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quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema (2003) de Margarida Cardoso



por António Cruz Mendes

Margarida Cardoso, nascida em Tomar, viveu em Moçambique até aos 12 anos de idade. Regressada a Portugal, estudou cinema e comunicação visual na escola António Arroio e trabalhou como assistente de realização, anotadora e fotógrafa de cena com vários realizadores (Joaquim Leitão, João Botelho, Luís Galvão Teles, Luís Filipe Rocha...) e iniciou a sua carreira como realizadora em 1996. 

Kuxa Kanema, a sua segunda longa-metragem, uma montagem de imagens de filmes produzidos pelo INC intercalada por depoimentos de pessoas que estiveram envolvidas na sua realização, pode ser abordada a partir de diferentes linhas de leitura. 

Numa primeira abordagem, é um documentário que começa por nos informar das condições de vida do povo moçambicano, sobretudo nas zonas rurais, à data da independência. A imagem das palhotas, das crianças descalças, da ausência de estruturas básicas de saúde e educação, revelam uma situação de subdesenvolvimento económico fundado numa agricultura de subsistência. Mas dá-nos também notícia das esperanças emancipadoras despertadas pela independência, bem patentes nas imagens dos grandes comícios e do entusiasmo despertado pelas palavras de Samora Machel. E, depois, das consequências da guerra de agressão perpetrada pela África do Sul e pela Rodésia, mais tarde prolongada pela guerra civil desencadeada pela RENAMO, os “bandidos amados” de que nos fala a propaganda oficial. Acontecimentos trágicos que fizeram de Moçambique um dos países mais pobres do mundo. 

Ao mesmo tempo, o filme de Margarida Cardoso documenta a história do INC, criado logo após a independência e produtor de um jornal cinematográfico de actualidades, meio imprescindível de comunicação num contexto caracterizado por uma taxa de alfabetização muito baixa. O filme fala-nos do seu nascimento, do voluntarismo dos intervenientes e da criação necessariamente apressada dos recursos técnicos e humanos indispensáveis ao seu funcionamento, do acolhimento entusiasta das unidades móveis que se deslocavam às aldeias para aí projectar os filmes realizados. E, depois, a sua decadência, vítima das circunstâncias da guerra (salas de cinema destruídas, unidades móveis impedidas de se deslocarem com segurança) e, por fim, do advento da televisão como meio privilegiado da comunicação social. 

Mas, o filme de Margarida Cardoso pode ainda ser lido como uma reflexão acerca dos vínculos que relacionam o cinema com o poder e, neste caso, com o poder político. “Captar as imagens do povo e devolvê-las ao povo” era o lema do projecto do INC. Mas, esse processo teria que ter necessariamente um programa director. O que filmar? Que critérios deveriam presidir às filmagens? Quando Jean-Luc Godard, de visita a Moçambique, propôs que os meios de que dispunha fossem oferecidos à população para que ela os pudesse usar como entendesse, essa proposta “maluca” foi rejeitada pelo governo. As autoridades moçambicanas nunca poderiam abdicar completamente da sua supervisão sobre a actividade cinematográfica. Não havia, é certo, tal como nos é dito, uma “comissão de censura” e a liberdade dos realizadores era considerável. Mas, todos tinham consciência do significado político das suas opções e acabavam por ser eles próprios, a submeter-se a uma espécie de auto-censura. Não havia, nem nunca poderia haver, filmagens que, face a dilemas inevitáveis, pudessem assumir uma posição neutral. O que filmar? Como filmar? Qualquer opção que fosse tomada reflectiria necessariamente uma determinada perspectiva dos acontecimentos vividos. E isso tornou-se ainda mais patente num cenário de guerra de agressão e de guerra civil. Era inevitável tomar partido e, a partir de certa altura, essa obrigação foi-se traduzindo numa mensagem cada vez mais maniqueísta, mais simplista, mais distante da realidade. 

