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quarta-feira, 29 de maio de 2024

Inferno (1980) de Dario Argento



por João Palhares

Vidros partidos, paredes raspadas, desenhos que se formam sob gesso, placas de pavimento arrancadas, argamassa moída, cabos cortados, folhas rasgadas, canos soltos, tectos caídos, salpicos de sangue, maçanetas seccionadas, amontoamentos de gatos, de ratos ou de insectos, são tudo coisas que surgem em filmes de Dario Argento. Uma e outra vez. Essa fragmentação física, associada nas suas estórias a mistérios que as personagens precisam de resolver a todo o custo, e que normalmente até é provocada por elas, seja por acidente ou de propósito, é imediatamente seguida por uma fragmentação formal accionada por Argento e que as castiga cruelmente. Esses planos que duram um instante e que não mostram absolutamente nada, pois é o encadeamento da sequência em que se inserem que lhes dá o sentido, dão prova do seu grande talento e de uma herança que podemos retraçar a Dziga Vertov e aos soviéticos ou ao inevitável Alfred Hitchcock. 
 
Como disse em entrevista a Daniele Costantini e Francesco Dal Bosco para o livro Nuovo cinema inferno, de 1997[1], Dario Argento frequentou o Filmstudio, cineclube fundado em 1967 por Americo Sbardella, Annabella Miscuglio e Paolo Castaldini, e por onde passaram cineastas como Michelangelo Antonioni, Marco Bellocchio, Marco Ferreri, Jean-Luc Godard, Gregory Markopoulos, Pier Paolo Pasolini, Roberto Rossellini, Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Paolo e Vittorio Taviani ou Luchino Visconti. “Era um lugar muito excitante para um entusiasta do cinema,” disse Argento. “Eu via de tudo. Cinema alemão, cinema francês... Cinema russo também, pelo qual era apaixonado. Dziga Vertov, o Kino-Glaz. E Eisenstein, fascinante. Uma das coisas que mais me impressionou, além da mostra de filmes de terror no Metropolitan, além de Hitchcock e Visconti, foi “Kino-Pravda”[2] de Vertov. A história é pura aventura, acção em estado puro. Com meios muito simples consegue comunicar emoções visuais muito profundas.” 
 
Foi activo politicamente, era e é de esquerda, mas percebeu muito cedo, durante a corrente de cinema político ou revolucionário que era praticado em Itália e um pouco por toda a Europa, que as certezas formais e discursivas desses filmes os afastavam por completo das pessoas e da realidade que tentavam captar. É uma cisão parecida com a dos Cahiers du Cinéma com Gillo Pontecorvo e a de Manoel de Oliveira com os filmes engajados politicamente e rodados nas ruas portuguesas durante o Processo Revolucionário em Curso. Um filme até nos pode dizer tudo o que queremos ouvir, defender tudo o que achamos por bem defender, mostrar as coisas de um ponto de vista supostamente isento ou jornalístico, se é que isso é possível, mas dessa posição estamos todos perfeitamente confortáveis, não há espaço nem margem para a descoberta, não há mistério nenhum, e a câmara e a montagem podem tornar-se em relação proporcional de um conservadorismo medonho. Isto dá sempre azo a mal-entendidos, infelizmente, mas foi certamente por estas vias de pensamento que os Cahiers chegaram à realização de que a moral e a estética são uma e a mesma coisa e que “o travelling é uma questão de moral,” ou que Oliveira decidiu que “o cinema revolucionário está atrasado face à revolução.” Ideias semelhantes tinha Argento, que disse na mesma entrevista a Constantini e Dal Bosco que “normalmente o cinema, e o espectáculo em geral, servem de amortecedores, ou se não tendem para a análise, para a especulação intelectual. Eu, pelo contrário, dirigia-me para os becos mais escuros, tentava explorar as zonas ocultas, e expressava uma fúria sempre crescente. Uma fúria instintiva que coincidia, sem qualquer planeamento, com o estado de espírito de uma parte da sociedade que era normalmente negligenciada ou mesmo observada com um olhar político e cultural muito tradicional. Falo do estado de espírito dessa grande massa de jovens que exprimiam todos os dias um forte instinto de revolta, quase selvagem, certamente de origem social mas de certa forma também pré-política.” 
 
