por João Palhares
Quem não vive sem o cinema, acredita que ele possa servir para guardar perto de nós pessoas ou coisas que já não existem. Não o separa da vida, anulando essa necessidade de ter que haver uma distinção entre um e outra. Um dos caminhos possíveis para a vida depois da morte. Quem conheceu o José Lopes, sabe que ele imitava vampiros, samurais, gangsters e lobisomens encenando ataques, gritos e mortes com pantomimas soberbas. Que construía estórias em qualquer sítio a que fosse, ajustando as suas personagens ao que os sentidos e a intuição lhe diziam sobre o ambiente e as pessoas que o rodeavam. Lições tiradas do seu trabalho etnográfico, muito certamente. Que cantava e tocava como ninguém, fazendo pulsar das cordas vocais e da guitarra uma urgência desarmante. A maior parte das vezes na rua, que é onde a música devia estar sempre. Que era um actor de teatro extraordinário. Autodidacta, instintivo, explosivo. E também um fabuloso contador de estórias ou pequenas anedotas sobre amigos e conhecidos seus como José Afonso, Luiz Pacheco, Luís Miguel Cintra, Pedro Hestnes ou Mário Viegas. Que era um ser humano prodigioso.
O Zé Lopes sempre gostou de cinema, apoiando Luís Miguel Cintra na disciplina de direcção de actores da Escola Superior de Teatro e Cinema, frequentando imenso a Cinemateca Portuguesa sempre com a sua guitarra às costas e acabando por conhecer jovens realizadores que o viam como uma espécie de irmão mais velho, ou mesmo pai, cheio de cultura e ensinamentos para lhes legar. E começou a trabalhar com eles. Assim, fez Adeus Lisboa em 2012 com João Rodrigues, Jerónimo, como é que vais? (2013) e Pastor da Noite (2016) com Mário Fernandes, e A Pena Perdida (2011), Dá-me uma gotinha de água (2013), Fala do Homem Nascido (2014), Maio Maduro Maio (2014), Soneto à Maneira de Camões (2015) e Longe (2016) com José Oliveira e Marta Ramos. Encontravam-se muito na sede do Grupo Excursionista e Recreativo Os Amigos do Minho, hoje expropriada, ponto de encontro para comer, beber, cantar e viver. Para combinar, escrever, planear e filmar a próxima curta ou a próxima longa. Com outros cúmplices encontrados por lá, como Fernando Castro, António Soares, Nelson Gonçalves, António Carvalho, entre muitos outros.
Em Guerra, filme que estreia apenas este ano, dos mesmos José Oliveira e Marta Ramos, José Lopes interpreta Manuel Santos, veterano da nossa guerra colonial que continua a ir aos encontros de antigos combatentes, camaradas de companhia, a estar com a família aparentemente pacificado e a viver a vida apesar das experiências passadas. Até não ser mais possível, porque os fantasmas não são coisas que desvaneçam da nossa mente. Terrores nocturnos, noites e tardes de bebedeira, sessões com a psicóloga e o pesadelo recomeça. Como numa descida aos infernos que se inicia lá no alto, com a inocência perdida e a saída do paraíso. Ninguém compreende a guerra, talvez sobretudo quem é obrigado a fazê-la. Em Braga, um homem que combateu nessa guerra repete quase de lágrimas nos olhos a mesma estória, na tasca que costuma frequentar: fazia parte de um coro da igreja e é convidado a cantar num casamento. Ainda não cantam, a noiva está atrasada. Esperam uns longos minutos, talvez umas horas e nada. No final, não chegam a cantar, que a noiva não aparece no casamento. Abandonou o noivo. “E ele ali a chorar,” diz várias vezes o homem estupefacto e desamparado. “A chorar.” Podia ser ele o noivo. Ou o próprio contar da estória pode ter sido a cura que encontrou para os traumas que viveu na guerra.
Depois da segunda guerra mundial, o tenente Hiroo Onoda continuou a combater durante vinte e nove anos numa ilha das Filipinas. Todas as provas que lhe foram chegando do exterior a garantir que a guerra tinha acabado, só serviam para lhe provar que continuava. Panfletos japoneses e dos seus superiores atirados do ar eram, segundo ele, obra do inimigo, fotografias e cartas da família a pedir que se rendesse eram um truque do inimigo. Entretanto vieram as guerras da Coreia e do Vietname, aviões pelo ar em manobras, tiros e ataques nas redondezas, prova cabal de que a guerra continuava. Até em tempos de tréguas podemos confundir os sinais e meter na cabeça que estamos a ser atacados e não estamos seguros, como prova o "fogo de artifício" no final de Paz, dos mesmos José Oliveira e Marta Ramos, o verso da moeda de Guerra depois de Tolstoi e Ice Cube. A Hiroo Onoda valeu Norio Suzuki, jovem que tinha três aspirações na vida: encontrar o tenente Onoda, um panda e o Abominável Homem das Neves. Por esta ordem. Conseguiu encontrar o primeiro e provar-lhe finalmente, já nos anos 70, que a segunda guerra mundial tinha acabado.
O Zé, a Marta e o Zé Lopes devem ter ouvido dezenas e dezenas de estórias sobre a guerra e os ex-combatentes por esse Portugal fora. “Bebes para afogar as mágoas, não é? Mas olha que as filhas-da-puta aprendem a nadar”. Como muitos ex-combatentes, o Manuel Santos de José Lopes não acreditou que tinha tudo terminado e permaneceu em guerra com o mundo e consigo próprio. E a ferida aberta da guerra e a ferida aberta do Zé Lopes deixaram tudo e todos expostos em sentimento e fragilidade, por talento do Zé e da Marta com um equilíbrio raro e num só sopro: as aparições de Luís Miguel Cintra e Diogo Dória, a ajuda resoluta e o companheirismo imprescindível do sargento Castro de Fernando Castro, a voz melódica e a presença incondicional de Dulce Pascoal, o cabelo rapado do soldado Lucas de Tiago Lucas, o andar hirto do filho no filme, Daniel Pereira, as danças arrítmicas e a voz de Pedro Rufino, o olhar perfurante e perspicaz de Ana Alexandre como psicóloga, a revolta saudável e alentadora da jovem rapper de Alice Duarte... Como se fossem todos juntando pós da alma e um pedaço de si para deixar na fogueira mística da milagrosa elevação final. Guerra e Paz são uma sinfonia.
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