terça-feira, 27 de julho de 2021

Espelho Mágico (2005) de Manoel de Oliveira



por João Palhares

Espelho Mágico marca a última colaboração ou encontro entre o cineasta Manoel de Oliveira e a romancista Agustina Bessa-Luís. É a segunda adaptação para cinema da trilogia “O Princípio da Incerteza”, composta pelos romances Jóia de Família (2001), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003). A primeira adaptação chamou-se precisamente O Princípio da Incerteza, e dela regressam ao Espelho Ricardo Trêpa como José Luciano, “o touro azul”, e Isabel Ruth como Celsa Adelaide, a sua mãe. Regressam ainda como actores Leonor Silveira, Leonor Baldaque, Luís Miguel Cintra, Diogo Dória e João Bénard da Costa (sob o seu pseudónimo de actor, “Duarte de Almeida”), mas noutros papéis, acentuando os reflexos, os desdobramentos e as duplicações, assumidíssimos quando se constata além disso que Trêpa e Baldaque são netos de Oliveira e Bessa-Luís, respectivamente. “Descrevo isto,” disse o cineasta a Jean-Marc Lallane e a Charles Tesson dos Cahiers du Cinéma em 2002, “a presença da escritora e do cineasta no filme através dos seus netos e, ao mesmo tempo, será que deveria fazê-lo? Será isto, verdadeiramente, certo? Não sei. É isto o princípio da incerteza.” 
 
Espelho Mágico é também o negativo solar de O Princípio da Incerteza, sempre pontuado com a Dança Macabra de Camille Saint-Saëns sobre os planos de transição da bela Quinta Villa Beatriz, na Póvoa de Lanhoso. Há até uma certa leveza sedutora a atravessar todo o filme, que no entanto começa com a descrição dos últimos momentos da pena de prisão do “touro azul”, lembrança das suas paixões frustradas por Camila, dos vários conluios entre amantes e parceiros de negócios obscuros, pais interesseiros e mães desesperadas, dicotomias santas e guerreiras, entre a pureza e a podridão, a redenção num pequeno mostruário poeirento de heroínas de antanho, as máscaras vermelhas a atiçar o fogo justiceiro que se acredita poder aniquilar toda a malignidade no mundo. Diz-se que de boas intenções está o inferno cheio. Também se diz que “ce qui est terrible sur cette terre, c’est que tout le monde a ses raisons.”[1]
 
“As pessoas gostam que as aceitem como são,” diz Luciano ao irmão, comparando prisioneiros e carcereiros, “já lhes basta serem vítimas de tão má sina. Eram seres humanos. E não lhes via, assim, uma grande diferença dum para o outro. E chegava a pensar que o director coleccionava cactos para não ter que matar alguém.” Podem-se justificar assim as tonalidades primaveris deste filme, os planos de chapéus e fios de tecido ao vento, as panorâmicas verticais subjectivas sobre escadórios encantatórios, os planos de silhuetas ao pôr-do-sol, os tilintares melódicos na banda-sonora quando a enfermeira de Glória de Matos sai do quarto e se olha nos vários espelhos ou quando o Bahia de João Bénard da Costa leva a Alfreda de Leonor Silveira pelo mundo encantado do espelho mágico, as trucagens de cinema mudo, as conversas em que os actores não se olham nos olhos mas antes para um vazio e que tanto irritam alguns espectadores de filmes de Manoel de Oliveira, como irritam as declamações pouco realistas e palavrosas que abundam nas suas obras. Aqui a câmara aceita as coisas como elas se apresentam e encenam, há um ajuste e uma correspondência que nos permite entrever um mundo que transcende o facto de se dizer aos actores que olhem para determinada direcção, mas que não era palpável ou demonstrável se se não o fizesse. Um mundo, apetece dizer, parecido com o nosso. Em que um condenado inocente que conviveu com proxenetas, criminosos e assassinos incestuosos é surpreendido pelos deslumbramentos inocentes de uma mulher que pouco terá visto na vida além da sua quinta mas acredita na Nossa Senhora, que a Nossa Senhora é rica e que um dia virá ter com ela. Em que há também um prazer lúdico, artificial e construído por dar vida a esses sentimentos e a essas convicções. Em interpretar, em declamar e em ser visto. Um mundo como os mundos de Os Homens Preferem as Loiras de Howard Hawks, Rally ‘Round the Flag, Boys! de Leo McCarey, Le déjeuneur sur l’herbe de Renoir, O Gosto do Saké de Ozu ou Playtime de Jacques Tati. Um todo maior que as suas partes. Em que tudo se equipara no plano cósmico das coisas. Quem sabe? Talvez seja isso o cinema. Talvez seja isso o princípio da incerteza.

[1] Pode-se traduzir por “aquilo que é terrível nesta terra, é que toda a gente tem as suas razões.” in A Regra do Jogo de Jean Renoir.

domingo, 25 de julho de 2021

200ª sessão: dia 27 de Julho (Terça-Feira), às 19h00


Na última Terça-Feira de Julho concluímos o nosso ciclo mensal dedicado aos encontros entre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira no cinema, atingindo ainda a marca da ducentésima sessão. Portanto, resolvemos oferecer a entrada a quem quiser vir e convidámos a pianista bracarense Sofia Sarmento, que participou em Espelho Mágico, a estar presente na nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreve que "como muitos saberão, Espelho Mágico adapta livremente (ou inspira-se livremente) no romance de Agustina Bessa-Luís A Alma dos Ricos. Este [publicado em 2002], é o segundo volume da trilogia intitulada "O Princípio da Incerteza", de que foi primeiro tomo Jóia de Família [2001] e terceiro e último Os Espaços em Branco [2003]. 

"Em 2002, Oliveira adaptou ao cinema Jóia de Família, mas, em vez de manter o título, chamou ao filme O Princípio da Incerteza, ou seja escolheu para a parte o nome do todo. Nunca me convenceram muito as razões avançadas por Oliveira para sacrificar a Jóia de FamíliaFamily Jewels ("Jerry e os Seis Tios", 1965) é o título de um célebre filme de Jerry Lewis, em que ninguém viu malícias – mas também isso agora pouco importa. Porém será de destacar que, adaptando pela quarta vez um romance de Agustina, [depois de Fanny Owen/Francisca (1981), Vale Abraão (1993) e As Terras do Risco/O Convento (1995)] Oliveira culminou a sua progressiva distanciação face aos enredos de Agustina, buscando na obra dela mais pretextos do que textos, guardando, contudo, em quase todos os diálogos, a ímpar riqueza do verbo agustiniano. Espectadores mais bem informados podem dizer-me que omito três outras colaborações fundamentais de Oliveira com Agustina: Visita ou Memórias e Confissões (1982), Party (1996) e o episódio A Mãe de um Rio que integra Inquietude (1998). 

