quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

165ª sessão: dia 27 de Fevereiro (Quinta-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão é uma sessão surpresa, reservada a quem quiser dar um salto ao auditório da Casa do Professor. Continuando guiados pelo realizador que nos tem ocupado este meses, voltamos a citar o texto de Manuel Mozos para o catálogo do Panorama de 2008, em que escreve que "eu comecei por trabalhar em ficções. E acabei por fazer documentários um pouco por ter tido um problema com um dos meus filmes. E grande parte dos filmes que fiz até hoje passam por ser propostas, quando não encomendas mesmo, que não partiram de mim. E o que para mim acabou por ser interessante é que, através de filmes cujo assunto não me interessava tanto, consegui ter a possibilidade de experimentar certas coisas. Quer seja em termos técnicos, quer, como no caso das ficções, em termos de direcção de actores.

"Portanto, muitas das coisas que aceitei fazer, fiz porque me agradava experimentar uma certa coisa. Nunca me interessou realmente ter um contrato com uma produtora, e fazer por exemplo publicidade, ou trabalhar para um canal televisivo, e se calhar posso viver pior, mas sinto-me mais à vontade com os filmes, e com as pessoas com quem trabalho. Tenho mais liberdade para experimentar.

"Por outro lado nunca fiz um filme de 2 horas, não arrisquei nesse sentido. Mas guardo aquilo que faço, fico com os materiais do que filmo e às vezes capto coisas que sei que não vão ser usadas naquele trabalho específico, só para ficar com elas. Por exemplo, no documentário em que estou agora a trabalhar era óbvio que não ia poder fazer um filme com aquele material todo. Mas isso não me impediu de filmar e de experimentar coisas que me interessavam mesmo sabendo que não ia usá-las na montagem.

"Quase todos os dias tenho a possibilidade de ver mais um filme que não conhecia, no meu trabalho no ANIM. E como os vejo muitas vezes, acabo por comparar os materiais todos, de cada filme. Às vezes é um bom pincel... mas como gosto de fazer aquilo. Mesmo quando acho os filmes bastante fraquinhos, tento ver as qualidades que podem ter. A cada visionamento do filme tento aperceber-me de mais qualquer coisa. O que, para mim, acaba por ter alguma graça: reparar nos tiques de certos actores, ou perceber porque é que um realizador decidiu cortar num certo ponto. É uma grande vantagem quando quero trabalhar numa coisa minha, e quero recorrer a material de arquivo. É muito bom já ter um conhecimento razoável e ter já clara a hipótese de utilização de certas imagens, quando estou a pensar num projecto.

"Há uma grande vantagem em ter alguma familiaridade com os filmes portugueses. Estar perto deles e poder vê-los. Para além disso, gosto de poder continuar a surpreender-me, e a encontrar coisas novas nos filmes que vou vendo ou revendo. Por exemplo, hoje vi o filme que estou a trabalhar neste momento, e que nunca tinha visto, chamado Perdeu-se o Marido. É um filme de ’57, uma comédia banalíssima. Tem alguns momentos engraçados, graças aos actores, mas o que me surpreendeu bastante ao vê-lo foi o haver uma série de imagens – que eu não fazia ideia – de exteriores de Lisboa. E surpreendeu-me porque não era muito habitual na época filmar-se em exterior (e o filme de facto é praticamente todo feito em interior). Mas pude ver por exemplo a Baixa, e que era um pouco a Baixa que eu conheci quando era miúdo, com muitas lojas e cafés. Ou o Hospital de Santa Maria que deveria ter sido inaugurado próximo daquela época, ainda sem nada à volta, uma coisa no meio do descampado. Há assim esse tipo de coisas que ainda me animam e me entusiasmam nestas coisas. Confesso que não acho o cinema português nada excepcional, mas acabo por poder encontrar, mesmo em filmes que eu não acho particularmente bem conseguidos, pequenos pontos de interesse. Seja porque têm momentos em que apanham a arquitectura da época ou certas tradições, certos costumes, certos usos, e isso eu acho muito interessante."

Até amanhã!

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Ruínas (2009) de Manuel Mozos



por Mário Jorge Torres

Portugal revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório 

"Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas" 
T.S. Eliot, "The Waste Land" 

Manuel Mozos ocupa no panorama do actual cinema português um lugar singular: por um lado, o de construtor de arrojadas ficções que inscrevem um olhar renovador na geografia de uma Lisboa proletária, marginal e povoada por oníricos sinais, entre a (im)perfeita completude dessa obra-prima impura e dialéctica que dá pelo nome de um herói desgarrado, Xavier (1992, mas estendendo-se ao longo de anos de difícil produção, para estrear demasiado tarde, de modo a poder entender-se a sua radical importância), o curioso fracasso de uma obra confusa e algo megalómana como ...Quando Troveja (1999) e o recente descentramento de 4 Copas (2008), a traçar uma visão suburbana, quase irreconhecível, do seu mundo de fantasmas vivos, ao encontro do quotidiano moderno; por outro, o de rigoroso documentarista, oscilando entre o brilho incontroverso da "biografia cultural" (José Cardoso Pires - Diário de Bordo, 1998) e o fascínio pela colagem arquivística, mas infinitamente criativa, de pequenas preciosidades históricas: o magnífico Cinema Português? (1997) ou o inventivo Censura: Alguns Cortes (1999), um dos mais transversos e importantes olhares sobre as intrínsecas contradições do Estado Novo. 