De certa forma, a história contada em Kuxa Kanema confunde-se com a história de Moçambique. O estado de abandono das suas instalações do INC, parcialmente destruídas por um incêndio e, desde então, nunca recuperadas, as bobinas enlatadas que apodrecem ao abandono, guardadas por funcionários que, inactivos, esperam o dia da sua reforma, podem também ser vistas como a metáfora de um sonho que se perdeu nas encruzilhadas da história. Neste sentido, o filme de Margarida Cardoso é também um acto de resistência. Ao ressuscitar desse cemitério as imagens de um tempo de grandes esperanças, ele recorda-nos que a crença num mundo melhor é, em última análise, imorredoura.



sábado, 21 de outubro de 2023

Holy Motors (2012) de Leos Carax



por Alexandra Barros

Holy Motors acompanha Monsieur Oscar desde a sua saída de casa para o trabalho, de manhã, até ao seu regresso a casa, à noite, no fim de uma lista de actuações agendadas para o dia. Mas nem estas casas são a mesma, nem a família da qual se despede de manhã é a mesma para a qual regressa à noite. M. Oscar é actor de uma estranha forma de arte performativa. Percorre Paris, numa limusine guiada por Céline (sua motorista-secretária-amiga), de encontro a diversas situações, onde encarna personagens detalhadamente descritas nas instruções que recebe diariamente. Transforma-se, ora no “camarim” do interior da limusine, ora não se sabe onde: numa mendiga corcunda, num louco que habita os subterrâneos da cidade, num assassino e num assassinado, num actor de motion capture[1] , no pai de uma (filha real?) adolescente, num vingador que confronta uma das outras personagens que o próprio Oscar interpretou antes, num acordeonista, num moribundo, ... Cada uma destas actuações parece ser parte de uma nunca explicada história. Nalgumas situações pensamos estar perante a vida autêntica de M. Oscar, mas logo de seguida somos deixados na dúvida. Tudo é ambíguo. Nunca percebemos o que realmente se passa. Quem o contrata? Para que servem as actuações? Quem é a audiência e como é que assiste às actuações? Porque é que M. Oscar desempenha estes papéis? Apesar do visível cansaço que o “supervisor” lhe aponta, M. Oscar diz continuar a actuar “pela beleza do gesto”. Mas a beleza de tantos e diversos gestos tem o seu preço. Que gestos são afinal os seus? Num encontro fortuito (ou mais uma actuação?) com Eva Grace, uma colega de profissão que há muito não via (e com quem terá tido uma relação amorosa), ela canta as angústias existenciais e questões identitárias que os afligem. 
“Quem éramos nós? 
Quem éramos quando éramos quem éramos, naquela época? 
Em que nos teríamos tornado se tivéssemos agido de outra forma, naquela época? 
Não existem novos começos. 
Alguns morrem, alguns continuam a viver”. 

Terminado o dia de trabalho, e após estacionar a limusine entre muitas outras na garagem Holy Motors, Céline retira a peruca e coloca uma máscara branca, sem expressão, para regressar a casa. As limusines, finalmente sós, conversam entre si: “Shsss! Estou a tentar dormir. / Não tardarás a dormir, quando estiveres destinada à sucata. / Estamos a tornar-nos inadequadas. / Os homens já não querem máquinas visíveis.”  

Nas palavras de Leos Carax: “As limusines estão em total sintonia com os nossos tempos – ao mesmo tempo vistosas e saloias (…). Comovem-me. Estão ultrapassadas, como velhos brinquedos futuristas do passado. Marcam o fim de uma era, a era das máquinas grandes e visíveis.”, “Holy Motors é uma espécie de ficção científica, nas quais humanos e máquinas estão à beira da extinção, escravos de um mundo cada vez mais virtual. Um mundo do qual as máquinas visíveis, as experiências reais e as ações estão gradualmente a desaparecer“, “Na cena em que o Denis Lavant está coberto por sensores brancos ele é um trabalhador especializado em motion capture. Não muito distante de Chaplin em Tempos Modernos – exceptuando o facto de que o homem já não está preso nas engrenagens da máquina mas nas malhas de uma rede invisível.”[2] 

Estranho e enigmático, Holy Motors, como toda a grande arte, presta-se a múltiplas interpretações. Carax novamente: “O filme é simples se se aceitar que não se sabe para onde se vai.”[3] Mais ou menos como a morte, o envelhecimento, a vida.

