem sido, por vezes, comparada à de Jesus, outras, à de D. Quixote. Segundo Buñuel, seria um “Quixote do sacerdócio que, em vez de seguir o exemplo das novelas de cavalaria, segue o dos Evangelhos”. Então, as duas mulheres que o acompanham na sua peregrinação seriam Sancho Pança ou os apóstolos… Nazário é, antes de tudo, um homem generoso e altruísta, que se despoja do pouco que tem para o oferecer àqueles que julga serem mais necessitados. E, como tal, numa sociedade onde todos pensam, antes de tudo, em si mesmos, é tido como um louco ou como um santo. Em todo o caso como um corpo estranho na sociedade a que pertence. Mesmo aos olhos da Igreja, o seu comportamento ofende a “dignidade sacerdotal”. Buñuel transpôs para o México a história de Pérez Galdós e foi acusado de ter inventado um México que não existe. Nunca aí, disse-se, três prostitutas insultariam um sacerdote. Mas, essa história, respondeu Buñuel, poder-se-ia ter passado no México ou em qualquer outra parte do mundo onde um homem assim apareça. 
 
Obrigado a fugir da povoação, descalço, porque ofereceu as suas botas a uma pessoa doente, e mal vestido, porque as suas roupas foram roubadas por alguém que se apresentou como um padre, Nazário inicia uma peregrinação que é uma verdadeira subida ao Calvário. Das suas melhores intenções, resultam consequências nefastas. Cuida uma mulher ferida numa rixa e é acusado de esconder uma assassina, oferece-se para trabalhar em troca de comida e provoca um tiroteio entre o patrão e os outros trabalhadores, procura consolar uma moribunda, mas ela não quer Deus, mas Juan, o seu marido, que o expulsa de sua casa. 
 
Depois de preso, quando parece reviver a experiência do “bom e do mau ladrão”, pergunta ao primeiro: “Gostavas de mudar a tua vida?” e explica-lhe como isso seria fácil. Mas, ele responde-lhe: “E tu, gostarias de mudar a tua?” E acrescenta: “Tu pelo bem e eu pelo mal… Nenhum de nós serve para nada”. 

No final, Aranda, a prostituta acusada de assassínio, foi presa e obrigada a abandonar um amor finalmente encontrado. E a bela e amável Beatriz acabou por se render de novo ao macho que a despreza, mas subjuga. 
 
Quanto a Nazário, prisioneiro e à guarda de um soldado, encontra uma vendedora que lhe oferece um ananás que ele começa por recusar. Mas, depois, arrepende-se, volta atrás e é abraçado ao fruto que prossegue o caminho que o há-de conduzir à prisão ou à morte. Será essa a única recompensa da sua vida?

terça-feira, 22 de setembro de 2020

176ª sessão: dia 24 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Na última Quinta-Feira de Setembro chegamos ao fim do ciclo dedicado à obra de Luis Buñuel no México, com a exibição dum filme que volta a complicar a relação do espanhol com os Evangelhos e o catolicismo, acompanhando um padre que decide levar a preceito os princípios e os modos de Jesus Cristo. Nazarín é então a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Na sua auto-biografia de 1982, o realizador admitiu-nos que "de todos os filmes que fiz no México, Nazarin é um dos meus favoritos. Apesar dos mal-entendidos sobre o seu verdadeiro tema, foi razoavelmente bem sucedido. No entanto, no Festival de Cannes, onde ganhou o Grand Prix International, quase recebeu também o Prix de l’Office Catholique. Houve três membros do júri a defendê-lo de forma apaixonada, mas, felizmente, estavam em minoria. Além disso, Jacques Prévert, um anticlerical inflexível, lamentou que eu tivesse dado o papel principal a um padre. “É ridículo preocuparmo-nos com os problemas deles,” disse-me ele, acreditando como ele acreditava que todos os padres eram perfeitamente repreensíveis. 

"Este mal-entendido, a que algumas pessoas se referiram como a minha “tentativa de reabilitação pessoal,” continuou durante bastante tempo. Depois da eleição do Papa João XXIII, fui mesmo convidado a Nova Iorque, onde o sucessor abominável de Spellman, o Cardeal Não Sei Quem, me quis dar um prémio pelo filme."

