sábado, 19 de dezembro de 2020

The Apartment (1960) de Billy Wilder



por João Palhares

Pelos vistos, a inspiração original para o filme que hoje vamos ver, foi outro filme, de David Lean, o famosíssimo Breve Encontro entre Celia Johnson e Trevor Howard de 1945. Billy Wilder viu essa obra exasperadamente romântica ambientada ao som do segundo concerto para piano e orquestra de Sergei Rachmaninoff, que também usou na banda-sonora do seu O Pecado Mora ao Lado com Marilyn Monroe de 1955, e concentrou-se essencialmente e de forma bastante curiosa numa personagem secundaríssima, Stephen Lynn, que cede o apartamento ao par de apaixonados que se conhece naquela estação de comboios inglesa. A Cameron Crowe, nos anos 90, confessou mesmo ter pensado “então e o tipo que se tem de arrastar para aquela cama quente? Essa é uma personagem interessante. Então anotei isso, e anotei outras coisas no meu bloco de notas. O herói daquela coisa era o tipo que suportava isto, que era apresentado a tudo por uma mentira. Um tipo na companhia dele precisava de mudar de roupa, dizia ele, e usava o apartamento... e foi isto.”[1] 
 
Não é de admirar que uma personagem que esteja sempre disposta a emprestar o seu apartamento para pequenas aventuras amorosas e adúlteras, à custa de noites muito mal dormidas, constipações bem graves e facadas na própria reputação diante dos vizinhos, que fazem dele um Giacomo Casanova ou um pequeno marquês de Sade, comece a meditar bem a sério na sua relação com o mundo, porque no final das contas é possível passar uma vida inteira a oferecer as mãos e os braços aos outros sem receber o que quer que seja em troca. Affection-wise. Talvez seja essa carência fundamental, que pode dar em chaga insuportável se se beber o suficiente, e se representa por uma secretária entre cem secretárias iguais numa grande empresa de seguros, esperas calmas em recepções vazias à porta de elevadores, encontros frustrados à entrada de teatros, ou noites muito solitárias em balcões de bares, a conceder a O Apartamento um lirismo e uma universalidade ainda inabaláveis. A toda a prova, sessenta anos depois. Jack Lemmon e Shirley MacLaine como todos aqueles que vivem as promessas dos dias durante noites em claro, se sentem sós estando sozinhos ou acompanhados, ou deixam escapar uma centelha nos olhos quando a vida lhes sorri só mesmo um bocadinho. Os que em vez de levar se deixam ser levados. Está bom para santos, para seres humanos nem por isso. 
 
Mas se essa melancolia e essa solidão se sentem, e às vezes de forma insuportável, é por força da câmara de Wilder, que afinal não era tão apegado aos seus guiões perfeitos e acabados que o impedisse de escrever novas cenas inspirado por locais, gestos, olhares e pelo momento durante a própria rodagem. Daí o efeito caleidoscópico das cem secretárias, daí as personagens encurraladas em si mesmas diante de salões de entrada vazios ou vastas paredes e móveis de apartamentos, daí a pista sintética dada por um espelho partido que anda de mão em mão durante uma secção importante do filme, daí esse plano fabuloso de um telefone ameaçador em primeiro plano a tentar destronar o amor próprio de uma pessoa quase desfeita (o da nota, também), daí a simetria sempre desarmante e milagrosa do último plano do filme. Pode desaguar tudo, mas mesmo tudo, como flagelos que atingem a carne e a mente, na sequência basilar da noite de véspera de Natal. Imersos em álcool e comprimidos, um homem e uma mulher são acordados para a vida por um anjo da guarda que também se há-de vestir de branco por profissão. Ela, literalmente. Ele, e à falta de melhor expressão, de forma espiritual. Vemos então um corpo estendido num cadeirão e enquadrado ao lado de uma árvore de Natal luminosa e decorada: a ironia não escapa a ninguém. Como que presa, ainda, nas incessantes subidas e descidas do seu elevador, a “Miss Kubelik” de Shirley MacLaine vacila entre a realidade e o sono derradeiro ao som violentíssimo das chapadas do homem que quer transformar o menino Baxter num “mensch”. Este, o “Mister Baxter”, que achava que o elevador era só mais um meio para subir na vida, começa a descobrir que às vezes o que é preciso mesmo é descer assim decididamente e a pique até ao piso térreo. E entre a verticalidade do elevador e a horizontalidade do apartamento, a vida acontece e duas almas encontram-se, como numa cruz fortuita e plena de rimas e sentidos que talvez só se desenhe mesmo no cinema.

Se nos quisermos concentrar na vida, e avaliando, ressentindo e aceitando todo o ano que vivemos (em 2020, a véspera de Natal é numa Quinta-Feira como em O Apartamento), às vezes basta um homem, uma mulher, uma raquete de ténis e um prato de esparguete, almôndegas e molho de carne para improvisar uma consoada. Em termos de companhia e gastronomia, não estamos nada mal servidos.

[1] in «Conversations with Wilder» de Cameron Crowe, Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1999, p. 136.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

185ª sessão: dia 17 de Dezembro (Quinta-Feira), às 19h00


Quase no final do ano, a uma semana do Natal, é altura de viver ou reviver as duas horas de tristezas e alegrias de um dos mais belos pares da história do cinema, entre elevadores, pratos de esparguete, amores, enganos e promessas. Assim, O Apartamento de Billy Wilder é a nossa última sessão de 2020. Com Jack Lemmon e Shirley MacLaine, no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa.

A Cameron Crowe, em Conversations with Wilder (Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1999), o cineasta austríaco disse que "a origem de O Apartmento foi o facto de ter visto o belo filme de David Lean, Breve Encontro (1945). Era a história de um homem que está a ter um caso com uma mulher casada e vem de comboio para Londres. Eles vão para o apartamento de um amigo dele. Eu vi-o e disse, “Então e o tipo que se tem de arrastar para aquela cama quente... ?" Isso é uma personagem interessante. Então anotei isso, e anotei outras coisas no meu  bloco de notas. O herói dessa coisa era o tipo que suportava isto, que era apresentado a tudo por uma mentira. Um tipo na companhia dele precisava de mudar de roupa, dizia ele, e usava o apartamento... e foi isto. 

"Peguei nele outra vez porque tínhamos acabado de terminar o Quanto Mais Quente Melhor e eu gostei tanto de Jack Lemmon. A primeira vez que trabalhámos juntos foi em Quanto Mais Quente Melhor, e eu disse, “O tipo é este. É este o tipo para interpretar o protagonista."Um bocado submisso, como dissemos, tem-se pena dele. Mas tive O Apartamento na cabeça durante anos e anos antes de ser mesmo activado. "Como é que se vai sentir o tipo que rasteja para aquela cama depois dos amantes saírem?" Isso foi mesmo como começou. Pensei, "Vai ser censurável." Mas mantive essa ideia, e depois quando os [padrões] se soltaram um bocado, fizemo-lo. Tinha o ponto de vista do tipo dos seguros, o C.C. Baxter. E queria dizer que Lemmon é um tipo ingénuo. O superior dele - aquele tipo que dirige a companhia - quer ir à ópera, e gostava de usar o apartamento para trocar de roupa. E Lemmon diz, "Pode-o usar!" E isso desencadeia a forma como ele se torna um criado para o chefe, o presidente do grupo de seguros, que depois lhe arranja um emprego melhor. Ele tinha de ser um bocado tímido em relação ao assunto para a coisa resultar. Isso era uma questão importante, o problema que tivemos de resolver - tivemos de encontrar a forma perfeita para transmitir isso. Ele faz isso tudo de forma ingénua."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, e depois de enumerar as injustiças e as acumulações raras da obra nos Óscares, João Bénard da Costa escreveu que "(...) a singularidade deste filme vai muito para além destas singularidades com ou sem estatueta. Um espectador apressado pode dizer que com tais actores (e aos três designados vale bem a pena juntar o veterano Fred MacMurray) tal argumento e tais técnicos (LaShelle, Trauner, Fred Lau) qualquer um, medianamente competente, fazia um bom filme. Precisamente, a história de Hollywood dos fifties e do início dos sixties mostra que com fábulas de quotidiano análogo, longínqua ou proximamente a seguir modelos da TV da época, se registaram os piores malogros (com actores, argumento e técnicos de igual calibre) e que Billy Wilder se aventurou aqui num dos caminhos mais arriscados da sua obra. Não fosse a prodigiosa realização (a arte de tudo modular, tudo obnubilar e tudo elidir) e The Apartment não seria mais do que um veículo para o excepcional par Lemmon-MacLaine (e já na ideia de juntá-los, honra seja feita a Billy Wilder que o voltou a fazer no prodigioso Irma La Douce, três anos depois) e uma história de pequenas pessoas, pequena burguesia, pequeno quotidiano, um pouco triste, um pouco sórdida, um pouco realista, um pouco cáustica, género Mann (Delbert ou Daniel).

"Billy Wilder nessas não caía e quanto mais pensamos na construção do filme, mais vemos como o seu lado "quotidiano" e "realista" é genialmente subvertido. Correm as letras do genérico, e o que vemos (ainda sem o saber) é a fachada do apartamento de C.C. Baxter, que logo a seguir surge em voz off (primeiras estatísticas de água no bico) e, depois, em carne e osso, na profundidade de campo do imenso escritório esvaziado dos seus 87.000 empregados. Nunca nos é claramente dito, mas esse apartamento, elogiado e invejado por todos os ilustres e menos ilustres visitantes, é o pequeno "desequilíbrio" da vida do cumpridor, meticuloso e pontual C.C. Baxter (toda a gente, naquela companhia, tem nomes próprios anónimos). Para o pagar (está acima das suas posses, ainda por cima com o recente aumento de renda do senhorio), Baxter começa a vender-se e a vendê-lo. Tão divertidas são as peripécias, os hóspedes (aquela loira que só copia Marilyn na voz) e tão simpático é o pobre Lemmon, que vai passando despercebido que a chave que corre de mão em mão é também a chave que dá acesso ao 27º andar e ao "executive material", alvos das desgraças de C.C."