[1] Processo em que câmeras captam movimentos dos atores, que serão depois processados digitalmente. É muito utilizado em filmes de animação, onde veio substituir as técnicas tradicionais.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Polifonias - Paci è Saluta, Michel Giacometti (1997) de Pierre-Marie Goulet



por João Palhares

Michel-Marie Giacometti chegou a Portugal em 1959. “Quando cheguei pela primeira vez a Bragança,” disse ele a Adelino Gomes em 1990[1], “a caminho de Gimonde (uma aldeia a poucos quilómetros dali) deixei o «dois cavalos» velho à entrada da cidade. Levava uma capa preta sobre os ombros, uma barba enorme, cabelos compridos. Um amigo contou-me mais tarde que a cidade saiu toda à rua (eu não reparei em nada) e que me tornei assunto de conversa durante semanas. Uns diziam que era um padre; outros um personagem mítico qualquer; e houve quem achasse que era a alma penada dum conde que, de vez em quando, voltava à terra.” 
 
Giacometti nasceu em Ajaccio, na Córsega, a 8 de Janeiro de 1929. Ficou órfão muito cedo e foi criado por uma tia e pelo marido, um funcionário colonial do estado francês na Argélia. Aos três anos, é raptado por uma tribo e salvo por uma criada negra, Herratin. Farto do racismo dos tios, que andavam sempre de arma na mão e odiavam os árabes, deixa a Argélia e viaja pelo Mediterrâneo a viver de pequenos biscates até chegar a Paris, onde estuda música, arte dramática e etnografia. É expulso de várias universidades por participar numa greve contra a discriminação dos árabes, nos anos 50. Chega à companhia de teatro de Roger Planchon e conhece Albert Camus, Juliette Gréco e Maria Helena Vieira da Silva. Ao trabalhar numa fábrica, na Noruega, interessa-se por etnologia através do contacto com um etnólogo, seu colega operário, e dedica-se pouco depois ao projecto “Mediterranée 56”, criado para investigar as tradições populares das ilhas mediterrâneas. Com pneumonia, outra vez em Paris, conhece Isabel Ribeiro, enfermeira que tratará dele e com quem acabará por se casar. É-lhe recomendado que respire o ar do oceano Atlântico para recuperar da doença, portanto vai com a mulher para Portugal… 
 
A imagem que se poderá ter da dedicação e do trabalho de Giacometti é a da chegada que ilustra o início de todos os programas de “O Povo que Canta”, série criada por si e realizada por Alfredo Tropa, em que uma carrinha da Radiotelevisão Portuguesa atravessa a paisagem de portas abertas enquanto os créditos nos anunciam ao que vem e o que busca, “VOZES E IMAGENS para uma antologia da MÚSICA REGIONAL PORTUGUESA.” Corre planícies, desce colinas e até por um rio passa para chegar ao seu destino. Nada que se compare com aquilo por que Giacometti teve de passar sem apoios para identificar, catalogar e registar cantos e ritos centenários portugueses em risco de desaparecer para sempre. Muito frio, muita fome e pouco sono. Talvez não seja de admirar, portanto, que tenha sido no Alentejo que encontrou mais cúmplices e amigos, o que lhe terá feito dizer que “quando morrer, quero ser enterrado no meio do povo português que tanto amei.” Descansa agora em Peroguarda, pequena aldeia no concelho de Ferreira do Alentejo que é onde se passa grande parte de Polifonias - Paci è saluta, Michel Giacometti de Pierre-Marie Goulet. 
 
Peroguarda é uma jóia perdida deste país onde se cruzaram os destinos de Giacometti, António Reis, José Mário Branco e Virgínia Maria Dias, poetisa dessa aldeia que nunca disse a ninguém que era poetisa, quase nunca anotou nenhum dos seus poemas[2] (di-los todos de cor), e motivou todos estes encontros. A segunda parte de Polifonias - Encontros, precisamente - é sobre isso. Mas Polifonias é também sobre afinidades fortuitas, sobre o que o corso Giacometti deixou para trás apenas para o encontrar já no final da vida e no sítio mais improvável. As imagens da Córsega-natal do nosso grande etnólogo surgem logo que o filme começa, nebulosas e acidentadas, misteriosas e cifradas, intercalando e chocando com as grandes planícies alentejanas. Entre depoimentos e muitas canções vamo-nos apercebendo da grande semelhança entre o cantar alentejano e o cantar corso, os planos repetidos como refrãos vão ganhando outros sentidos, e as ilhas do Alentejo e da Córsega reúnem-se à mesa para cantar e prestar uma última homenagem ao exilado que ao fugir de casa a ela voltou, encontrando o sentido que pouca gente viu para o acto de loucura que cometeu, abraçar um país e as suas gentes como se fossem seus. Por nos fazer ver e sentir isso desta forma tão serena e musical, Polifonias é um tesouro.

