quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Gestos & Fragmentos (1982) de Alberto Seixas Santos



por João Palhares

“Cada um tem a sua própria versão do que foi o 25 de Abril”, atirou decidida e acertadamente Mário Fernandes no Fundão, penso que nos Encontros Cinematográficos de 2015. Sem ter em conta todos aqueles que não tenham tido um dia particularmente movimentado ou cheio de acontecimentos por estarem em casa descansados e alheados às revoluções (grupo muito variado e que inclui tanto os maiores misantropos como aqueles que acham que as revoluções são um problema dos outros), os dias de Abril não foram um regalo e uma celebração para toda a gente. Pedro Costa já disse várias vezes que, para Ventura, o 25 de Abril foi um pesadelo, que ele “ chega a Portugal em 1972, encontra trabalho bem pago, dão-lhe um contrato. Julga que se vai safar. Depois vem a Revolução e ele conta-me a história secreta dos imigrantes cabo-verdianos na Lisboa do pós-25 de Abril, a história que ninguém ainda contou. Eles tiveram muito medo de serem expulsos ou de acabarem na prisão. Barricaram-se. Nessa altura eu estava na rua, era adolescente. Durante a rodagem, fui procurar um álbum de fotos das manifestações do 1º de maio com aqueles milhares de pessoas em festa, e é incrível: não se vê um único preto. Onde estava eles? Ventura contou-me que estavam todos juntos, aterrados de medo, escondidos no Jardim da Estrela, a temer pelo futuro. Contou-me como a polícia militar, em plena euforia, partia à noite para os bairros de lata para “caçar pretos”. Parece que os amarravam às árvores para se divertirem.”[1]  

Foi também muito diferente para quem o viu dos bastidores, para os exilados, para os combatentes, para os proprietários, para os retornados. Mas “a própria versão” tem ainda mais ramificações, passa também pela reconstituição dos factos, por saber quem tinha razão durante o PREC, se a revolução saiu gorada, se se cumpriram as promessas de Abril, que mão tiveram os americanos na contra-revolução, quem foram os responsáveis pelos atentados bombistas a sedes de partidos de esquerda, no Norte, e pelas ocupações e queimas de terrenos, no Sul, o que aconteceria se Ramalho Eanes não tivesse impedido o golpe militar de 25 de Novembro? Otelo esteve ou não envolvido nos recrutamentos das milícias das FP-25? Em Gestos & Fragmentos, filme que hoje veremos, Eduardo Lourenço diz que a revolução foi “à portuguesa, fez-se tudo num dia”. Não o diz (ou não me parece que o diga) no sentido que costumamos dar à expressão, o de despachar e fazer às três pancadas, mas no de um gesto impulsivo muito nosso e que atalha por todas as burocracias e entraves possíveis, o de uma disposição hercúlea para trabalhar durante horas a fio quando se tem um objectivo em mente (capacidade talvez muito adormecida nos tempos que correm). Só se pode supor que nesse caso a disposição foi tanta que não foram deixadas as provas que o “jornalista americano” de Robert Kramer quer encontrar para escrever o seu All the President's Men passado em Portugal. O nosso país talvez seja muito elusivo, tão elusivo que os representantes da CIA não conseguiam apresentar um relatório minimamente consistente para os Conselheiros Nacionais de Segurança do seu país durante os anos do Estado Novo ou durante a Revolução.

Portanto, a divisão entre as cenas com o intelectual e o revolucionário portugueses (os únicos que se encontram e discutem entre si, apesar da conversa ser dominada pela retórica e pelo carisma de Otelo) e as do jornalista americano não são de todo uma simples ilustração da oposição entre o real e a ficção, ainda que possa ter nascido com essa intenção, mas da impossibilidade de atravessar certos labirintos da realidade só com a lógica e com a razão, ou da diferença muito complexa entre o pensamento português e o americano, menos prendado para as poesias da acção. O uso dos quartetos de cordas finais de Ludwig van Beethoven (quando tinha de encostar os ouvidos ao piano para ouvir a vibração das cordas na madeira e conseguir compor) como única banda-sonora não é inocente, como não é inocente a encenação do refúgio de Kramer nas paisagens iniciais de Little Sister, de Raymond Chandler, cujo mítico personagem, Philip Marlowe, também acaba certas travessias e investigações em resignação absoluta, sonhando às vezes com a solução final e absoluta do "grande sono", ainda o único remédio conhecido para a impiedade dos homens.