No seu Dicionário do Cinema, Jacques Lourcelles diz que é o "segundo dos sete filmes com Jack Lemmon rodados por Billy Wilder, O Apartamento teria resultado de uma promessa feita ao actor pelo cineasta, encantado com a sua composição em Some Like it Hot, de escrever um dia um argumento especialmente para ele. O Apartamento é também o primeiro de uma série de quatro filmes em Cinemascope a preto e branco (cf. One, Two, Three, Kiss Me, Stupid, The Fortune Cookie) que forma um conjunto muito original na obra de Wilder. Aqui, uma comédia mordaz e amarga muda-se a pouco e pouco para um melodrama desolador ao qual Wilder escolhe dar um final feliz. Este cruzamento de tons muito habilidoso não é apenas um efeito da virtuosidade do autor mas corresponde também à dupla natureza do seu tema. Se sabe descrever personagens fortes, «vencedores» (cf. The Spirit of St. Louis ou Stalag 17, em que William Holden encarna um «vencedor» original e muito mal visto pela sua comitiva), Wilder também gosta de evocar os perdedores, as vítimas, os explorados pela sociedade, que a seus olhos não são de todo marginais, mas sim americanos médios que a doçura de carácter e a fantasia transformaram em negligenciados em nome da «struggle for life». Shirley MacLaine (no seu melhor papel) e Jack Lemmon encarnam dois destes explorados, um no plano sentimental, o outro no plano profissional. Sob o efeito de uma influência recíproca, vão encontrar a coragem para se libertar das suas correntes. A passagem para o melodrama serve para revelar a verdadeira natureza das duas personagens. Lemmon, falso bon vivant e falso Don Juan, na realidade é um solitário, um homem brando que suporta a tirania e a chantagem dos seus chefes. Shirley MacLaine, jovem sedutora e cobiçada, paga o azar amoroso com a sua tristeza e os seus suicídios falhados. O scope a preto e branco acrescenta ao filme um lirismo secreto, uma gravidade e um suplemento de realismo que implantam a intriga numa verdade emocional um pouco mais profunda, ainda. Como nos seus melhores filmes, Wilder permanece aqui um pintor social muito virulento; o seu desejo é iluminar com uma luz crua, e no entanto não desprovida de ternura, os corredores um pouco vergonhosos da sociedade em que vive. 

"BIBLIO. : «The Apartment and the Fortune Cookie, two screenplays by Billy Wilder and I.A.L. Diamond», Londres, Studio Vista, s.d. Tratam-se de argumentos de rodagem para os dois filmes redigidos com muitos detalhes pelos dois autores. (As diferenças entre o guião e o filme definitivo são quase nulas para The Fortune Cookie e bastante mínimas para The Apartment.) O argumento de The Apartment (texto idêntico ao da publicação anterior) tinha sido publicado no volume «Film Scripts Three», reunido por George P. Garrett, O.B. Hardison, Jr., Jane R. Gelfman, para a Appleton-Century-Crofts, Nova Iorque, 1972 (com The Misfits de Huston e Charade de Donen)."

Até Quinta!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Mon Oncle (1958) de Jacques Tati



por Alexandra Barros

Monsieur Hulot vive num bairro onde todos os vizinhos se conhecem e relacionam amistosamente. Juntam-se regularmente no mesmo café, nos tempos de lazer. Têm relações de familiaridade com os comerciantes locais e cuidadores das ruas do bairro (o varredor do lixo e quem faz a sua recolha e transporte para o aterro, numa carroça puxada a cavalos). Abastecem-se e convivem num mercado de rua, onde os clientes chegam a servir-se a si próprios e a deixar o pagamento devido na banca, quando o vendedor está a tomar café, na esplanada próxima. Na parte moderna da cidade, há “casas inteligentes”, fábricas onde os trabalhadores parecem tão automatizados quanto as máquinas que operam, e estradas com várias faixas de rodagem, onde na hora de ponta os carros avançam num lento e ordenado cortejo. 

O prédio onde vive Hulot é o equivalente a uma manta de retalhos. Blocos que parecem vindos de diferentes habitações encaixam uns nos outros, como um Lego montado cooperativamente por várias crianças. Apesar disso, ou talvez por isso, possui o encanto próprio dos enigmas não decifráveis ao primeiro olhar. No prédio, todos parecem viver de portas abertas, como uma grande família. Hulot oferece doces à menina que vive no rés-do-chão, desvia respeitosamente o olhar de uma vizinha em roupa interior, com quem se cruza nas escadas, e mima o canário do vizinho da frente, utilizando o vidro da sua janela para redirecionar os raios de sol para a gaiola do pássaro. Este retribui, cantando. 

Hulot tem uma irmã, Madame Arpel, que vive, juntamente com o marido e filho (Gerard), numa casa “inteligente”, na zona moderna da cidade. Na casa tudo tem uma forma geométrica precisa e Madame Arpel não deixa que um grão de pó macule o aspecto lustroso do conjunto. As janelas circulares do quarto dos Arpel dão à casa o aspecto de um rosto voltado para a casa vizinha. À noite, as silhuetas dos Arpel enquadradas pelas molduras das janelas parecem as pupilas de olhos que espiam. O jardim tem um caminho desenhado que obriga as pessoas a realizar um percurso elaborado e longo entre o portão e a casa, ao longo do qual encontram: uma fonte, com um peixe metálico que deita água pela boca, só acionado quando a casa é visitada por alguém que se quer impressionar; uma mini-esplanada com mini-mesa e mini guarda-sol; arbustos “gémeos” milimetricamente alinhados e canteiros cobertos de gravilha. No interior, as peças de mobiliário têm formas arrojadas, mas não são adequadas às suas funções. As cadeiras e sofás são desconfortáveis ou só utilizáveis quando colocados em posições inusitadas. As escadas interiores minimalistas (só com um corrimão) não são seguras e as tecnologias de que tanto se orgulham os Arpel chegam a colocá-los em situações perigosas, como quando ficam fechados na garagem por causa de um sensor mal concebido. Quem visita os Arpel é orgulhosamente levado a percorrer a casa, como se de um museu se tratasse. Madame Arpel destaca o facto de todos os compartimentos comunicarem entre si. “Tudo comunica!”, diz infalivelmente. Se na casa tudo comunica, o mesmo não acontece com os seus habitantes. Entre os pais e o filho existe uma distância que nem os brinquedos oferecidos pelo pai diminuem. Gerard mostra total desinteresse pelo comboio sofisticado que o pai lhe traz de presente. Quando, logo a seguir, o tio chega com umas figuras de papel, animadas por cordéis, o miúdo não contem as gargalhadas. Noutra cena, Gerard, ouvindo o som do aspirador na sala, corre ao encontro da mãe, mas sai desiludido ao encontrar apenas o aspirador, que foi deixado a trabalhar de forma autónoma. 

Hulot está desempregado. Monsieur Arpel, que trabalha numa fábrica que produz tubos de plástico, tenta arranjar-lhe emprego. Hulot, no entanto, não está formatado para um mundo onde todos os gestos têm que obedecer a coreografias específicas e os homens são complementos das máquinas. Estas aproveitam as distrações e inépcia de Hulot para “saírem da rotina”, produzindo quilómetros de “salsichas” de plástico ou “serpentes” com vida própria, em vez dos tubos programados. Na casa da irmã, Hulot sente-se igualmente confuso e mesmo ameaçado pelos electrodomésticos autónomos, que parecem procurar uma oportunidade para atacá-lo. As visitas de Hulot são, porém, uma alegria para Gerard, que não aprecia a vida na casa-museu e só se diverte quando o tio o leva a passear ou nos encontros com amigos que vagueiam livremente, improvisando diversões inspiradas nas situações com que se deparam. O cão da família também gosta de fazer umas escapadelas e juntar-se a grupos de cães vadios que percorrem a cidade, procurando comida e brincando. 

No final do filme, máquinas de demolição avançam sobre as habitações degradadas do bairro de Hulot e a praça do mercado está vazia, indicando que o desenvolvimento imobiliário alcançou o bairro. 

Neste filme, em que os diálogos são escassos, o contraste marcado e caricatural entre o velho bairro e a cidade moderna é conseguido através dos cenários primorosamente projectados por Tati, incluindo a casa dos Arpel, concebida com a colaboração de Jaques Legrange, argumentista com background em arquitectura e ligações a Le Corbusier. Além de um olhar crítico sobre a modernidade e a homenagem nostálgica a um estilo de vida prestes a desaparecer, o filme reflecte a importância que os espaços onde habitamos, trabalhamos e passamos os tempos livres têm no nosso bem-estar e no modo como nos relacionamos com os outros. Os edifícios e espaços urbanos determinam modos de vida pela forma como se deixam ou não habitar. A configuração do bairro de Hulot proporciona proximidade e a existência de uma comunidade. Nos subúrbios modernos, os vizinhos mal se conhecem e a casa dos Arpel mais do que servi-los, parece ser servida por eles.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

184ª sessão: dia 10 de Dezembro (Quinta-Feira), às 19h00


Depois de As Férias do Sr. Hulot e Parade, exibidos durante o nosso pequeno ciclo de cinema francês em 2018, regressamos à obra do grande mestre do cinema e da comédia Jacques Tati, mostrando pela altura do Natal o humano e belíssimo O Meu Tio, a nossa próxima sessão no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa. Às 19h.

Em entrevista a André Bazin e François Truffaut dos Cahiers du Cinéma, em 1958, e explicando as intenções e o mecanismo de um dos seus gags, o cineasta francês começa por explicar que "o sobrinho, o filho dos Arpel, entende-se muito bem com o tio. Antes da recepção, e sem o fazer de propósito, ele parte o pequeno galho. Quando o tio chega, ele vai procurá-lo e pede-lhe que o repare. O tio corta, é a única coisa a fazer: ao cortar, apercebe-se que ainda se nota mais. Começa então a cortar o galho simétrico, e a pouco e pouco, isso vai levá-lo a reduzir tudo. Mas a Sra. Arpel passa mesmo nesse momento - não convém esquecer que estamos numa recepção - e o tipo não consegue continuar a fazer o seu número. Antigamente, não sei se concordam comigo, só havia espectadores que viam o que se passava no ecrã, mas os actores que acompanhavam os cómicos nunca se davam conta que eles estavam a fazer um gag. Eu faço sempre o contrário: os actores estão ao mesmo nível que os espectadores para ver que um senhor se esqueceu de fechar uma porta. Em Laurel e Hardy, via-se pessoas a manejar tartes, caçarolas, e as outras tinham ar de circular à volta delas, sem se dar absolutamente conta que um senhor estava a caminhar com uma caçarola na cabeça. Portanto a passagem da Sra. Arpel interrompe a história da poda do arbusto. Terminada a recepção - já não há ninguém, o jardim está vazio, os Arpel vão-se deitar - é altura de ir acabar o trabalho. É a pequena sequência nocturna. Suspense, se assim se quiser, na pereira. Suspeita-se - suponho eu, pelo menos - que Hulot está a terminar o trabalho começado. E depois não se fala mais. Já não há razões para que se fale. De resto, e normalmente, se a Sra. Arpel não sair por ali no dia seguinte, não o vê. Quando as crianças partem qualquer coisa no jardim da mãe, não é cinco minutos depois que as pessoas se apercebem. Pode-se muito bem encontrar isso no outro Domingo. É só dois dias depois que o Sr. Arpel, ao entrar, descobre com os faróis o trabalho - que é bastante catastrófico, diga-se. Talvez esteja muito mal construído para um filme, mas normalmente, acho que isto se passaria desta forma."