Este intróito revela-se fundamental para falar de Ruínas, na medida em que este filme-ensaio funciona na curta obra de Mozos como súmula de todo o seu universo conceptual. Se não vejamos: o filme assume-se como "biografia" subterrânea de um país condenado pelo abandono da memória, transformada em lixo cultural; faz da "collage" modernista o seu método caótico de investigação sobre um passado contraditório e algo desconexo; inscreve nos intervalos de um documentário aleatório e prospectivo o desejo de ficções miniaturais, tendentes a recompor um retrato de meio-corpo de personagens ausentes e perdidas na voragem do tempo: os habitantes anónimos daquele sanatório gigantesco que agride a paisagem da Serra da Estrela, feito esqueleto de uma doença passada, mas perpetuado pela permanência dos seus sinais físicos na paisagem; os actores fantasmáticos daquele Parque Mayer desertificado no centro de uma Lisboa transformada em lixo urbano e transtornada por um progresso sem sentidos; os turistas "mortos" da ribatejana Estalagem Gado Bravo, de que saltaram letras da insígnia identificativa, numa tétrica "natureza morta" povoada por dejectos e por restos quase fossilizados de caveiras de animais; os frescos modernistas de um restaurante em Monsanto, com panorama sobre a capital do Império perdido, como se ainda convidassem a lautos banquetes de tempos que já lá vão e não voltarão nunca mais; as viagens impossíveis de chegada à estação de Barca de Alva, desactivada e inoperante, no coração do Douro Internacional, com carruagens enferrujadas e marcas de uma impotência atávica em operar uma arqueologia da memória; os vestígios desfeitos de uma mina abandonada que sinaliza o impasse de uma produção obsoleta de riquezas miríficas. 

Há riscos neste retrato de um país "arruinado" e inútil (ou inutilizado?) visto a partir da incúria de um património menor? Há e muitos, mas Mozos tem consciência do jogo da (in)glória que desenha, evitando a demagogia fácil das imagens de decadência, como se procurasse ver Portugal pelo lado das inevitáveis "derrotas". O que se torna fascinante é o modo como toma partido, deixando em aberto a perspectiva crítica de cada espectador, embora conduzindo sempre o seu olhar com implacável direccionalidade. Se existe possível rima interna, subjacente a este projecto, ela faz-se com Manoel de Oliveira, como se se tratasse de um contraponto documental a Non, ou a Vã Glória de Mandar: o país revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório, tornado significativo pela acumulação geográfica de gestos sem saída. Ao Portugal dos Pequenitos que um arquitecto do antigamente construíra para glorificar uma ridícula noção do património imaginário, apõe Mozos um Portugal dos "Grandes", devastado e espectral, monstruoso porque verdadeiro. 

Haverá quem conteste que esta negatividade passa por alguma pretensão poética, uma poética pobre, contraditada (mas também acentuada) pelo certeiro recurso à textualidade de Ruy Belo, por exemplo, um poeta da "habitação" e do território. Uma coisa não podemos negar: estamos perante uma corajosa frontalidade, perante a nossa incapacidade de lidar com a pequena História de nós, com o terror de termos de escorar a nossa realidade entre ruínas. E regressamos, para concluir, a T. S. Eliot, citado, como na epígrafe, da tradução portuguesa de Maria Amélia Neto: "Penso que estamos na viela dos ratos/Onde os mortos perderam os seus ossos". 

in «Terra sem vida», Público, 31 de Março de 2010.

Imagens do Bairro de Alvalade (2013) de Manuel Mozos



pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema

Tal como o título indica, Imagens do Bairro de Alvalade é uma montagem de imagens documentais desse bairro lisboeta oriundas de filmes pertencentes ao Arquivo da Cinemateca. Tratam-se de excertos notáveis que documentam algumas das características do bairro e da sua génese, registados entre meados das décadas de quarenta e setenta. Encontramos partes de Lisboa de Ontem e de Hoje (Augusto Fraga, 1956), Lisboa de Hoje e de Amanhã (António Lopes Ribeiro, 1948), Nasceu uma Nova Cidade (Ricardo Malheiro, 1948), Quinze Anos de Obras Públicas (1948), Portugal (Alfred Ehrhardt, 1952), Imagens duma Capital – Lisboa (Silva Brandão, 1961) e segmentos extraídos de jornais de atualidades.

da sinopse do filme.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

164ª sessão: dia 20 de Fevereiro (Quinta-Feira), às 21h30


Esta semana iremos do nascimento e das edificações aos escombros e às ruínas, através de dois filmes separados por quatro anos. O primeiro é uma colecção de imagens de arquivo relacionadas com o Bairro de Alvalade, Imagens do Bairro de Alvalade. O segundo é o famoso Ruínas, que talvez dispense apresentações. É assim a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Na sinopse da curta-metragem pela Cinemateca Portuguesa, lê-se que "tal como o título indica, Imagens do Bairro de Alvalade é uma montagem de imagens documentais desse bairro lisboeta oriundas de filmes pertencentes ao Arquivo da Cinemateca. Tratam-se de excertos notáveis que documentam algumas das características do bairro e da sua génese, registados entre meados das décadas de quarenta e setenta. Encontramos partes de Lisboa de Ontem e de Hoje (Augusto Fraga, 1956), Lisboa de Hoje e de Amanhã (António Lopes Ribeiro, 1948), Nasceu uma Nova Cidade (Ricardo Malheiro, 1948), Quinze Anos de Obras Públicas (1948), Portugal (Alfred Ehrhardt, 1952), Imagens duma Capital – Lisboa (Silva Brandão, 1961) e segmentos extraídos de jornais de actualidades."

