quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Charulata (1964) de Satyajit Ray



por António Cruz Mendes

De todos os filmes realizados por Satyajit Ray, Charulata era o seu preferido. O único, diz-nos ele, do qual não alteraria nada se tivesse que o filmar outra vez. Estamos, de facto, perante um exemplo do mais puro cinema, de uma narrativa contada, não tanto pelas palavras que se dizem, mas pelas imagens que nos são dadas a ver. Imagens dos protagonistas, com certeza, mas também as das coisas e dos ambientes onde eles se movem. Um bastidor de bordar, uns binóculos, as máquinas de uma tipografia, um jardim abandonado, um baloiço, um caderno, as ondas do mar, o vento… Tudo isso nos conta uma história de sonhos reprimidos, de amores impossíveis. 

Numa das primeiras sequências do filme, vemos Charulata a deambular pela sua agradável mansão. São cerca de 10 minutos onde, salvo uma furtiva e silenciosa passagem de Bhupati, só ela está em cena. Não se ouve qualquer diálogo, mas basta-nos seguir os seus passos, observar as coisas para onde se dirige o seu olhar, aquelas que toca com a ponta dos dedos, para ficarmos a conhecer as circunstâncias da sua vida. O mundo exterior, vê-o ela através das frestas das persianas que protegem do sol os seus aposentos. Charulata vive numa gaiola dourada. 

Bhupati ama-a sinceramente, mas está totalmente absorvido pela publicação do jornal que edita e pelas causas políticas que defende. Charulata parece condenada a uma vida confortável, mas solitária. Os dias passam-se, monótonos e ociosos, entre os bordados, os livros, o piano… Porém, quando uma grande ventania varre as varandas da casa, a gaiola com pássaros oscila perigosamente – e Amal, alegre e espalhafatoso, entra em cena. 
 
Estamos à entrada do último quartel do século XIX e a Índia faz parte do Império britânico. Amal faz gala do seu desprezo pelos aspectos materiais da existência. O seu projecto de vida é descansar, escrever e… descansar. O seu mundo é o da poesia de Shakespeare, de Shelley, de Byron. Tem 23 anos e vive despreocupadamente. “Trabalho” é uma palavra amaldiçoada e o casamento uma perspectiva desagradável e felizmente longínqua. 

Numa sociedade em mudança, mas ainda presa a velhos costumes e tradições, Charulata, com Amal, descobre um mundo com novos horizontes. Os outros residentes na casa são familiares sem recursos, protegidos por Bhupati. Umpada, irmão de Charulata, é o contabilista do jornal “A Sentinela” e Manda, a sua mulher, é, para Charulata, uma companhia enfadonha. Mas, Amal, pelo contrário, é alegre e divertido. Canta, escreve, declama. Charulata encontrou alguém a quem pode falar dos seus gostos literários e entre os dois vai-se forjando uma relação de cumplicidade. As imagens da cena do baloiço oferecem-nos um momento de libertação e, no final, Amal decide escrever e Charulata oferece-lhe um caderno com a condição de que aquilo que aí for escrito não seja publicado. Será apenas deles os dois. 

Tal como a solidão, o amor não se exprime em palavras. Charulata é um filme de silêncios. Quem fala são as imagens. Enquanto Amal se debruça sobre o caderno e começa a escrever, Charulata perscruta a natureza com os seus binóculos. O acaso leva-a a descobrir uma mãe que dá o colo a um filho pequeno. Os binóculos desviam-se e focam-se no rosto de Amal. O plano seguinte é o do rosto de Charulata e uma sombra toma conta do seu olhar. A sequência termina num anti-climax quando ela fica a saber que foi o seu marido que pediu a Amal que a incentivasse a escrever. 

O não-dito percorre todo o filme. Não são precisas palavras para expressar os sentimentos da Charu quando assiste, mergulhada na sombra, ao diálogo entre o seu marido e Amal a propósito de um casamento que o levaria à terra de Shakespeare e a um sonhado Mediterrâneo. Aliás, elas contradizem-nos quando regressa à luz, irradiando felicidade, quando essa conversa termina com um “não”. Ou aqueles que perpassam Amal quando vê a amargura de Bhupati diante da traição de Umpada e que decidem a sua partida. 

