por João Palhares
Michel-Marie Giacometti chegou a Portugal em 1959. “Quando cheguei pela primeira vez a Bragança,” disse ele a Adelino Gomes em 1990[1], “a caminho de Gimonde (uma aldeia a poucos quilómetros dali) deixei o «dois cavalos» velho à entrada da cidade. Levava uma capa preta sobre os ombros, uma barba enorme, cabelos compridos. Um amigo contou-me mais tarde que a cidade saiu toda à rua (eu não reparei em nada) e que me tornei assunto de conversa durante semanas. Uns diziam que era um padre; outros um personagem mítico qualquer; e houve quem achasse que era a alma penada dum conde que, de vez em quando, voltava à terra.”
Giacometti nasceu em Ajaccio, na Córsega, a 8 de Janeiro de 1929. Ficou órfão muito cedo e foi criado por uma tia e pelo marido, um funcionário colonial do estado francês na Argélia. Aos três anos, é raptado por uma tribo e salvo por uma criada negra, Herratin. Farto do racismo dos tios, que andavam sempre de arma na mão e odiavam os árabes, deixa a Argélia e viaja pelo Mediterrâneo a viver de pequenos biscates até chegar a Paris, onde estuda música, arte dramática e etnografia. É expulso de várias universidades por participar numa greve contra a discriminação dos árabes, nos anos 50. Chega à companhia de teatro de Roger Planchon e conhece Albert Camus, Juliette Gréco e Maria Helena Vieira da Silva. Ao trabalhar numa fábrica, na Noruega, interessa-se por etnologia através do contacto com um etnólogo, seu colega operário, e dedica-se pouco depois ao projecto “Mediterranée 56”, criado para investigar as tradições populares das ilhas mediterrâneas. Com pneumonia, outra vez em Paris, conhece Isabel Ribeiro, enfermeira que tratará dele e com quem acabará por se casar. É-lhe recomendado que respire o ar do oceano Atlântico para recuperar da doença, portanto vai com a mulher para Portugal…
A imagem que se poderá ter da dedicação e do trabalho de Giacometti é a da chegada que ilustra o início de todos os programas de “O Povo que Canta”, série criada por si e realizada por Alfredo Tropa, em que uma carrinha da Radiotelevisão Portuguesa atravessa a paisagem de portas abertas enquanto os créditos nos anunciam ao que vem e o que busca, “VOZES E IMAGENS para uma antologia da MÚSICA REGIONAL PORTUGUESA.” Corre planícies, desce colinas e até por um rio passa para chegar ao seu destino. Nada que se compare com aquilo por que Giacometti teve de passar sem apoios para identificar, catalogar e registar cantos e ritos centenários portugueses em risco de desaparecer para sempre. Muito frio, muita fome e pouco sono. Talvez não seja de admirar, portanto, que tenha sido no Alentejo que encontrou mais cúmplices e amigos, o que lhe terá feito dizer que “quando morrer, quero ser enterrado no meio do povo português que tanto amei.” Descansa agora em Peroguarda, pequena aldeia no concelho de Ferreira do Alentejo que é onde se passa grande parte de Polifonias - Paci è saluta, Michel Giacometti de Pierre-Marie Goulet.
Peroguarda é uma jóia perdida deste país onde se cruzaram os destinos de Giacometti, António Reis, José Mário Branco e Virgínia Maria Dias, poetisa dessa aldeia que nunca disse a ninguém que era poetisa, quase nunca anotou nenhum dos seus poemas[2] (di-los todos de cor), e motivou todos estes encontros. A segunda parte de Polifonias - Encontros, precisamente - é sobre isso. Mas Polifonias é também sobre afinidades fortuitas, sobre o que o corso Giacometti deixou para trás apenas para o encontrar já no final da vida e no sítio mais improvável. As imagens da Córsega-natal do nosso grande etnólogo surgem logo que o filme começa, nebulosas e acidentadas, misteriosas e cifradas, intercalando e chocando com as grandes planícies alentejanas. Entre depoimentos e muitas canções vamo-nos apercebendo da grande semelhança entre o cantar alentejano e o cantar corso, os planos repetidos como refrãos vão ganhando outros sentidos, e as ilhas do Alentejo e da Córsega reúnem-se à mesa para cantar e prestar uma última homenagem ao exilado que ao fugir de casa a ela voltou, encontrando o sentido que pouca gente viu para o acto de loucura que cometeu, abraçar um país e as suas gentes como se fossem seus. Por nos fazer ver e sentir isso desta forma tão serena e musical, Polifonias é um tesouro.
[1] in «Michel Giacometti, Povo que Canta não pode morrer», Público Magazine, 5 de Agosto de 1990.
[2] Esse trabalho foi feito por Paulo Lima e Marta Ramos, a mesma de Guerra e de Paz, culminando na edição de «Como um Pedaço de Terra Virgem», pela editora BOCA.
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