[1] in «Guarda a minha fala para sempre», Expresso-Actual de 25 de Novembro de 2006. Curiosa data, por sinal.

sábado, 17 de novembro de 2018

119ª sessão: dia 20 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão, com a segunda longa-metragem a solo de Alberto Seixas Santos, Gestos e Fragmentos, prolonga a temática e as obsessões do realizador com a grande curva histórica provocada pela revolução de Abril em Portugal, desta feita com o chamado Processo Revolucionário em Curso, convocando as vozes de Otelo Saraiva de Carvalho, Eduardo Lourenço e Robert Kramer para o tentar compreender. Um documento preciosíssimo ou uma aventura de investigação com contornos noir, vejamos e decidamos.

Em Histórias do Cinema, livro essencial dedicado ao cinema português, João Bénard da Costa, versando sobre as obras devotadas ao 25 de Abril, escreveu que "os dois melhores filmes sobre as suas razões e o seu rescaldo devem-se a Seixas Santos. Já falei do primeiro – Brandos Costumes, estreado nos finais de 75. O segundo chamou-se Gestos e Fragmentos e ficou concluído em 1982 (nunca foi estreado comercialmente). Basicamente é constituído por três grandes entrevistas com Otelo Saraiva de Carvalho, o estratego do 25 de Abril*, o cineasta americano Robert Kramer e o ensaísta literário Eduardo Lourenço (n. 1923), um dos intelectuais portugueses de maior prestígio. Os pontos de vista do protagonista da Revolução, do esteta revolucionário e «visitante» e do intelectual distanciado sobrepõem-se e combinam-se, numa espécie de elevação da discussão à figura de substituição da imagem ausente. Ao contrário dos outros filmes, jamais vemos em Gestos e Fragmentos (ou só vemos na imobilidade da fotografia) as imagens emblemáticas da Revolução. E é da ausência destas (ou desta) que nasce a forma do discurso sobre ela, numa figuração de luto que tem os mais estranhos paralelos com Brandos Costumes. Mas se Brandos Costumes recorrera à ficção, aqui são os personagens reais que tomam o lugar dela, cobrindo com a própria ficção que entretém a ficção que não há ou não houve. E é também como ausente que o cineasta toma partido, implacavelmente registando as contradições dos discursos e do décor (a paisagem rural donde Eduardo Lourenço fala, o décor soissante-huitard do quarto alugado em Lisboa por Kramer, a casa burguesa de Otelo). Com esse filme – muito posterior – se fechou Abril, que directa ou indirectamente, esteve ainda presente em quase todos os filmes de ficção dos anos capitais de 76 a 82.

* Otelo Saraiva de Carvalho (n. 1935) é o mais conhecido dos «capitães de Abril». Pouco tempo depois da Revolução, foi promovido a brigadeiro e passou a comandar a Região Militar de Lisboa e o COPCON (Comando Operacional do Continente) com vastos poderes paramilitares. Evoluiu muito rapidamente de posições moderadas para posições de extrema-esquerda, que levaram a violentos conflitos com os seus ex-colegas.

Em 1974, Otelo representou a face mais radical – e também mais anárquica – da Revolução que quis inflectir para uma democracia basista. A seguir ao 25 de Novembro foi demitido de todas as suas funções e preso pouco depois, por alegadas implicações no golpe. Libertado em 1976, apresentou-se como candidato às eleições presidenciais, com apoio nos maoístas da U.D.P. Obteve cerca de 20 por cento dos votos, após uma campanha radical e populista.

Mais tarde, ligou-se às F.P. - 25 de Abril, grupo que preconizava a acção armada e que organizou vários actos de terrorismo. Preso e julgado, foi condenado a severa pena de prisão, muito contestada."

Na folha da Cinemateca sobre o filme, Manuel S. Fonseca escreve que "o conteúdo de Gestos & Fragmentos é aquilo que ele não mostra. É mesmo aquilo que ele esconde: o 25 de Abril, expressão que resume um Poder em aberto, e a movimentação das figuras, os Militares, que para ele convergem. Sete anos depois de 1974 (o filme é de 1981) a organização de um saber sobre Abril passa essencialmente pela disposição de diferentes pontos de vista que estabelecem o seu discurso sobre imagens das imagens (Kramer), ou sobre a ausência penosa dessas imagens (Otelo), ou sobre a transliteração delas (Eduardo Lourenço).