Na sequência da praia, o ritmo das ondas que beijam o areal onde Bhupati e Charulata fazem planos par o futuro parecem anunciar uma possível futura, serena, felicidade. Mas, de novo, o vento traz notícias de Amal e a leitura da carta onde ele se despede do casal de amigos destrói os últimos diques que continham uma paixão durante tanto tempo reprimida. 

Bhupati ama de facto Charu e ela respeita-o e admira-o. As últimas imagens dizem-nos que a reconciliação é a única saída possível. Mas, a imagem que se congela no momento em que as suas mãos quase se tocam, revela-nos as fronteiras onde, para sempre, há-de ficar confinado o seu casamento.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Nayak (1966) de Satyajit Ray



por Alexandra Barros

“Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. [...] Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha [...] Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. [...] Sinto-me viver vidas alheias [...] uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.” Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.

Todos somos múltiplos. Quando é que somos quem realmente somos, quando é que somos quem gostaríamos de ser, quando é que somos o que temos que ser? O Herói deste filme construiu uma persona pública para conseguir o que mais ambicionava, fama e dinheiro, mas os custos dessa máscara vêm a revelar-se muito pesados. 

O Herói é Arindam Mukherjee, uma estrela do cinema indiano, que viaja num comboio para Nova Deli, onde irá receber um prémio prestigiado. Aí conhece uma jornalista, Aditi Sengupta, que apesar de não ter interesse nem em Arindam nem nos seus filmes, lhe pede uma entrevista, com a qual ganhará leitoras para a sua revista. Inicialmente Arindam recusa mostrar a “carne e o sangue” como lhe sugere Aditi, para não desfazer a imagem grandiosa que o público tem dele. Mas os medos, inseguranças e arrependimentos inconfessados já chegaram à garganta. Como não corre o risco de desiludir Aditi (que não o admira), acaba por falar com ela sem encenações ou filtros. 

Arindam começa por contar o sonho que acabou de ter durante um breve período em que adormeceu. No sonho, Arindam vagueia por entre colinas de cumes arredondados onde esvoaçam folhas ao sabor do vento. Arindam está feliz, as colinas são pilhas de dinheiro e as folhas são notas. Contudo, um após outro, toques de telefone sufocam o bucolismo inicial e a fortuna descomunal acaba por engolir Arindam. É uma cena surreal memorável, com a magia peculiar dos efeitos-especiais analógicos, mais focados na “poesia visual” e simbolismo que nos excessos mirabolantes dos efeitos CGI atuais. 

A tentativa de perceber o sonho é o início de uma viagem com sabor a Morangos Silvestres[1], paralela à do comboio. Uma viagem ao passado, ao longo da qual Arindam revela os seus conflitos interiores, dores de consciência e aquilo de que abdicou para ser rico e célebre. As primeiras angústias surgiram no filme onde se iniciou. Face à autoridade do respeitado actor principal, representou de acordo com as orientações que recebeu dele, mesmo sabendo que teria feito melhor se tivesse adoptado um registo mais natural. Daí para a frente continuou a submeter-se às exigências da indústria cinematográfica e sacrificou convicções, amizades e o respeito de quem lhe era querido, para não pôr a sua carreira em risco. Vive rodeado da entourage que o serve. Nunca só, mas sempre só. Sabe que será abandonado quando deixar de poder oferecer o melhor chá Darjeeling à sua equipa. O público adora-o como a um Krishna dos tempos modernos, mas o público é inconstante e imprevisível. Quando deixar de agradar, será substituído por novos deuses. 

Arindam não é, no entanto, o único que actua mesmo fora do palco e, apesar da vasta experiência no ofício da representação, é enganado pela “actuação” de uma aspirante a sua “heroína”. Entretanto, outros passageiros representam também os seus papéis. No mesmo compartimento de Arindam viaja um casal com uma filha. O pai, Haren Bose, é um empresário bem sucedido com quem um executivo de publicidade, Pritish Sarkar, que viaja no mesmo comboio, ambiciona fazer negócio. Para isso, tenta convencer a sua mulher, Molly, a fazer o que for necessário para agradar ao potencial cliente. Ela fica desgostosa com a proposta, mas sob pressão propõe uma troca de favores ao marido. Representará o papel de seduzida perante os avanços de Bose, se Pritish permitir que ela seja actriz de cinema. Esta história secundária evoca O Desprezo de Godard, filme que aliás se cruza com O Herói nas críticas que ambos fazem ao cinema orientado para objectivos puramente comerciais. 