Para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2012, Edmundo Cordeiro escreveu que "Ruínas, de Manuel Mozos, começa com uma demolição. Um plano geral, fixo, sobre dois grandes edifícios aparentemente iguais da Península de Tróia: um deles implode, dando a sua silhueta na paisagem lugar a uma nuvem densa de pó que vai envolver o outro edifício, que se mantém de pé, ao lado do que acabou de implodir. Este filme começa (pré-genérico) com uma imagem forte pelo seu conteúdo. Um edifício de grandes proporções, que levou tempo (muito) a conceber e a construir, que desenhou a paisagem durante muito tempo, desaparece em alguns instantes. É uma imagem a que Kant chamaria sublime, dado que representa o desmesurado, aquilo que a nossa sensibilidade não capta harmoniosamente, dado que o entendi- mento não lhe aplica nenhum conceito, continuando à procura, à procura, sem o encontrar: não há conceito, não conseguimos perceber o choque do permanecer e do desaparecer, o choque destes dois aspectos do tempo. E, porém, sendo sempre poderosa, esta imagem é, mesmo assim, uma imagem banal – banal como imagem e banal como acontecimento do mundo: um mundo de demolição acelerada, demolição que é o correspondente da construção acelerada.

"Mas logo o filme passa dos edifícios na paisagem e da implosão de um deles para um cemitério. As casas não têm cemitério. O Homem sim. O cemitério contém traços de vidas: é onde estão os mortos. Depois de imagens (planos fixos) da romagem e do vaguear das pessoas no cemitério, ou de lápides reflectidas nos vidros de um carro, uma sucessão compassada de planos de uma estatueta de mármore à frente de um jazigo. Aí, ouve-se um texto que é lido, a história de Henriqueta e a história da sua ligação a Etelvina. A história de uma vida infame, ao mesmo tempo extraordinária e horrível. Talvez Henriqueta e Etelvina estejam sepultadas ali, talvez a estatueta de mármore seja a imagem de São Francisco de Assis mandada fazer em Itália da história que ouvimos. E as pequenas histórias, cartas, pedidos, panfletos vão surgindo sempre numa relação com imagens de espaços, interiores e exteriores, os quais contêm em si mesmos um desacerto, uma deslocação qualquer, mas não sendo todos «Ruínas». Contrariamente às imagens iniciais da implosão, estas não são imagens fortes pelo seu conteúdo – mas, no entanto, é logo a partir daqui que o filme manifesta a sua força: ela está na relação entre os textos lidos que ouvimos e as imagens que vemos; ela está não no conteúdo desta matéria audiovisual, mas na sua forma. Os textos colocam-se em várias relações com as imagens, e o trabalho do espectador consiste numa construção constante, que é ela própria sublime, dado que nunca o poderá fazer como tal, inteiramente. São essas relações que importa estudar. Cabe perguntar: que «Ruínas» são estas? São Vidas, talvez, na medida em que as Vidas colocadas no tempo são Ruínas."

Já Mário Jorge Torres, em 2010 para o Público, defendeu que "Manuel Mozos ocupa no panorama do actual cinema português um lugar singular: por um lado, o de construtor de arrojadas ficções que inscrevem um olhar renovador na geografia de uma Lisboa proletária, marginal e povoada por oníricos sinais, entre a (im)perfeita completude dessa obra-prima impura e dialéctica que dá pelo nome de um herói desgarrado, Xavier (1992, mas estendendo-se ao longo de anos de difícil produção, para estrear demasiado tarde, de modo a poder entender-se a sua radical importância), o curioso fracasso de uma obra confusa e algo megalómana como ...Quando Troveja (1999) e o recente descentramento de 4 Copas (2008), a traçar uma visão suburbana, quase irreconhecível, do seu mundo de fantasmas vivos, ao encontro do quotidiano moderno; por outro, o de rigoroso documentarista, oscilando entre o brilho incontroverso da "biografia cultural" (José Cardoso Pires - Diário de Bordo, 1998) e o fascínio pela colagem arquivística, mas infinitamente criativa, de pequenas preciosidades históricas: o magnífico Cinema Português? (1997) ou o inventivo Censura: Alguns Cortes (1999), um dos mais transversos e importantes olhares sobre as intrínsecas contradições do Estado Novo.

"Este intróito revela-se fundamental para falar de Ruínas, na medida em que este filme-ensaio funciona na curta obra de Mozos como súmula de todo o seu universo conceptual. Se não vejamos: o filme assume-se como "biografia" subterrânea de um país condenado pelo abandono da memória, transformada em lixo cultural; faz da "collage" modernista o seu método caótico de investigação sobre um passado contraditório e algo desconexo; inscreve nos intervalos de um documentário aleatório e prospectivo o desejo de ficções miniaturais, tendentes a recompor um retrato de meio-corpo de personagens ausentes e perdidas na voragem do tempo: os habitantes anónimos daquele sanatório gigantesco que agride a paisagem da Serra da Estrela, feito esqueleto de uma doença passada, mas perpetuado pela permanência dos seus sinais físicos na paisagem; os actores fantasmáticos daquele Parque Mayer desertificado no centro de uma Lisboa transformada em lixo urbano e transtornada por um progresso sem sentidos; os turistas "mortos" da ribatejana Estalagem Gado Bravo, de que saltaram letras da insígnia identificativa, numa tétrica "natureza morta" povoada por dejectos e por restos quase fossilizados de caveiras de animais; os frescos modernistas de um restaurante em Monsanto, com panorama sobre a capital do Império perdido, como se ainda convidassem a lautos banquetes de tempos que já lá vão e não voltarão nunca mais; as viagens impossíveis de chegada à estação de Barca de Alva, desactivada e inoperante, no coração do Douro Internacional, com carruagens enferrujadas e marcas de uma impotência atávica em operar uma arqueologia da memória; os vestígios desfeitos de uma mina abandonada que sinaliza o impasse de uma produção obsoleta de riquezas miríficas."