"O primeiro som do filme (e não é curioso que a primeira “imagem”, seja um som?), acompanhando o genérico, é o rumor da água. Metáfora da fluidez, dir-se-ia, mas também metáfora da horizontalidade, do movimento em frente, esse som que se cumpre no primeiro plano do filme (plano geral do mar, junto à costa) introduz dois discursos que também procedem na “horizontal”: o de Kramer e o de Otelo. O primeiro corte com essa horizontalidade surge na primeira intervenção de Eduardo Lourenço: o seu discurso não procura formular um alinhamento dos factos, o que o seu discurso visa é a fractura instantânea dos factos, como um ponteiro que fracturasse a pedra. Especulação, dir-se-á. E, contudo, lá está no filme o primeiro movimento de câmara dedicado a Kramer que evolui frente ao puzzle cronológico que desenhou num placard. Horizontalidade da câmara para a horizontalidade de Kramer. Ao contrário o primeiro ângulo muito marcado da câmara, um plongé acentuado, é para Eduardo Lourenço que lê em paisagem mineral: verticalidade."

Robert Kramer, realizador americano que interpreta o jornalista de Gestos, escreveu sobre o filme para o catálogo sobre Seixas Santos publicado pelo ABC - Cineclube de Lisboa, dizendo que "o Alberto propôs-me que fosse com ele a Lisboa e que trabalhássemos juntos nos textos para a minha personagem. Era um bom momento e um bom lugar. Neste personagem de ficção do «jornalista no seu quarto» há inevitavelmente alguma coisa do material de Guns e vestígios do desejo selvagem que se encontra na base das «cenas de luta de classes em Portugal». 

"Após a queda do regime fascista em Abril de 1974, havia optimismo, euforia, triunfalismo. Havia uma possibilidade real e uma generosidade, havia uma abertura e uma ingenuidade maravilhosas. Havia um movimento popular poderoso. Depois de Novembro de 1975, algumas facções das Forças Armadas instauraram a ordem tradicional da Europa Ocidental. Esta experiência é sustentada pelo «jornalista no seu quarto» e também pela sombra de alguns amigos encarcerados. Isabel do Carmo, Carlos Antunes e outros militantes dum pequeno partido de esquerda: foram julgados num processo polémico e condenados a penas de prisão, aparentemente perpétuas. (Encontram-se presos há cinco anos Este verão, após longas greves de fome, depois do protesto das autoridades oficiais de todo o Ocidente, começa a haver indícios de que vão ser liberados). E outro personagem do filme de Alberto, «o General na Sala», Otelo Saraiva de Carvalho, também era amigo deles."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Brandos Costumes (1975) de Alberto Seixas Santos



por Serge Daney e Alberto Seixas Santos

Serge Daney: Primeiro filme português, primeira frase do «Manifesto» – acho que é isso. Mas vou colocar a questão de outra forma. Sinto que os intelectuais portugueses estão a criar de forma lógica e natural um pequeno discurso de esquerdas, uma cultura de esquerdas, marxista, que hoje parece possível. Portanto, o teu filme vai estar sujeito a uma série de novas perguntas, porque as pessoas já não fazem as mesmas perguntas; estas perguntas às vezes vêm de um marxismo muito primário, como podemos ler nas críticas que fazem ao teu filme nos jornais, mas ao mesmo tempo são importantes. Perante um tema como o teu, que trata principalmente a ideologia dominante, a forma como se verbaliza, como as pessoas vivem com ela, e isso também se liga ao discurso do salazarismo, uma variante extremamente específica do fascismo, havia no geral três atitudes possíveis: ou fazer um filme sobre como as pessoas vivem contra o salazarismo, ou sobre como as pessoas vivem activamente o salazarismo; e tu escolheste a mais difícil: fazer um filme sobre como as pessoas vivem com o salazarismo. Acho que as acusações que as críticas te costumam fazer vêm sobretudo do facto de não teres tratado a primeira opção, quer dizer, a da resistência. Claro que é muito importante começar a mostrar com uma câmara que, de uma forma ou de outra, houve resistência (não necessariamente uma resistência com bandeiras, pode ser por exemplo essa resistência embrionária, como a que víamos nos camponeses de Acto da Primavera de Manoel de Oliveira). E esse filme que não se fez é o que se te exige a todo o momento. A outra opção era fazer um filme sobre a maneira como as pessoas acreditam no salazarismo, como se transformou numa mística, como alguns se transformaram nos seus ideólogos mais activos – esse é parcialmente o problema do cinema «retro» em França, as pessoas começam-se a perguntar como é que Hitler, Mussolini e Pétain foram possíveis, ou como é que a partir deles pôde surgir um movimento de massas. 