[1] in «Michel Giacometti, Povo que Canta não pode morrer», Público Magazine, 5 de Agosto de 1990.
[2] Esse trabalho foi feito por Paulo Lima e Marta Ramos, a mesma de Guerra e de Paz, culminando na edição de «Como um Pedaço de Terra Virgem», pela editora BOCA.



quarta-feira, 1 de junho de 2022

Pasolini (2014) de Abel Ferrara



por Alexandra Barros

Pasolini morreu aos 53 anos, brutalmente espancado e esmagado com o seu próprio carro. A morte de Pasolini está envolta em mistério e parece “escrita” segundo o cânone pasoliniano, envolvendo sofrimento, sexualidade, violência, escândalo, política, teorias da conspiração. 
 
Estes temas - temas de eleição também na filmografia de Abel Ferrara - dominam este filme, que acompanha Pasolini nos seus últimos dias. 
 
A narrativa é fragmentária, na tentativa de abranger todos os Pasolinis: o cineasta, o intelectual, o comunista, o homossexual assumido, o romancista, o poeta, o ensaísta, o filósofo, … Ora seguimos Pasolini no seu dia-a-dia ora estamos dentro da sua cabeça, ouvindo os seus pensamentos e assistindo às imagens e histórias criadas pela sua imaginação. Os momentos reais incluem: intimidade familiar na casa materna, entrevistas, storyboards, refeições com a mãe e amigos, escrita, um passeio nocturno no seu Alfa Romeo para procurar companhia e sexo, a morte brutal. Os momentos imaginados são pedaços de projectos inacabados: o romance e o filme em que Pasolini estava a trabalhar na altura em que morreu. 
 
A interpretação de Willem Dafoe, que faz parte da família de “actores de Ferrara”[1], e cujo fascinante rosto anguloso e sulcado por rugas tem grandes semelhanças com o de Pasolini, é (quase) unanimemente elogiada, mas o filme nem tanto. A ambição de condensar em hora e meia o pensamento político, religioso e filosófico de Pasolini, o seu processo criativo, a sua vida afectiva, … - enfim, a densidade do homem e da obra - é, de forma geral, considerada falhada. Há porém quem defenda que a sobriedade com que Ferrara tentou mostrar a vida de uma das personalidades mais chocantes do seu tempo é essencialmente confrontacional e, por inesperada, a abordagem mais arriscada. Por outro lado, a morte de Pasolini foi filmada de forma crua e violenta, como os próprios filmes de Pasolini e de Ferrara. 
 
Há muitas outras ressonâncias entre estas duas personalidades “malditas”: nos escândalos causados pelos seus estilos de vida e pelas suas obras; no gosto comum pelas classes populares e desfavorecidas, pelo submundo, pela marginalidade, pela provocação, pelas questões morais. Embora anticlericais, ambos foram fortemente influenciados pela doutrina cristã e a procura e reflexão sobre o sagrado estão fortemente presentes nas obras de um e de outro. O pior e o melhor da humanidade também. O apelo e a necessidade de experiências intensas causaram a ambos muitos tormentos e angústias pessoais. Neles, a vida (a real e a dos filmes) abarca todos os sofrimentos para poder abarcar todos os êxtases. 
 
Pasolini sujeitou-se à “crucificação” social e expôs-se aos mais diversos riscos, por desafiar a moral convencional e por dar primazia aos ímpetos primais, ao desejo, ao prazer, à liberdade. Incompreendido e inconformado, a sua existência e os valores que defendeu deram primazia a um sentido: o da consagração da vida.

[1] Willem Dafoe protagonizou 6 filmes de Abel Ferrara: New Rose Hotel, Go Go Tales, 4:44 – Last Day on Earth, Pasolini, Tomasso e Siberia. Em Tomasso, Dafoe é mesmo uma espécie de alter-ego de Abel Ferrara.



quinta-feira, 24 de março de 2022

Miss Marx (2020) de Susanna Nicchiarelli



por Joaquim Simões

A realizadora italiana Susanna Nicchiarelli causou algum impacto em Veneza com o seu penúltimo filme, Nico, 1988, filme que retrata os últimos dias da cantora alemã. A atitude punk que demonstrou nesse filme está inteiramente presente em Miss Marx, um biópico sobre Eleanor Marx, ativista política e filha mais nova de uma das figuras mais importantes da filosofia e política dos últimos séculos, o próprio Karl Marx. 