"Enganam-se: em Visita e Party foram diálogos escritos por Agustina para filmes de Oliveira sem nunca terem sido romances dela. A Mãe de um Rio é um conto e Oliveira adaptou-o, combinando-o com dois outros textos literários de índole muito diversa. 

"Bem explicado (ou mal explicado, já que a saga da intercomunicação Agustina/Oliveira nem daqui a mil anos será bem contada) chega-se pois a Espelho Mágico, título sem qualquer correspondência com o título agustiniano e ainda mais distante de A Alma dos Ricos do que O Princípio da Incerteza esteve de Jóia de Família."

Em entrevista à revista Letras de Cine, e estendendo-se sobre as diferenças entre filme e livro, Agustina Bessa-Luís disse que "(...) a narração do romance complica-se, porque a empregada dela, como vê que a protagonista está a ficar maluca e vai a caminho o manicómio, quer organizar uma aparição concreta e procurar uma rapariga na região que pudesse passar por Nossa Senhora… Para a semana que vem, no 5 de Junho, vai haver um colóquio em Lisboa com o arcebispo prelado e outros a propósito de religião para discutir o problema, e então eu decidi ir com a minha história da “Nossa Senhora Rica”. Vou levar provas, que não são concreções, mas sim lógica pura: se me ponho na pele de mãe de Jesus – que é um atrevimento e uma coisa hipotética –, quando matam o meu filho de forma tão terrível e tão humilhante, ponho toda a minha fortuna à disposição para propagar a sua Palavra. Senão como é que teria sido possível enviar por todo o Mediterrâneo os apóstolos todos sem existir um mecenas. Quando Maria morreu voltaram todos os apóstolos de todas as partes do mundo para o seu enterro, todos eles a tomavam como uma espécie de mãe da religião. Uma senhora leitora do romance disse-me que tinha lido num Apócrifo qualquer que havia romanos a proteger Jesus, isto não é de ricos?

"E neste momento estou em vias de discutir com Manoel de Oliveira o futuro desta história em cinema porque quer realmente fazê-la. Ele diz que é um tema muito delicado, que não é possível, e quer mudar isto tudo, pretende praticamente tirar a Virgem da historia e fazer algo que não tem nada a ver. E eu acho que tudo se deve ao facto de ter um mentor que é um padre. O Manoel está sempre com ele e deixa-se aconselhar. Não há dúvida que é um guião muito complicado, mas eu quero falar muito a sério com Manoel de Oliveira. Ele persegue-me pelo bairro, e quer-se explicar, también liga para casa e fala mais disso com a minha filha do que comigo. Mas eu digo-lhe: falo contigo sozinho se o padre estiver presente. Eu rio-me, mas enquanto que a história parece muito engraçada, também é muito dramática. E aqui têm a minha última ligação com Manoel de Oliveira, que irá certamente para a frente apesar dos atritos. Acho que ele está muito descontente com o assunto. Por sinal, o romance chama-se A Alma dos Ricos e o Manoel já me começa a contradizer começando com o título, quer chamar-lhe O Espelho Mágico, que não tem nada a ver, que coisa mais pirosa, nem se fosse a Alice no País das Maravilhas, e ainda por cima no guião a senhora acaba por cair em estado de coma, não sei se o Manoel se terá lembrado do Fala com Ela… Além disso escreveu pela primeira vez o guião inteiro sem colaborar com ninguém, o que para ele – que quer controlar tudo - é algo muito importante. Eu teria gostado de ajudar mas ele não aceita conselhos. Em Portugal houve uma controvérsia, um jovem jornalista de um jornal declarou que é o melhor amigo de Oliveira, um professor da Universidade, quem lhe escreve os guiões e o Manoel ficou desesperado, e foi tudo interpretado como se fosse o próprio amigo a afirmá-lo, quando foi o jornalista que o escreveu."

Dando a sua perspectiva sobre o assunto numa pequena entrevista em vídeo de 2005, ano da estreia do filme, Manoel de Oliveira declara que "o Espelho baseia-se, ou é inspirado, no romance da Agustina Bessa-Luís que se chama A Alma dos Ricos, e eu mudei para Espelho Mágico. Ela não ficou satisfeita e disse, «ó Manoel, eu não quero lá o meu nome nesse filme. Não quero.» «Está descansada, não se faz o filme.» E depois, mais tarde - eu não expliquei mais nada, não valia a pena - e mais tarde ela disse - veio cá e tal - «ó Manoel, você realmente se quiser fazer A Alma dos Ricos, pode fazer, mas só com uma condição: põe "inspirado na Alma dos Ricos".» E eu disse, «melhor, para mim muito melhor. "Inspirado na Alma dos Ricos".» Simplesmente, o filme principiava logo por fazer uma evocação daquelas meninas da escola em Vila do Conde, e como a minha deontologia cinematográfica de hoje não pode filmar o que se passa hoje a ver o que se passou ontem, era o contrário ao meu critério cinematográfico desta altura, porque antes tinha pensado doutra forma. E foi por isso que eu mudei para Espelho Mágico, não foi por outra razão, porque assim havia a magia do espelho que só representava o que ela tinha passado, imaginado antes. É por isso que ficou com Espelho Mágico, continuando a ser A Alma dos Ricos. Porque "a alma dos ricos" quer mais aparecer ao lado de Nossa Senhora do que a Nossa Senhora apareça ao seu lado. É assim o que eu julgo que a Agustina quer dizer com "a alma dos ricos", lá no filme."

Até Terça!

terça-feira, 20 de julho de 2021

O Princípio da Incerteza (2002) de Manoel de Oliveira



por André Miranda

Perto já do final de O Princípio da Incerteza, quando já tudo se precipita com a calma inexorável das águas do rio observadas a partir da janela do comboio, a criada dos irmãos Roper diz a Camila: “Eu também gosto muito de ouvir a senhora. Mas nem tudo o que a senhora diz eu compreendo bem.” Ao que Camila responde: “Não é preciso compreender, basta ouvir.” Mas recuemos ao início, às palavras que trocam os irmãos Roper, Daniel e Torcato, enquanto observam o rio Douro e o barco de turismo que, sob a chuva, vai vazio; Torcato aproveita para, por entre comentários sobre o tempo, elaborar uma frase de uma eloquência cuidada: “Esses mísseis e essas explosões que estão agora em moda alteraram as condições meteorológicas.” O mesmo Torcato será o autor da seguinte afirmação: “As mulheres são como as alcachofras, cujo coração sabe bem e é comestível.” 
 
