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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Crash (1996) de David Cronenberg



por Vítor Ribeiro

[Um contributo, na subscrição do manifesto assinado pelos editores do À pala de Walsh, na defesa e elogio das edições físicas como um dos caminhos de suporte da cinefilia, da diversidade e da transmissão entre gerações das obras, do reconhecimento dos seus autores, da valorização do cinema e da sua linguagem.] 
 
A cinefilia organiza-se nas nossas cabeças, na nossa memória, mas também precisa de outro espaço, de espaço físico. No armário onde junto os filmes (a maioria em DVD), a disposição faz-se pela ordem alfabética do nome dos realizadores, uma questão de organização, claro, mas também do pagamento da dívida à política dos autores, conforme a prescrição dos Cahiers du Cinéma. A parte superior do armário permite que esta estrutura de arrumação seja questionada, com a introdução dos santinhos no altar: cineastas com quem nos deitamos mais vezes, o que permite uma reaprendizagem das nossas filiações, um conjunto de associações, em que se juntam os irmãos Scorsese e Schrader, ou os camaradas de burlesco Chaplin e César Monteiro. 
 
Fui comparar as durações, da cassete VHS e da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara, considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. 
 
Nesse armário, um dos santinhos é, naturalmente, David Cronenberg, onde se inclui a edição em DVD de Crash (1996), que estreou em sala em Portugal, em Outubro de 1996 e que será reposto no dia 7 de Janeiro. Aficionado de Cronenberg e leitor de Ballard, tenho na memória três peregrinações à sala de cinema ao encontro da carne e da máquina, sendo que a primeira terá sido no Nun’Alvares, maravilhoso cinema de cidade, na Guerra Junqueiro, Porto. Alguns meses depois (não me recordo se a janela para a edição em vídeo era de três ou de seis meses), um amigo que trabalhava num clube de vídeo ficou com o encargo de me avisar da chegada do VHS de Crash
 
Recolhi-me com aquele objecto de desejo no domicílio, mas logo nas primeiras sequências algo de estranho aconteceu: pareciam faltar partes das cenas do filme que tinha na memória. Mas, só tive a certeza, já passada mais de metade da duração do filme, na cena que se segue ao encontro dos corpos de Vaughan e Catherine na lavagem automática do carro dele, da sua cama sobre rodas. No domicílio, na mesma cama onde James e Catherine tinham fantasiado com as cicatrizes do corpo estropiado de Vaughan, Catherine encolhida no seu corpo coberto de escoriações, marcado pelos movimentos maquinais de Vaughan, era afagada pelo toque de James e pela música orquestrada de Howard Shore, a substituir as guitarras metálicas que soaram até aí. Cena lindíssima, expressão de intimidade, que aquela edição havia retalhado, talvez para ocultar os genitais de Deborah Unger sugestionados pela versão integral. 
 
Fui comparar as durações, da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara (a internet era ainda pré-histórica e o Google uma quimera), considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. Cheio de convicção, que devo ter carregado com a indignação de quem não está habituado a viver com a censura, escrevi ao distribuidor da edição em VHS. A responda não demorou, lamentavam o erro, tinham utilizado por acidente uma cópia distribuída no Reino Unido (onde a censura de filmes era, talvez ainda seja, comum), mas iriam repor o filme, com a edição correcta. Algumas semanas depois, chegou pelo correio uma nova cassete VHS, com a metragem certa e uma carta de agradecimento, que guardei, mas não sei onde. 
 
Uma dúzia de anos depois, em Maio de 2009, uma Mostra de Ficção Científica – On the Trek – tão peregrina, que só conheceu uma edição, na Casa das Artes de Famalicão. À boleia da ante-estreia europeia(!) do reboot de Star Trek armado por J. J. Abrams, um panorama de cinco dias estrelado por um Programa Ballard, onde recuperámos uma cópia em película de Crash, também em película, Aparelho Voador a Baixa Altitude (2002), o Ballard das ruínas de Tróia por Solveig Nordlund, Videodrome (1983), um Cronenberg sem a escrita mas com o espírito ballardiano, e uma exposição em diálogo com o CCCB: Centre de Cultura Contemporània de Barcelona. E a fechar a On The Trek, Wall-E (2008). Nos primeiros trinta minutos da mais bonita peça do catálogo Pixar, nas ruínas de um novo mundo, despovoado, em que os arranha-céus são já esculturas cobertas de poeira e de tempo, um robô obsoleto, mas trabalhador, arruma e empilha lixo retirado de uma extensa clareira. 
 
