por António Cruz Mendes
Denis Kaufman (1895-1954), cineasta que adoptou o pseudónimo Dziga Vertov (“dziga”, do ucraniano “roda”, e “vertov”, do russo, “vertev”, “que significa “girar”, nome que poderíamos traduzir por “pião que rodopia”), criou no campo do cinema documental uma obra que consideramos exemplar.
Com a sua mulher e o seu irmão, fundou o grupo Kinoks cujo nome foi formado a partir das palavras Cine (Kino) e Olho (Glaz), que defendia a “honestidade” do documentário relativamente ao filme de ficção e a superioridade do olhar cinematográfico em face do da visão humana. Rejeitando a pretensão de uma falsa objectividade cinematográfica, fez da exploração das relações olho / câmara / realidade / montagem os pontos de partida para a construção da nova realidade construída pelo cinema.
No contexto da programação dos Encontros da Imagem, que acolheu a ideia de “genesis” como tema, apresentamos O Homem da Câmara de Filmar, o seu filme mais conhecido, que, simultaneamente, procura documentar o nascimento de uma nova sociedade e exemplificar uma nova forma de conceber o cinema. Trata-se, por um lado, de assinalar o impacto da modernidade, da produção mecânica e da velocidade no ritmo da vida urbana, numa sociedade, como a da Rússia, durante muito tempo marcada pela persistência de velhas tradições e de estruturas sociais arcaicas; por outro, de o fazer através do olho da máquina de filmar, explorando todas as possibilidades oferecidas por esse poderoso mecanismo, ele próprio produto dos novos tempos que se pretendia celebrar.
O documentário de Vertov oferece-nos, em imagens vertiginosas, uma perspectiva da vida moderna a partir da representação de um dia na vida de Moscovo, sobretudo, mas também de Kiev e de Odessa: o despertar, o movimento febril das ruas, o mundo do trabalho e da produção em série, o tempo de lazer, o cair da noite… É um olhar fascinado diante dos progressos técnicos e das transformações sociais ocorridas na União Soviética no período da NEP. Um filme que dispensa intertítulos, cenários artificiais e actores, afirmando claramente a sua independência em relação à literatura e ao teatro, para se exprimir como cinema em estado puro: mero registo de imagens em movimento captadas pela máquina operada pelo seu irmão, Mickhail Kaufman, e montadas pela sua mulher, Elizaveta Svilova.
Dziga Vertov recorre a uma imensa panóplia de recursos cinematográficos: câmara lenta e animação, zooms, ecrã dividido, imagens múltiplas e imagens desfocadas. Recusa, portanto, qualquer descrição naturalista, mas reinventa a linguagem cinematográfica que, na sua assumida artificialidade, ele vê como o veículo ideal para exprimir uma sensibilidade futurista que ainda hoje nos consegue espantar.
O conceito de “revolução” encontra-se subjacente tanto no tema, como na forma de o abordar. Considerava-se que os novos tempos anunciados pela revolução socialista de Outubro só podia ser expresso numa linguagem que fosse ela própria a expressão dessa mesma modernidade. Pensava-se, então, que as vanguardas artísticas (e, entre elas, o futurismo ocupava um lugar destacado) se deviam, logicamente, associar às vanguardas políticas na construção de um mundo novo e que esse mundo novo que a revolução profetizava não poderia ser anunciado através das velhas fórmulas artísticas herdadas do passado.
De facto, com a afirmação do estalinismo, elas foram acusadas de um formalismo distante do entendimento e do gosto dos trabalhadores, sendo progressivamente asfixiadas e preteridas a favor do chamado “realismo socialista”, que privilegiava formas de expressão mais tradicionais. Depois deste filme, Dziga Vertov realizaria ainda mais alguns documentários, entre eles Três Canções para Lenine (1934) será o mais conhecido, mas O Homem da Câmara de Filmar terá sido o filme-manifesto que melhor exemplifica a sua concepção do que deveria ser um cinema revolucionário ao serviço da revolução.
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