Joana d’Arc, como todos sabem é uma santa e mártir francesa; impelida por visões divinas, de arcanjos e santos que com ela comunicavam (ou assim ela dizia) pegou em armas e liderou o exército francês sobre os ingleses; mais tarde é capturada por estes e levada a julgamento: confirmada a sua heresia, com apenas 19 anos é condenada à morte na fogueira, tal como manda a fé no que a heréticos diz respeito. A Nossa Senhora, por outro lado, é conhecida por ser mãe de Jesus. Não se lhe conhecem aventuras com qualquer tipo de objeto cortante. É também conhecida por Virgem Maria, pois, ao que parece, Jesus resulta de conceção imaculada; no entanto, tendo em conta o sucedido a Joana d’Arc, não poria as minhas mãos no fogo por tal facto. Mas a que propósito vem tanta palavra gasta com religião? Camila, figura central de toda a trama, é comparada a ambas. À Virgem Maria por Celsa, que vê nela inocência, pureza e santidade. A Joana d’Arc pelo Daniel Roper: “Camila faz-me lembrar Joana d’Arc, guerreira e mártir”. Camila é alvo de adoração, obsessão, amor, repúdio, é tema de conversa geral; todos a tentam decifrar. No entanto, ela é a que melhor diz sobre ela mesmo: “Nem uma coisa, nem outra” 

É, pois, sob Camila que tudo gira. Quando Celsa lhe adivinha a divindade decide casar Camila com António Clara, também conhecido como Cravo Roxo, jovem dono de rica quinta, e a quem Celsa adora como se um filho fosse. Urde então com os irmãos Roper um malévolo plano para que esse casamento se concretize. Depois de um jantar sumptuoso em que a questão é aflorada de forma pouco subtil, como é apanágio dos irmãos, estes dirigem-se à degradada casa de Camila, onde vive com os pais, outrora família rica, mas cuja fortuna foi-se esvaindo nas mesas de jogo do Casino da Póvoa pela figura paternal, interpretada por João Bénard da Costa. O pai e os Roper chegam a um entendimento e o casamento acontecerá. Camila sente-se feliz; pela possibilidade de reerguer-se da pobreza, tanto ela como os seus. Também, quem sabe, não seja a última chance de parar a decadência de toda uma classe social que aos poucos vê a sua influência e poder esboroar-se como pedra que pelo rio e o tempo se faz areia. 

Mas é um casamento que nunca se faz feliz, pois em cena já existe Vanessa. Esta surge na vida de Cravo Roxo pela mão de Luciano, filho de Celsa e conhecido como Touro Azul, Vanessa e Touro Azul partilham negócios: são sócios em várias casas de alterne de reputado furor. Depressa Vanessa se imiscui na vida de Cravo Roxo: numa viagem a Itália, este não só leva consigo a amante como também a esposa, conjugação deveras peculiar. E a partir daí a sua presença é constante, apesar de não omnipresente, afinal ainda existem coisas que só a Deus pertencem. A última chance depressa desmorona e o que fora nunca mais voltará a ser. 

“Olhe, Celsa, nem semente de sésamo, nem semente de tabaco, só a semente do homem.”

sábado, 17 de julho de 2021

199ª sessão: dia 20 de Julho (Terça-Feira), às 19h00


Em 2001, Agustina Bessa-Luís iniciou uma trilogia de romances com o livro Jóia de Família, a que se acrescentariam nos anos seguintes A Alma dos Ricos e Os espaços em Branco. O nome com que baptizou a sua trilogia foi "O Princípio da Incerteza", como o enunciado quântico de Werner Heisenberg. Foi também esse o nome que Manoel de Oliveira deu à sua adaptação de Jóia de Família e que será a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Num artigo escrito para o jornal Libération por ocasião da morte da escritora, Camille Nevers aborda a sua obra e a parceria com o cineasta, argumentando que "a palavra em Oliveira é mais que um elemento natural e mais que um tema, mesmo mais que uma personagem de direito pleno - mas sim a matéria simultaneamente muito concreta (as palavras) e intangível (o sentido) a partir da qual se molda a mise en scène, como argila. A palavra e a sua forma, os seus cânones e as suas normas, a sua etiqueta, que bastaria portanto ao cinema distorcer, triturar, até a «fazer tossir». Isto explica mais ou menos a experiência da colaboração um bocado louca e muito brilhante entre Bessa-Luís e Oliveira. Ele encontrou com ela o que aperfeiçoar essa inclinação para os «contos discretos da burguesia», uma bússola e até o Norte, instigado por esse diálogo infinito, pela ficção sonhadora e elaborada ao mesmo tempo, pelo trágico e pela ironia profunda do sentido da vida, do amor, de Deus, de um lugar a assumir e das classes sociais. De Francisca a Espelho Mágico, passando pelos esplendores absolutos de Vale Abraão e de O Princípio da Incerteza, ou pelas divagações em espiral e arabescos do Convento, de Inquietude, de Party, a quintessência romanesca, feminina, amorosa e sensual de Oliveira está lá contida. A adaptação parece ser a contra-senha entre a mulher de letras e o homem de cinema, criação de abordagem oblíqua perpétua lenta. Um mesmo gosto pelos interiores inebriantes, a natureza, e as cintilações dos espelhos, os reflexos da água, pelo esplendor do indirecto. Pelo mistério não revelado e pelos enigmas sem chave. O livro mais reputado de Agustina Bessa-Luís não se chama A Sibila por acaso. Em 2003, ela confidenciou à revista Letras de cine : «Nós atravessamos as nossas vidas muito faladores a propósito de coisas insignificantes e muito silenciosos sobre aquilo que nos faz medo.» Carácter forte tal como aparece numa sequência sentada de Porto da Minha Infância, ela era tão teimosa como ele."

Em entrevista a Jean-Marc Lallane e Charles Tesson para o número 571 dos Cahiers du Cinéma, em 2002, Manoel de Oliveira disse que "Leonor Baldaque, que interpreta Camila, é neta de Agustina Bessa-Luís. A escritora, que escreveu o romance, pode assim ver-se no filme através da sua neta. E encontramos qualquer coisa da avó na maneira como a neta está presente no écran. Alguma coisa, creio eu, de que ela não gostava muito nela própria e que, no entanto, era verdadeiramente ela. Do mesmo modo, Touro Azul é interpretado pelo meu neto, Ricardo Trêpa. Neste filme quis que ele tivesse muitas semelhanças comigo quando tinha a sua idade. É um rapaz desportivo, vigoroso, que faz corridas de automóveis. Descrevo isto, a presença da escritora e do cineasta no filme através dos seus netos e, ao mesmo tempo, será que deveria fazê-lo? Será isto, verdadeiramente, certo? Não sei. É isto o princípio da incerteza."