Não trataste essa questão e ninguém to pede. Esta questão tem que ver com a França e comigo. Tomaste o caminho mais complicado, em que há mais compromisso, o das pessoas que viveram durante tanto tempo com o salazarismo sem se confundir com ele, os republicanos, que hoje votariam no PS, suportando-o perfeitamente ao mesmo tempo e reproduzindo-o no núcleo familiar. Mas no teu filme está o problema do paralelismo; não correste o perigo das duas séries, da série histórica, com o Pai (com P maiúsculo), Salazar, e a série familiar com o pai (com p minúsculo); são simplesmente caminhos paralelos, são encaminhadas uma para a outra como um espelho imaginário que, apesar dessa breve frase de Marx que realmente não é mais que um apelo simbólico, não leva a lado algum. De acordo com o me entendimento esse é o principal perigo: a ficção apoia o documento e o documento apoia a ficção, como num espelho, não há uma origem. Como filmar a ideologia? É um problema do qual já falámos hoje a propósito do teu filme e do filme de Allio. Essa pergunta sempre me intrigou. Porque não se trata de «filmar a ideologia». Quando alguém toma a ideologia como tema, quer dizer, o imaginário das pessoas, a sua representação, não se obtêm resultados. Os filmes não dão, ou dão muito pouco prazer às pessoas, não atraem o espectador, e o que se pretendia ou o que se podia mostrar, não acontece. Procuro desesperadamente saber porquê. Isto leva-nos ao problema do Poder, porque quando «se filma a ideologia», filma-se tudo aquilo que é comum tanto ao dominante como ao dominado. Portanto, é impossível que alguém tente articular um discurso assim no écran, um discurso evidentemente alienante para ele, um discurso que participa finalmente na própria alienação. Não se acaba sempre por confundir essa pessoa com o seu discurso? 

Alberto Seixas Santos: Isso é importante. Mas ao mesmo tempo, a ideologia, como é um conjunto de representações, para mim poderia ser um bom material para o cinema. Tem só que ver com a minha vontade ou com a minha incompreensão, mas sou o único que nota que um dos problemas que surge no filme é que pode reforçar a imagem de Salazar no final. Este é o problema central. As pessoas mantêm uma relação complicada com ele, porque é muito difícil. 

Serge Daney: Neste sentido é interessante pensar no trabalho dos Straub, porque é um problema que se colocam constantemente. Como filmar os textos, textos que participam sempre de um poder, ainda que sejam textos literários; os Straub mostram sempre a instância do poder, esse é exactamente o tema deles. Nunca caíram na ideologia. Os Straub nunca escamotearam a questão do poder, trata-se de saber de onde vêm esses textos que as pessoas dizem, que as pessoas transportam, e em relação aos quais é preciso desmarcação e resistência, eventualmente. 

Alberto Seixas Santos: No meu filme o que me parece diferente entre Salazar e o pai da família é que um está em poder do Estado e o outro apenas no da família, e portanto também sujeito ao poder do Estado. O que sempre me impressionou foi a ausência de trabalho ideológico por parte de Salazar, nunca disse nada que não se tivesse já dito antes. 