Embora seja importante, também por essa fúria instintiva e por essas zonas ocultas de que fala o cineasta italiano, para além do que possa revelar sobre si próprio e os seus fantasmas, não é o mais importante que ele povoe os seus filmes de assassinos e degenerados, que haja sangue e mortes a rodos pelas suas extensões, que as próprias estórias às vezes nem façam grande sentido ou que se assista frequentemente a actos verdadeiramente grotescos. Porque tudo isto é apenas o que potencia o seu lado verdadeiramente imaginativo e poético, que também passa por rechear todas as suas cenas de contrapontos e contrastes fabulosos. Pode-se começar pela banda-sonora de Inferno, que foi composta por Keith Emerson e convive com excertos de Verdi que são estudados pelos musicólogos interpretados por Leigh McCloskey e Eleonora Giorgi. Não é pouco comum ouvir nela grandes repentes sonoros que abalam uma serenidade e uma harmonia aparentes, ou melodias concorrentes que se intersectam ritmicamente até serem engolidas por um paroxismo inevitável. Esta tensão constante permite a Argento, por exemplo, cortar do grande auditório onde as personagens de McCloskey e Giorgi têm a aula de música para Giorgi dentro de um táxi com o cabelo enchumbado de água sem que achemos que é despropositado ou que esteja deslocado. Sem se preocupar demasiado, também, com o que possam ser as construções e progressões dramáticas como as aprendemos a analisar, ele permite-se ainda acrescentar pormenores insólitos como os pregos espetados na porta do táxi que ferem o dedo de Giorgi, a maçaneta que se parte e corta a mão da personagem de Daria Nicolodi, as saliências no pano estendido na parede que se rasga a meio para revelar Nicolodi moribunda, a cena em que o vizinho de Nicolodi, às portas da morte, se agarra a ela em desespero e não a quer deixar escapar, ou a sequência absolutamente demente do livreiro que se afasta sob a lua cheia numa noite de eclipse com um saco cheio de gatos, em que todas as nossas expectativas como espectadores saem frustradas. 
 
E podia-se passar linhas e parágrafos a elogiar mais uma data de coisas, do artesanato das miniaturas e das pinturas em espelhos do grande Mario Bava à iluminação quase opressiva de Argento, que usava mais projectores do que qualquer um dos seus colegas de profissão e assustava até alguns dos seus técnicos e produtores associados, passando pelo grande feito que é a cena subaquática do início do filme, a bela recriação da cidade de Nova Iorque nos estúdios INCIR-De Paolis em Roma ou a atenção do cineasta italiano ao som, que noutra cena insólita vai ao detalhe de acompanhar por tubos um sistema acústico criado para facilitar a comunicação entre apartamentos no prédio amaldiçoado das três Mães. Mas fiquemos com a cena da decapitação da personagem de Eleonora Giorgi, um prodígio de construção e um prodígio de execução. Deambulação da personagem, apresentação de todo o espaço. As janelas partem-se sozinhas, troveja lá fora. Sente-se uma grande instabilidade, tudo é incerto. Ela aproxima-se de uma portada. Não parece estar lá ninguém. Vira as costas e é agarrada pelas sombras, duas mãos tapam-lhe a cara e expõem-lhe o pescoço. Vemos os pregos, em baixo. O vidro a cair aos poucos, em cima. Os olhos dela procuram uma saída, por todas as direcções. O vidro falha o alvo. Surgem braços velhos e quase cadavéricos a puxar de novo o vidro para cima, com as sombras desse movimento no rosto dela no plano seguinte. O vidro está de novo lá em cima e surge agora a mão a segurá-lo no topo. Novo plano do rosto da vítima. Plano aproximado da mão e do vidro, desaparecem os dois para baixo. Sai um jacto de sangue para cima do vidro iluminado a vermelho, diz-se que a cor do inferno.
 
Durante perto de trinta anos, no pico da sua criatividade, Dario Argento praticou um cinema que criava dados e situações novos a cada minuto que passava, refugiando-se no grande bastião do género do terror para levar a cabo essas experiências. Era por isso que não era levado a sério e era considerado um mero sucedâneo de Alfred Hitchcock, mas também era por isso que tinha rédea solta para libertar os seus fantasmas e as suas soluções estéticas. Passados quarenta e quatro anos e superando a barreira dos nossos preconceitos, ainda presos às histórias e aos temas, talvez possamos admitir finalmente que o seu talento e a sua importância não são mera opinião, mas um facto.