João Bénard da Costa, na sua folha da Cinemateca sobre o filme, escreveu que "Buñuel transpôs o tempo e o espaço histórico da acção do romance célebre de Galdós (Espanha do Século XIX) para o México dos princípios do Século XX e fez de Nazarín um frustrado (no livro, o protagonista triunfa de cada uma das suas provações). O final é também muito diferente: no livro, Nazarín delira e imagina-se a celebrar missa por toda a humanidade; no filme, afasta-se, no celebrado plano em que Buñuel escolheu para a banda sonora os tambores de Calanda da sua infância, com a explícita associação à morte.

"Essa imagem sonora é tão mais poderosa quanto o filme quase não tem música. Nazarín, que começa com a "animação" de uma gravura antiga e com música de órgão, hieratiza-se e silencia-se progressivamente, até se imobilizar no plano final e nos ficar nos ouvidos o ritmo dos tambores. Paralelamente, as imagens iniciais que à primeira vista tendem a poder ser olhadas de modo realista (a vida numa aldeia miserável do México, com os animais pelas ruas, os vendedores, as prostitutas) vão lenta e progressivamente dando sinal de uma representação: os décors são nítidos, a teatralidade muito marcada (prostitutas, as pedradas atiradas ao «cura podrido»), preparando-nos para uma encenação que depressa perde os contornos do melodrama que existiram até ao delírio erótico de Beatriz com as almofadas (mais uma cena dessas, num filme de Buñuel)." 

A páginas tantas de Luis Buñuel - Chimera 1900-1983, Bill Krohn escreve que "quando Buñuel escreveu a Jose Rubia Barcia que tinha 'Buñuelizado' e 'actualizado' a história, não estava a falar de ambiguidade, que também abunda no filme. O que ele fez foi acentuar a parecença de Nazarín com Joe Btfsplk, o homem pequeno com a nuvem de chuva por cima da cabeça na banda-desenhada Li'l Abner, que também é bem intencionado, mas semeia destruição no seu caminho porque é o pior agoirento do mundo. 

"Benito Pérez Galdós já tinha imaginado os episódios em que a bondade de Nazarín inspirava Andara a destruir uma pousada e em que a cura de uma criança doente produzia um episódio de histeria em massa. Buñuel só acrescentou episódios em que o imitatio Christis de Nazarín é sujeito a uma crítica marxista ou surrealista. No primeiro, Nazarín, ao trabalhar por comida, torna-se um fura-greves, provocando uma disputa que termina com um tiroteio fora de plano. No segundo, dá de caras com o amour fou: uma mulher com tifo rejeita os seus conselhos espirituais, gritando pelo seu amante Juan, que ordena a Nazarín que se vá embora e beija a mulher moribunda nos lábios. 'Buñuelizar' significava enfatizar esta oposição entre amor carnal e divino. 

"Ao mesmo tempo Buñuel acrescenta detalhes que sublinham o que ele chama de 'paráfrase dos Evangelhos' na sua fonte, como Andara a dar uma cacetada num soldado que os veio prender. A crise de fé de Nazarín também faz parte do padrão que ele está a cumprir, mesmo quando, como disse Buñuel a Barcia, "é a DÚVIDA e não o Espírito Santo que desce sobre Nazarín no final." No livro Nazarín nunca duvida - até consegue salvar a alma do ladrão que o defendeu - enquanto no filme a conversa deles o faz mergulhar no desespero: "Tu estás no lado do bem e eu estou no lado do mal," diz o ladrão."E nenhum de nós serve para o que quer que seja." O som de castigo dos tambores de Sexta-Feira Santa da Aragão natal de Buñuel nos últimos minutos do filme é um acompanhamento apropriado para o que equivale à crucificação de Nazarín."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Ensayo de un crimen (1955) de Luis Buñuel



por Alexandra Barros

O filme arranca com um livro sobre a Revolução Mexicana a ser folheado, enquanto Archibaldo introduz o contexto histórico em que se integra a sua história pessoal. Página após página, vemos fotografias de violência e morte. 
 
Embora protegido destes acontecimentos por pertencer a uma família com uma posição privilegiada, o acaso cruzará a sua vida e a revolução. Na infância, enquanto um tiroteio decorre nas ruas, Archibaldo ouve uma fábula, contada pela sua ama. No centro da narrativa está o poder de realizar desejos de uma caixa de música, pertencente a sua mãe. 
 