Serge Daney: Além disso, quando se fala das pessoas coloca-se a questão do desprezo, quer dizer, a questão da relação moral com as pessoas que se põem em cena. Nada impede que alguém um pouco displicente e autoritário possa dizer diante de um filme como o de Manoel de Oliveira (Acto da Primavera), como marxista muito arrogante: «são camponeses alienados, não vale a pena mostrá-los, pelo contrário tem de se escondê-los». Para o sector dos puritanos marxistas é muito importante não mostrar o povo quando o povo está alienado. É é muito perigoso. As pessoas de esquerda (tanto em França como aqui) apresentam o povo como vitorioso e erigido, com a sua ideologia no poder, etc. Escamoteia-se totalmente essa confusão, mistura-se o povo alienado com a sua alienação. Por isso, pedir às pessoas que falem do estereótipo ou que digam o próprio texto sobre a sua alienação é importante – é preciso fazê-lo ou não se é marxista de nenhuma das maneiras; mas também é preciso preservar essa parte de resistência no momento em que falam. No final das contas isso é o que faz de Othon um filme genial, porque Othon é um texto de poder e sobre o poder; o poder é Corneille, que na França tem um sentido cultural muito forte, e o texto é dito por pessoas que lutam contra a língua francesa. Está dito de tal maneira que evita por completo que se possa deslocar essas pessoas. E além disso, pode-se desfrutar a ver os actores, com as questões da linguagem, mas no final é impossível dizer que estão alienados, que se confundem com a linguagem que transmitem. Tomemos a alegria, por exemplo: como se pode transmitir a alegria sem a confundir com as personagens alegres?... Se queres evitar que se confundam os «papéis» e os «corpos», estás obrigado a inventar una série de modificações, e aí perdes o público, o que acontece no caso dos Straub. No outro extremo da engrenagem estão os pequeno-burgueses em férias, nos acampamentos: são constantemente desprezados, etc., transmitindo sem resistência alguma os discursos mais alienados, e isso funciona. 

Alberto Seixas Santos: A propósito da ideologia que fala das pessoas, por exemplo na cena da cozinha, em que o discurso é em parte um texto de Salazar sobre os pobres, tinha pensando em continuar com o texto no momento em que a mulher ficava em silêncio, o texto continuava e ela retomava-o mais adiante. 

Serge Daney: O cinema materialista é o cinema que se interessa pela resistência dos corpos, em relação ao texto; a esse nível Manoel de Oliveira faz cinema materialista. No outro extremo está a utopia de esquerda puritana que afirma que existe uma ideologia já constituída que as pessoas podem falar, exigindo mostrar não só um povo resistente, como um povo que já possui a sua própria língua, perfeitamente constituída, a sua ideologia, os seus próprios valores, quando essa constituição não passa de um estado embrionário. Se se escamoteia essa questão da resistência é pouco provável que se possa chegar a um cinema materialista e se faça avançar a cultura popular; mas permanecer nessa fase seria pouco mais que mostrar a resistência e não fazer um cinema materialista, o que pode dar lugar a uma resistência estéril, por exemplo na relação entre uma voz e um texto. Talvez fosse bom pensar a quem se dirige esse texto. 

in «Conversa sobre Brandos Costumes», M. Revista de Cinema, nº 2/3, Fevereiro de 1977.

sábado, 10 de novembro de 2018

118ª sessão: dia 13 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Em Novembro embrenhar-nos-emos pelas pesquisas humanas, políticas e sociais de Alberto Seixas Santos (falecido no final de 2016)  pelo salazarismo e pelo pós-25 de Abril. Rodado ainda durante a recta final do Estado Novo, assolado por problemas políticos e diplomáticos e apenas estreado depois da Revolução dos Cravos, Brandos Costumes é a nossa próxima sessão nos cinemas do Bragashopping.

No fabuloso ciclo organizado por José Neves e pelo Núcleo de Cinema da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Alberto Seixas Santos sentou-se com José Neves, João Bénard da Costa e Nuno Teotónio Pereira e divagou sobre os espaços do seu filme, dizendo que "interessou‐me o conflito entre esses dois espaços: o espaço público e o espaço privado. O espaço público, a preto e branco, e o espaço privado, a cores. Uma das razões por que não se vê muito através das janelas é que eu não queria ver o exterior, porque o exterior era o espaço público. Se se visse o espaço público a cores, a estrutura desequilibrava‐se. Na altura ainda não havia estas habilidades modernas da televisão, que permitem, com o blue screen, fazer o exterior a preto e branco. Não se podia. Impossível. Portanto evitei, e tentava pôr cortinas para não se conseguir ver o exterior. Havia um programa em relação ao filme que era esse conflito entre dois espaços, e, para esse conflito ser coerente, era preciso que um fosse a preto e branco e o outro fosse a cores.

"Em relação à família, pensei a partir das narrativas cinematográficas do expressionismo alemão. Isto é, a mãe é a mãe, não é a senhora Justina; a empregada é a empregada; a filha mais nova é a filha mais nova; a filha mais velha é a filha mais velha; o pai é o pai! Portanto, são arquétipos da estrutura familiar, não personagens individualizadas com uma psicologia muito própria. Isso também foi uma coisa que escolhi desde o princípio.