Na entrada dedicada ao cineasta francês no projecto megalómano em dois volumes de Richard Roud, Cinema - A Critical Dictionnary (1980), Jean-André Fieschi escreveu que "a estranha carreira de Jacques Tati (nascido em 1908)—cinco filmes em quase vinte e cinco anos—é original em dois contextos: no interior do cinema francês, em que apenas Vigo e Bresson podem ser comparados a ele, e no interior do cinema 'cómico' em que os seus únicos antecedentes, os palhaços brancos e lunáticos (Keaton, Langdon, Laurel), servem apenas para revelar o quanto ele difere deles, e quão marginal e excêntrica é a posição de Tati. 

"Na verdade, o lugar de Tati é entre os 'construtores', entre aqueles que acima de tudo se preocupavam com o jogo estrutural, cujo interesse na estrutura comanda de forma imperativa cada elemento figurativo e os reúne em construções perfeitas; em que a estrutura aparente, e mesmo claramente indicada, não é o esqueleto de um discurso formal, mas antes o próprio discurso: semelhante a Fritz Lang no primeiro Mabuse ou em Os Espiões, Bresson em Pickpocket e O Processo de Joana d'Arc, Antonioni em Cronaca di un amore; hoje em dia a Jean-Marie Straub e Miklos Jancso, certamente. 

"Referindo-se a outras estéticas e ideologias prudentes e irreconciliáveis, uma enumeração destas apenas indica que Tati pertence a uma família de cineastas sistemáticas, em que cada trabalho é a soma de uma série de compromissos fortemente marcados, seja em oposição, atrás, ou à frente do cinema dominante dos seus contemporâneos."

Aquando doutra das reposições do filme, em 2007, Mário Jorge Torres escreveu para o Público que "O Meu Tio prolonga a figura do senhor Hulot, acentuando a sátira da sociedade contemporânea com uma leitura profunda não apenas da relação do cineasta com os "gags" visuais - que articula com o seu militante individualismo, transformando a herança de Buster Keaton (The Electric House é uma das matrizes incontornáveis) em algo de pessoal e intransmissível -, mas também a abrir para uma experimentação sobre a cor e sobre uma modernidade patente nos cenários, na arquitectura de interiores e na intromissão de uma banda sonora minimalista e essencial. 
 
"Uma obra-prima absoluta a rever e a revalorizar sempre, universal e localizada no tempo de uma ruptura com os mecanismos de representação."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Fanny och Alexander (1982) de Ingmar Bergman



por António Cruz Mendes

Quando realizou Fanny e Alexandre, Bergman anunciou que esse filme seria a sua última longa-metragem. Tinha apenas 64 anos, mas dizia-se física e psicologicamente sem forças para continuar. De facto, depois dela, só encenou peças de teatro e filmou obras para a televisão. A longa duração do filme, o enorme elenco de atores, a sumptuosidade do décor, tudo isso nos permite dizer que, à sua escala, Bergman se quis despedir dos cinemas com uma superprodução. 
 
Fê-lo contando uma história com claras conotações autobiográficas. O seu pai, tal como o padrasto de Alexander, foi um severo pastor luterano, mas ele, como Alexander, na sua infância, conheceu na casa da sua avó um mundo maravilhoso, povoado por fantasmas, onde não era fácil distinguir a realidade da fantasia. Foi lá que Ingmar Bergman brincou pela primeira vez com uma lanterna mágica, observando o movimento das figuras com o mesmo olhar sonhador que divisamos em Alexander. Mas, se Bergman nunca desmentiu aqueles que viram no jovem Ekdahl o seu alter ego, teve, contudo, o cuidado de acrescentar que, nele, havia também muito do bispo Edvard. E é nesta ambivalência que se joga o enredo dramático deste filme. 
 
Alexander, que cresceu no seio de uma família da atores, proprietários de um teatro, é um menino sensível e imaginativo. Conhecemo-lo logo nas primeiras sequências do filme vagueando, sonhador, pela casa, semi-deserta, porque quase todos estão no Teatro. 
 
Estamos na véspera do Natal e ali representa-se o nascimento de Cristo. Caído o pano, os artistas e todos os que lá trabalham reúnem-se num alegre banquete. Oscar Ekdahl, ator e diretor, discursa com contida emoção, explicando quais são as duas grandes funções do teatro, “um pequeno mundo que, por vezes, consegue refletir o grande mundo que existe lá fora”: às vezes, permite-nos “compreendê-lo melhor”, outras vezes, permite-nos esquecer, por breves instantes, esse “áspero mundo exterior”. 
 
A ceia de Natal da família Ekdahl dá-nos a conhecer o mundo de Alexander. As salas luxuosamente mobiladas, as festivas decorações natalícias, a mesa abundante, o convívio descontraído, a liberalidade dos costumes. Ficamos a saber das dificuldades económicas do tio Carl, da libertinagem do tio Gustav Adolf, da melancolia que se apodera da avó Helena quando pensa na passagem inelutável dos anos. Mas, nada disso impedia que a liberdade e alegria reinassem na casa dos Ekdhal. Até que a morte os surpreendeu, vitimando o pai de Alexander. 
 
A morte de Oscar e o casamento de Emilie com o bispo Edvard fratura o filme a meio. As cores quentes e sensuais, onde predominam os vermelhos e os dourados, que coloriam a primeira parte do filme, vão dar lugar aos negros e cinzentos que dominam a segunda. Ao luxo, sucede a austeridade; à liberdade, a disciplina; ao divertimento, a obrigação. A naturalidade deu lugar à desconfiança e a alegria, ao medo. Na casa dos Ekdahl, Alexander, às vezes, vislumbra a figura fantasmagórica do pai, vestido de branco. O padrasto veste-se de negro. 
 
Na cerimónia de casamento, em campo-contracampo, vemos os Ekdahl e os Vérgerus alinhados, face a face. São dois mundos que se confrontam. Emilie e os seus filhos devem chegar, por vontade de Edvard, à casa onde mora com a sua sombria família, despojados de tudo o que lhes recordasse a antiga casa, a sua vida passada. À mudança deveria corresponder um renascimento. Apenas Alexander resiste a essa imposição trazendo consigo um pequeno animal de peluche. 
 
A oposição de Alexander àquele casamento é imediata. A sua mãe percebe-o e pede-lhe para “não fazer de Hamlet”, nem ela é a rainha Gertrud, nem Edvard o rei da Dinamarca e a casa onde eles agora moram, apesar de nua e fria, não é o castelo de Elsinor. Contudo, a comparação é inevitável e só não é inteiramente verdadeira porque, ao contrário de Hamlet, Alexander não vive dilacerado pela dúvida. Para ele, o padrasto é a personificação do mal e a sua nova casa, uma prisão. 
 
Na opinião do bispo, existe uma falha de carácter em Alexander, ele não sabe distinguir a verdade da mentira. Um dia, contou aos colegas da sua escola que a mãe planeava vendê-lo a um grupo de saltimbancos. (Sabe-se, pela sua autobiografia, que essa foi uma história que o próprio Bergman, quando criança, imaginou e que mereceu do seu pai uma reação semelhante à de Edvard.) Já em casa do padrasto, contou a Justine, uma empregada do bispo (Harrietr Andersson numa curta, mas impressiva interpretação) que os espectros da primeira mulher de Edvard e dos seus dois filhos lhe apareceram e contaram que morreram afogadas quando tentavam fugir da casa do bispo, que as tinha aprisionado num quarto, sem alimentos. O castigo que lhe foi infligido foi a gota de água que decidiu Emilie a querer fugir daquela casa com os seus filhos. 
 
A fuga de Fanny e Alexander e o propósito de divórcio de Emilie, que está grávida, revela-nos um outro Edward, um ser desesperado perante o desabar do mundo ideal que concebeu. Terá ele, também, perdido a sua fé? Na nossa vida, diz-nos a avó Helena, conversando com o se velho amigo Isaac, todos representamos vários papeis e usamos várias máscaras. Mas a de Edward, confessa-o ele próprio a Emillie, fixou-se-lhe de tal forma ao rosto, que não a pode arrancar sem se desfigurar. 
 
Isak é uma antiga paixão de Helena e o seu principal confidente. A sua presença na festa de Natal da família Ekdahl acentua, por contraste com a repulsa com que, mais tarde, é recebido na casa dos Vérgerus, duas formas diferentes de viver a religião, como celebração da vida ou como expiação de um pecado. A sua participação no estratagema concebido para retirar Fanny e Alexander da casa do bispo, vai introduzi-los na sua casa, um mundo mágico, sobrepovoado pelos mais variados e estranhos objetos. Entre eles, uma imagem de Deus deixa Alexander aterrorizado, mas, afinal, ela não é mais do que um fantoche de um teatro de marionetes. É na casa de Isak, que ele vai conhecer a mais enigmática personagem do filme, Ismael, um sobrinho de Isak que aí vive recluso porque tem poderes que o podem tornar perigoso. 
 
Ismael é um ser andrógino (trata-se, de facto, de uma personagem masculina interpretada por uma atriz, Stina Ekbad) que desperta em Alexander sentimentos contraditórios de temor e fascínio. Tenta convencê-lo que os dois podem ser, na verdade, a mesma pessoa, que é capaz de lhe ler os pensamentos, de reconhecer os seus ódios e revela-lhe as imagens do fim atroz do seu padrasto. Até que ponto as nossas fantasias podem comprometer a realidade? 
 