Até amanhã!

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

António Pinho Vargas, notas de um compositor (2002)



por Manuel Mozos

O ponto de partida, ou de como os filmes se vão transformando 

Também não sei até que ponto é que realizadores ou filmes que pelo menos a partir de certa altura começaram a ser considerados obras de arte foram pensados para ser isso mesmo. Talvez fossem somente uma vontade de contar uma história através do cinema sem qualquer outra pretensão para além dessa. Há muitas coisas que podem não partir do realizador, e acabarem por se tornar grandes obras, e falo de encomendas, ou filmes feitos dentro de contratos com produtoras. De repente no meio disso pode aparecer um filme genial porque o realizador trabalhou como trabalharia nos outros filmes, acabando por catapultar o trabalho para a zona, digamos, da obra de arte, deixando o lado de entretenimento. Um filme como o Zidane, por exemplo, para mim é uma coisa que realmente só tem a ver com televisão. Mas acaba por ser um produto muito fora do vulgar. Aquilo é feito um pouco como se fosse um jogo de futebol só que em vez de estar a acompanhar a bola, se está sempre em cima de um determinado jogador, e com isso apercebemo-nos de que grande parte de um jogo é passado a olhar, à espera (mesmo eu, que gosto de futebol, e jogo ainda às vezes, não me tinha apercebido disto). Trata-se de um processo televisivo, embora consiga identificar raízes cinematográficas, como os filmes da Leni Riefensthalt, com a utilização de uma panóplia de câmaras para filmar um determinado objecto. 

E isto traz um outro problema que é o da classificação. Realmente, qual é o espaço daquele filme? Para mim é até muito curioso, porque trabalhando no ANIM, para catalogar o material, tenho que tomar decisões. Onde é que se põem certos objectos que são, como este, mais fora do comum? Julgo que mesmo na área do documentário há uma série de coisas muito diferentes. E por uma facilidade de linguagem há tendência para catalogar as coisas: é o western, um filme de aventuras, um melodrama, um thriller; um certo documentário é cinéma-vérité... mas para mim, o que eu acho mais interessante é ver o contrário dessa classificação, ou seja, conseguir ver que todos os filmes têm um carácter documental. 

Entre a ficção e o documentário: o filme e a sua época 

Por um lado não acredito no cinema como uma coisa da verdade. É sempre uma coisa da encenação. Ao colocar a câmara num certo sítio já estou a delimitar. Não acredito no “cinema-verdade”, não acredito que as coisas acontecem e nós estamos a captar o real. Acho que nunca é bem o real. Mesmo que atirasse uma câmara ao ar, e donde ela caísse filmava, mesmo isso implica uma acção, quer dizer, não é a vida em si. Por outro lado mesmo os filmes que estão no tal campo do entretenimento, para mim documentam a sua época. Mesmo aquilo que está ultra-encenado acaba por transmitir qualquer coisa de uma época e eu acabo por encontrar a arquitectura de uma cidade, ou por ver a maneira como as pessoas se vestem, os costumes, certas tradições, o que é que comem, e portanto, mesmo que aquilo seja tudo encenado, também há um lado que não está a fugir completamente ao real. Mesmo as coisas mais mirabolantes do cinema fantástico estão contaminadas pelo real. Tal como o oposto, ou seja, no documentário, para mim a colocação da câmara num sítio já está a deturpar esse real. E a própria película está a passar por um lado químico, no mínimo, que já vai refractar a realidade (mesmo nós, a nossa visão, ou os sentidos em si não nos possibilitam captar tudo). 

Por enquanto as ficções que fiz são muito centradas em Lisboa, para deixar alguma coisa do tempo em que estou a filmar a própria cidade. E isso é deliberado. Mas nem sequer obedeço à geografia da cidade. Na última ficção que fiz havia um personagem que saia de Alfama, e já estava no Lumiar a apanhar o Metro para ir para Caselas onde não há Metro. Tento transformar a cidade num cenário. E não me interessa obedecer ao seu lado realista nesse aspecto, interessa-me sim que esse pedaço de Alfama, do Lumiar ou de Caselas, um dia seja reconhecido por alguém que possa assim ver como eram as casas desses bairros. Ou seja, em vez de estar sempre a filmar o mesmo bairro, prefiro mostrar coisas diferentes. Do mesmo modo, nos documentários eu assumo que tudo está a ser um bocado encenado, não quero dizer que aquilo é a verdade de qualquer coisa. 

Em termos de documentário, fiz sobretudo biografias, ou coisas em que usei materiais de arquivo. Portanto, não tenho o tipo de relação com as coisas que tem a maioria dos documentaristas portugueses. Coisas como a análise do bairro não sei quê, ou a comunidade tal que vive não sei onde... acho óptimo que se façam esses filmes, mas como eu acho que já há pessoas a trabalhar sobre isso, e que é o que lhes interessa, eu tento explorar outras coisas que a mim me interessam, mesmo que não sejam coisas tão obedientes aos cânones do documentário, mas que fiquem eventualmente como retrato de uma época. 

Nas biografias do José Cardoso Pires ou do Pinho Vargas tratei uma época da vida deles, e não fugi a isso, mas nos outros servi-me muito de material de arquivo, e neste que estou a fazer agora, e que é talvez o mais “livre”, a minha ideia é contaminá-lo com uma série de coisas que lhe trazem um lado mais artificial. Ou seja, vou tentar jogar com efeitos de encadeados e sobreposição de imagens, pôr imagens fotográficas e fílmicas de arquivo e sons, fugindo a esse lado, digamos, mais verdadeiro do documentário que realmente não é a coisa que eu acho mais interessante. 

excerto de «Um Cinema de Verdade», texto inserido no catálogo do Panorama – Mostra do Documentário Português de 2008.