Uma bala perdida, proveniente do confronto que se desenrola lá fora, mata a ama, mas Archibaldo fica convencido que, por ter desejado esta morte, ela foi executada pela magia da caixa de música. A sensação de poder, o desejo e a morte ficam assim ligados, originando uma disfunção mental que marcará o seu futuro. A partir daí passa a ambicionar matar todas as mulheres que o perturbam emocionalmente. Carlota é a excepção. Por ser supostamente pura merece a sua devoção. 
 
Archibaldo concebe planos para assassinar estas mulheres, mas nunca consegue consumar os crimes. Todavia as mortes acabam por ocorrer por motivos que lhe são alheios (como acidentes ou suicídio). 
 
Pelo facto de as ter desejado, sente-se culpado e tal afirma perante os investigadores criminais. Estes, porém, declaram-no legalmente inocente. Os pensamentos não são crime. São-no, apesar de tudo, na cabeça de Archibaldo, que acredita que a caixa de música obedece à sua vontade.
 
De facto, a única “mulher” que consegue matar, incinerando-a, não é real. É um manequim feito à imagem de Lavinia, uma das suas potenciais vítimas. Na série de mulheres que deseja assassinar, fracassa com as verdadeiras, tem sucesso com a falsa. É, de alguma forma, ainda uma criança. Só consegue “brincar” com bonecas. Também só bebe leite, recusando sempre álcool, mesmo nos bares, como se não tivesse atingido a idade maior. 
 
Quando descobre que Carlota o atraiçoa, decide alvejá-la após casar-se com ela. Mas Alejandro (o namorado secreto) antecipa-se e dispara antes de Archibaldo porque não aceita ser abandonado. Archibaldo falha assim duplamente a ligação com Carlota: na vida e na morte. Num e noutro caso é o rival que realiza com sucesso as acções ansiadas. 
 
Num momento de epifania, “afoga” a caixa mágica, abdicando do poder que supunha possuir. Sentindo-se liberto, consegue finalmente relacionar-se com uma mulher (Lavinia) sem desejar a sua morte. Pelo fogo a “matou”, pela água a recupera. 
 
As peculiaridades e temas recorrentes de Buñuel estão inscritos em várias cenas do filme: ridicularização dos valores das famílias burguesas, das convenções morais, das ordens militares e religiosas; humor e ironia (na cena da joalharia, os vendedores fazem o elogio da honestidade ao mesmo tempo que vigarizam Archibaldo); surrealismo (Archibaldo corta-se enquanto se barbeia e vê sangue a escorrer por toda a parte, incluindo por cima da ama morta, numa alucinação que o transporta para esse primeiro “assassinato”); horror (cena de incineração do manequim que representa Lavinia); relações afectivas perversas (discussões e agressividade como forma de quebrar a monotonia da relação; ciúme e obsessão como prova de amor; tortura psicológica como vingança).

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

175ª sessão: dia 17 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Fetichismo, melodias, frustrações, paranóias e mulheres... Um homem doente e partido como o Francisco Galván de Montemayor do Ele que vimos no início de Setembro, deseja a morte das mulheres e os seus desejos são concretizados sempre por interposta pessoa. Chama-se Archibaldo de la Cruz e é o herói de Ensaio de Um Crime, a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Luis Buñuel descreveu o seu herói a José de la Colina y Tomás Pérez Turrent, dizendo que "Archibaldo quer matar... Matar talvez o libertasse de um ponto de vista sexual, mas se ele matasse mesmo, quem sabe o que é que faria a seguir. Ele é um assassino. Mas como é óbvio, também gosta da frustração, adora-a. Ele quer matar uma mulher e falha. Tenta matar outra e falha outra vez. Pode-se dizer que queria falhar, só para tentar mais uma vez. Fá-lo para se libertar a si próprio? Talvez o faça pela razão oposta. Eu sei que isto parece sombrio. Eu sinto-me atraído pelo que é sombrio numa personagem. Se se tenta construir uma personagem de forma demasiado racional, ela não ganha vida. Tem de haver uma zona cinzenta."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "Ensaio de Um Crime, um dos raros filmes de Buñuel dos anos 50 que teve distribuição comercial em Portugal (embora com mais de dez anos de atraso), ocupa na obra deste um lugar objectivamente singular (do meu ponto de vista, subjectivo também).