[1] «Nuovo cinema inferno. L'opera di Dario Argento», Daniele Costantini, Francesco Dal Bosco e Dario Argento, Pratiche editrice, Parma, 1997.
[2] “Kino-Pravda” é uma série de jornais cinematográficos realizados por Dziga Vertov, com Elizaveta Svilova e Mikhail Kaufman. Teve vinte e três episódios e foi considerado pelo cineasta como o primeiro trabalho em que leva a cabo as suas ideias sobre cinema. Em russo, “kino-pravda” quer dizer “cinema-verdade”.



quarta-feira, 26 de abril de 2023

A Idade da Terra (1980) de Glauber Rocha



por Alexandra Barros

O último filme de Glauber Rocha, e aquele em que procurou levar mais longe uma forma revolucionária de fazer cinema, fortuitamente é exibido no dia da Revolução dos Cravos. A militância cultural de Glauber Rocha e a sua militância política foram inseparáveis e, por isso, durante a ditadura militar, esteve vários anos exilado em diversos países e continentes. Encontrava-se na Europa em abril de 1974 e aterrou em Portugal no dia 26. Nos dias que se seguiram à revolução filmou e participou nas emoções vividas nas ruas portuguesas. Esses testemunhos deram origem ao filme As Armas e o Povo, o mais célebre filme da revolução, de acordo com a Cinemateca Portuguesa. 
 
A ideia de Revolução – política e cultural - é fundamental no pensamento e na obra de Glauber Rocha, que considerava que para exprimir a essência ou a alma da cultura dos países do Terceiro Mundo e para abordar a realidade, lutas e aspirações dos seus povos eram necessárias formas revolucionárias de representação, novos processos criativos, novas formas de fazer cinema. É n’ A Idade da Terra que Glauber Rocha mais profundamente mergulha em “águas” inexploradas. Dessa experiência emerge uma obra insólita e classificada, por muitos, como impenetrável. Glauber Rocha acreditava, no entanto, que no futuro lhe seria feita justiça, tal como sucedera com Terra em Transe (de 1967), em que críticos de primeira hora vieram, mais tarde, a converter-se em admiradores. 
 
O slogan “Primeiro estranha-se e depois entranha-se” - criado originalmente por Fernando Pessoa para uma campanha publicitária da Coca-Cola - poderia ter sido concebido para este excêntrico filme. A Idade da Terra foi mal recebido, pela crítica e pelo público em geral, quando estreou no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 1980, mas - ao longo dos anos - críticos, estudiosos e cinéfilos têm vindo a reconhecer o seu valor artístico e impacto no meio cultural brasileiro. É um filme que provoca reacções extremadas, com as opiniões a expressarem ora máxima admiração (classificando-o como: obra-prima, ousado, provocador, arte) ora máxima aversão (por parte de quem o vê como: pretensioso, inacessível, entediante). Apesar desta falta de unanimidade é actualmente considerado um dos mais importantes filmes na história do cinema brasileiro. 
 