Tobis Portuguesa (2010) de Pedro Efe e Manuel Mozos



pelo Núcleo de Toponímia do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa

Tobis, a fábrica do cinema português, numa Rua do Lumiar

A Tobis Portuguesa, desde 1932 instalada no Lumiar, na Quinta das Conchas, também passou a ser um topónimo dessa freguesia da cidade, desde a publicação do Edital municipal de 6 de janeiro de 1993. 

O arruamento onde tinha sede a Tobis Portuguesa, a Praça J da Urbanização da Tobis Portuguesa, passou em 1985 a ter topónimo: Praça Bernardino Machado. Oito depois anos depois foi atribuída a Rua da Tobis Portuguesa, no arruamento que antes era identificado como Rua A à Rua Luís Pastor de Macedo. 

No século XX, a zona da Quinta das Conchas foi a mais utilizada pela então nascente indústria cinematográfica portuguesa. Em 1920 foi nela fundada a Caldevilla Film, que produziu por exemplo, Os Faroleiros (1922) e As Pupilas do Senhor Reitor (1924), ambos de Maurice Mariaud. Doze anos mais tarde, em 1932, a Tobis Portuguesa adquiriu parte da Quinta das Conchas para aí edificar os seus estúdios. Esta companhia cinematográfica nasceu em 3 de junho de 1932, com sede no n.º 141 da Avenida de Liberdade e estúdios em construção na Quinta das Conchas. 

Tobis é acrónimo de Ton-Bild Syndikat (Sindicato do Som e Imagem) e a fábrica do cinema português tinha como nome completo Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm. Foi criada para gerar e apoiar cinema nacional, bem como para garantir uma uniformidade de processos com a Europa, ao nível do som e da imagem, e assim também combater o poderio norte-americano na indústria cinematográfica. A empresa contou com um capital inicial de 1 milhão de escudos, dividido em 20.000 ações de cinquenta escudos cada uma, tendo sido inteiramente subscrito.

Nas suas instalações da Quinta das Conchas foi criado o 1º estúdio de cinema sonoro em Portugal e produzidos alguns dos mais emblemáticos filmes portugueses das décadas de 30, 40 e 50 do século XX, com inesquecíveis atores como António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho ou Beatriz Costa, sendo de salientar, por ordem cronológica, os seguintes filmes produzidos pela Tobis cujos direitos são propriedade sua (o chamado Catálogo Tobis): A Canção de Lisboa (1933) de Cottinelli Telmo; As Pupilas do Senhor Reitor (1935), Varanda dos Rouxinóis (1939) e Ala-Arriba (1942), de Leitão de Barros; João Ratão (1940) de Jorge Brum do Canto; O Costa do Castelo (1943), A Menina da Rádio (1944), O Leão da Estrela (1945) e O Grande Elias (1950), todos de Artur Duarte, assim como Benilde ou a Virgem-Mãe (1970) de Manoel de Oliveira. O último filme produzido pela Tobis foi A Crónica dos Bons Malandros (1984), realizado por Fernando Lopes. 

O conjunto de instalações da Tobis seguiram o traçado ao Arqtº Jacinto Bettencourt para o edifício do laboratório – o dos serviços administrativos e da revelação das películas cinematográficas – e o do Arqtº Jorge Segurado para o estúdio de filmagens. 

Refira-se ainda que em 1939 a Lisboa Filmes – outra empresa cinematográfica- transfere as suas instalações para a Quinta dos Ulmeiros, também no Lumiar e, em 1955, acaba por se fundir com a Tobis Portuguesa. 

Os cineastas Pedro Efe e Manuel Mozos realizaram em 2010 um documentário sobre esta fábrica do cinema português, intitulado Tobis Portuguesa. 

in «Toponímia de Lisboa», 3 de Dezembro de 2008 (não assinado).

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

163ª sessão: dia 13 de Fevereiro (Quinta-Feira), às 21h30


Esta Quinta-Feira voltamos ao cinema português e às biografias que tanto têm ocupado a obra e os interesses de Manuel Mozos. Sobre os estúdios míticos em que se fez parte da história do cinema nacional, teremos Tóbis Portuguesa. Sobre o pensamento musical e o trabalho de António Pinho Vargas, teremos António Pinho Vargas - Notas de um Compositor. Será assim a nossa próxima sessão.

No wordpress «Toponímia de Lisboa», escreve-se que "Tobis é acrónimo de Ton-Bild Syndikat (Sindicato do Som e Imagem) e a fábrica do cinema português tinha como nome completo Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm. Foi criada para gerar e apoiar cinema nacional, bem como para garantir uma uniformidade de processos com a Europa, ao nível do som e da imagem, e assim também combater o poderio norte-americano na indústria cinematográfica. A empresa contou com um capital inicial de 1 milhão de escudos, dividido em 20.000 ações de cinquenta escudos cada uma, tendo sido inteiramente subscrito.

"Nas suas instalações da Quinta das Conchas foi criado o 1º estúdio de cinema sonoro em Portugal e produzidos alguns dos mais emblemáticos filmes portugueses das décadas de 30, 40 e 50 do século XX, com inesquecíveis atores como António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho ou Beatriz Costa, sendo de salientar, por ordem cronológica, os seguintes filmes produzidos pela Tobis cujos direitos são propriedade sua (o chamado Catálogo Tobis): A Canção de Lisboa (1933) de Cottinelli Telmo; As Pupilas do Senhor Reitor (1935), Varanda dos Rouxinóis (1939) e Ala-Arriba (1942), de Leitão de Barros; João Ratão (1940) de Jorge Brum do Canto; O Costa do Castelo (1943), A Menina da Rádio (1944), O Leão da Estrela (1945) e O Grande Elias (1950), todos de Artur Duarte, assim como Benilde ou a Virgem-Mãe (1970) de Manoel de Oliveira. O último filme produzido pela Tobis foi A Crónica dos Bons Malandros (1984), realizado por Fernando Lopes."