A família Ekdhal reúne-se, de novo feliz, para celebrar o batismo das filhas de Emilie e de Maj, que está sentada à mesa dos senhores que anteriormente servia, na companhia dos atores, das atrizes, dos amigos da família. Uma orquestra toca em segundo plano. Gustav Adolf levanta-se e, rodeando a mesa da refeição, discursa, retomando o tema da oposição entre o pequeno mundo do teatro e o grande mundo exterior que já tínhamos ouvido, pela voz de Oscar, no princípio do filme: “Nós, os Ekdahl, sabemos que, repentinamente, se pode abrir um abismo e a morte pode chegar, mas amamos as nossas ilusões. Retirem-nas a um homem e ele enlouquecerá”. E aproveita a ocasião festiva para nos expor a sua visão epicurista da vida: “O mundo é uma caverna de ladrões e a noite cai. O mal quebra as suas cadeias e corre o mundo como um cão raivoso. O veneno afeta-nos a todos, aos Ekdahl e a todos os outros. Ninguém escapa. Nem Helena Viktoria, nem a pequena Aurora. Assim são as coisas. O melhor é sermos felizes enquanto podemos. Sejamos amáveis, generosos, carinhosos e bons. Não é preciso ter vergonha em ter prazer neste pequeno mundo. Boa comida, sorrisos gentis, árvores em flor, valsas”. Debruça-se sobre um dos berços e ergue nos seus braços o bebé: “Sustento uma pequena imperatriz. Pode-se tocar, mas não tem medida. Um dia provará que tudo o que eu disse estava errado. Um dia, ela não só governará o pequeno mundo, mas todo o mundo”. 
 
Na sequência final, Emilie, por vontade de Oscar, diretora do Teatro, propõe a Helena representarem juntas O Sonho, de Strindberg. Depois de uma primeira recusa (“Esse porco misógino!”), Helena aceita e começa a lê-la a Alexandre que, depois de ter sido surpreendido pela presença fantasmática do padrasto (“Não me podes escapar.”), adormeceu no seu colo.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

183ª sessão: dia 3 de Dezembro (Quinta-Feira), às 19h00


Dezembro está aí à porta e como é habitual, depois de Do Céu Caiu Uma Estrela de Frank Capra, Os Sinos de Santa Maria de Leo McCarey, O Outro Lado da Esperança de Aki Kaurismaki, Merlusse de Marcel Pagnol e Francesco, giullare di Dio de Roberto Rossellini, juntamos o cinema e o Natal e celebramos o Natal no cinema. Assim, este ano redobramos as forças e convocamos primeiro as estrelas de Ingmar Bergman, com a exibição do seu filme testamento Fanny e Alexandre, a nossa próxima sessão no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa..

Na sua segunda auto-biografia, o realizador sueco escreveu que “perto do final dos anos 70, era para dirigir Os Contos de Hoffman na Ópera de Munique. Comecei a fantasiar sobre o verdadeiro Hoffmann, que se sentava na adega de Luther, doente e quase a morrer. Escrevi nas minhas notas: “A morte está sempre presente. A barcarola [uma canção de barcos veneziana], a doçura da morte. A cena de Veneza fede a decadência, lascívia crua, e perfumes fortes. Na cena de Antonia, a mãe é intensamente assustadora. O quarto está povoado de sombras que dançam e bocas que abrem. O espelho na ária do espelho é pequeno e brilha como uma arma do crime.” 

"Num dos contos escritos por Hoffmann há um quarto mágico, gigante. Foi esse quarto mágico que eu quis recriar nos palcos. O drama seria representado com aquele quarto situado em primeiro plano e a orquestra em segundo plano. 

"Também há uma ilustração das histórias de E. T. A. Hoffmann que me assombrou vezes sem conta, uma imagem do Quebra-Nozes. Estão duas crianças muito próximas a tremer no crepúsculo da véspera de Natal, esperando impacientemente que se acendam as velas da árvore e que se abram as portas para a sala de estar. 

"Foi essa cena que me deu a ideia de começar Fanny e Alexandre com uma celebração de Natal."

Em Ingmar Bergman: O Cheiro Esquisito do Cinema, parte do catálogo dedicado ao cineasta editado em 1989 pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, João Bénard da Costa pergunta se "são fantasmas ou são reais Oscar Ekdahl e o Bispo quando, depois de mortos, aparecem a Alexandre? Obviamente qualquer resposta categórica é grosseira e redutora. Mas no mundo final de Bergman, parecem abolir-se as fronteiras entre a vida e a morte, ou pelo menos a morte é uma longa passagem que não cessa no momento físico dela.

"Se o concedermos para Lágrimas e Suspiros ou para Fanny e Alexandre (ou, antes, para A Hora do Lobo) pouca ou nenhuma razão nos assistirá se recusarmos a mesma "lógica" a Face a Face. É tão possível sustentar que, depois da sua tentativa de suicídio, Jenny vive "intermitentemente" tempos de vida e tempos de morte (na zona entre uma e outra) como defender que a partir do fabuloso grande plano que precede e acompanha o gesto com que engole os comprimidos, Jenny está tão morta como Agnes, Oscar ou o Bispo e que, a partir daí, a visão face a face que o filme propõe (metafísica e figuradamente, pois nunca Bergman levou tão longe o uso insistente do grande plano, até a uma escala que ultrapassa os limites abissais do uso que já fizera de tal figura gramatical) é a visão da morte, é a visão da morta*. Como nos filmes e projectos contemporâneos de Face a Face** essa vertiginosa transição é progressiva."

"* É possível aproximar esta visão da morte - estas visões de mortos - das crenças orientais (búdicas) sobre o período que se segue à morte. De acordo com tais crenças (cf. nomeadamente O Livro dos Mortos tibetano) o espírito do morto recusa a separação do seu próprio corpo e tenta habitá-lo como se a vida continuasse. Por isso, a tarefa dos vivos é a concentração, de modo a convencer o morto da realidade da sua morte e a fazê-lo aceitar a separação do espírito e do corpo. Só assim se evitará que a alma continue errante (alma penada) na desesperada busca do seu invólucro carnal. Só assim terminará a terrível angústia do morto e este poderá conhecer a paz. De certo modo, as visões da morte em Lágrimas e Suspiros, Face a Face ou Fanny e Alexandre parecem evocar esta milenária crença.

"** Nomeadamente no script do filme jamais realizado - O Príncipe Petrificado - e em Da Vida das Marionetas, obra com fortíssimas semelhanças com Face a Face."

Já Robin Wood, para a Canadian Forum nº 41, escreveu que "a afirmação de Bergman de que Fanny e Alexandre vai ser o seu último filme deve-se entender indubitavelmente de forma mais retórica que literal: já terminou outro. É certo que especificou que ia ser o seu último filme para cinema, e o novo, Depois do Ensaio, foi feito para a televisão sueca – mas também Fanny e Alexandre o foi na sua forma original e mais longa e o novo filme já foi adquirido para distribuição em sala fora da Suécia: as distinções são vagas. No entanto, a declaração continua a ser útil para salientar a natureza particular de Fanny e Alexandre: a de um testamento e soma artísticos, o tipo de trabalho que qualquer cineasta gostaria que o seu ‘último filme’ fosse. Também é o filme mais geralmente acessível que Bergman fez em muitos anos, talvez desde Morangos Silvestres e é-o por impressionante contraste ao imediatamente anterior Da Vida das Marionetas. Ainda assim, a sua acessibilidade e popularidade merecidas tanto entre os críticos como o público não garantem necessariamente que tenha sido totalmente entendido; eu fico impressionado com o facto de a maioria das críticas terem ignorado ou sido muito vagas precisamente sobre os aspectos do filme que me parecem mais interessantes, aspectos centrados em Ishmael. Ou os nossos críticos não sabem o que fazer de Ishmael, ou não querem fazer nada em relação a ele (ela). Um longo artigo sobre o filme por William Wolf na Film Comment de Junho, por exemplo, não consegue oferecer mais do que ‘O Alexander resgatado ... conhece o misterioso sobrinho de Isak, Ishmael, que o apresenta ao sobrenatural’ (que Alexander já tinha conhecido em várias ocasiões, já agora) ‘com uma conversa hipnotizante de poderes mágicos’. Na verdade, a comunicação mais significativa de Ishmael com Alexander é que é suposto ser muito perigoso, razão pela qual permanece trancado; podemos deduzir que os nossos críticos também o acham muito perigoso. Vou voltar a Ishmael, que me parece o culminar, não só deste filme, como de todo o trabalho de Bergman até à data."

Até Quinta!

Em Dezembro, no Lucky Star:




sexta-feira, 27 de novembro de 2020

La voce della luna (1990) de Federico Fellini



por Alexandra Barros

La Voce della Luna, o último filme de Fellini, tem sido considerado uma obra menor do realizador, por reunir mais uma vez vários dos seus temas e situações típicas. Porém, teve sucesso junto do público italiano, facto que não é surpreendente dado que este se terá revisto num filme sobre demandas e desejos humanos universais. 
 
Ivo Salvini ouve vozes e procura o eco das mensagens que a Lua lhe envia em poços espalhados pelo campo. Se escrevesse o que lhe vai na cabeça possivelmente seria um poeta reconhecido e se se levasse a sério seria filósofo, mas como isso não calhou acontecer é considerado lunático (no seu duplo significado: louco e influenciado pela Lua). “Não aguento mais estar sempre à espera de alguma coisa. A espera nunca pára.” Gosta de recordar, mais do que viver. Questiona-se: “No fundo, que diferença faz?” A noção do tempo é distorcida pelo entrelaçar de fantasia e realidade: “Há quanto tempo caminhamos? Parece que toda a minha vida se passou durante esta única noite.” Outras questões: “É possível nunca saber nada acerca de ninguém? Onde estão os mortos? Para onde vai o fogo quando se extingue? Para onde vai a música quando se faz silêncio? As ideias surgem e são esquecidas. Como impedi-las de desaparecerem?” 