"Depois, há coisas que me acontecem, eu não sei explicar... Por exemplo, a cena da criada que corre para a janela, na sala grande onde a filha mais nova, pacientemente, tenta aprender a ler o Manifesto Comunista do Marx. A criada chega e diz: «Menina, venha ver os soldados!» Como o filme saiu no princípio de 1975, toda a gente achou que aquela cena tinha sido filmada depois do 25 de Abril. Acontece que tinha sido filmada em 11 de Março de 1972. Não é um acaso. Penso que muitos de nós, em 1972, tínhamos chegado à conclusão de que só se sairia daquele regime por um golpe militar. Eu também tinha chegado a essa conclusão. Não sabia se seria um golpe militar dirigido pelo Kaúlza de Arriaga, na altura o chefe da extrema direita militar, ou se viria outra coisa mais do centro, centro‐esquerda. Mas era evidente que a Guerra Colonial não tinha solução senão por um golpe de Estado. Em 1972, eu tinha a certeza disso. Por isso introduzi offs – a chegada do exército –, mas também porque a história de Portugal está cheia de intervenções militares. É o caso dos vários movimentos monárquicos, no Norte do país, a seguir à implantação da República, para não falar das lutas liberais do século xix. Depois, foi o (...) general Sidónio Pais, que foi morto aqui na Estação do Rossio. São os cadetes do Sidónio que estão por trás do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, comandados pelo Gomes da Costa, o general que rapidamente foi posto de lado e despachado para as ilhas. Portanto, a nossa história está cheia de golpes de Estado militares. O 25 de Abril foi evidentemente um golpe de estado militar – mais um. Foi um golpe de Estado militar simpático, graças a Deus, mas foi mais um golpe de Estado."

Numa das raras instâncias duma entrevista em que as perguntas são maiores que as respostas e não há celeuma alguma, Serge Daney, em conversa com Seixas Santos, divaga pelas questões da ideologia e diz que Brandos Costumes é o "primeiro filme português, primeira frase do «Manifesto» – acho que é isso. Mas vou colocar a questão de outra forma. Sinto que os intelectuais portugueses estão a criar de forma lógica e natural um pequeno discurso de esquerdas, uma cultura de esquerdas, marxista, que hoje parece possível. Portanto, o teu filme vai estar sujeito a uma série de novas perguntas, porque as pessoas já não fazem as mesmas perguntas; estas perguntas às vezes vêm de um marxismo muito primário, como podemos ler nas críticas que fazem ao teu filme nos jornais, mas ao mesmo tempo são importantes. Perante um tema como o teu, que trata principalmente a ideologia dominante, a forma como se verbaliza, como as pessoas vivem com ela, e isso também se liga ao discurso do salazarismo, uma variante extremamente específica do fascismo, havia no geral três atitudes possíveis: ou fazer um filme sobre como as pessoas vivem contra o salazarismo, ou sobre como as pessoas vivem activamente o salazarismo; e tu escolheste a mais difícil: fazer um filme sobre como as pessoas vivem con o salazarismo. Acho que as acusações que as críticas te costumam fazer vêm sobretudo do facto de não teres tratado a primeira opção, quer dizer, a da resistência. Claro que é muito importante começar a mostrar com uma câmara que, de uma forma ou de outra, houve resistência (não necessariamente uma resistência com bandeiras, pode ser por exemplo essa resistência embrionária, como a que víamos nos camponeses de Acto da Primavera de Manoel de Oliveira). E esse filme que não se fez é o que se te exige a todo o momento. A outra opção era fazer um filme sobre a maneira como as pessoas acreditam no salazarismo, como se transformou numa mística, como alguns se transformaram nos seus ideólogos mais activos – esse é parcialmente o problema do cinema «retro» em França, as pessoas começam-se a perguntar como é que Hitler, Mussolini e Pétain foram possíveis, ou como é que a partir deles pôde surgir um movimento de massas.