Num dos seus escritos publicados no blog que ainda mantém, António Pinho Vargas diz que "uma das várias razões que tornam difícil senão impossível problematizar correctamente os problemas actuais da criação musical dos últimos 25 ou 30 anos - no mundo "ocidental" no seu todo - é a repetição, década após década, de argumentos que já provaram de forma muito clara que partem de pressupostos errados. Um deles é uso do conceito de "música do nosso tempo" circunscrito à música que prossegue a tradição da música erudita europeia, a chamada "música contemporânea". Um simples bom senso deveria levar-nos a abandonar rapidamente essa designação. Trata-se de um conceito excludente que procura atingir um paradoxo: por um lado, reclamar a herança e a continuação da "grande tradição clássica" para com essa forte legitimação simbólica pretender o estatuto exclusivo de "contemporâneo" para um grupo restrito de uma determinada orientação estilística. Como afirma Jean-Jacques Nattiez na introdução do primeiro volume da sua Enciclopédia ”depois do radicalismo do discurso e da experimentação sistemática seguiu-se um período de desafectação crescente do público em relação à música ‘séria’ contemporânea”, considerando, aliás, que o próprio termo “música contemporânea” é “uma etiqueta que, cada vez mais, designa um momento da evolução estilística do século XX” […] “o que nós considerávamos ser a música contemporânea, afinal hoje parece-nos ter sido apenas um estilo” (Nattiez, 2003: 28-29). Esta constatação relativamente evidente continua a ser recusada - apesar das provas que sem cessar se acumulam na realidade - por alguns agentes do campo musical que, como veremos, Richard Taruskin considera "blind to the main picture".

"O outro lado do problema e do paradoxo prende-se com um facto que é, em geral, denegado, mesmo no sentido original freudiano. Para manter o suporte e as vantagens simbólicas associadas à tradição clássica, os compositores (e musicólogos afectos ao grupo restrito, etc.) recusam-se a aceitar que é o triunfo em larga escala do repertório do passado nas salas de concertos do mundo que constituiu o principal obstáculo à presença menos que residual ou encerrada ghetos isolados da dita música contemporânea. O triunfo do museu imaginário da música clássica - transformada em arte de re-interpretação infindável de música com 100, 200 ou 300 anos - é o lado simetricamente equivalente à importancia residual dos que se reclamam como herdeiros. Na minha opinião a única razão que justifica essa pretensão é o uso da escrita que é comum às músicas anteriores e posteriores a 1900. Pelo meio verificou-se o cisma estético associado ao modernismo musical e reforçado fortemente após o final da Segunda Guerra Mundial com Darmstadt e as suas consequências posteriores. Perguntar-me-ão? Mas gosta dessa música? A minha resposta é gosto de alguma dessa música, cresci com ela, faz parte integrante da minha formação - e no período dos anos 60 e 70 do século XX tinha muitos cruzamentos com várias outras formas musicais como o free-jazz e as músicas improvisadas de vários matizes - e nesse sentido não só gosto como a reclamo como parte do meu património estético acumulado ao longo da vida. Mas tudo isso não me deve cegar perante a evidência. O que sinto é que vivemos uma mudança de paradigma há muito tempo já, pelo que continuar a procurar os "culpados" onde Adorno os julgou encontrar é um erro. Os "culpados" que se referem são sempre os mesmos há muitos anos e dão pelo nome de "indústria cultural" nas suas várias formas: as rádios não a passam, a televisão ignora, os intelectuais e praticantes de outras artes desligaram-se, os críticos não apoiam, os agentes só pensam no lucro, etc. Esta amálgama de razões - que junta no mesmo saco efeitos provenientes da cultura de massas com efeitos provenientes do triunfo do museu clássico imaginário nas grandes instituições culturais - não deixa de ser uma parte da realidade. Só falta acrescentar o resto."

Já Manuel Mozos, garante-nos em Um Cinema de Verdade (no catálogo do segundo «Panorama») que "em termos de documentário, fiz sobretudo biografias, ou coisas em que usei materiais de arquivo. Portanto, não tenho o tipo de relação com as coisas que tem a maioria dos documentaristas portugueses. Coisas como a análise do bairro não sei quê, ou a comunidade tal que vive não sei onde... acho óptimo que se façam esses filmes, mas como eu acho que já há pessoas a trabalhar sobre isso, e que é o que lhes interessa, eu tento explorar outras coisas que a mim me interessam, mesmo que não sejam coisas tão obedientes aos cânones do documentário, mas que fiquem eventualmente como retrato de uma época. 

"Nas biografias do José Cardoso Pires ou do Pinho Vargas tratei uma época da vida deles, e não fugi a isso, mas nos outros servi-me muito de material de arquivo, e neste que estou a fazer agora, e que é talvez o mais “livre”, a minha ideia é contaminá-lo com uma série de coisas que lhe trazem um lado mais artificial. Ou seja, vou tentar jogar com efeitos de encadeados e sobreposição de imagens, pôr imagens fotográficas e fílmicas de arquivo e sons, fugindo a esse lado, digamos, mais verdadeiro do documentário que realmente não é a coisa que eu acho mais interessante."

Até amanhã!