Wall-E vai catando vários objectos que arruma no seu atrelado, memorabilia sentimental organizada em prateleiras (onde ele próprio se arruma no fim do dia de trabalho): cassetes VHS, onde ele revê musicais, que também grava no seu dispositivo, um cubo mágico, talheres, relógios, espanta-espíritos, um globo terrestre, objectos e brinquedos, que ele testa e experimenta, cataloga e organiza. Do ecrã de Wall-E solta-se um pedaço de Hello, Dolly! (1969), o tema “It Only Takes a Moment”: não consigo imaginar maior elogio à materialidade. 
 
in «Crash, uma edição censurada», À Pala de Walsh, 31 de Dezembro de 2020. 
 

[O autor deste texto está a preparar uma análise mais aprofundada sobre Crash, que oportunamente partilharemos, talvez até noutra exibição do filme.]



sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Solitarium (1996) de Manuel Mozos



por Fernando Magalhães

O maior “pecado” da pop continua a ser o de querer deixar de o ser. Rodrigo Leão insiste na menção a referenciais pop, em relação ao seu trabalho, mas a evidência mostra que a sua alma deriva hoje por outras frequências do espectro musical. Theatrum, segundo álbum com os Vox Ensemble, depois de Ave Mundi Luminar e do EP Mysterium, é o típico objecto que é fácil denegrir, sob as acusações de “pretensiosismo” e de acomodação a uma leitura simplificada da música clássica. 

Seria fácil classificar Theatrum como a mera procura do bonito e do politicamente correcto, com base em referências que vão de Michael Nyman a Mozart e Górecki. Ao invés, estamos perante algo mais do que simples teatro. Ao contrário de Ave Mundi Luminar, onde é por demais óbvia a sedução que a lógica das estruturas formais exerceu sobre Rodrigo Leão, em Theatrum percebe-se um arrebatamento e uma interiorização das formas “eruditas” que colocam a sua música acima, ou para além, da descodificação imediata das formas. 

A teatralização aqui é da ordem do drama, ou da tragédia, no sentido clássico grego, e de pulsações cuidadosamente revertidas para uma linguagem que se assume como liturgia. Com o Vox Ensemble e a ajuda do coro Ricercare juntou Rodrigo Leão uma tapeçaria de tristeza onde as formas clássicas se fundem com a artilharia gótico-industrial de uns In The Nursery (“Locus secretus”) e a computação tecnológica, aspecto no qual o seu trabalho se revela particularmente notável, seja na sequenciação dos “samples” percussivos ou ambientais, seja na simulação de mil e um arcaísmos, de que são exemplos os excelentes “Dies irae”, “O corredor” e “Contra mundum”. 

Theatrum despede-se e celebra o luto de uma música, a pop, em agonia. Ou de algo mais, na lamentação final, cantada em russo – “O novo mundo” – tal como no início, “In memoriam”, a bailar no som de sinos que sabemos serem os da loucura… 

16 de Outubro de 1996.

in blog «fmstereo»

quarta-feira, 17 de maio de 2017

The Sunchaser (1996) de Michael Cimino



por João Palhares

Foi Michael Cimino quem disse que, depois de Heaven’s Gate, lhe tinha sido impossível realizar um filme que quisesse mesmo fazer – ou que partisse dele – e portanto tentou fazer o melhor possível do que lhe era oferecido. E pode-se olhar para os seus últimos filmes como filmes de encomenda, mas fazê-lo é talvez perder ou passar ao lado da sua beleza e dos seus temas, que dialogam com os dos três primeiros. Em The Sunchaser, fica a sensação que se encerra um ciclo (sabe quase a um “adeus”, até), se se o vir como o negativo ou a re-interpretação de Thunderbolt and Lightfoot. Ainda vivemos num tempo em que qualquer filme dele tirando The Deer Hunter tem que ser recuperado e defendido, o que é pena. Mas tentemos. 