Já Maria João Madeira, na sua folha da Cinemateca sobre o filme, convida-nos a ir "aos dados, adquiridos ou não: sendo uma adaptação do primeiro volume de uma trilogia de Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza toma o nome da série – o romance intitula-se Jóia de Família e do seguinte, A Alma dos Ricos, Oliveira realizou Espelho Mágico – e marca o regresso de Oliveira à colaboração com Agustina, aos cenários do Douro e à aristocracia em ruínas do Norte de Vale Abraão (curiosamente houve quem visse no filme “o remake negro de Vale Abraão”). Entre os dois “filmes da incerteza”, Oliveira filmou Um Filme Falado, a partir de um argumento original seu e O Quinto Império – Ontem como Hoje, a partir de José Régio. O romance de Agustina foi escrito tendo em conta os actores previamente escolhidos por Oliveira para interpretarem as perso- nagens. Os capítulos anteriores resultantes do par Agustina-Oliveira começaram, como se sabe, por Francisca, a partir de Fanny Owen (1981) e pela Visita ou Memórias e Confissões (realizado em 1982 para ser divulgado como filme póstumo), sendo a colaboração retomada em Vale Abraão, a que se seguiu O Convento, a partir das Terras do Risco, Party, argumento de Oliveira com diálogos de Agustina, e Inquietude, a partir de A Mãe de Um Rio. Depois, Oliveira dedicou-se a A Carta, Palavra e Utopia, Vou para Casa e Porto da Minha Infância. O par voltou a juntar-se neste O Princípio da Incerteza e uma coisa é certa, tão certa como transparente: este filme, tão improvável ele próprio, só podia ter vindo deles os dois. 

"De que se ocupa O Princípio da Incerteza? O tema, motivos e personagens assentam na exposição da ideia da decadência de princípios e de costumes, sendo esta construída à volta de uma teia de relações de força e ambições mantidas entre personagens de psicologias vertiginosas marcadas, também elas, por questões de linhagem (e da falta dela). No fundo, diz-se a dada altura, “Portugal tornou-se uma casa de lotaria”. Nesta “casa de lotaria”, em que a antiga ordem social se desmorona e a ralé ascende ao seu lugar, há espaço para fazer conviver mundos tão distintos como aqueles de onde vêm Camila e Vanessa, António Clara, também conhecido como Cravo Roxo, e José Luciano, o Touro Azul. No centro do enredo, um outro par, Da Rute, a mãe da casa da família rica e Celsa, a criada, que na discrição da sua condição faz mover os cordelinhos. A trama é romanesca, os condimentos não dispensam as questões de casta, casamentos arranjados, conveniências sociais, traições, rivalidades, mas a “line” mais conhecida de Francisca, “a alma é um vício”, só pode aqui ecoar numa tirada mais dura, “isso da alma é uma quimera”. Quem o diz é Vanessa, a dona das casas de alterne que ocupa um escandaloso lugar na casa e na vida de Camila, esta última porventura a mais indecifrável de todos, aquela que na mansidão de uma atitude ostensivamente submissa (“sim, sou uma escrava”) vai assumindo uma posição cada vez mais voraz em relação a todos os outros. Por outro lado, menos essencialmente atento à intriga e aos seus sucessivos factos do que aos subterrâneos desígnios que se constituem como móbeis de uns e de outros, o ponto de O Princípio da Incerteza está justamente condensado neste título."

Até Terça-Feira!

terça-feira, 13 de julho de 2021

Inquietude (1998) de Manoel de Oliveira



por Alexandra Barros

Inquietude é construído a partir de três obras: a peça de teatro Os Imortais de Prista Monteiro, a novela Suzy de António Patrício e o conto A Mãe de Um Rio de Agustina Bessa-Luís.

Um médico-investigador, outrora famoso e estimado, vive angustiado com o esquecimento e irrelevância actuais. O seu filho, médico e investigador também, atingiu já o auge da sua carreira e vive actualmente o seu grande momento de glória. Para que o filho não tenha um destino igual ao seu, o pai tenta convencê-lo a suicidar-se, mas ele recusa. Dedicou a vida ao trabalho e agora quer viver: viajar, ir ao teatro, fazer com uma senhora bonita “tudo o que fazem os jovens”. Porém tudo isso são ilusões, está demasiado velho, especialmente para mulheres, para as quais só lhe resta olhar, diz o pai. A única recompensa possível para os seus sacrifícios é perdurar na memória colectiva através daquilo que mais impressiona as massas: a morte. O pai vê-se obrigado a resolver o assunto pelas próprias mãos e não hesita: “Um imortal não morre.” Cai o pano. Entre o público que vai ao teatro tanto para ver e ser visto como (ou mais que) para ver a peça estão dois amigos que, durante os aplausos finais, se encantam por duas mulheres que avistam num camarote vizinho, Suzy e Gabi. 
 
Um dos amigos, o narrador desta nova história, apaixona-se por Suzy, mulher de muitos homens, por ela silenciosamente desprezados, como confessa ao seu amante especial, o único com quem pode ser ela mesmo. Suzy é uma mulher triste, apesar de ter tudo o que sempre quis: homens ricos que a adulam, automóveis, vestidos das melhores modistas, jóias. “Tudo menos a felicidade.”, nota o amante amado. “A felicidade c’est un détail.” responde Suzy. “Parece-me que nasci para isto. Sofro [o horror, o nojo, a humilhação] como se não houvesse destino melhor. Com a volúpia de um sacrifício.” Suzy morre durante uma operação cirúrgica e para arrancar o apaixonado à sua desolação, o amigo conta-lhe a história de Fisalina. “O que tem a ver com Suzy?” / “Tem e não tem. A vida é um mistério. Lá no fundo tudo se liga. [...] É desse enigma que nos fala a Mãe de Um Rio.”

Incapaz de aceitar a vida que lhe querem impor, Fisalina dispõe-se perante a Mãe de Um Rio a trocar o seu destino por um outro, mesmo que amaldiçoado. De filha presa numa aldeia que a sufoca torna-se então mãe de um rio que lhe nasce aos pés, libertando a anterior Mãe. “Os vigilantes do espírito humano devem ser rendidos e as águas da sabedoria devem ser habitadas por novos mestres”, diz a Mãe de Um Rio, que aprendeu com a natureza aquilo que uma vida de estudo académico não ensinou aos dois afamados cientistas: a aceitação dos ciclos da vida. Nunca nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio. Fisalina não pode voltar nem para o seu apaixonado nem para a sua comunidade por causa dos novos dedos de ouro, que a fascinam, mas simultaneamente a denunciam. Uma solidão de mil anos é o preço que tem que pagar por eles e pela sua libertação. 
 
Tanto Suzy como Fisalina se colocam à margem das convenções sociais e são renegadas pela sociedade, mas isso pouco importa. “C’est un détail.” Para elas, executar as missões a que se sentem destinadas é o que dá sentido às suas vidas. Esse espírito de missão é o único gozo que têm, por ele renunciam a tudo o resto, por ele sofrem com prazer. 
 