"Não trataste essa questão e ninguém to pede. Esta questão tem que ver com a França e comigo. Tomaste o caminho mais complicado, em que há mais compromisso, o das pessoas que viveram durante tanto tempo com o salazarismo sem se confundir com ele, os republicanos, que hoje votariam no PS, suportando-o perfeitamente ao mesmo tempo e reproduzindo-o no núcleo familiar. Mas no teu filme está o problema do paralelismo; não correste o perigo das duas séries, da série histórica, com o Pai (com P maiúsculo), Salazar, e a série familiar com o pai (com p minúsculo); são simplesmente caminhos paralelos, são encaminhadas uma para a outra como um espelho imaginário que, apesar dessa breve frase de Marx que realmente não é mais que um apelo simbólico, não leva a lado algum. De acordo com o me entendimento esse é o principal perigo: a ficção apoia o documento e o documento apoia a ficção, como num espelho, não há uma origem. Como filmar a ideologia? É um problema do qual já falámos hoje a propósito do teu filme e do filme de Allio. Essa pergunta sempre me intrigou. Porque não se trata de «filmar a ideologia». Quando alguém toma a ideologia como tema, quer dizer, o imaginário das pessoas, a sua representação, não se obtêm resultados. Os filmes não dão, ou dão muito pouco prazer às pessoas, não atraem o espectador, e o que se pretendia ou o que se podia mostrar, não acontece. Procuro desesperadamente saber porquê. Isto leva-nos ao problema do Poder, porque quando «se filma a ideologia», filma-se tudo aquilo que é comum tanto ao dominante como ao dominado. Portanto, é impossível que alguém tente articular um discurso assim no ecrã, um discurso evidentemente alienante para ele, um discurso que participa finalmente na própria alienação. Não se acaba sempre por confundir essa pessoa com o seu discurso?"

Já João Bénard da Costa, mergulhando em Histórias do Cinema pelos filmes portugueses sobre as lutas da consciência nos tempos da ditadura, conclui que "muito mais importante é a primeira longa metragem de Alberto Seixas Santos, intitulada Brandos Costumes. Nela o protagonista era mesmo Salazar, já que toda a acção tinha como pano de fundo a figura do Chefe e a sua morte, em imagens documentais do enterro dele. E a família pequeno-burguesa do filme representava em microcosmo o País, entre a tutela do Pai (magnífico trabalho do velho actor Luís Santos, n. 1908) e a revolta dos filhos, onde avulta a interpretação de Isabel de Castro (n. 1931)*.

* Isabel de Castro é a única actriz portuguesa de carreira cinematográfica ininterrupta desde 1945, ano em que se estreou aos 14 anos num pequeno papel do filme Ladrão Precisa-se de Jorge Brum do Canto, até hoje. Muito activa em Espanha nos anos 50, a fase mais interessante da sua carreira iniciou-se em 1960, com o papel de Clara, uma das Pupilas do Senhor Reitor no filme de Perdigão Queiroga. No «cinema novo» apareceu, pela primeira vez, em Domingo à Tarde de António de Macedo (1966). Mas foi em Brandos Costumes que se revelou como grande actriz e como grande presença, continuando depois em inúmeras obras dos anos 70 e 80. É o único nome a fazer a síntese entre «os cinemas portugueses» como refere o título da homenagem que a Cinemateca Portuguesa lhe prestou em 1990: Isabel de Castro e os Cinemas Portugueses.

"Premonitoriamente, terminava o filme com um golpe militar que destruía a paz doméstica. Mas mais do que essa singular premonição – depois muito comentada – Brandos Costumes, filme do teórico mais bem preparado do novo cinema português, é uma obra que articula, com rara coerência, a instância política e a instância estética, sem qualquer concessão nem demagogia. Perpassam no filme as sombras dos grandes primitivos – dos americanos aos russos – a revisão do cinema de propaganda português (particularmente A Revolução de Maio, expressamente citada) e o rigor cénico de obras contemporâneas, desde Straub a Kramer. É um filme-ensaio, um filme-prosa, em que o jogo intelectual se sobrepõe ao emocional, mas em que os códigos são revistados com uma acutilância cultural, muito rara no cinema português, quase sempre alheio a tais asceses.

"Concluído em 1974, meses antes da Revolução, logo se verificou que as hipóteses de visto da censura eram nulas e que uma tal obra podia ser «dinamite» nas relações do Centro com os poderes. Afinal, com o 25 de Abril, serviu para dourar brasões da resistência, embora a sua estreia (em finais de 1975) tivesse sido ofuscada pelo muito que se passara entre a sua concepção e a sua apresentação."

Até Terça!

Apresentação de "Este País Não É Para Velhos", por Paulo Faria