"Porque é o último dos seus filmes da primeira fase mexicana, porque é o último dos seus "melodramas" (no mesmo ano começariam as co-produções e Buñuel só faria mais dois filmes exclusivamente produzidos pelo seu país de adopção: Nazarín e Simón del Desierto); porque é uma recapitulação da temática mais forte da sua obra (o crime, o sexo e a mãe) que tinha tido como paradigmas anteriores Os Esquecidos, Susana, Subida al Cielo, O Bruto, El Río y la Muerte e, sobretudo, Ele (com que este filme apresenta bastantes analogias); porque anuncia algumas das mais célebres películas posteriores (Viridiana, Ele Angél, Tristana, Le Charme, Cet Obscur Objet). É, assim, a vários títulos um filme-charneira, sendo, em minha opinião, o filme que mais diz: vai mais longe que os avatares citados, só é desenvolvido nos filmes seguintes."

Em Luis Buñuel - Chimera 1900-1983, Bill Krohn escreve que "Ensaio de Um Crime é uma sequela solarenga para a comédia negra de Ele. A atmosfera é estabelecida pela melodia pronunciada da caixa de música e a sua versão cómica tocada num órgão, com notas amargas e muita reverberação, sempre que Archibaldo cai sob o feitiço do brinquedo fatal. O filme é muito sensual: antes do assassínio planeado de Lavinia, Archie brinca com um manequim que tem a cara dela enquanto ela observa divertida. O facto destas coisas estarem a ser feitas a um boneco, o que as fez passar pelos censores, torna-as duplamente perversas. 

"Archibaldo e Francisco têm muitos pontos em comum, para contrastarem melhor. Archibaldo também é um fetichista. Quando o vemos pela primeira vez aos dez anos, a governanta encontrou-o num armário vestido com a cinta e os sapatos da mãe. A mãe dá-lhe a caixa de música para o consolar das muitas ausências delas, e a bailarina minúscula que gira em cima dela torna-se o novo fetiche dele. Infelizmente, a governanta concede um significado assassino à caixa de música pela história que conta, que é confirmada pela sua morte, e o fetiche transforma-se numa arma mágica para ser usada contra todas as mulheres quando regressa a Archibaldo em adulto. 

"Em termos psico-analíticos, quando o fetiche o impede de entrar em paranóia, também o põe paralisado no momento anterior à resolução final do complexo de Édipo. Daí todos os intrusos, a maior parte homens mais velhos, que aparecem e matam as mulheres em quem pôs a vista em cima. O destino irónico de Archibaldo torna-se fazer o papel de casamenteiro. Até a freira vai ser reunida com Deus depois de escapar à sua navalha."

Até Quinta!

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Abismos de pasión (1954) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë, sempre foi um romance inspirador para os surrealistas e Buñuel, com Pierre Ulrik, tentou adaptá-lo para o cinema na época em que filmava A Idade do Ouro. Contudo, só vinte e quatro anos mais tarde, no México, pôde realizar esse projeto. 
 
O filme não agradava inteiramente a Buñuel. O guião foi alterado (o nome de Ulrik não consta da ficha técnica), os atores principais (que haviam sido contratados por Dansigers para uma comédia) não lhe pareceram os mais apropriados e a música (Buñuel sugeriu Wagner e, depois, partiu para Cannes) acabou por invadir a despropósito todas as cenas. Mas, o resultado final está à altura da obra literária, da beleza esquisita do seu sopro romântico e demencial. 
 
O contexto da história já não são as montanhas inglesas dos ventos uivantes, mas as áridas planícies mexicanas e o título do filme passou a ser Abismos de Pasión, mas o “amor louco” de Heathcliff (rebatizado Alejandro) e de Catherine (Catalina) continua no seu centro, permitindo a Buñuel retomar um dos seus temas preferidos: o poder subversivo da paixão amorosa, que apenas obedece ao instinto e ignora regras e convenções sociais, a moralidade e o bom senso sobre o que se alicerça todo o edifício social. 
 