The Sunchaser apresenta-nos Brandon ‘Blue’ Monroe primeiro, sonhando já com horizontes longínquos ao som duma das últimas bandas-sonoras de Maurice Jarre (compositor de Georges Franju e David Lean) e olhando muito além daquele carro e daquela auto-estrada, para Dibé Nitsaa. Como o próprio filme olha já além do seu início e põe em evidência o contraste ‘Blue’ / Reynolds, cortando para o carro da personagem interpretada por Woody Harrelson (aqui no seu melhor papel, quer-me parecer) enquanto acompanha Esther Philips em What a Difference a Day Makes, que está a passar na rádio. Mal sabe ele ainda a diferença que esse dia vai mesmo fazer. São tudo sons, contrastes e sentimentos que se vão repetir mas que neste momento são frustrados (porque ainda é cedo) com o corte brusco do carro da polícia em que ‘Blue’ se encontra para o carro do Dr. Michael Reynolds e com este a desligar a rádio também bruscamente para ir para o trabalho, mais um dia. Lá, parece tratar os pacientes de modo muito superficial e exalta-se com pequenas coisas como a licitação de uma casa – a maneira muito moderna e urbana de lidar com a vida, curar as frustrações em relação às coisas importantes com obsessões pelas coisas pequenas. 

Como notou Anton Giulio Mancino no seu texto, “O Anti-Americano”, sobre Cimino “a cultura dominante do adulto, fundada tanto numa saudável dieta vegetariana e na recusa de substâncias cancerígenas como nos privilégios e na disparidade social, só fora da lei se pode relacionar com a subcultura conflituosa dos bairros suburbanos, representada pelo jovem mestiço parricida”. O encontro dá-se depois de ‘Blue’ saber que tem um cancro incurável e só um ou dois meses de vida, resolvendo raptar Reynolds e ir para Dibé Nitsaa, uma das seis montanhas sagradas dos Navajos (‘Blue’ tem ascendência nativa), para se curar. É cedo no filme que Cimino nos mostra que há vários tipos de tumores, uns que corroem o corpo e outros que corroem o espírito, que é como dizer o de ‘Blue’ e o de Reynolds, respectivamente. A viagem e as discussões entre os dois tornam-se a cura para tudo à medida que a paisagem muda e os jogos e as artimanhas entre eles se vão suavizando e eles próprios se começam a conhecer. E isto, o irem-se conhecendo, é construído de uma maneira que me parece exemplar: gradualmente, a violência e os impasses vão desvanecendo, até àquela noite em que Reynolds, depois de assaltar uma farmácia, tem a conversa com ‘Blue’ sobre o passado (conversa que teve sempre a necessidade de ter com alguém, mas que nunca aconteceu). Liberta-se o tumor espiritual do doutor nessa noite, ‘Blue’ não cai em coma definitivo e dissipam-se os nevoeiros do olhar que os impediam de se encarar um ao outro (dissipação que Cimino compreende perfeitamente ao filmar o plano da paisagem revelada pelas névoas a serem levadas com o vento). Toda esta viagem foi estripada pelas críticas contemporâneas ao filme com palavras como “previsível” e “anedótica”, só que o que alguns “maomés” (para quem os “falhanços” de Cimino são “business as usual”) não sabem nem querem saber é que não interessa em que ordem se sucedem os eventos ou os pontos da estória mas sim se têm importância, se progridem num sentido e, idealmente, se carregam o peso do mundo às costas. Se há um fulgor e um clarão que se sente na montagem. Como este filme os tem e os faz revelar-se nos com mestria absoluta. 

Que é o que nos leva à estrondosa sequência final: depois do carro a correr junto com os cavalos e a euforia de ‘Blue’ e Reynolds ao guiá-lo, depois da descida prodigiosa até à casa do navajo curandeiro e mais uma recaída de ‘Blue’ e depois do primeiro vislumbre de Dibé Nitsaa, “at the point where three streams become one”, da conversa com o velho curandeiro e da despedida; a elevação em todos os sentidos daqueles dois personagens na talvez mais prodigiosa sequência engendrada por Michael Cimino: um abraço, a oferta de um anel já não maldito mas sagrado e as corridas eufóricas para um destino secreto, de oferta às águas e às pradarias do Oeste e que concretizam o que a montagem inicial do filme não dizia mas já antevia. Os helicópteros e as águias, arautos da desgraça e da salvação. As neves nos montes e as cordas e sopros da pauta de Jarre. A certeza que há algo que nos supera e que o homem não é o peso nem a medida de todas as coisas. O milagre disso tudo. The Sunchaser pode até nem ser o melhor filme de Michael Cimino mas é irreparavelmente o meu preferido: “May beauty be before me, may beauty be behind me, may beauty be above me, may beauty be below me. May beauty be all around me”… 

texto publicado originalmente no site À Pala de Walsh, com algumas modificações para esta folha