São vários os companheiros de viagem de Arindam que criticam e expressam o seu desapreço pelo cinema indiano: Aditi, Aghore Chatterjee (um jornalista do The Statesman[2]), Haren Bose e o próprio Arindam. Censuram a indústria cinematográfica pela orientação para o lucro e o gosto popular, e pelos filmes demasiado fantasiosos e que nada dizem sobre o mundo real. Shankar, o mentor de Arindam no tempo em que este se dedicava ao teatro, aparece num flashback a criticar o cinema de forma geral, onde os actores não têm espaço para a sua arte, são apenas marionetes nas mãos do realizador e dos responsáveis pela filmagem, pelo som, pela montagem, ... 

Aditi, todavia, acaba por perceber que o cinema de entretenimento tem o seu valor. Pelo menos momentaneamente, proporciona felicidade aos espectadores. Compreendeu também que Arindam se esforça para proporcionar essa felicidade aos seus fãs e que desempenhar o papel de “estrela” exige uma grande disponibilidade para as muitas solicitações dos que o idolatram. 

Com tudo o que ficou pelo caminho, a única experiência de calor humano que resta a Arindam é a devoção dos admiradores. Aditi rasga os apontamentos escritos no decorrer da entrevista. Os heróis, por vezes, também precisam de ser salvos.

[1] de Ingmar Bergman.
[2] Um importante jornal indiano, escrito em língua inglesa.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Kapurush (1965) de Satyajit Ray



por André Miranda

Em 1923, quando Satyajit Ray tinha apenas dois anos, o seu pai, Sukumar Ray, escritor reconhecido pela poesia absurda infantil, morre. Confrontada com uma morte tão precoce, Suprabha Ray, muda-se com o filho para a casa de um irmão, sustentando-se com um parco rendimento obtido com um emprego para o qual todos os dias se deslocava de autocarro, desde o Sul até ao Norte de Calcutá. Foi Suprabha quem convenceu Ray, após este se ter formado em economia pela Universidade de Calcutá, a estudar pintura em Visva-Bharati. Aqui Satyajit Ray, até ali mais exposto à cultura ocidental, conhece a arte oriental, assim como é orientado por famosos pintores indianos. Sobre um deles, Benode Behari, faria mais tarde um documentário. 

Para além da mãe, também a esposa, Bijoya Ray, foi uma importante influência na carreira artística de Satyajit Ray. Contra a vontade da família e das normas da sociedade os dois casaram-se secretamente em 1949. Um ano depois, após a aprovação da mãe de Satyajit, voltam a casar, desta vez seguindo todas as tradições bengali. Bijoya, que teve uma fugaz carreira como atriz, era a primeira a ler o guião dos filmes de Satyajit, contribuindo com ideias e sugestões. 

Não é, pois, de estranhar que tanto no filme de hoje, como n’A Grande Cidade, exibido na semana passada, as personagens femininas tenham uma força e dimensão pouco habituais, quando consideramos a época em que os filmes foram feitos e a força do patriarcado na sociedade indiana. 

Somos incapazes de definir Karuna, a personagem feminina; se a sua confiança é mera estratégia de infligir dor naquele que a desiludiu, ou se é uma aceitação do destino que lhe coube e com o qual se sente confortável. O que sabemos é que, das três personagens, é ela quem não demonstra nenhuma fraqueza. O marido afoga-se em álcool pela noite fora, consumido pela solidão da vasta propriedade, até que a música pare e apenas se ouçam os latidos dos cães. O outro homem, antigo interesse romântico de Karuna, vive preso no arrependimento, de olhar constantemente agoniado e os gestos tolhidos pela indecisão. 

