quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Brandos Costumes (1975) de Alberto Seixas Santos



por Serge Daney e Alberto Seixas Santos

Serge Daney: Primeiro filme português, primeira frase do «Manifesto» – acho que é isso. Mas vou colocar a questão de outra forma. Sinto que os intelectuais portugueses estão a criar de forma lógica e natural um pequeno discurso de esquerdas, uma cultura de esquerdas, marxista, que hoje parece possível. Portanto, o teu filme vai estar sujeito a uma série de novas perguntas, porque as pessoas já não fazem as mesmas perguntas; estas perguntas às vezes vêm de um marxismo muito primário, como podemos ler nas críticas que fazem ao teu filme nos jornais, mas ao mesmo tempo são importantes. Perante um tema como o teu, que trata principalmente a ideologia dominante, a forma como se verbaliza, como as pessoas vivem com ela, e isso também se liga ao discurso do salazarismo, uma variante extremamente específica do fascismo, havia no geral três atitudes possíveis: ou fazer um filme sobre como as pessoas vivem contra o salazarismo, ou sobre como as pessoas vivem activamente o salazarismo; e tu escolheste a mais difícil: fazer um filme sobre como as pessoas vivem com o salazarismo. Acho que as acusações que as críticas te costumam fazer vêm sobretudo do facto de não teres tratado a primeira opção, quer dizer, a da resistência. Claro que é muito importante começar a mostrar com uma câmara que, de uma forma ou de outra, houve resistência (não necessariamente uma resistência com bandeiras, pode ser por exemplo essa resistência embrionária, como a que víamos nos camponeses de Acto da Primavera de Manoel de Oliveira). E esse filme que não se fez é o que se te exige a todo o momento. A outra opção era fazer um filme sobre a maneira como as pessoas acreditam no salazarismo, como se transformou numa mística, como alguns se transformaram nos seus ideólogos mais activos – esse é parcialmente o problema do cinema «retro» em França, as pessoas começam-se a perguntar como é que Hitler, Mussolini e Pétain foram possíveis, ou como é que a partir deles pôde surgir um movimento de massas. 

Não trataste essa questão e ninguém to pede. Esta questão tem que ver com a França e comigo. Tomaste o caminho mais complicado, em que há mais compromisso, o das pessoas que viveram durante tanto tempo com o salazarismo sem se confundir com ele, os republicanos, que hoje votariam no PS, suportando-o perfeitamente ao mesmo tempo e reproduzindo-o no núcleo familiar. Mas no teu filme está o problema do paralelismo; não correste o perigo das duas séries, da série histórica, com o Pai (com P maiúsculo), Salazar, e a série familiar com o pai (com p minúsculo); são simplesmente caminhos paralelos, são encaminhadas uma para a outra como um espelho imaginário que, apesar dessa breve frase de Marx que realmente não é mais que um apelo simbólico, não leva a lado algum. De acordo com o me entendimento esse é o principal perigo: a ficção apoia o documento e o documento apoia a ficção, como num espelho, não há uma origem. Como filmar a ideologia? É um problema do qual já falámos hoje a propósito do teu filme e do filme de Allio. Essa pergunta sempre me intrigou. Porque não se trata de «filmar a ideologia». Quando alguém toma a ideologia como tema, quer dizer, o imaginário das pessoas, a sua representação, não se obtêm resultados. Os filmes não dão, ou dão muito pouco prazer às pessoas, não atraem o espectador, e o que se pretendia ou o que se podia mostrar, não acontece. Procuro desesperadamente saber porquê. Isto leva-nos ao problema do Poder, porque quando «se filma a ideologia», filma-se tudo aquilo que é comum tanto ao dominante como ao dominado. Portanto, é impossível que alguém tente articular um discurso assim no écran, um discurso evidentemente alienante para ele, um discurso que participa finalmente na própria alienação. Não se acaba sempre por confundir essa pessoa com o seu discurso? 

Alberto Seixas Santos: Isso é importante. Mas ao mesmo tempo, a ideologia, como é um conjunto de representações, para mim poderia ser um bom material para o cinema. Tem só que ver com a minha vontade ou com a minha incompreensão, mas sou o único que nota que um dos problemas que surge no filme é que pode reforçar a imagem de Salazar no final. Este é o problema central. As pessoas mantêm uma relação complicada com ele, porque é muito difícil. 