Sem fio narrativo, caótico no conteúdo e na forma, “compreender” este filme parece-me tarefa impossível, por muitos visionamentos que eu possa vir a fazer. Porém, compreensão não foi o que o realizador pretendeu, da parte dos espectadores. Nas suas próprias palavras: “É um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, anti-literário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí. [...] Não é para ser contado, só dá para ser visto.”[1] A Idade da Terra parece um vulcão, jorrando continuamente novas imagens, símbolos e referências culturais, uma lava de misticismo, religião, poesia, sexualidade e política, com foco particular em temas como: o imperialismo, o colonialismo, a liberdade, a miséria, a pobreza. As cores são saturadas; os diálogos/discursos são gritados e histéricos; a música e os sons são densos e intensos; os tempos e os lugares são múltiplos e coexistentes. Num momento as personagens estão imersas na selva tropical, à beira de um imenso charco; no seguinte, a profundidade de campo alarga-se e, ao fundo, na outra margem do “charco”, avistamos o Rio de Janeiro. A cidade cosmopolita e a selva tropical são afinal planos distintos de um mesmo “palco”. Filme e rodagem do filme são indistinguíveis. A música brasileira, principalmente a ritualizada, mística, religiosa, tem uma forte presença no filme. De rituais lascivos no primitivo Jardim do Éden somos transportados para as coreografias ensaiadas dos actuais desfiles do Carnaval carioca, sempre mergulhados em ritmos hipnóticos, através dos quais o Homem tem procurado, desde os primeiros tempos, o transe, o êxtase, a transcendência. Porém, mais que filmar o transe, Glauber Rocha quer induzi-lo nos espectadores, comunicar com eles através do inconsciente, diluir as barreiras entre o que está na tela e o que está fora dela. Este cinema não pretende contar histórias. Quer actuar e ser História. A descolonização começa por ser cultural. “A Idade da Terra [...] materializa os signos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, as santas em revolucionárias. Tudo isso está no filme [...] O filme oferece uma sinfonia de sons e imagens ou uma anti-sinfonia que coloca os problemas fundamentais de fundo. A colocação do filme é uma só: é o meu retrato junto ao retrato do Brasil.” “Meu estilo de filmar está profundamente ligado à cultura popular brasileira. Os que são considerados símbolos e alegorias não são abstrações, senão expressões diretas de elementos da cultura popular. É um cinema feito sobre o povo e com a colaboração popular de sua cultura. [...] O cinema latino-americano tem dois caminhos: um, que é o cinema-documentário, informado de denúncia e agitação política e social [...]. No meu caso, por uma deficiência profissional, já que não tenho capacidade para fazer documentários, faço filmes de ficção ligados à realidade latino-americana, com uma linguagem que expressa os mitos.” “Não há vantagem alguma em fazer filmes de conteúdo revolucionário se, na forma, você imita a Nouvelle Vague francesa, o expressionismo alemão ou o comercialismo norte-americano. O problema dos cineastas do Terceiro Mundo é encontrar um estilo próprio.”[2] “O que interessa é a criação. A linguagem estabelecida, em qualquer arte, cansa.”[3]
 
Originalmente sem créditos iniciais ou finais, e sem uma ordem estabelecida de montagem das várias cenas, a sequência pela qual eram projectadas as bobinas do filme era deixada deliberadamente ao critério do projeccionista. Conceptualmente, o filme prenuncia a era da navegação digital e virtual. A ambição de fazer emergir múltiplos percursos e sentidos através de um conjunto desordenado de numerosas referências e justaposições, remete para uma outra revolução que estava a ser preparada. De forma intuitiva, sem formulação “técnica” ou filosófica, os conceitos de hiperlink, de leitura não-sequencial, de uma rede de conteúdos infinitamente “navegável” presidem à criação da Idade da Terra. Uma década mais tarde, esses mesmos conceitos estiveram na base de um acontecimento que viria a mudar o mundo: o nascimento da World Wide Web.




quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980) de Héctor Babenco



por Joaquim Simões

Não há necessidade de elogiar a obra que é Pixote, um filme que relata a vida num reformatório juvenil em São Paulo, centrado no protagonista de onze anos que lhe dá o título - o filme já possui todos os louros que merece, tendo sido abundantemente premiado e inclusivamente considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos melhores 100 filmes brasileiros de todos os tempos. E, se na altura da sua estreia teve um impacto enorme, hoje, passadas quatro décadas, ver esta obra é uma experiência completamente diferente, mais deslocada da realidade atual e por isso talvez mais intensa, pois as qualidades realistas que na altura o tornaram um documento fiel da sociedade brasileira no final da ditadura militar são hoje o que fazem deste filme, para nossa sensibilidade atual, uma obra de tal brutalidade que pode até parecer romantizada: um testemunho de que a realidade é muitas vezes mais surpreendente e chocante do que é possível imaginar. 

Apesar de Héctor Babenco ter comprado os direitos de adaptação do livro Infância dos Mortos, de José Louzeiro, o realizador admite que a matéria prima do filme, mais do que o livro, foram as duzentas horas de entrevistas conduzidas com crianças de reformatórios em São Paulo. Inicialmente pensado como documentário centrado na vida de crianças em reformatórios, a ideia foi rapidamente abandonada uma vez que filmar em tais instituições seria impossível: o reformatório que aceitasse tal exposição estaria a revelar os abusos sistemáticos que eram a prática comum. 