Ivo vagueia por paisagens do seu passado e do presente. Os campos por onde vagueia à noite remetem para a sua infância. O presente centra-se numa praça urbana ruidosa, onde ao barulho de obras em construção, se junta um vendedor ambulante com um altifalante, turistas japoneses a fotografar exaustivamente, os preparativos para o Festival do Gnocchi & Concurso de Beleza Miss Farina e grupos de jovens que ouvem música (paradoxalmente os menos ruidosos pois usam auscultadores). Tenta fotografar a cor dos sinos da igreja, mas não consegue. “Em breve, poderemos fotografar até aquilo que não vemos.”, diz, já que os avanços tecnológicos galopantes tudo parecem vir a tornar possível. 
 
Aldina, por quem Ivo está apaixonado e cujo rosto, de tão belo, considera ser a própria Lua, é uma das concorrentes do concurso de beleza. Para poder aproximar-se dela, Ivo esgueira-se para baixo do palco, onde acaba por ficar preso e mais afastado do que nunca. Além de partes descontextualizadas das concorrentes, tem apenas um breve vislumbre da Lua (rosto de Aldina) através de um buraco circular no chão do palco. 
 
Entre as diversas personagens excêntricas com que Ivo se vai cruzando, nas suas deambulações, temos: 
- Um ex-professor de música que vive numa gaveta de um cemitério vertical. Enterrou o seu oboé para impedi-lo de tocar um determinado acorde, que acredita ser diabólico: “Há pausas, intervalos por onde entram fantasmas, escuridão, gelo. Alguns acordes deviam ser banidos pois são como lagartos a percorrer a nossa coluna vertebral. Aí, a música faz o que quer de nós. Como podemos defender-nos do que nos faz promessas (alegria, serenidade, esquecimento, felicidade, ... ), mas nunca cumpre?” 
- Gonnella, que formula elaboradas teorias de conspiração. Acredita que as pessoas não são o que parecem, se limitam a representar papéis, consciente ou inconscientemente. “Nada é verdade [...]; apenas uma ficção, pura representação.”. Porém, olhando para os cenários políticos actuais ou para as redes sociais, talvez seja de reconsiderar a sua caracterização como paranóico. Gonnella não seria afinal apenas presciente? 
- Marisa, uma mulher sexualmente insaciável. Chora após divorciar-se, a seu pedido, porque na verdade não queria divorciar-se. Diz que estava disposta a um acordo porque é razoável, mas segundo ela as pessoas razoáveis nunca são entendidas. 
- Os irmãos Micheluzzi, que engendram um mecanismo para capturar a Lua. Pensam que a Lua está sempre a espiar-nos e não tem utilidade. Quando conseguem amarrá-la e trazê-la para a Terra, filas de ciclistas, carros e pessoas dirigem-se para a quinta onde está ancorada, numa cena tipicamente felliniana. 

A captura da Lua gera um debate nacional e os Micheluzzi são aconselhados pelo Prof. Falzoni a recolocar a Lua no seu sítio: o facto de ela nos espiar é bom, já que precisamos de alguém que nos vigie e tome conta de nós. É uma alegoria totalmente ajustada à contemporaneidade onde sistemas de vigilância instalados com ou sem o nosso consentimento (dados recolhidos pelas grandes empresas tecnológicas, a polémica aplicação stayaway covid, ...) armazenam toda a espécie de informação pessoal. Neste debate, um dos temas implícitos do filme - a procura do sentido da vida - é abordado de forma explícita por alguns dos presentes: “Qual é o meu propósito neste mundo? Para que é que nascemos? A vida é uma charada”, “É normal que as pessoas sintam que são abandonadas ao nada. E cansam-se.” “Não sabemos nada. Imaginamos tudo.”. 
 
No final, Ivo e Gonnella entram no que parece ser um celeiro abandonado, até que duas portas gigantes deslizam sobre carris e revelam uma multidão a dançar euforicamente ao som de The Way You Make Me Feel, de Michael Jackson. É a vez de um dos temas recorrentes de Fellini, o mistério feminino, ser abordado explicitamente. “Qual é o vosso segredo?” pergunta Ivo às raparigas que o rodeiam. Ao verificar que um sapato de Aldina serve a dezenas das jovens mulheres ali presentes, Ivo tem uma epifania. O amor que dedicara a Aldina e se transformara em decepção, não está morto nem é exclusivo.Tudo o que nos encanta o pode despertar. 
 
Enquanto Ivo abraça (pelo menos momentaneamente) este novo mundo, Gonnella insurge-se contra ele. Dança não é aquilo. “A dança é um bordado. É como um vislumbre da harmonia das estrelas. É uma declaração de amor. A dança é um hino à vida.”. Pára a festa para dançar o Danúbio Azul com a mulher dos seus sonhos. É aplaudido pela multidão embevecida que, no entanto, recomeça imediatamente a vibrar com The Way You Make Me Feel, mal termina a valsa. Gonnella não consegue perceber que a música pop provoca nesta nova geração os mesmos sentimentos que nele se manifestam através da música clássica. É mais um episódio muito felliniano: a evocação nostálgica do passado e a dificuldade de entendimento de um mundo que muda rapidamente. Mesmo Ivo, que se abriu um pouco à modernidade, regressa ao passado, onde se sente mais confortável. Este, porém, é inalcançável. Até a Lua foi apanhada pelos novos tempos. Exibe spots publicitários, a meio da conversa entre os dois. 
 
O filme é considerado desorganizado e inconsistente, mas essa estrutura adequa-se perfeitamente à jornada de Ivo, onde ao caos da sua mente se junta o fragmentado e ruidoso mundo contemporâneo. “Se todos fizéssemos um pouco de silêncio, talvez se pudesse compreender alguma coisa.”, diz Ivo enquanto inclina a cabeça para dentro de um poço, na cena final do filme.

Prova d'orchestra (1978) de Federico Fellini



por José Amaro

Como é possível realizar um filme cujo título dá pelo nome “ensaio de orquestra”, com um cenário de um “ensaio de orquestra”, partituras, instrumentos musicais, músicos (?) e maestro e, mesmo assim, não ser um filme sobre música, músicos ou orquestras e, mesmo assim, ser um belíssimo filme? É possível porque estamos perante uma obra de Fellini que utiliza todo este ambiente, orquestra, músicos, maestro, de forma metafórica para espelhar uma sociedade em crise, força dos individualismos egoístas que impossibilitam a cooperação necessária a uma harmonia musical ou a uma harmonia societal, num tempo de catarse em Itália, decorrente, entre outros mal estares, do sequestro e posterior assassinato de Aldo Moro às mãos das brigadas vermelhas. Todo este ambiente acompanhado por aquela que foi a última trilha sonora criada por Nino Rota para Fellini. 
 
O filme começa, enquanto é apresentada a ficha técnica, ao som do ruído de buzinas e sirenes ruidosas, a legendar um ambiente urbano caótico, como que a retratar uma Itália caótica. 
 
Começamos por ver o velho copista que, de forma nostálgica nos fala das memórias que nos enquadram o passado do local onde se passa todo o filme, uma antiga capela da Roma medieval e da orquestra cujos músicos começam a chegar e a instalar-se. Estes, de forma desconfiada, olham para a presença da câmara de uma televisão que está a realizar um documentário (um documentário dentro de um filme). 
 
Os músicos começam a interagir contando as suas histórias e a tentar mostrar a importância maior de cada um dos seus instrumentos, na orquestra. Depois dos músicos, chega finalmente o maestro e começa o ensaio, mas este é conturbado e quando o maestro exige repetições, o sindicado impõe-se e começa uma rebeldia com os músicos a não querem reconhecer a autoridade do maestro. É, então, ordenado um intervalo que os músicos aproveitam, uns para conviver descontraidamente outros para falar do maestro e outros ainda, para falar dos seus instrumentos. 
 
Voltamos a ver o copista e as suas nostalgias, nomeadamente as histórias acerca de maestros mais autoritários com o consentimento dos músicos. Assistimos também a considerações do maestro sobre a importância da sua função no passado. 
 
Com o regresso do maestro, depois do intervalo e de uma falha de luz, assiste-se a uma insurreição dos músicos. Aos gritos e palavras d`ordem nas paredes, estes provocam o caos total levando-os, nomeadamente, a disparos. 
 
Só a destruição de uma das paredes da igreja interrompe o caos, acalmando todos os presentes levando os músicos a se submeterem ao maestro. Este, tão frágil no início, consegue finalmente, de forma autoritária, impor-se, com um discurso que de italiano passa a alemão como que a trazer-nos à (má) memória a maléfica figura alemã.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

182ª sessão: dia 26 de Novembro (Quinta-Feira), às 19h00


No rescaldo do cancelamento da sessão de A Doce Vida, que lamentamos e tentaremos colmatar em breve, avançamos para a segunda metade da carreira de Federico Fellini, fase em que abandonou definitivamente a narrativa e mudou conscientemente os seus processos. Assim, esta Quinta-Feira veremos em double-bill Ensaio de Orquestra e A Voz da Lua, na nossa próxima sessão no auditório do Museu D. Diogo de Sousa.

Em entrevista a Toni Maraini, por alturas da estreia do filme de 1990, o realizador disse que "a minha lentidão em começar um filme é certamente inaceitável numa profissão que requer planeamento, mas confesso que preciso desse ambiente para começar um filme. Quando começo, tento encontrar uma disposição despreocupada, essa postura incomensurável da narrativa, esse prazer que experimentei ao filmar Entrevista

"Esse filme curto foi filmado dia a dia enquanto o inventava. Ando a almejar cada vez mais a este tipo de filmes. Portanto, para A Voz da Lua, o meu último filme, tentei fazer a mesma coisa, fazer como faz a gente do circo: criar uma cena e um espectáculo a partir do nada. Eu preciso de construir o argumento a partir da vida – com edifícios, luzes, situações, estações – como premissa para ver como as coisas andam. Para este filme, desenhei e criei tudo, dos edifícios à publicidade. Então de vez em quando visitava o plateau, via-o vazio, via a poeira a invadi-lo, algumas janelas destruídas pelo vento, e perguntei a mim próprio, “O que é que está a acontecer?” Correndo o risco de parecer romântico, confesso que houve algo em mim que disse, “Vão ver, a praça vai ganhar vida, o sacristão vai aparecer no pórtico da igreja, vem alguém a uma loja comprar qualquer coisa…” E assim foi. Como que por necessidade, o plateau ganhou vida. Deixei o filme acontecer; as coisas importantes foram descartadas como banalidades, e as coisas casuais pareciam importantes. Queria alcançar a naturalidade da Entrevista."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, Luís Miguel Oliveira escreveu que "A Voz da Lua ficou como o último filme realizado por Federico Fellini. A recepção crítica não foi das melhores, e mesmo os “fellinianos” mais convictos não evitam um certo tom de condescendência na sua apreciação deste filme. Mas como Fellini não teve hipótese de realizar mais nenhum filme A Voz da Lua viu-se encarregado da ingrata tarefa de “representar” o testamento cinematográfico do realizador. E se não é, nem de longe nem de perto, um dos melhores Fellinis, até consegue cumprir cabalmente esse papel de “testamento”. Ou seja, é possível ver nele uma espécie de resumo, ou de balanço, das ideias que enformaram o olhar de Fellini sobre o cinema e sobre o mundo. Deste ponto de vista, é um filme absolutamente genuíno de um cineasta que mesmo nos seus filmes menos conseguidos nunca soube o que era a “falsidade”. 