Baseado num conto do escritor bengalês, Premendra Mitra, trata-se de um filme curto, mas nem por isso menos capaz de revelar a subtileza das emoções humanas. A câmara de Ray move-se sem nunca chamar à atenção, atenta aos gestos e olhares, ao que existe para além das palavras. A história é contada de forma dinâmica, recorrendo a flashbacks para revelar o passado. Se rearranjássemos as cenas pela sua ordem temporal ser-nos-ia possível observar como os espaços ficam cada vez mais amplos e como as personagens se afastam e se movem em direções opostas. Lançado em 1965, O Cobarde nunca deixará de ser atual.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Mahanagar (1963) de Satyajit Ray



por Alexandra Barros

Novembro será inteiramente dedicado a Satyajit Ray, reconhecido mestre do cinema indiano e da História do Cinema. Acerca dele, outro mestre, o japonês Akira Kurosawa afirmou: “Não ter visto os filmes de Ray é ter vivido no mundo sem nunca ter visto a lua e o sol.” 

Satyajit Ray realizou 36 filmes, incluindo ficção, documentários e curtas-metragens. Pather Panchali, o seu primeiro filme (e primeiro da Trilogia de Apu), ganhou dezenas de prémios internacionais. O seu trabalho continuou a ser reconhecido ao longo da vida e foi premiado em diversos Festivais de Cinema prestigiados (Berlim, Cannes, Veneza, ...). Em 1992, pouco tempo antes de morrer, foi distinguido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood com um Óscar Honorário, “em reconhecimento ao seu raro domínio da arte da imagem em movimento e à sua profunda perspectiva humanista”. 

Charulata, A Grande Cidade, O Herói e A Trilogia de Apu aparecem recorrentemente nas listas dos melhores de Satyajit Ray, compiladas pelos muitos cinéfilos que o acarinham. Salvo a Trilogia, todos fazem parte do ciclo que lhe dedicamos. Ray era também cineclubista e um cinéfilo apaixonado. 

A Grande Cidade acompanha um drama familiar, enquadrado num olhar sobre a Índia pós-colonial. É uma época de transição, em que as mudanças sociais inevitáveis chocam com os costumes tradicionais, dando origem a conflitos e dores pessoais, como os retratados no filme. 

Subrata e Arati vivem em Calcutá e são responsáveis por um núcleo familiar formado por um filho pequeno, os pais de Subrata e a sua irmã mais nova. Subrata trabalha num banco, mas o seu salário dificilmente chega para todas as despesas familiares. Para ajudar a superar as dificuldades económicas, Arati arranja um emprego. Quando o banco de Subrata vai à falência, ele perde o emprego e Arati passa a sustentar sozinha a família. Apesar de essa ser a única solução imediata para a subsistência familiar, e de Arati estar feliz por poder ajudar a família, ninguém aceita bem a situação. Os preconceitos sociais e os ressentimentos pessoais do marido, sogro e filho de Arati minam particularmente a harmonia anterior. Para Arati há agora dois mundos, aparentemente irreconciliáveis. A cidade, o seu trabalho, batom, óculos de sol, por um lado; a casa e a família, por outro. É no interior da sua casa, no interior das casas que visita (clientes e Edith, a sua colega e amiga anglo-indiana) ou nas que são visitadas pelos outros membros da família, que quase toda a acção do filme decorre. A cuidada composição destes espaços cénicos serve a identificação e caracterização dos diversos “mundos” que coexistem na sociedade indiana (classes sociais, grupos étnicos, passado colonial). 

A emancipação feminina, tema ainda universalmente relevante, não é a única questão social focada que continua atual. Subtilmente entrelaçadas na narrativa principal temos outras preocupações: o lugar dos mais velhos e reformados na sociedade, o drama das falências dos bancos, os preconceitos raciais, a herança colonial, a estrutura das classes sociais. Em A Grande Cidade temos assim um exemplo perfeito do que Satyajit Ray disse pretender capturar nos seus filmes: tanto o que é único na experiência indiana quanto o que é universal. 

A universalidade e intemporalidade da matéria dos filmes de Satyajit Ray será uma das razões pela qual eles “falam” a tantas pessoas. Embora o seu cinema seja intrinsecamente indiano, é também de todo o lado!