Habilmente interligadas pela estrutura narrativa, as três histórias têm em comum personagens que se debatem com as questões: “Para quê viver?”, “Como viver?”. Quando não encontram saída para situações insuportáveis, a angústia existencial empurra os protagonistas para soluções em que são obrigados a renunciar a bens tão preciosos como a vida, a felicidade e o amor. 

Inquietude é forte nos textos e nas imagens. As (belas-)artes das primeiras duas partes cedem o lugar à beleza da natureza, das construções vernaculares e dos rituais rurais ancestrais, na terceira parte. Entre os cenários e as personagens há sempre fortes associações visuais. O pai e (em breve) o filho da tragi-comédia inicial são tão relíquia de outros tempos como os objectos decorativos e antiguidades que os rodeiam, embora os representados nas estatuetas, pinturas e fotografias que os cercam não envelheçam, ao contrário deles. No romance trágico da segunda parte, a própria casa de Suzy é uma obra de arte e Suzy, cuja beleza excede a dos frescos das paredes, nelas por vezes parece estar pintada. No realismo mágico da terceira parte, da sombra das árvores emerge um rosto e umas mãos que seguram um galho com pequeninas flores malvas, mas o corpo da Mãe de Um Rio é indistinguível da escuridão. 
 
Na última história são muitas as imagens que ficam impressas na memória: a aldeia labiríntica, ruas e casas construídas com a mesma pedra, uma entidade única, uma grande casa em que Fisalina está presa; a escuridão que rodeia a Mãe do Rio cortada pela cor das flores que carrega ou pela natureza verde vibrante que a janela da sua casa sombria enquadra; o túnel subterrâneo onde a Mãe de Um Rio transmite a sua missão e os dedos de ouro a Fisalina; a procissão do Senhor Morto, pontuada pelas chamas das velas transportadas pelas mulheres e depois essas mesmas chamas a perseguir Fisalina, flutuando “sozinhas” na escuridão absoluta.  
 
Imagens que existem por causa de uma outra, mas mesma, inquietude. No texto de apresentação do ciclo “Manoel de Oliveira, O Visível e o Invisível”, que a Cinemateca dedicou ao realizador em 2018, pode ler-se: 
 
E a alma o que é?”/“A alma é um vício.” O vício que todos os filmes de Oliveira perseguem, afirmou João Bénard da Costa a partir deste extraordinário diálogo de Francisca.

sábado, 10 de julho de 2021

198ª sessão: dia 13 de Julho (Terça-Feira), às 19h00


Filme em três episódios, baseado na peça de teatro Os Imortais de Prista Monteiro e nos contos Suzy de António Patrício e A Mãe de um Rio da nossa Agustina Bessa-Luís, Inquietude é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em 2006, o Instituto Italiano de Cultura em Portugal recolheu um testemunho de Agustina sobre Manoel de Oliveira, em que a romancista diz que "não se apresenta ninguém que não se possa representar. Eu estou nesta infeliz situação que é falar de quem muito se fala. Uns dirão das minhas pretensões, outros acrescentam decerto que sou de razões destemidas. A inveja, que a tudo se mistura, até ao mais sincero amor, dirá que, se tenho bri­lho, não tenho direitos que o fazer valer neste assunto do cinema e do mestre em realizá­-lo, e encontrar­-lhes os efei­tos e a função própria. A função própria do cinema é apai­xonar. Outras artes são mais medidas pela meditação. Mas tudo que é visual encontra logo o coração das pessoas e as faz comover e sonhar. 

"Manoel de oliveira é um visionário. o seu lado obscuro desconcerta; o seu lado grave converte­-se em humor para não ser apercebido. Eu aparento Manoel de Oliveira àqueles poetas saudosos que tivemos; Bernardim foi um deles, outro o cavaleiro Francisco Manoel de Melo. Vou dizer porquê. Porque em todos há mais uma determinação de fazer obra sua, do que voz do mundo. E fazer das histórias fatais, pere­grinas fantasias. A morte de Fanny Owen, por exemplo, tem o mesmo carácter de solidão que se encontra na morte de Ana Arfet nos lugares ainda desconhecidos da ilha da Ma­deira. O desgraçado amante que ali a levou por desgraçada aventura, abraça-­se aos pés dela que já a morte arrefece. E também Francisca deixa descobrir no pé descalço e que o lençol mortuário põe a nu, deixa descobrir o último limite da desilusão. E a saudade instala­-se onde a vida acaba."

Luiz Carlos Oliveira, Jr. escreveu sobre o filme para a revista brasileira Contracampo em 2004, defendendo que "no cinema, já disse Jean Louis Schefer, o mais decisivo não é o movimento, a mobilidade geral do mundo, "mas a inquietude acrescida a esse movimento" (cf. L’Homme ordinaire du cinéma, livro publicado na França em 1980). Mais do que espectadores dos objetos que se movem, somos conhecedores de sua morte premeditada pela imagem. É um pouco como a chama de uma vela, que desfruta tal brilho e tal intensidade, mas que em algum momento, consumido seu suporte, se apaga. Essa chama pode muito bem ser aquela com que brinca Fisalina (Leonor Baldaque, doce e bela como sempre), protagonista da terceira e última parte de Inquietude: ela passa seus "dedos de ouro" sobre a chama da vela, tomando intimidade com a natureza - através de um dos "quatro elementos fundamentais" - e prenunciando seu próprio destino, que é a desaparição. O que fica claro no filme de Manoel de Oliveira, contudo, é que a desaparição implica necessariamente uma contrapartida, ou seja, a aparição de alguma outra coisa no lugar daquilo que se foi. Sai tristeza, entra felicidade - e a recíproca é verdadeira. O que sumiu, por sua vez, também não se resume ao vazio: quem desaparece de um pólo, emerge no outro. Fisalina desaparece para uma parte do mundo (a saber, a aldeia a que pertencia), mas surge inteira para seu novo habitat, junto à relva, junto aos rios (que são a melhor expressão do fluxo, da vida que se refaz constantemente ao invés de se imobilizar). Da mesma forma, o pai insiste com o filho para que este se suicide, já nos primeiros minutos de filme, pois essa é a única forma de se imortalizar (sair da vida e entrar na História). Na ótica do pai, cientista ultrapassado pela própria ciência, somente saindo da vida no auge da notoriedade, e antes do esquecimento, seu filho poderá eternizar-se. A ciência vive do amanhã, mas os cientistas morrem um dia, ou enfrentam suas limitações - e as de suas teorias - mesmo em vida. 