"Há vários paradoxos em Fellini, na sua obra e na sua relação com ela. Um deles é a sua trajectória, e a sua passagem quase sem ruptura do “caldo” neo-realista em que se formou para um onirismo extremamente pessoal e para uma concepção “deformada” da realidade, cheia de características recorrentes que contribuiram para que o adjectivo “felliniano” ganhasse um sentido preciso e fosse tudo menos uma palavra vazia. Ao mesmo tempo, esse adjectivo é também um instrumento de “defesa” inventado para combater o desconcerto provocado pelo universo de Fellini, para combater a dificuldade em encontrar “pontos de referência” sólidos e concretos num mundo derivado em linha recta da mente de uma pessoa e do qual só o próprio Fellini possuia certamente a “chave” absoluta. Com a progressiva acentuação desses traços característicos do cinema e da personalidade do cineasta, com todo o hermetismo que sempre lhe esteve subjacente - a mescla entre pormenores autobiográficos e outros oriundos do mais puro devaneio imaginativo foi sendo cada vez mais difícil encontrar sinais imediatamente “reconhecíveis” e relacionáveis com uma realidade concreta. Algures entre A Doce Vida e Otto e Mezzo essa “realidade concreta” deixou de contar para Fellini, apagando-se em função do domínio concedido a uma realidade de outra ordem, a uma realidade, se quisermos, puramente... “felliniana”. E aqui que há um certo paradoxo: a evolução da obra do cineasta não é comparável à de outros, que foram caminhando rumo a uma depuração que passava, nalguns casos, pelo isolamento de meia-dúzia de traços essenciais. Em Fellini sucedeu o contrário e a ideia de “depuração” não pode ser separada da ideia de “acumulação”: despojado foi Fellini nos seus primeiros filmes, não nos últimos. Pelo contrário, o seu percurso baliza-se em torno do progressivo “exagero” e da constante acentuação das suas características básicas. Como se houvesse uma profunda “malaise” na sua raiz que cada filme, em vez de apaziguar, contribuísse para alimentar."

Em relação ao Ensaio, e também numa folha da Cinemateca, escreveu Frederico Lourenço que "Ensaio de Orquestra é um filme que pode ser visto de duas maneiras: como alegoria política, onde o individualismo leva ao caos, que redunda em revolta, que, por sua vez, só se resolve no totalitarismo do tipo hitleriano; ou então como puro espectáculo cinemático (seja lá o que isso for), em que nos devemos abstrair de tudo o que não seja a pura fruição do filme como cinema. O primeiro modo de ver o filme é banal e redutor; o segundo, utópico. Dificil será determinar o que nos resta. Mas uma coisa é absolutamente certa: Ensaio de Orquestra não é um filme sobre um ensaio de orquestra, nem sobre a psicologia do músico, nem sobre música, apesar de, num ou noutro momento do filme, o espectador ser quase levado a acreditar que sim. Desengana-se, porém, muito rapidamente. E se o espectador tem alguns conhecimentos musicais, se alguma vez tocou algum dos instrumentos que figuram no filme, então não pode deixar de rir às gargalhadas durante 71 minutos, pois, como já se disse, Ensaio de Orquestra nada tem que ver - ou só superficialmente - com músicos e música. No entanto, é um filme fascinante. Porquê? 

"Em primeiro lugar, tratando-se de um filme de Federico Fellini, nunca poderia ser menos que fascinante: pois Fellini, mais do que qualquer outro grande cineasta da história do cinema, tem o condão de simultaneamente repelir e atrair o espectador: ver Fellini-Satyricon, Ensaio de Orquestra, E la Nave Va ou mesmo Otto e Mezzo pode ser uma experiência exasperante; mas o espectador, mesmo o menos felliniano, não pode deixar de sentir que o que um filme de Fellini lhe oferece em termos de "vivência do cinema" é algo de muito especial que mais nada, a não ser outro filme de Fellini, lhe poderia oferecer. Esta afirmação um pouco provocatória faz lembrar a célebre frase de Marilyn ao ser confrontada, num dos seus filmes, com um copo de whiskey: I hate the taste but I love the effect. E dos filmes citados, Ensaio de Orquestra é sem dúvida o mais exasperante, começando pela questão ultra irritante da dobragem feita a martelo, a que já nos habituámos em filmes italianos, mas que neste filme ultrapassa os limites do tolerável por largos quilómetros. Já nem se trata da questão de o actor estar claramente a recitar o alfabeto, sabe Deus em que língua, ao mesmo tempo que a banda sonora nos faz ouvir um prolongado e desenvolvido discurso sobre as vantagens e desvantagens de tocar este ou aquele instrumento: a coisa torna-se particularmente ridícula e excessiva quando, num filme pretensamente "musical", vemos no ecrã um grupo de instrumentistas a tocar energicamente frases musicais que, na banda sonora, são tocadas por outros instrumentos, totalmente diferentes dos que temos à nossa frente. Poderá muito bem tratar-se de um pormenor irrelevante para uma apreciação menos mesquinha do filme: mas um filme, para ser bem conseguido, tem de ser um pouco mais do que a soma das suas partes, e quando nem as partes resistirem à prova dos nove ... mas adiante. Poderiamos ainda focar a questão de alguns dos "músicos" terem tido o seu primeiro contacto com o seu respectivo instrumento durante a rodagem de Ensaio de Orquestra, mas julgo que já não vale a pena insistir mais nesse ponto. Não é um filme sobre música; não batamos mais nessa tecla."

Até Quinta-Feira!

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

La Strada (1954) de Federico Fellini



por André Miranda

Federico Fellini tem apenas seis anos quando vê Maciste All’Inferno, um filme acusado de blasfémia e repleto de humor bizarro, que nunca mais abandona o seu subconsciente: “Estou certo que o lembro perfeitamente, porque as suas imagens impressionaram-me tanto que tento invocá-lo em todos os meus filmes. Vi-o de pé, envolvido pelos braços do meu pai, rodeado por pessoas com os sobretudos molhados. Lembro-me da barriga nua duma mulher, o umbigo, os olhos negros maquilhados, ardentes. Com um movimento imperioso do braço criou um círculo de chamas à volta de Maciste, também ele seminu, segurando uma pomba na mão.” Assim como estas imagens não o abandonam, também não o deixa a memória da cidade natal, Rimini, onde nasceu a 20 de Janeiro de 1920. 

Se o desejo dos pais tivesse sido cumprido, Fellini, quando aos dezanove anos vai para Roma, ter-se-ia formado em direito. Mas ele tinha outros planos, e nunca os seus pés tocam na universidade. É jornalista por breves momentos, desenha cartoons, vende piadas e escreve para revistas. E durante esta vagabundagem encontra Giulietta Masina, protagonista de uma série radiofónica para a qual Fellini escreve. Os dois casam-se em 1943 e só se separam 50 anos depois, com a morte do realizador. 

“Ele foi como o polícia de trânsito que me ajuda a atravessar a estrada.” Foi assim que Fellini resumiu a relação com Roberto Rosselini, com quem colaborou pela primeira vez em Roma, Cidade Aberta, obra marcante do neo-realismo. Os dois continuam a parceria com Paisà e As Flores de São Francisco. Respeitado, Fellini tem anos prolíficos e os seus argumentos são procurados pelos mais variados autores italianos. Mas esta ainda não é a sua vocação. Só em 1950 realiza o seu primeiro filme, Luci del Varietà. Quatro anos depois oferece ao mundo A Estrada, filme que hoje apresentamos. 
 
*** 
 
É uma Itália mísera e pobre, de casas arruinadas e caminhos esburacados, aquela que Gelsomina e Zampanò habitam em constante viagem, levando, de terra em terra, um espetáculo circense. Uma existência cruel para a alma sensível e diferente de Gelsomina. Os seus olhos grandes e belos, dominados pela força bruta de Zampanò, habituam-se à dor e às lágrimas. Aceita o destino que lhe cabe e recusa todas as possibilidades de fuga. Tem a companhia do tambor e do trompete. Aqui e ali um pouco de felicidade. Mas o que Gelsomina apenas deseja é colocar as sementes de tomate num pedaço de terra que seja seu. 

Por isso, pedimos-te, Zampanò: olha para dentro de ti, admite o afeto que sentes por Gelsomina; não percebes o quanto precisas dela? Limpa-lhe as lágrimas do rosto, abraça-a. Talvez um dia seja tarde demais. Então compreenderás o quão cruel foste. E, chegado esse dia, o que farás ao teu amor? Deixar-te-ás cair na praia?

terça-feira, 10 de novembro de 2020

181ª sessão: dia 12 de Novembro (Quinta-Feira), às 19h00


Não no início mas quase a meados de Novembro, depois de uma breve pausa em busca de sala causada pelos tempos que correm e tanto nos limitam, voltamo-nos para Federico Fellini, cineasta italiano que teve direito a adjectivo por ter feito os filmes que fez. Em 2020 celebra-se o seu centenário e resolvemo-nos juntar à festa com a exibição de quatro filmes, sendo o primeiro A Estrada com Anthony Quinn e Giulietta Masina, com banda-sonora de Nino Rota. É a nossa próxima sessão, agora no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa e às 19h.