Jenny Julia Eleanor Marx, conhecida entre família como “Tussy”, nasceu e viveu na Inglaterra, onde para além de tradutora da obra do seu pai, foi também uma ativista socialista empenhada na luta pelos direitos dos trabalhadores, pela emancipação das mulheres e pela abolição do trabalho infantil. Mas o filme foca-se na outra realidade da sua vida, a realidade doméstica vitoriana, em que - apesar de toda a luta exterior - Eleanor se encontrava também na condição de oprimida passiva. Tendo-se apaixonado e casado com o dramaturgo Edward Aveling, Tussy vê-se cada vez mais embrenhada numa vida em que é infeliz, traída por um marido que não a compreende e que vem a descobrir já ter sido casado com uma jovem atriz, com quem continuava comprometido. A dada altura no filme surge entre Eleanor e Edward um diálogo que expõe sem rodeios a realidade da situação do casal, o único tão brutal durante o filme - depois surgem os aplausos; percebemos tratar-se apenas de uma representação da peça de Ibsen, “Casa de Bonecas”. Esta cena, talvez a mais conseguida do filme, condensa nela a tragédia da vida de Eleanor. Em Março de 1898, com 43 anos de idade, Eleanor suicidar-se-ia, envenando-se. 

Tomando uma abordagem algo reminiscente daquilo que Sofia Coppola fez em Marie Antoinette, este drama de época contrasta um formalismo rígido, composto por enquadramentos perfeitos e simétricos e uma decoração vitoriana irrepreensível, com sequências de fotografias documentais de motins e revoltas ao som de música punk contemporânea, evidenciando a intemporalidade da atitude revolucionária e demonstrando que as lutas de há dois séculos atrás são ainda atuais.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Benedetta (2021) de Paul Verhoeven



por André Miranda

Foram quarenta anos a percorrer o deserto, passando fome e sede, queimando a sola dos pés na agrura quente da areia. Quarenta anos até alcançar Israel. Moisés à frente, desde o Egipto, atravessando mares, combatendo povos inimigos. Até o dia em que foi avistado o rio Jordão. Do lado de lá, a Terra Prometida. O alívio e esperança que deve ter enchido todos aqueles corações. O povo escolhido cumpria o destino, assim como Moisés cumpriria o seu. Deus tomou forma e anunciou o que Moisés já sabia: que só com o olhar tocaria Israel, aguardando-lhe a morte do lado de cá do Jordão. 
 
A travessia de Benedetta é mais simples. Acompanhada pela família, viaja ao convento de Pescia, onde se devotará a uma vida casta de oração. Pelo caminho, a caravana é interrompida por um bando de homens de índoles pontiagudas. Vorazes, ameaçam e exigem ouro a troco de nada. Excitam medos nas pobres almas. Exceto na alma de Benedetta, que avança sem temor e, com ajuda divina, comanda um pássaro a defecar no olho do líder dos gatunos. Este desbraga-se a rir, encantado com tão curioso feito. Abandona os melífluos intentos. Deus vence mais uma vez. 
 
É Benedetta já adulta, quando entra no convento Bartolomea. Esta, noviça, não conhece os cantos à casa e precisa da ajuda da experiente Benedetta para encontrar a latrina. As duas aliviam-se em conjunto e, pouco depois, trocam um beijo. Fruto ou não da culpa e da avidez reprimida, Benedetta é acometida de visões. Jesus chega-lhe de várias formas e clama-a esposa. Este não lhe é casamento muito favorável, pois a violência das aparições e exigências é tal que a lança sobre a cama, doente. As mãos e os pés abrem-se como se a houvessem crucificado. Só pode ser milagre. Quem não vai na cantiga é a madre superiora. É verdade que as chagas existem e vertem continuamente, mas faltam as marcas na testa da coroa de espinhos. Não seja por isso, poucos momentos depois as feridas aparecem, não se sabe se por intercessão divina ou hábil mão terrena. 