Babenco teve então de recorrer a contar a realidade através da ficção. Fê-lo de forma objetiva e, portanto, brutal. Para tornar o filme o mais fiel possível à realidade, o realizador recrutou os atores das ruas de São Paulo, através de oficinas com centenas de crianças. Num desfecho irónico do destino, o ator protagonista Fernando Ramos da Silva, depois do sucesso do filme e de uma breve e falhada tentativa numa carreira de ator, voltou à vida das ruas e foi morto com 19 anos; segundo a sua esposa, pela polícia. 

A história começa com o momento em que Pixote e os companheiros são apanhados das ruas de São Paulo, levados à esquadra e consequentemente confinados num reformatório. Aí assistimos ao quotidiano destes rapazes que jogam futebol, matrecos e se divertem de formas relativamente inocentes. Há até uma banda. Mas vamos também sendo introduzidos, gradualmente, à realidade subjacente de abuso, corrupção e crueldade por parte da administração, cada vez mais presente e que leva os personagens ao ponto de ruptura quando um jovem inocente é espancado até à morte por se revoltar, e a culpa é impingida na amante transexual que o segura tragicamente entre os braços no momento da sua morte, consolando-o em vão. É nesse ponto que o desespero leva os rapazes a escapar do reformatório. A partir daí seguimos Pixote e o seu grupo, ou tribo, na luta pela sobrevivência nas ruas da cidade, vivendo a princípio de furtos, passando pela venda de droga e juntando-se por fim a uma prostituta num esquema de assaltos planeados, à medida que o grupo se desmorona, um a um, até que Pixote tem de seguir a sós, sem rumo e sem futuro. 

Se despirmos o filme das fortes pressões que movem os personagens na sua luta pela sobrevivência e liberdade, esta é uma história sobre crianças que não tiveram direito a infância e sobre as relações de amizade, ternura, amor e sexualidade que surgem naturalmente, por efémeras que sejam, mesmo nas condições mais hostis.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Heaven's Gate (1980) de Michael Cimino



por João Palhares

Disse na folha de sala sobre The Deer Hunter que as suas questões não resolvidas eram "apresentadas de forma solta, dispersa e imperscrutável, como na vida", e para Heaven’s Gate pode-se mesmo começar por aí: são tantas as personagens que chocam e entram em rota de colisão nesse Wyoming pintado (há outra palavra, porventura?) por Michael Cimino e Vilmos Zsigmond (naquele que há-de ser um dos cumes absolutos da pintura cinematográfica, onde se arrisca tanto e tão bem com a luz e com o vento, com as nuvens e com a poeira, captadas de forma a manter e mostrar a sua essência redentora, transformadora e eterna...) que se torna muito difícil arriscar escrever sobre motivações e sentimentos além daquele que põe todo o filme em marcha: a resistência contra os barões de gado e contra os mercenários contratados com o aval do Estado e do Governo Central dos Estados Unidos da América. Mas dentro dessa luta temos Billy (a personagem de John Hurt), do lado errado mas dizendo sempre coisas tão certas, Nate (Christopher Walken), de lado nenhum que não o seu mas fazendo tantas vezes coisas erradas, o Jim (Kris Kristofferson) de origens e porte aristocráticos e que se calhar se pode dar ao luxo de fazer o que está certo (quantas vezes lhe atiram isso à cara, no filme?) e os imigrantes desalmados que não têm outro remédio que não seja fazê-lo, à custa da vida. 