"Apesar de começar sob o peso amargo (e visto de forma tragicômica) do esquecimento, Inquietude aos poucos se revela um fascinado cultivo da memória. Ou, valorizando seu potencial filosófico, o filme constitui um excelente ensaio sobre a duração (dos corpos, dos sentimentos, do cinema, da vida). São três histórias com perfeita ductilidade entre si, uma puxando a outra e confrontando diversas camadas (não apenas narrativas, mas também fotográficas e cenográficas). Ao início e ao fim encontram-se os lamentos dos esquecidos (o velho cientista, a antiga mãe do rio), mas no meio existe a revelação - na esteira da tentativa sempre frustrada de engessar o amor, de reter sua virtual transformação - de que é preciso preencher o tempo com ações, de modo a fazer do próprio presente a eternidade (inalcançável enquanto meta idealizada). Ritualizados ou não, os gestos - que, em última análise, criam o tempo (porquanto dão sua impressão) - devem mover a vida para frente, apreender a passagem do tempo como um acúmulo de tesouros pessoais, a memória sendo uma espécie de caixa de ferramentas do presente. É talvez por isso que, jovial e elegante, o nonagenário Manoel de Oliveira aparece esbanjando vivacidade ao protagonizar uma dança (acompanhado, naturalmente), ratificando a idéia de que somos tão mais vivos quanto mais soubermos aproveitar o tempo."

Já João Bénard da Costa, em Pedra de Toque - O Dito Eterno Feminino na obra de Manoel de Oliveira, publicado originalmente no catálogo dedicado ao cineasta pelo Festival de Cinema de Turim, escreve a páginas tantas do seu estudo que "com Inquietude, filme seguinte (1998), Oliveira regressou a uma origem narrativamente «estilhaçada», como a que seguira em Mon Cas ou em A Divina Comédia. Mas se, nesses filmes, as diversas fontes eram subsumidas numa narração una, como já sublinhei, em Inquietude são adaptadas três histórias quase como três episódios: a peça de teatro Os Imortais de Prista Monteiro (1922-1994)*, o conto Suzy do escritor simbolista António Patrício (1878-1930) e o conto A Mãe de um Rio de Agustina.

*Prista Monteiro foi também o autor da peça A Caixa, que Oliveira levou ao cinema em 1994.

"Só que essas três histórias são convertidas a um ponto de vista único, por uma hábil fusão, a meio do filme. Este começa com a primeira «história» (a de Prista Monteiro) sem que nada denuncie a sua origem teatral. De certo modo, e sob a figura da irrisão, essa história parece prolongar a meditação sobre a velhice iniciada (ou pelo menos aprofundada) a partir da Viagem ao Princípio do Mundo. Mas, no termo dela, o espectador descobre que o que viu e ouviu era uma peça de teatro, representada numa «cena à italiana» (cai a cortina, ouvem-se os aplausos) para uma assistência de que emergem os dois protagonistas masculinos da segunda história, a de António Patrício. Não é só uma brilhante passagem da primeira à segunda história. Não é - ainda menos - o surpreendente anacronismo de mostrar gente dos anos 20 - tempo do conto de Patrício - a assistir a uma peça teatral escrita nos anos 70. Ora, indubitavelmente, como a segunda e a terceira história esclarecerão, o ponto de vista é o de Suzy (mais uma vez Leonor Silveira) fulcro do filme e não só do episódio de que é protagonista. O ponto de vista em Inquietude - o que faz, em sentido literal, raccord ao eixo - é a imagem da mulher jovem, essa mulher que, em retrato, ocupa sempre a mesma posição ao longo do filme. O olhar sobre Inquietude é um olhar feminino e o filme é, de novo, um filme sobre o mistério da mulher e a impotência masculina face a ela. Terminada a história de Suzy («Pobre Suzy», prostituta de luxo que no mundo dos prazeres se consumiu) o ouvinte dela conta a história da «pobre Fisalina», da Mãe de um Rio de Agustina.

"Essa mulher que «goza, goza, goza» e para quem tudo «ce n'est qu'un détail» é a mais volátil e a mais «ophulsiana» das visões femininas de Oliveira. Perde todos os homens e perde-se por todos os homens. Traspassando do amor para a morte, puxando fumaças da sua boquilha de ouro, tão marcada como a Fisalina do conto de Agustina, a quem os dedos se transformam em ouro, vive, como ela, uma história de amor, que sugere «destruição, calamidade e princípio» (Agustina).

Até Terça!

terça-feira, 6 de julho de 2021

Vale Abraão (1993) de Manoel de Oliveira



por João Palhares

Manoel de Oliveira chegou a Agustina Bessa-Luís por via de Camilo Castelo Branco, no projecto que realizou três anos depois da consagração ainda hoje difamada e deserdada do seu Amor de Perdição, filme demencial e inclassificável em que a fidelidade absoluta à palavra escrita gerava imagens e mundos novos que as transcendiam e transformavam em cinema. O projecto chamou-se Francisca e era uma adaptação de Fanny Owen, romance de Agustina publicado em 1979. Contava a estória dos estranhos amores de José Augusto e a inglesa Fanny Owen, também descritos nas páginas redigidas a sangue de Camilo, que é personagem tanto no romance como no filme. Daí em diante, Agustina escreveu diálogos para Party e para Visita ou Memórias e Confissões (filmado em 1982 mas estreado apenas depois da morte do realizador, por sua vontade), tendo Oliveira adaptado mais alguns dos seus livros e histórias, como As Terras do Risco (em O Convento), A Mãe de um Rio (em Inquietude), Jóia de Família (em O Princípio da Incerteza), A Alma dos Ricos (em Espelho Mágico) e, claro, Vale Abraão (no filme homónimo). 

Esta colaboração nascida por interesses, temas e obsessões comuns foi muito mistificada tanto pela parte do cineasta como da romancista, ao longo dos anos, podendo-se às vezes apenas supor como terão começado alguns dos seus projectos a dois. Sabe-se que houve colaborações frustradas, como O Convento. A romancista amarantina estava a demorar demasiado tempo a escrever para as necessidades imediatas e muito cinematográficas do cineasta portuense e este pediu que ela lhe resumisse a estória, escrevendo ele próprio o guião. Agustina não gostou nada do resultado e não quis ter nada que ver com esse filme. Fizeram as pazes com Party, para o qual a romancista escreveu os diálogos. Sabe-se que apesar de tudo aquilo que os aproximava, seguiam sempre em direcções diferentes. Alimentavam-se das ideias um do outro, podendo estar pronto primeiro o livro dela ou o filme dele, servindo-se mutuamente durante o processo de gestação. Sem nos alongarmos demasiado nestas questões, e também porque gostamos de algum mistério, damos a palavra a Manoel de Oliveira, conciso e prosaico como todos os homens do século XX: “Agustina fez o seu livro e eu fiz o meu filme.” 