A madre é deposta. É por demais evidente que a escolhida do céu é Benedetta. Eleita líder do convento, depressa extingue o calor há tanto contido. Deleita-se com Bartolomea em deflagrações carnais. Até figura santíssima, depois de lhe ser dada forma apropriada, colabora na satisfação do desejo. No entanto, o paraíso é de pouca dura. A ex-madre, ressentida pela usurpação, encontra-se com o núncio, convence-o a viajar até Pescia e impor ordem em convento tão transviado. Mas é tarde demais. A peste ronda. Os gânglios incham de pestilência e a morte canta. A vida purifica-se em estertor de chama.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Jagten (2012) de Thomas Vinterberg



por João Palhares

Quem são os nossos amigos quando verdadeiramente importa? Quantos são capazes de derrubar as muralhas da aparência quando esta se tenta confundir com a realidade? Movidos por uma crença e por instintos que às vezes têm de desafiar a lógica e a razão? Quando as ondas parecem tender numa certa direcção, quem é capaz de remar contra a maré? Misturando a arte e a vida, e suspeitando sempre dos consensos e dos dogmas, quem é capaz de levar o José Régio à letra e encarnar o terrível “Não sei por onde vou, não sei para onde vou. Sei que não vou por aí.”? Quando pode custar muito caro e não há buracos onde se possa esconder? 
 
Há centenas de variações sobre o tema dos “falsos culpados” na história do cinema, das dramatizações de Georges Méliès do “caso Dreyfus” ao Caso de Richard Jewell de Clint Eastwood, passando pelas caças-às-bruxas de Dreyer e de Chaplin e pelas perseguições aos inocentes de Alfred Hitchcock, portanto em A Caça de Thomas Vinterberg não estamos em terreno desconhecido. O realizador dinamarquês surpreende, no entanto, ao focar-se nas relações feitas e desfeitas, nas confusões entre o amor e o ódio e a inocência e a malícia em situações extremas. As personagens de Lucas e Theo, por exemplo, e apesar de ficarem quase imediatamente em campos opostos, continuam manifestamente a gostar um do outro e sem saber o que fazer. 
 
O Lucas de Mads Mikkelsen é acusado de “fazer coisas que só os adultos fazem” com uma criança, Kiara, filha do seu melhor amigo, que só o espectador sabe estar a mentir e ter criado uma fantasia amoral através dos vídeos pornográficos que o irmão e um amigo lhe mostraram perto do início do filme. Assim, vemos um grupo de gente próxima a Lucas, entre melhor amigo, namorada e colegas de escola, a comportar-se de forma progressivamente agressiva para com um inocente e ficamos progressivamente exasperados com os resultados práticos: a comunidade escorraça-o da escola onde trabalha, o filho vê-se obrigado a fugir de casa da mãe para estar com ele e são ambos proibidos de fazer compras no supermercado local. Matam-lhe o cão. Quando as tensões atingem o pico, mesmo depois de Lucas ser ilibado, há uma confrontação durante a missa de Natal. Lucas entra sozinho depois da cerimónia começar e vai-se sentar na terceira fila. Já tinha sido agredido no supermercado por querer comprar comida para a sua consoada solitária. A mulher que estava lá sentada, levanta-se, e procura outro lugar. Lucas vira-se e olha de frente para Theo e para a esposa, que desviam o olhar. Ele tinha-lhe dito que sabia quando Lucas estava a mentir olhando-o nos olhos, então este levanta-se e vai ter com eles. Pede-lhe para o olhar de frente, encara-o e agride-o. Theo leva-lhe comida a casa, nessa noite. 
 
E então, o cinema: parecendo estar tudo bem, durante uma cerimónia de passagem para a idade adulta do filho de Lucas, Marcus, o olhar perdido de Mads Mikkelsen nessa normalidade aparente, as hesitações nos seus gestos apreendidas de perto pela câmara de Vinterberg, os corpos hirtos e tensos dos outros caçadores, separados da assistência na cerimónia, avistados em último plano, os padrões e os frisos no chão que separam Lucas de Klara, a hesitação em atravessá-los, a dúvida e a incerteza a pairar timidamente no ambiente de festa. Passa-se para a floresta e há um tiro, vê-se um vulto contra a luz do sol. A máxima relevância da proximidade ou afastamento da câmara, da representação visual posta em jogo com os dados e as implicações narrativas, o elogio supremo à inteligência do espectador. Obrigado, Thomas Vinterberg.