O filme concentra-se num momento do romance, o regresso de Heathcliff, e altera-lhe o final. Os diálogos iniciais informam-nos do contexto da história: Alejandro era uma criança pobre que foi adotada pelo pai de Catalina, com quem desenvolveu uma relação apaixonada. Porém, Ricardo, irmão de Catalina, odeia-o e, depois da morte do seu pai, obriga-o a viver como um simples criado. Catalina casou-se com Eduardo, um proprietário vizinho, rico, o que lhe permitiu manter a sua condição social. Vivem ambos com Isabel, irmã de Eduardo. 
 
Nas primeiras sequências, Catalina dispara sobre os abutres pousados nas árvores ressequidas – com um só tiro, afirma, sem sofrimento, fá-los passar da liberdade à morte. Eduardo coleciona borboletas que fixa com um alfinete, ainda vivas, a um estirador, antes de as emoldurar, decorando as paredes. Secas, deixariam de sofrer e a sua beleza seria imortal. Isabel, jovem e sensível, revolta-se contra o sofrimento infligido aos animais. Alejandro que, sentindo-se desprezado, tinha abandonado a casa onde foi acolhido, regressa, numa noite tempestuosa, arrombando a pontapé as portadas de uma janela que a governanta, Maria, se recusa a abrir porque ele “é um demónio”. 
 
Nunca esqueceu Catalina, por quem continua perdidamente apaixonado. Egocêntrico, selvagem, violento e atormentado, regressou rico e com o desejo de se vingar de todos os que o humilharam e fizeram sofrer. A paixão de Catalina por Alejandro também se mantém viva, mas ela oscila entre a alegria e o desespero, incapaz de sufocar o seu amor, como de trair o casamento. Os dois revisitam os lugares secretos da sua paixão, procuram e encontram os objetos que lhes recordam os sonhos juvenis – a faca, a corda e a lanterna, os equipamentos do veleiro que os levaria dali. Mas, Catalina está grávida de Eduardo e esse passado, já distante, não é recuperável. Por culpa de quem? O amor e o ódio vivem entrelaçados. 

Pelo seu lado, Eduardo, que representa a fidelidade, a amizade e a segurança, teme a paixão de Catalina por Alejandro e vê Isabel, ingénua e sentimental, tornar-se num instrumento da sua vingança. 
 
Alejandro instalou-se em casa de Ricardo, que perdeu a sua riqueza no jogo e se transformou num bêbado miserável. Um empréstimo hipotecário prestes a vencer-se deixou-o nas mãos do homem que sempre odiou. As casas de Ricardo e Eduardo são o espelho de dois mundos: a primeira é um exemplo de degradação física e moral, a segunda da boa ordem burguesa. Contudo, elas avizinham-se, opõem-se mas intersectam-se: Alejandro invade a casa de Eduardo para resgatar Catalina e Isabel, que Alejandro despreza, mas com quem se casou para castigar Catalina e humilhar o seu marido, foi viver para a casa de Ricardo. 
 
O clima de violência adensa-se. Todos, Eduardo, Isabel, Ricardo, desejam a morte de Alejandro, mas todos se deprimem face à força da sua vontade. A imagem terrífica da mosca atirada à aranha antecipa o desenlace. As sequências finais, pontuadas pela música de Wagner e pela leitura do Livro da Sabedoria, serão patéticas, dignas do belo-horrível ultrarromântico de um Soares dos Passos: só fora deste mundo a reunião dos dois amantes será possível.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

174ª sessão: dia 10 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Esta Quinta-Feira vamos assistir ao encontro das pulsões buñuelianos com os ideais e os laivos românticos de Emily Brontë. Feito com actores bem distantes do que seria o ideal e adequado para as personagens, supostamente metralhado de música nos sítios errados, mas com um guião trabalhado durante anos, O Monte dos Ventavais, Abismos de pasion no título original, é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Sobre as restrições com que o cineasta espanhol se deparou no México, o nosso conhecido Miguel Marías escreveu que "Buñuel soube logo servir-se das limitações que se tinha visto obrigado a aceitar. Não estava disposto a renunciar aos seus princípios, nem a fazer concessões morais, nem a submeter-se aos imperativos do género mais demagógico do cinema mexicano, mas soube ver que para sobreviver tinha que parecer aceitar as regras do jogo, e uma vez contratado como realizador, tentar-se apoderar da obra. Para isso não podia ser tão directo e agressivo, tão brutalmente explícito como quando tinha uma liberdade quase absoluta, mas recorrer à astúcia e à subtileza, actuar de forma insidiosa e sorrateira para modificar ou inverter o sentido “oficial” das histórias que podia filmar. Para conseguir isto, Buñuel dispõe de três recursos fundamentais, característicos de toda a sua obra: a construção da narrativa, o humor e a interrupção. 