Além disto, e como acontece em vários filmes de Michael Cimino, as cenas prolongam-se e mostram coisas perfeitamente soltas e de fluidez desarmante, exemplares de quem, na prosa, dá largas à poesia (e tentar imaginar como é que o realizador o conseguiu fazer, em termos práticos, é uma questão bem produtiva), do bailado ao som do Danúbio Azul de Johann Strauss e dos círculos percorridos à volta da árvore em Harvard, que se repetirão na batalha de Johnson County, à dança e à noite de copos do último Domingo antes da chegada dos mercenários ("let them have their Sunday", diz Kris Kristofferson a Jeff Bridges), passando pela luta de galos que se transforma em luta de homens no barracão de John Bridges (a personagem de Jeff Bridges) e que dá o nome a este filme (que vem também do vigésimo nono soneto de William Shakespeare). E que dizer da recitação da lista da morte, ou da chamada para a resistência que acaba com o tiro de caçadeira na orelha do presidente da cidade, disparado por uma emigrante decana e atravessando a sala pelo meio da multidão, num lampejo, que é quando todos decidem partir para a batalha e enfrentar a Associação de Criadores de Gado? 

Cimino estende as cenas e as sequências não por simples teimosia ou para enfrentar os estúdios por enfrentar os estúdios mas sim por amor às suas personagens (vejam-se os devaneios poéticos de Billy, que tem além disso tudo um plano "à Ford" dedicado apenas a si, o que é um atestado perfeito da complexidade do seu personagem e do carinho que Cimino lhe tem; Geoffrey Lewis, que tem tempo para contar uma estória sobre línguas e lobos e diz que as balas não o ferem; o discurso de Brad Dourif no meio da confusão dos debates entre os imigrantes, que pode ser visto como um solo de instrumento nesta grande sinfonia onde tantos têm lugar e espaço e tempo para terem lugar; etc, etc...). E não o faz só por isso, fá-lo também por questões da história que tem para contar, controlando o que sobressai num dado momento para noutro ecoar numa melodia ou num olhar (a fotografia da rapariga de Harvard que tantas vezes se vê pode levar-nos a arriscar pensar que há uma mulher aquele tempo todo e por isso Jim não se compromete casar com a Ella da fabulosa Isabelle Hupert). Pouco se fala do trabalho de escrita de Michael Cimino, mas ele escreveu sozinho este filme e ainda dezenas e dezenas de argumentos que não viram a luz do dia, muitos de certeza com o alcance e a abrangência deste. 

É ainda neste filme que convivem mais actores da obra passada e futura de Cimino. Jeff Bridges e Geoffrey Lewis vêm de Thunderbolt and Lightfoot, Christopher Walken vem de The Deer Hunter e Mickey Rourke tornar-se-á a personificação perfeita das questões e dos paradoxos que sempre assombraram Cimino, em The Year of the Dragon e Desperate Hours. De resto, também aqui as amizades e as guerras se desfazem e intrometem nos destinos dos homens, como no resto da sua obra, e confluem, além de colaboradores (já falamos dos actores, mas também Joann Carelli, Vilmos Zsigmond e David Mansfield, trabalharam, ou voltariam a trabalhar com Cimino) temas (as relações de força e de perseverança às circunstâncias - voltando ao raio e à candura: Kris Kristofferson é Thunderbolt, John Hurt é Lightfoot?), obsessões ("um grupo de homens, sentados à volta de uma mesa, numa suite de hotel, enquanto comem o pequeno-almoço ou o almoço, a comer comida fina de bela porcelana, num ambiente agradável, a discutir calmamente quantas pessoas vão matar...", como disse Cimino a Bill Krohn), motivos visuais (as montanhas e os lagos de Cimino, puros e cristalinos) e narrativos (primeiro a despreocupação, a liberdade e a beleza absolutas e, depois, um oceano de remorsos).

Lançando-nos no caos da história como se fosse tempo presente, deixamos de saber se faríamos o que estava certo nas mesmas circunstâncias. Fazer o bem é a coisa mais difícil do mundo, e por isso Billy e Jim se embebedam tanto, da manhã à noite, por isso o peso da consciência se vê nos semblantes de toda a gente neste filme. E, mais importante, por isso valem tanto esses bailados, jantares, passeios e conversas de amor entre as personagens desta obra fabulosa, tanto mais verdadeiros quando sentidos por últimos, abalando as fundações deste mundo. Porque é que este filme se chama Heaven's Gate? Porque Jim, Ella, Nate, J.B. e Billy as vêem e, por momentos, até ficam à entrada? Como é que cantava o outro? Não era "it's getting dark, too dark to see... I feel I'm knocking on Heaven's Door"? Mas quem está do outro lado para a abrir?