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Angelitos Negros (2010) + Erupção (2001) de Manuel Mozos



por Manuel Mozos

Linguagem cinematográfica: o jogo das múltiplas condicionantes 

Existem diversas condicionantes práticas e muito concretas que delimitam e condicionam o uso das ferramentas e dos instrumentos do cinema. A experiência é uma delas, embora ache que nada impede alguém sem grande experiência de fazer um filme. Mas conhecer a História do Cinema, conhecer os meios técnicos com que se trabalha (quer se trate de suportes digitais ou película, material de som), ter noções de montagem, saber o que é um plano, e o que é um plano colado com outro, o que é que isso proporciona, são tudo conhecimentos que funcionam eventualmente como mais-valias. A relação humana tem também a sua importância: em cinema nunca se trabalha sozinho, trabalha-se em equipas, mais pequenas, maiores, e tem que haver uma relação honesta e concertada com as pessoas que estão envolvidas no que se pretende filmar, e que posteriormente resultará num filme. A relação com o produtor, por exemplo, pode imediatamente fechar um bocadinho aquilo que o realizador idealizou, porque é nesta relação que se evidenciam as questões que têm a ver com meios de produção, onde se decide o nível de disponibilidade para a persistência, para ir mais fundo num determinado assunto. Mesmo o momento e o modo da difusão e exibição podem condicionar o trabalho de fazer um filme. Rapidamente o realizador se vai apercebendo que existe uma série de condicionantes que limitam aquilo que inicialmente pretendia fazer. Mas claro que também pode surgir o contrário, que é ter momentos mágicos em que aparece uma coisa inesperada e que realmente dá outra força ao filme. 

Tudo isto se convoca e altera no momento em que se filma, e está dependente daquilo que cada um escolhe como assunto a tratar (em documentário ou ficção). Se se pretende filmar um determinado acontecimento ou um episódio, ou se se quer ir filmar uma fachada de um prédio e o passar do tempo sobre essa fachada, a linguagem cinematográfica é convocada de maneira totalmente diferente. Ao mesmo tempo, se a 10 realizadores diferentes fosse dado o mesmo tema, e se eles nunca se encontrassem, provavelmente resultariam 10 filmes completamente diferentes. São coisas muito difíceis de definir.



O jogo das condicionantes aplicado a um caso concreto: o documentário e a televisão 

No caso do documentário há um assunto que acho importante discutir a este nível: o facto de hoje em dia, para mim, ele estar demasiado formatado a modelos televisivos. Como tem pouca divulgação comercial e no cinema, os canais televisivos são a sua possibilidade de divulgação. E esses canais impõem certas regras, que podem ter a ver com a duração do filme, com formatos, até mesmo com a escolha do próprio suporte, que condicionam a realização do filme. Mesmo os próprios assuntos: os canais televisivos interessam-se talvez muito mais por coisas da actualidade, ou com contornos mais sociológicos. Lembro-me por exemplo de ter assistido a certas sessões de pitchings onde era óbvio que alguns projectos eram barrados porque não eram interessantes no contexto actual, do ponto de vista das televisões que a este nível funcionam como centros decisórios. 

Eu percebo que realmente se calhar não é possível toda a gente estar a filmar, mas acho que deste modo também se limitam em excesso algumas coisas que aparentemente podem não ser importantes num determinado momento, mas que um dia poderão vir a ser. O próprio filme considerado sem “interesse” – porque não é pertinente, ou actual – pode ser bem mais interessante em termos cinematográficos, do que aquele que se achou importante produzir, mas que nada tem de cinema. Acho que no documentário isto às vezes é um pouco confuso. Há muitas coisas tomadas como documentários que mais se parecem com reportagens ou com os antigos jornais de actualidades, que não têm um cunho daquilo que, na minha opinião, deveria ser o documentário cinematográfico. 

Mas acho que isto não se passa só ao nível do documentário, acontece também na ficção: há produtos que se percebe que são de televisão. E são feitos até com imensa qualidade, e têm méritos, mas são coisas de consumo imediato. São entretenimento, e terão o seu valor por isso mesmo, mas também não são mais do que isso. Não entram na categoria da obra de arte. 

excerto de «Um Cinema de Verdade», texto inserido no catálogo do Panorama – Mostra do Documentário Português de 2008.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

162ª sessão: dia 6 de Fevereiro (Quinta-Feira), às 21h30


Enquanto avançamos no nosso ciclo Manuel Mozos, já na quarta e penúltima parte da retrospectiva, chegamos a duas raríssimas curtas de 2001 e 2010. A nossa próxima sessão, com Erupção e Angelitos Negros, será portanto uma oportunidade única. A não perder.

No catálogo da segunda mostra do documentário português, Panorama, o realizador  deixa umas palavras sobre a sua ideia de cinema, dizendo que "existem diversas condicionantes práticas e muito concretas que delimitam e condicionam o uso das ferramentas e dos instrumentos do cinema. A experiência é uma delas, embora ache que nada impede alguém sem grande experiência de fazer um filme. Mas conhecer a História do Cinema, conhecer os meios técnicos com que se trabalha (quer se trate de suportes digitais ou película, material de som), ter noções de montagem, saber o que é um plano, e o que é um plano colado com outro, o que é que isso proporciona, são tudo conhecimentos que funcionam eventualmente como mais-valias. A relação humana tem também a sua importância: em cinema nunca se trabalha sozinho, trabalha-se em equipas, mais pequenas, maiores, e tem que haver uma relação honesta e concertada com as pessoas que estão envolvidas no que se pretende filmar, e que posteriormente resultará num filme. A relação com o produtor, por exemplo, pode imediatamente fechar um bocadinho aquilo que o realizador idealizou, porque é nesta relação que se evidenciam as questões que têm a ver com meios de produção, onde se decide o nível de disponibilidade para a persistência, para ir mais fundo num determinado assunto. Mesmo o momento e o modo da difusão e exibição podem condicionar o trabalho de fazer um filme. Rapidamente o realizador se vai apercebendo que existe uma série de condicionantes que limitam aquilo que inicialmente pretendia fazer. Mas claro que também pode surgir o contrário, que é ter momentos mágicos em que aparece uma coisa inesperada e que realmente dá outra força ao filme.