***

Vale Abraão, o filme, continua a ser a enorme maravilha que sempre foi, um espelho encantado dos nossos sonhos, ilusões, desejos e angústias, revelação de um dos mais belos rostos femininos de toda a história do cinema, compêndio de elipses cósmicas urdidas por um rio que corre e que fica, como o passado vivo que não passa de William Faulkner, épico sobre as prisões do amor e as liberdades do desejo, sobre a impossibilidade de dois serem um na comunhão espiritual do ser andrógino fundador de Platão, com planos estranhos de lavadeiras a rasgar uma estrada ladeada por palmeiras, Isabel Ruth a esmagar roupa húmida na pedra como se o fizesse desde o início dos tempos, Isabel de Castro a aparecer para fumar um cigarro pelo tempo que se demora a fumar um cigarro, e o rio corre e não passa, ouve-se o ranger de tábuas de madeira no chão ao mais fino toque dos pés como um som levemente familiar e que reaviva memórias felizes ou dolorosas, olha-se para as coisas e elas surgem noutros planos com outros significados ao som de uma voz que se confunde com o próprio pensamento, em fluxo de consciência, melodias lunares e árias solares que acompanham as elevações e os abismos da alma, apontamentos sobre a decadência da aristocracia, o fim dos tempos e a fibra dos homens, proferidos em conversas que se prolongam pela noite fora, passeios à luz das velas por corredores sombrios à espera que se abra uma porta com uma pequena redenção, a classe alta e a classe baixa, os entendimentos tácitos que impedem que o equilíbrio desabe num ímpeto justo e apaixonado, a candura no gesto de uma mulher que sai do carro a coxear para ir colher uma flor e entregá-la à pessoa de quem mais gostou em vida antes de se atirar aos braços da morte, para o leito de um rio que até aí observou tudo sem fazer julgamentos e no final lhe servirá de morada eterna, como para todos os românticos que almejaram um dia a felicidade absoluta e o regresso a um paraíso perdido de que ouviram rumores por instantes numa ida ao Vesúvio, talvez a única forma de fazer com que certas coisas passem mesmo e se tornem passado ausente nas margens íngremes e sedutoras do Vale de Abraão.

domingo, 4 de julho de 2021

197ª sessão: dia 6 de Julho (Terça-Feira), às 19h00


A magia encantatória e mitológica do nosso Rio Douro talvez só tenha sido verdadeiramente apreendida no cinema pelos portuenses Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, através de obras como O Rio do Ouro (1998), Douro - Faina Fluvial (1931) e Vale Abraão (1993), filme maravilhoso e imprescindível que será a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Explicando a diferença entre durações das duas versões do filme, em depoimento escrito em 1998 aquando da edição em DVD, Oliveira disse que "A versão integral deste filme foi posteriormente encurtada por circunstâncias exteriores à sua construção original. Para que pudesse ser apresentado a concurso no Festival de Cannes, foi imposto ao produtor que o filme não podia ultrapassar, em tempo, um máximo de 2h50. Tentando satisfazer a vontade do produtor, para reduzir o tempo do filme, vi que podia suprimir quatro cenas sem perturbar a compreensão geral da história, pensando que assim ficaria dentro das 2h50 exigidas. Mas não. Depois da redução ficou ainda com 3h10, o que impediu de figurar na competição oficial. Já não era possível maior redução sem grave prejuízo da sua estrutura e não havia tempo para retornar à sua primeira forma. Sob tais manobras, a versão encurtada foi parar à Quinzena dos Realizadores, o que aliás, de certo modo me agradava, por saber que era onde acorriam os cinéfilos mais amantes dum cinema diferente. Entretanto, retomei as partes retiradas por entender que eram de facto necessárias para uma compreensão, não da história propriamente dita, mas para uma melhor definição das personagens, em especial do Carlos, para o conhecimento da sua primeira mulher, que se não vê na versão encurtada, e para um melhor entendimento do ambiente social que envolve os personagens e onde se desenrola o drama."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "no princípio de Fanny Owen (o romance que esteve na base do filme Francisca) Agustina Bessa-Luís escreveu: “O rio Douro não teve cantores. Teve-os o Mondego e o Tejo também. [...] O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorgeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados”. 

"No entanto, esse “rio majestoso como não há outro”, esse rio que “entra em Portugal à má cara” (continuo a recitar Agustina), encharcou as melhores páginas da literatura portuguesa. Camilo, Pascoaes, Agustina. À excepção de alguns “romances históricos” (Sebastião José, Florbela, A Quinta Essência, etc.), todo o mundo dela é fechado pelo Douro e os homens e mulheres de Agustina nunca tiveram outra categoria como origem, referência ou destino. O Douro é, também, o rio do nosso cinema: Douro - Faina Fluvial (1931), Aniki-Bóbó (1942), Francisca (1981), Vale Abraão, ou o filme de Paulo Rocha precisamente chamado O Rio do Ouro (1998). E estes cinco filmes são tão fechados por ele como os romances de Agustina."

Em Algumas notas sobre a recepção em França da obra de Manoel de Oliveira (in «Revista Camões» nº12/13), e discorrendo sobre números de espectadores e recepção crítica à obra do cineasta, Jacques Lemière escreve que "Vale Abraão, alargou ainda mais o círculo. Como dissemos anteriormente, este filme teve mais de 55 000 bilhetes vendidos, e bateu o recorde de menções na imprensa francesa, de todos os filmes de Manoel de Oliveira (é possível recensear o dobro das menções de Amor de Perdição). Vemos que o fenómeno da adesão dos jovens, já presente em Non, se vai amplificando: jovens espectadores e jovens críticos também, ignorando, ainda, o papel pioneiro da obra e da tetralogia denominada «dos amores frustrados» (O Passado e o Presente, Benilde, Amor de Perdição, Francisca). Sem dúvida o tema de Madame Bovary, que inspirou o romance de Agustina Bessa-Luís e o guião escrito por Oliveira, tiveram um papel importante no processo de aceitação do filme, servido cinematograficamente pela dupla deslocalização no espaço (a região do Douro) e no tempo (algures durante o século XX).

"Mas este facto pode explicar-se, também, pela grande abertura dos dispositivos estéticos de Vale Abraão, sob a forma de «pontos de figuração», introduzidos num conjunto que permanece não-figurativo, como sublinhou justamente Denis Levy*, numa conferência em Rouen, feita no quadro das Jornadas de Cinema Português do Cineluso, a 2 de Fevereiro de 1994: ao contrário de alguns filmes do cinema moderno, cujo carácter abrupto amplificava a deriva do olhar do espectador, dificultando o seu acesso ao filme, Vale Abraão inovou, ao «propor uma visão não romântica do romantismo» e «ao dispor de maneira diferente, logo a abrir, as características da modernidade, embora apoiadas a uma certa herança clássica», numa deriva menos angustiante para o espectador. A informação, dada por Paulo Branco, de que, de toda a obra de Oliveira, Vale Abraão e A Carta, são os dois filmes com maior distribuição mundial, poderá ser reinterpretada à luz dos critérios da presente análise, que fez de Vale Abraão «a obra inaugural de uma nova forma de modernidade»."

