por André Miranda
Em 1923, quando Satyajit Ray tinha apenas dois anos, o seu pai, Sukumar Ray, escritor reconhecido pela poesia absurda infantil, morre. Confrontada com uma morte tão precoce, Suprabha Ray, muda-se com o filho para a casa de um irmão, sustentando-se com um parco rendimento obtido com um emprego para o qual todos os dias se deslocava de autocarro, desde o Sul até ao Norte de Calcutá. Foi Suprabha quem convenceu Ray, após este se ter formado em economia pela Universidade de Calcutá, a estudar pintura em Visva-Bharati. Aqui Satyajit Ray, até ali mais exposto à cultura ocidental, conhece a arte oriental, assim como é orientado por famosos pintores indianos. Sobre um deles, Benode Behari, faria mais tarde um documentário.
Para além da mãe, também a esposa, Bijoya Ray, foi uma importante influência na carreira artística de Satyajit Ray. Contra a vontade da família e das normas da sociedade os dois casaram-se secretamente em 1949. Um ano depois, após a aprovação da mãe de Satyajit, voltam a casar, desta vez seguindo todas as tradições bengali. Bijoya, que teve uma fugaz carreira como atriz, era a primeira a ler o guião dos filmes de Satyajit, contribuindo com ideias e sugestões.
Não é, pois, de estranhar que tanto no filme de hoje, como n’A Grande Cidade, exibido na semana passada, as personagens femininas tenham uma força e dimensão pouco habituais, quando consideramos a época em que os filmes foram feitos e a força do patriarcado na sociedade indiana.
Somos incapazes de definir Karuna, a personagem feminina; se a sua confiança é mera estratégia de infligir dor naquele que a desiludiu, ou se é uma aceitação do destino que lhe coube e com o qual se sente confortável. O que sabemos é que, das três personagens, é ela quem não demonstra nenhuma fraqueza. O marido afoga-se em álcool pela noite fora, consumido pela solidão da vasta propriedade, até que a música pare e apenas se ouçam os latidos dos cães. O outro homem, antigo interesse romântico de Karuna, vive preso no arrependimento, de olhar constantemente agoniado e os gestos tolhidos pela indecisão.
Baseado num conto do escritor bengalês, Premendra Mitra, trata-se de um filme curto, mas nem por isso menos capaz de revelar a subtileza das emoções humanas. A câmara de Ray move-se sem nunca chamar à atenção, atenta aos gestos e olhares, ao que existe para além das palavras. A história é contada de forma dinâmica, recorrendo a flashbacks para revelar o passado. Se rearranjássemos as cenas pela sua ordem temporal ser-nos-ia possível observar como os espaços ficam cada vez mais amplos e como as personagens se afastam e se movem em direções opostas. Lançado em 1965, O Cobarde nunca deixará de ser atual.
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