"Isto quer dizer que Buñuel se começa a servir da montagem para algo mais do que chocar o espectador justapondo coisas cuja reunião parecesse insólita e surpreendente (bispos e esqueletos, por exemplo), embora de valor metafórico demasiado evidente. Sem dúvida que a sua experiência como montador de documentários o fez ver que uma cena pode mudar de sentido modificando a ordem dos planos que a compõem, que a interposição de uma sequência a outra pode alterar o significado de um filme, por mais “neutras e objectivas” que pudessem ser as suas imagens, e que isto ainda era mais fácil de conseguir com planos rodados por si próprio. Consequentemente, todos os filmes de Buñuel, pelo menos a partir de Susana, têm uma estrutura exemplar, frequentemente muito complexa, —Ele, Ensaio de Um Crime— e ao mesmo tempo muito clara. As peças básicas da construção buñueliana são as elipses, a associação de imagens nas transições, os flashbacks —às vezes encaixados dentro doutros—, os inserts analógicos, algum plano de ruptura, o apontamento breve que sugere algo que não mostra ou que desperta um eco amplificador (os finais de Ele e O Anjo Exterminador, por exemplo), etc. Por outro lado, quando a sua opinião sobre as personagens não coincide com a do produtor e dispõe de actores tão desajeitados e empolados como Fernando Soler para os encarnar, Buñuel procura acentuar as suas deficiências como intérpretes para transformar um “digno pai burguês” num fantoche hipócrita, ou uma “esposa e mãe que triunfa sobre o vício” numa fera enraivecida de ciúmes e inveja (em Susana). Esta direcção caricatural dos actores permite-lhe, além disso, um certo grau de estilização que o liberta do naturalismo superficial que o público costuma exigir. Por último, Buñuel tenta combater, na medida do possível, a suposta “coerência” da narrativa convencional, e para isso recorre a todo o tipo de interrupções: saltos temporais, sequências oníricas, piadas, planos de animais, etc. A partir do êxito crítico de Os Esquecidos, Buñuel pôde propor algumas histórias que, sob uma aparência mais ou menos melodramática, o permitissem tratar temas que lhe interessavam (Robinson Crusoe, 1952; Ele; O Monte dos Vendavais, 1954; Ensaio de Um Crime), o que ocasionalmente lhe permitiu um controlo praticamente absoluto sobre aquilo que fazia, e o que explica que nesta etapa difícil da sua carreira tenha  conseguido realizar várias das suas melhores obras, e talvez mesmo a melhor (El)."

Já sobre o filme em questão, e na sua auto-briografia, Luis Buñuel disse-nos que “em 1930, eu e Pierre Unik tínhamos escrito um argumento baseado em O Monte dos Vendavais. Como todos os surrealistas, fui profundamente inspirado por este romance, e sempre quis tentar o filme. A oportunidade chegou finalmente no México, em 1953. Sabia que tinha um guião de primeira ordem, mas infelizmente tive de trabalhar com actores que o Oscar tinha contratado para um musical—Jorge Mistral, Ernesto Alonso, uma cantora e dançarina de rumba chamada Lilia Prado, e uma actriz polaca chamada Irasema Dilian, que apesar das suas feições eslavas foi escolhida para irmã de uma métis mexicana. Como era de esperar, houve problemas terríveis durante a rodagem, e basta dizer que os resultados foram problemáticos na melhor das hipóteses. Há uma cena de que me lembro vívidamente, no entanto, em que um velho está a ler a uma criança, da Bíblia, uma passagem pouco conhecida que não aparece em todas as edições mas é bem superior ao Cântico dos Cânticos. Claro, o autor teve de pôr estas palavras nos lábios de incrédulos para as poder imprimir."