"Tudo isto se convoca e altera no momento em que se filma, e está dependente daquilo que cada um escolhe como assunto a tratar (em documentário ou ficção). Se se pretende filmar um determinado acontecimento ou um episódio, ou se se quer ir filmar uma fachada de um prédio e o passar do tempo sobre essa fachada, a linguagem cinematográfica é convocada de maneira totalmente diferente. Ao mesmo tempo, se a 10 realizadores diferentes fosse dado o mesmo tema, e se eles nunca se encontrassem, provavelmente resultariam 10 filmes completamente diferentes. São coisas muito difíceis de definir.

"(...) No caso do documentário há um assunto que acho importante discutir a este nível: o facto de hoje em dia, para mim, ele estar demasiado formatado a modelos televisivos. Como tem pouca divulgação comercial e no cinema, os canais televisivos são a sua possibilidade de divulgação. E esses canais impõem certas regras, que podem ter a ver com a duração do filme, com formatos, até mesmo com a escolha do próprio suporte, que condicionam a realização do filme. Mesmo os próprios assuntos: os canais televisivos interessam-se talvez muito mais por coisas da actualidade, ou com contornos mais sociológicos. Lembro-me por exemplo de ter assistido a certas sessões de pitchings onde era óbvio que alguns projectos eram barrados porque não eram interessantes no contexto actual, do ponto de vista das televisões que a este nível funcionam como centros decisórios.

"Eu percebo que realmente se calhar não é possível toda a gente estar a filmar, mas acho que deste modo também se limitam em excesso algumas coisas que aparentemente podem não ser importantes num determinado momento, mas que um dia poderão vir a ser. O próprio filme considerado sem “interesse” – porque não é pertinente, ou actual – pode ser bem mais interessante em termos cinematográficos, do que aquele que se achou importante produzir, mas que nada tem de cinema. Acho que no documentário isto às vezes é um pouco confuso. Há muitas coisas tomadas como documentários que mais se parecem com reportagens ou com os antigos jornais de actualidades, que não têm um cunho daquilo que, na minha opinião, deveria ser o documentário cinematográfico.

"Mas acho que isto não se passa só ao nível do documentário, acontece também na ficção: há produtos que se percebe que são de televisão. E são feitos até com imensa qualidade, e têm méritos, mas são coisas de consumo imediato. São entretenimento, e terão o seu valor por isso mesmo, mas também não são mais do que isso. Não entram na categoria da obra de arte."

Até logo!

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Em Fevereiro, no Lucky Star:




Ramiro (2017) de Manuel Mozos



por Carlos Melo Ferreira

Ramiro de Manuel Mozos (2017) é mais um bom filme deste simpático cineasta português que, sem as peneiras de "grande artista do cinema" de outros, continua tranquilamente a construir uma obra pessoal de grande qualidade. E é a sua primeira longa-metragem de ficção depois de 4 Copas (2008). 

Num tempo em que as livrarias continuam a morrer, escolhe um alfarrabista como protagonista, Ramiro/António Mortágua, num filme em que vários outros e especialmente outras giram em volta dele. Com livros que na loja caem em cima da cabeça dos clientes (Isabel/Cristina Carvalhal), tem como protegidas uma jovem grávida, Daniela/Madalena Almeida, e uma convalescente de um avc, Dona Amélia/Fernanda Neves. 

Por sua vez, o pai da jovem, Alfredo/Vítor Correia, carpinteiro a cumprir pena por ter matado a mulher, é visitado na prisão por Ramiro a pedido da convalescente Dona Amélia, e uma vez em liberdade procura-o, na sequência do que, sem chegar a encontrar a filha, deixa uma prenda para o neto por nascer. 

Baseado numa construção sobre espaços fechados, da casa, da loja, de restaurantes e bares, o filme abre para o exterior quando o protagonista procura o futuro avô nos lugares em que ele terá vivido. 

Manuel Mozos é um cineasta inteligente, que trabalha as coisas simples e elementares da vida, do nascimento até à morte (Jaime França/Henrique Espírito Santo) passando pela alimentação e a bebida, e sabe filmar Lisboa sorrateiramente, à socapa de uma cidade que já não existe assim, e os actores à altura precisa em cada plano. Do mesmo modo, sabe usar de uma ironia portuguesa, citadina e lisboeta, nomeadamente quanto aos desajustes das novas tecnologias para os mais velhos e quanto aos comentários destes sobre os mais novos e os novos tempos. 

Declarou que lhe interessa o que está a acabar, e este Ramiro vem muito bem na esteira do documentário Ruínas (2009) e dos filmes que, gabo-lhe a paciência, tem dedicado ao cinema português, à censura e ao amor apaixonado do cinema (João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei, 2014). 

Com argumento de Telmo Churro e Mariana Ricardo, colaboradores habituais de Miguel Gomes, fotografia de João Ribeiro, montagem de Pedro Filipe Marques e vestuário de Lucha d'Orey, Ramiro de Manuel Mozos é do melhor do actual cinema português, o seu melhor filme desde Xavier (1992), e por isso vivamente o recomendo aqui.

in «A Prenda do Avô», 5 de Março de 2018, blog Some like it hot.