Serge Daney: Neste sentido é interessante pensar no trabalho dos Straub, porque é um problema que se colocam constantemente. Como filmar os textos, textos que participam sempre de um poder, ainda que sejam textos literários; os Straub mostram sempre a instância do poder, esse é exactamente o tema deles. Nunca caíram na ideologia. Os Straub nunca escamotearam a questão do poder, trata-se de saber de onde vêm esses textos que as pessoas dizem, que as pessoas transportam, e em relação aos quais é preciso desmarcação e resistência, eventualmente. 

Alberto Seixas Santos: No meu filme o que me parece diferente entre Salazar e o pai da família é que um está em poder do Estado e o outro apenas no da família, e portanto também sujeito ao poder do Estado. O que sempre me impressionou foi a ausência de trabalho ideológico por parte de Salazar, nunca disse nada que não se tivesse já dito antes. 

Serge Daney: Além disso, quando se fala das pessoas coloca-se a questão do desprezo, quer dizer, a questão da relação moral com as pessoas que se põem em cena. Nada impede que alguém um pouco displicente e autoritário possa dizer diante de um filme como o de Manoel de Oliveira (Acto da Primavera), como marxista muito arrogante: «são camponeses alienados, não vale a pena mostrá-los, pelo contrário tem de se escondê-los». Para o sector dos puritanos marxistas é muito importante não mostrar o povo quando o povo está alienado. É é muito perigoso. As pessoas de esquerda (tanto em França como aqui) apresentam o povo como vitorioso e erigido, com a sua ideologia no poder, etc. Escamoteia-se totalmente essa confusão, mistura-se o povo alienado com a sua alienação. Por isso, pedir às pessoas que falem do estereótipo ou que digam o próprio texto sobre a sua alienação é importante – é preciso fazê-lo ou não se é marxista de nenhuma das maneiras; mas também é preciso preservar essa parte de resistência no momento em que falam. No final das contas isso é o que faz de Othon um filme genial, porque Othon é um texto de poder e sobre o poder; o poder é Corneille, que na França tem um sentido cultural muito forte, e o texto é dito por pessoas que lutam contra a língua francesa. Está dito de tal maneira que evita por completo que se possa deslocar essas pessoas. E além disso, pode-se desfrutar a ver os actores, com as questões da linguagem, mas no final é impossível dizer que estão alienados, que se confundem com a linguagem que transmitem. Tomemos a alegria, por exemplo: como se pode transmitir a alegria sem a confundir com as personagens alegres?... Se queres evitar que se confundam os «papéis» e os «corpos», estás obrigado a inventar una série de modificações, e aí perdes o público, o que acontece no caso dos Straub. No outro extremo da engrenagem estão os pequeno-burgueses em férias, nos acampamentos: são constantemente desprezados, etc., transmitindo sem resistência alguma os discursos mais alienados, e isso funciona. 

Alberto Seixas Santos: A propósito da ideologia que fala das pessoas, por exemplo na cena da cozinha, em que o discurso é em parte um texto de Salazar sobre os pobres, tinha pensando em continuar com o texto no momento em que a mulher ficava em silêncio, o texto continuava e ela retomava-o mais adiante. 

Serge Daney: O cinema materialista é o cinema que se interessa pela resistência dos corpos, em relação ao texto; a esse nível Manoel de Oliveira faz cinema materialista. No outro extremo está a utopia de esquerda puritana que afirma que existe uma ideologia já constituída que as pessoas podem falar, exigindo mostrar não só um povo resistente, como um povo que já possui a sua própria língua, perfeitamente constituída, a sua ideologia, os seus próprios valores, quando essa constituição não passa de um estado embrionário. Se se escamoteia essa questão da resistência é pouco provável que se possa chegar a um cinema materialista e se faça avançar a cultura popular; mas permanecer nessa fase seria pouco mais que mostrar a resistência e não fazer um cinema materialista, o que pode dar lugar a uma resistência estéril, por exemplo na relação entre uma voz e um texto. Talvez fosse bom pensar a quem se dirige esse texto. 

in «Conversa sobre Brandos Costumes», M. Revista de Cinema, nº 2/3, Fevereiro de 1977.

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