* Denis Levy, Vale Abraão: modernidade e pós-romantismo, introdução de Jacques Lemière, Cineluso, Rouen, Janeiro de 1995.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Domangchin yeoja (2020) de Hong Sang-soo



por Alexandra Barros

No último filme do ciclo Hong Sang-soo, acompanhamos Gam-hee nas suas deambulações enquanto o marido está em viagem de trabalho. É a primeira vez que estão separados. Durante os cinco anos de casamento, nem um só dia estiveram longe um do outro. Em contrapartida tem estado afastada das amigas Young-soon e Su-young e aproveita a oportunidade para visitá-las, bem como para ir ao cinema. Nesta ocasião, encontra inesperadamente uma terceira amiga, Woo-jin, de quem se distanciara há muito, também. 
 
O filme está estruturado como um tríptico, com um encontro por cada uma das três partes. Como é próprio de Hong Sang-soo, grande parte do filme é passado à mesa, enquanto as amigas comem, bebem e conversam. Os prazeres gastronómicos e a eventualidade de Gam-hee abdicar do prazer de comer carne por causa dos bonitos olhos das vacas são eles próprios motivo de conversa. Além disso é de notar que os alimentos são meios através do qual se expressam afectos, tanto pela oferta como pela confecção. No primeiro e terceiro encontros (numa rima hongsangsooiana), há um ritual ligado aos alimentos especialmente ternurento: a demonstração de carinho através do acto de oferecer pedaços de maçã expressamente acabada de descascar. 
 
Este filme é mais linear e tem um subtexto mais identificável que os filmes que vimos anteriormente. Ou talvez não. Num filme de Hong Sang-soo é comum construirmos uma história a partir dos fragmentos dados, para no fragmento seguinte a termos que reconfigurar, desfazê-la no próximo, torcê-la ainda mais nos seguintes. Aqui, porém, muitos equívocos e ambiguidades são desfeitos e podemos identificar uma ideia recorrente: as histórias que imaginamos a partir do nosso ponto de observação e dos elementos disponíveis poderão ser muito diferentes dos factos reais. Esta ideia já tinha sido exposta em Mulher na Praia, quando Jung-rae explica a Moon-sook, através de um esquema, como os preconceitos e as imagens que temos das pessoas se formam erradamente a partir de um número insuficiente de dados e informação. A mesma ideia é expressa por Jingu no Filme de Oki: “O meu cinema é similar ao processo de conhecer pessoas [...]. Conhecemos alguém e ficamos com uma impressão, fazendo um juízo baseado nessa impressão. Mas, no dia seguinte, voltando a ver essa pessoa, não poderá dar-se o caso de notarmos outros aspectos distintos e ajuizarmos a partir deles?”. Sempre que Gam-hee conta às amigas que é a primeira vez que está longe do marido, estas estranham e inicialmente parecem pensar que alguma coisa está errada. No entanto nada indica que Gam-hee seja infeliz ou se sinta privada da sua liberdade e nada indica que a “liberdade” das suas amigas as torne mais felizes. Em nenhum dos encontros, aquilo que parece, é. 

Na primeira visita, Gam-hee mostra-se preocupada com as movimentações de uma rapariga que tem estado a observar. Devido ao enquadramento e à linguagem corporal, parece-nos que descreve o que está a ver através de uma janela. A câmara recua e percebemos que ela narrava o que estava a ver numa câmara de video-vigilância. Young-soon explica que se trata da filha perturbada de uma vizinha que um dia desapareceu, abandonando tanto a filha como o marido. Parece estar esclarecido o título do filme. Mas será assim? 
 
As pistas com que Hong Sang-soo tão habilmente nos conduz a suposições que se vêm a revelar erradas são tanto visuais como narrativas. Por vezes, somos esclarecidos através das conversas entre as personagens. Outras vezes é o reposicionamento da câmara que revela a verdade. No final da visita a Young-soon, esta mostra a Gam-hee a sua horta e o galinheiro do vizinho que, segundo Young-ji (companheira de casa de Young-soon), é dominado por um galo maldoso, que depena os pescoços das galinhas para se afirmar. A natureza montanhosa que rodeia a casa de Young-soon ocupa agora todo o plano e subtilmente somos levados dessa montanha para uma outra, como se apreciássemos a paisagem que nos rodeia. Mas quando a câmara recua percebemos que esta segunda montanha não tem nada a ver com a primeira. Trata-se da vista que é enquadrada pelo caixilho de uma janela. Uma janela da casa de Su-young. É com este raccord engenhoso que começa a segunda parte do filme. 
 
Nesta segunda visita, em mais uma recorrência hongsongsooiana, Gam-heee volta a usar a câmara de video-vigilância como uma “janela”. Por sua vez, para Su-young, a janela (física, real) de onde avista a paisagem montanhosa é um quadro, pois a paisagem parece-lhe uma pintura antiga. 
 
Dois encontros, duas casas com vista para montanhas. No terceiro encontro, em vez de montanhas temos o mar a espraiar-se aos nossos pés. Contudo, mais uma vez, o que parece não é. Não estamos na praia, mas numa sala de cinema. Estas imagens pertencem ao filme a que Gam-hee está a assistir. Filme a que assiste por duas vezes. A primeira vez depois do encontro não-programado com Woo-jin, que é directora do centro de artes emu, onde o filme é exibido. Reconhecendo Gam-hee, Woo-jin vai ao seu encontro, mas é visível que existe um mal-estar entre as duas. Pelo decorrer da conversa, parece-nos que Woo-jin teve um caso com um homem (Seong-gu) que na altura seria namorado de Gam-hee. Esta assegura à amiga que não existe qualquer ressentimento, mas Woo-jin pede repetidamente desculpa. Woo-jin e Seong-gu são agora casados, mas Woo-jin não parece muito satisfeita com o casamento e confidencia a Gam-hee aquilo que a desgosta em Seong-gu, um escritor bem sucedido : “É absurdo como ele se repete. Se ele só se repete, como poderá ser sincero?” (Hong Sang-soo em autoironia?). Por um dos acasos altamente improváveis típicos de Hong Sang-soo, Seong-gu está no emu a dar um “concerto literário” e Gam-hee esbarra nele ao sair do complexo. O encontro é pouco amigável e Gam-hee parte bruscamente, depois de criticar Seong-su pelos mesmos comportamentos (os discursos repetitivos) que Woo-jin tinha confidenciado não suportar nele. Ironicamente, encontro após encontro, o discurso de Gam-hee acerca do seu casamento foi também um discurso repetitivo. Dois ou três passos depois da saída do edifício, ela decide voltar à sala de cinema e à mesma praia onde “tinha estado”. Será a fuga do título afinal aquela que o cinema oferece?