Já João Bénard da Costa, na sua folha da Cinemateca, escreveu que «Wuthering Heights, o lendário romance a que se resume a obra da mais genial das irmãs Brontë, Emily (1818-1848), foi publicado em 1847. Obra-prima da gothic novel ou do black romance, expoente máximo do romantismo inglês, O Monte dos Vendavais, para lá do sucesso que sempre o acompanhou, foi "livro de cabeceira" dos homens do surrealismo, que descobriram nele, nos anos 20-30, um precursor das suas obsessões e temáticas, com a absoluta exaltação do amour fou e a sua delirante imagética. Em 1933, a revista Minotaure, órgão "oficial" do movimento, dedicou-lhe um número especial e histórico, ilustrado por quase todos os pintores surrealistas.

«Nesses mesmos anos, Buñuel, que comungava com os seus companheiros de geração da paixão pela obra de Emily Brontë, pensou levá-la ao cinema, tendo chegado a escrever uma sinopse em colaboração com outro surrealista, Pierre Unik. Por falta de meios, o projecto não se concretizou.

«Vinte anos guardou Buñuel essas páginas na gaveta, até que no México teve, finalmente, a oportunidade de concretizar esse velho sonho. Disse numa entrevista: "Um dia, Dancigers chamou-me: queria fazer uma comédia com Jorge Mistral, Irasema Dilián e Lilia Prado, que tinha sob contrato. Eu disse-lhe que tinha escrito um argumento, o do Monte dos Vendavais. Um argumento impossível para aquela distribuição de actores: não convinha nada. Mas a vontade de fazer aquela história de que gostava tanto acabou por vencer-me."»

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

El (1953) de Luis Buñuel



por Alexandra Barros

El, um dos filmes de Buñuel de que ele mais gostava, integra vários dos seu temas recorrentes: obsessões, machismo, ciúme, patologias sexuais, o “charme discreto da burguesia” e rituais e papel da Igreja Católica na sociedade. 
 
É numa cerimónia de beija-pé, numa igreja, que Francisco vê Gloria pela primeira vez e por ela se apaixona. É na igreja que a reencontra e passa a perseguir, até conseguir que esta deixe o noivo, Raul, e se case com ele. 
 
Francisco vive numa realidade distorcida, interpretando de forma disparatada, como sinais de infidelidade de Gloria, as situações mais banais e insignificantes. Os ataques de ciúmes são, por vezes, cómicos, pelo absurdo das situações. Outros, são perturbadores, pela grande proximidade com casos reais. As histórias de crimes violentos cometidos contra mulheres por homens ciumentos, tão frequentes nos meios de comunicação social, são apenas a ponta visível de um problema de dimensões muito maiores. A violência psicológica diária (e/ou física), vivida em tantas casas e não denunciada, mesmo quando não mata, destrói quem a ela está sujeita. Jacques Lacan mostrava este filme aos seus alunos, por considerá-lo um excelente tratado sobre paranóia. 
 
Alguns dos ataques de ciúmes de Francisco são tão ou mais angustiantes que as mais pesadas cenas de um filme de terror: a cena da torre dos sinos, onde tenta estrangular Gloria (cena muito semelhante à de um outro filme sobre obsessão, este de Hitchcock - Vertigo); a cena em que Francisco se senta na escadaria de sua casa e, batendo repetidamente e com fúria crescente com uma barra nos respectivos postes, cria um ambiente de ameaça feroz. 
 
O ciúme é considerado por Francisco, e por quem dele sofre, uma consequência de um verdadeiro e intenso amor. É uma loucura perigosa, mas é aceite pelas vítimas e mesmo pelo sistema judicial, com base na ideia que o amor é um sentimento que tudo justifica e que a tudo se impõe. 
 
É na igreja que Francisco, por fim, colapsa mentalmente, após uma série de alucinações em que é ridicularizado, bombardeado por gargalhadas e caretas da parte de quem assiste à cerimónia e mesmo pelo padre e seus assistentes. 
 
Internado num convento, onde aparentemente recupera a sanidade mental, alguns anos depois, ao avistar Gloria, Raul (e o filho de ambos) - que procuram acompanhar o seu estado - Francisco recai na paranóia. Tal como na cena da escadaria, percorrida aos ziguezagues, antes de iniciar a percussão infernal, também os jardins do convento são assim percorridos, espelhando-se neste movimento exterior o persistente estado mental cambaleante de Francisco.