Em entrevista a George Bluestone para a Film Culture, em 1957, e quando este lhe pergunta a que se teria devido a óptima recepção do filme, Fellini respondeu que "diria que a história, a história e as personagens, acima de tudo. Lembra-se da parábola da pedra? O significado da parábola é simples. Toda a gente tem um propósito no universo; toda a gente, mesmo o bruto Zampano, precisa de alguém para amar. Os espectadores não viram este tema no ecrã nos últimos anos. Pelo menos não em filmes sérios. Sabe que a Giulietta recebeu pelo menos umas mil cartas de mulheres que dizem que os maridos - maridos que as abandonaram, maridos que estas mulheres não viam há anos - voltaram a casa depois de terem visto A Estrada? Uma noite há não muito tempo voltámos a  Roma depois de estar fora, e encontrámos um homem e uma mulher no degrau de entrada. Disseram-nos que eram casados e tinham estado à nossa espera desde o início dessa manhã. Queriam-nos contar que, na semana anterior, estavam a ponto de se separar, mas tinham visto A Estrada e isso tinha-os reconciliado. Afinal não se iam separar. Queriam-nos agradecer. Isto é só um exemplo. A Giulietta também tem muitas cartas de aleijados, parlíticos, pessoas que se sentiam completamente inúteis até verem o filme. Estas cartas vêm do mundo inteiro. É por isso que eu digo que a história é responsável. Além disso (a sorrir), talvez seja um bom filme."

Em 1955 e para a Esprit, André Bazin escreveu que "a vitalidade do cinema italiano é-nos confirmada mais uma vez com este filme maravilhoso de Federico Fellini. E é duplamente confortante afirmar que o resto dos críticos foram quase unânimes em cantar os louvores de A Estrada (1954). Sem este apoio, que não hesitou em atrair o snobismo para o seu lado, o filme talvez tivesse tido alguma dificuldade em atrair a atenção de um público inundado e sem discernimento. 

"Fellini fez um desses filmes muito raros sobre os quais se pode dizer que se esquece que são filmes e se aceita serem simplesmente obras de arte. Lembra-se a descoberta de A Estrada como uma experiência estética de grande emoção, como um imprevisto com o mundo da imaginação. Quero dizer que isto é menos um caso de um filme ter sabido obter um certo nível intelectual ou moral do que de ter feito uma afirmação pessoal para a qual o cinema é com certeza a forma necessária e natural, mas cuja afirmação possui ainda assim uma existência artística virtual por si própria. Não é um filme que é chamado A Estrada; é A Estrada que é chamado um filme. Ligado a esta ideia, também vem à mente o último filme de Chaplin, embora seja diferente de muitas formas de A Estrada. Em relação a Luzes da Ribalta (1952) também se poderia dizer que a sua única encarnação adequada era o cinema, que era inconcebível através de outro meio de expressão, e que, apesar disso, tudo nele transcende os elementos de uma forma artística particular. Portanto A Estrada confirma à sua maneira a seguinte premissa crítica: a saber, que o cinema apareceu numa etapa da sua evolução em que a própria forma já não determina o que quer que seja, em que a linguagem fílmica já não chama a atenção para si mesma, mas sugere pelo contrário apenas tanto quanto qualquer dispositivo estilístico que um artista possa empregar. Indubitavelmente se dirá que só o cinema pode, por exemplo, dotar a moto-caravana extraordinária de Zampanos da importância de mito vivo que esse objecto estranho e banal aqui obtém. Mas pode-se ver de forma igualmente clara que o filme, neste caso, não está nem a transformar nem a interpretar nada por nós. Não há lirismo de imagem ou de montagem a encarregar-se de guiar as nossas percepções; vou mesmo dizer que a mise en scène não o tenta fazer - pelo menos não a mise en scène de um ponto de vista tecnicamente cinematográfico.* O ecrã limita-se a mostrar-nos a caravana melhor e de forma mais objectiva do que o pintor ou o romancista poderiam. Não digo que a câmara tenha filmado a caravana de uma forma muito simples - mesmo a palavra "filmado" é demais, aqui - mas antes que a câmara simplesmente nos mostrou a caravana, ou ainda melhor, nos permitiu vê-la."

"* Mise en scène quer dizer literalmente "colocar no palco." Num programa de teatro francês, o crédito para "realizado por" lia-se "mise en scène de." Este termo foi livremente adaptado para utilização com referência ao cinema, e cobre áreas como as do estilo visual, o movimento da câmara e/ou dos actores, a disposição dos actores em relação ao cenário, as utilizações da iluminação e da cor, etc. Quando Bazin fala de "mise en scène de um ponto de vista tecnicamente cinematográfico," refere-se à posição da câmara (e.g., grande plano), ângulo (e.g., contra-picado), e movimento (e.g., panorâmica rápida) que chamam alguma atenção para si próprios."

No seu Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles escreve que "o sucesso mundial do filme, mais do que o seu escasso conteúdo, intriga o espectador de hoje em dia. Em que fibra é que Fellini terá tocado entre o público para que esta obra, no fim de contas menor, alcançasse uma tal repercussão? Parece que foi um dos primeiros ter tido o pressentimento da marginalização inevitável que se tornaria o apanágio de um número crescente de personagens cinematográficas. Em todo o caso, e mesmo a meio dos anos 50, dá a dois marginais completos o estatuto de heróis de pleno direito. Nem que fosse apenas pela compaixão com que os envolve, exactamente a mesma de que beneficiam a priori os heróis (nada marginais) dos melodramas italianos da época. Nas últimas horas do neo-realismo, Fellini aprende a lição da obra de Chaplin, pintor de marginais excepcionais e exemplares (de Charlot a Calvero, passando por Landru) e aplica-a a personagens anónimas mas que têm ao mesmo tempo um carácter insólito e minoritário. As suas duas personagens são marginais pela relação delas com a sociedade envolvente e mais ainda pela sua relação de casal - essa união estranha e improvável entre um primata taciturno e uma adolescente (?) assexual e sem idade. Ao contrário dos heróis do melodrama italiano tradicional, eles não são representativos de nada, a não ser de si próprios. E em definitivo talvez tenha sido a sua estranheza (para a época) e o seu eventual valor profético, mais do que outra coisa qualquer, que tenha suscitado a magia deste filme. 

"Biblio. : argumento e diálogos: in «Bianco e nero» Setembro-Outubro de 1954, retomado em volume, Bianco e nero Editore, Roma, 1958; in «L'Avant-Scene» nº102 (1970). Inclui as cenas cortadas depois da passagem no Festival de Veneza de 1954 (o filme circulou muito em cópias amputadas). Reedição (com diálogos em francês e em italiano) no n° 381 (1989) da mesma revista. A Estrada figura também no volume «II primo Fellini», Cappelli, 1969, e foi publicado em colecções de argumentos de filmes italianos publicadas em Moscovo (1958) et em Praga (1966)."

Até Quinta!

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Apresentação de "Wolfram, a Saliva do Lobo", por Bruno Andrade

Wolfram, a Saliva do Lobo (2010) de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta



por João Palhares

1
 
Entre os anos de 2008 e 2009, Joana Torgal e Rodolfo Pimenta receberam um apoio da Fundação Minas da Panasqueira para gravar um banco de sons dessas famosíssimas explorações mineiras situadas entre o Fundão e a Covilhã, na região da Beira Interior. Mais de doze mil quilómetros de túneis e subterrâneos foçados pela mão humana, até aos trezentos metros de profundidade, fundados alguns anos depois de um carvoeiro ter descoberto uma pedra negra e brilhante no século XIX e se terem suscitado os interesses e as explorações de variadas companhias, nacionais e estrangeiras, com os picos de actividade e procura situados pela altura da Segunda Guerra Mundial, estando hoje tudo nas mãos da Almonty Industries do Canadá. Torgal e Pimenta confessaram ter lá estado bastante tempo, viveram entre os mineiros, assistiram aos processos de extracção, transporte, filtragem automática, filtragem manual, moagem automática, moagem manual, embalagem automática, embalagem manual, mistura química e transformação dos cristais de volframite durante meses sem sequer ligar uma câmara, ficando apenas de ouvidos bem atentos e olhos bem abertos. Terão tirado as suas notas, percebido todo o processo, assistido às rotinas diárias de homens e mulheres do raiar da aurora ao cair da noite, provavelmente entrevistado essas pessoas, apanhado chuva, neve e bastante sol, entre os picos dos dois solstícios que são tão pronunciados e extremados nessa zona do país. “Sempre fomos forçados a desenvolver projectos com poucos meios,” disseram ainda os realizadores a Mário Fernandes, em 2013, “de outra forma estaríamos em casa sentados à espera do subsídio. É claro que o apoio de amigos e familiares foi fundamental para a nossa permanência nas Minas da Panasqueira e para eles vai o nosso eterno agradecimento.” 
 
2 
 
Já com a câmara, parecem esquecer esse trabalho todo (“parecem,” porque a rodagem foi preparada de forma minuciosa, envolveu invenção de equipamento e talvez faça falta uma entrevista ou um artigo de fundo sobre o processo de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, que vêm do cinema de animação e são criadores muitíssimo pacientes) e deixam-se levar pela estranheza e pela intensidade mágicas do processo até às últimas consequências. E em vez de prepararem um documentário didáctico cheio de diagramas, legendas, documentos, testemunhos e vozes off explicativas preferem jogar com as poucas luzes humanas e a escuridão tenebrosa das minas (há momentos no filme em que se não nos soubéssemos na mais pura e dura das realidades, nos acharíamos num filme de terror ou de ficção científica), põem a câmara perigosamente perto e primorosamente longe, em planos que se parecem com os quadros mais negros e desesperados do pintor britânico John Martin (sendo outros sem parentesco traçável), atiram-na para cima de transportadoras e deixam-na vibrar violentamente com mecanismos enormes e esmagadores enquanto filmam, forçam ao máximo o reconhecimento visual dos movimentos rapidíssimos das engrenagens, enchem-na de terra e de água tornando-a também parte dos elementos. “Ao filmar-se certos planos não se sente medo,” dizem no entanto os realizadores na mesma entrevista, “mas antes respeito e alguma adrenalina. Tal como filmares em cima dos vagões, com o tecto a meio palmo da testa, ou confinados num buraco onde só cabíamos nós e uma pá escavadora para recolher os escombros, ou ainda, quando te encontravas em cruzamentos sonoros de máquinas escavadoras a aproximarem-se na escuridão. Tanto a mina como a lavaria são lugares labirínticos onde nos podemos “perder ou encontrar”.” 
 
3 
 
Finda a aventura, então, estes choques encadeados de sons e de imagens. Entre as embalagens metódicas do pó trabalhado antes de ser enviado para os laboratórios, que marcam um abrir e fechar de ciclo. A partir de certa altura, quando os mineiros já estão lá dentro e as máquinas carburam e sugam, furam e ardem, arrastam e rebentam, acontece um milagre. Enquanto a matéria mineral se transforma, também os planos se sucedem numa reinvenção constante, alcançando por vezes a abstracção pura e criando a sua própria música, ritmos constantes, hipnóticos e alucinatórios que alimentam as máquinas e que, como em Vertov, não dependem das outras artes para descrever ou deixar em testamento o seu século, os seus vultos e os seus heróis. Um fio amarelo e vermelho a rasgar a escuridão, um camião a atravessar o céu azul e a despejar uma nuvem negra pela encosta clara e frágil de um monte, um buraco iluminado com um homem em silhueta e como arquétipo a dominar um engenho mecânico e o seu meio, representado num enquadramento e num claro-escuro sintéticos. As metáforas são infindáveis, dos homens como autómatos, presas do trabalho e do complexo militar e industrial responsável pelos massacres do nosso mundo à figura reversa ascética e resiliente que pode significar a justiça derradeira e o alívio de todas as penas: continuam cá, como colossos a oscilar ao vento sem nunca tombar. 1895-2010, a história das indústrias mineiras e cinematográficas em cinquenta e cinco minutos sem diálogos, peripécias narrativas ou sopas do audio-visual. Para lá e para cá do tempo, para lá e para cá do espaço, a garantir-nos como D. Quixote, Al Jolson ou Alain Resnais e através das décadas e dos séculos que por mais que tenhamos visto, “ainda não vimos nada”. Bem hajam, Joana e Rodolfo.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

180ª sessão: dia 22 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Depois dos anos vinte, espreitamos agora as vanguardas do século XXI, à procura de rimas e parentescos. Foi no início deste nosso século que Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, através de um apoio da Fundação Minas da Panasqueira para a criação de um banco de sons das Minas, realizaram Wolfram, a Saliva do Lobo (2010), a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos, que será antecedida por uma apresentação em vídeo pelo crítico e realizador brasileiro Bruno Andrade.

Em Outubro de 2010, em texto publicado no Jornal dos Encontros de 2013 e na Foco - Revista de cinema de 2014-2015, Mário Fernandes (programador e também realizador de The Last Day  of Leonard Cohen in Hydra, que vimos em Outubro de 2018) escreveu que "nesta maravilhosa e portentosa obra-prima do cinema, o Pimenta e a Joana acompanham o processo de extracção e transformação do minério das Minas da Panasqueira. Sem explicações em voz off, sem diálogos, sem cair na confrangedora antropologia audiovisual tão em voga, sem a armadura patética do realizador etnográfico, souberam negar as pretensas e idiotas continuidades narrativas documentais. 
 
"Apostaram numa “montagem de atracções”, tributária de Eisenstein e Vertov (ressalvando as diferenças entre os dois realizadores), em que todos os planos criam sensações, ressonâncias emocionais, jogos de elementos, matérias e maquinações que geram estímulos e reacções. 

"Assim, através de metamorfoses sucessivas da matéria, em movimentos ascendentes, descendentes e dispersivos, os dois realizadores fraturam o bloco bruto da matéria em partículas resistentes à análise, ao controlo; ninguém do lado de cá consegue juntar as peças nem reconhecer os materiais, só a Beralt Tin dá um peso e uma medida e um preço de mercado como filmam com ironia o Pimenta e a Joana. Na Realidade, o “preço simbólico” ou o “símbolo preçado” é fracturável e não facturável, consome-se em galerias subterrâneas, criptomanias, túneis, tubos de ensaio, cavidades, labirintos, licantropias, máquinas, decomposições, sombras, explosões, ângulos insólitos, curto-circuitos etc... O minério desmultiplica-se numa plural trasladação simultânea. Na “cripta fílmica” da mina os segredos só se revelam pela fractura e a cripta constrói-se pela violência emocional e material dos fragmentos."

Em entrevista ao mesmo Mário Fernandes, e quando este lhes pergunta se estavam interessados em "captar uma certa desumanização do trabalho", Torgal e Pimenta respondem que "sim. Na sociedade, a importância que se atribui ao minério (produto) é superior à que se atribui ao mineiro (homem). Neste filme esta ideia está subjacente, pois o mineiro encontra-se quase sempre em segundo plano, como um vigilante do precioso processo mecânico. O mineiro apenas surge em primeiro plano no final do filme, quando se corporiza em árvore, mantendo-se firme e resistente perante a vida e a morte. Não existe uma completa recusa da palavra, mas antes o recurso à dureza e riqueza visual e sonora, que tem a capacidade de nos envolver numa realidade muito particular."

Quando Mário Fernandes lhes pergunta na mesma entrevista se foderam alguma lente, os realizadores respondem que "com alguma sorte nenhuma lente nos fodeu! (risos) Ao filmar-se certos planos não se sente medo, mas antes respeito e alguma adrenalina. Tal como filmares em cima dos vagões, com o tecto a meio palmo da testa, ou confinados num buraco onde só cabíamos nós e uma pá escavadora para recolher os escombros, ou ainda, quando te encontravas em cruzamentos sonoros de máquinas escavadoras a aproximarem-se na escuridão. Tanto a mina como a lavaria são lugares labirínticos onde nos podemos “perder ou encontrar”."

Em texto publicado para a revista Estado da Arte, Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins, defensores apaixonadíssimos deste filme, apresentam o filme ao Brasil, falando dos "homens que extraem minério, transformam madeira em carvão e saudades em cartas, enquanto são filmados por realizadores que, com suas câmeras, tripés e microfones, colhem e burilam seus gestos. O esforço para dobrar a matéria, o aprendizado da sua manipulação, o artesanato, tudo isso é o que nos dão a ver os oito filmes apresentados na mostra Perspectivas do Cinema Português, que acontece no dia 24/07 na Cinemateca Brasileira, com produção da Foco – Revista de Cinema e da Pena Capital. 
 
"Para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal, conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A câmera, apenas uma, e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Chelovek s kino-apparatom (1929) de Dziga Vertov



por António Cruz Mendes

Denis Kaufman (1895-1954), cineasta que adoptou o pseudónimo Dziga Vertov (“dziga”, do ucraniano “roda”, e “vertov”, do russo, “vertev”, “que significa “girar”, nome que poderíamos traduzir por “pião que rodopia”), criou no campo do cinema documental uma obra que consideramos exemplar. 
 
Com a sua mulher e o seu irmão, fundou o grupo Kinoks cujo nome foi formado a partir das palavras Cine (Kino) e Olho (Glaz), que defendia a “honestidade” do documentário relativamente ao filme de ficção e a superioridade do olhar cinematográfico em face do da visão humana. Rejeitando a pretensão de uma falsa objectividade cinematográfica, fez da exploração das relações olho / câmara / realidade / montagem os pontos de partida para a construção da nova realidade construída pelo cinema. 
 
No contexto da programação dos Encontros da Imagem, que acolheu a ideia de “genesis” como tema, apresentamos O Homem da Câmara de Filmar, o seu filme mais conhecido, que, simultaneamente, procura documentar o nascimento de uma nova sociedade e exemplificar uma nova forma de conceber o cinema. Trata-se, por um lado, de assinalar o impacto da modernidade, da produção mecânica e da velocidade no ritmo da vida urbana, numa sociedade, como a da Rússia, durante muito tempo marcada pela persistência de velhas tradições e de estruturas sociais arcaicas; por outro, de o fazer através do olho da máquina de filmar, explorando todas as possibilidades oferecidas por esse poderoso mecanismo, ele próprio produto dos novos tempos que se pretendia celebrar. 
 
O documentário de Vertov oferece-nos, em imagens vertiginosas, uma perspectiva da vida moderna a partir da representação de um dia na vida de Moscovo, sobretudo, mas também de Kiev e de Odessa: o despertar, o movimento febril das ruas, o mundo do trabalho e da produção em série, o tempo de lazer, o cair da noite… É um olhar fascinado diante dos progressos técnicos e das transformações sociais ocorridas na União Soviética no período da NEP. Um filme que dispensa intertítulos, cenários artificiais e actores, afirmando claramente a sua independência em relação à literatura e ao teatro, para se exprimir como cinema em estado puro: mero registo de imagens em movimento captadas pela máquina operada pelo seu irmão, Mickhail Kaufman, e montadas pela sua mulher, Elizaveta Svilova. 
 
Dziga Vertov recorre a uma imensa panóplia de recursos cinematográficos: câmara lenta e animação, zooms, ecrã dividido, imagens múltiplas e imagens desfocadas. Recusa, portanto, qualquer descrição naturalista, mas reinventa a linguagem cinematográfica que, na sua assumida artificialidade, ele vê como o veículo ideal para exprimir uma sensibilidade futurista que ainda hoje nos consegue espantar. 
 
O conceito de “revolução” encontra-se subjacente tanto no tema, como na forma de o abordar. Considerava-se que os novos tempos anunciados pela revolução socialista de Outubro só podia ser expresso numa linguagem que fosse ela própria a expressão dessa mesma modernidade. Pensava-se, então, que as vanguardas artísticas (e, entre elas, o futurismo ocupava um lugar destacado) se deviam, logicamente, associar às vanguardas políticas na construção de um mundo novo e que esse mundo novo que a revolução profetizava não poderia ser anunciado através das velhas fórmulas artísticas herdadas do passado. 
 
De facto, com a afirmação do estalinismo, elas foram acusadas de um formalismo distante do entendimento e do gosto dos trabalhadores, sendo progressivamente asfixiadas e preteridas a favor do chamado “realismo socialista”, que privilegiava formas de expressão mais tradicionais. Depois deste filme, Dziga Vertov realizaria ainda mais alguns documentários, entre eles Três Canções para Lenine (1934) será o mais conhecido, mas O Homem da Câmara de Filmar terá sido o filme-manifesto que melhor exemplifica a sua concepção do que deveria ser um cinema revolucionário ao serviço da revolução.