segunda-feira, 30 de novembro de 2020

183ª sessão: dia 3 de Dezembro (Quinta-Feira), às 19h00


Dezembro está aí à porta e como é habitual, depois de Do Céu Caiu Uma Estrela de Frank Capra, Os Sinos de Santa Maria de Leo McCarey, O Outro Lado da Esperança de Aki Kaurismaki, Merlusse de Marcel Pagnol e Francesco, giullare di Dio de Roberto Rossellini, juntamos o cinema e o Natal e celebramos o Natal no cinema. Assim, este ano redobramos as forças e convocamos primeiro as estrelas de Ingmar Bergman, com a exibição do seu filme testamento Fanny e Alexandre, a nossa próxima sessão no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa..

Na sua segunda auto-biografia, o realizador sueco escreveu que “perto do final dos anos 70, era para dirigir Os Contos de Hoffman na Ópera de Munique. Comecei a fantasiar sobre o verdadeiro Hoffmann, que se sentava na adega de Luther, doente e quase a morrer. Escrevi nas minhas notas: “A morte está sempre presente. A barcarola [uma canção de barcos veneziana], a doçura da morte. A cena de Veneza fede a decadência, lascívia crua, e perfumes fortes. Na cena de Antonia, a mãe é intensamente assustadora. O quarto está povoado de sombras que dançam e bocas que abrem. O espelho na ária do espelho é pequeno e brilha como uma arma do crime.” 

"Num dos contos escritos por Hoffmann há um quarto mágico, gigante. Foi esse quarto mágico que eu quis recriar nos palcos. O drama seria representado com aquele quarto situado em primeiro plano e a orquestra em segundo plano. 

"Também há uma ilustração das histórias de E. T. A. Hoffmann que me assombrou vezes sem conta, uma imagem do Quebra-Nozes. Estão duas crianças muito próximas a tremer no crepúsculo da véspera de Natal, esperando impacientemente que se acendam as velas da árvore e que se abram as portas para a sala de estar. 

"Foi essa cena que me deu a ideia de começar Fanny e Alexandre com uma celebração de Natal."

Em Ingmar Bergman: O Cheiro Esquisito do Cinema, parte do catálogo dedicado ao cineasta editado em 1989 pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, João Bénard da Costa pergunta se "são fantasmas ou são reais Oscar Ekdahl e o Bispo quando, depois de mortos, aparecem a Alexandre? Obviamente qualquer resposta categórica é grosseira e redutora. Mas no mundo final de Bergman, parecem abolir-se as fronteiras entre a vida e a morte, ou pelo menos a morte é uma longa passagem que não cessa no momento físico dela.

"Se o concedermos para Lágrimas e Suspiros ou para Fanny e Alexandre (ou, antes, para A Hora do Lobo) pouca ou nenhuma razão nos assistirá se recusarmos a mesma "lógica" a Face a Face. É tão possível sustentar que, depois da sua tentativa de suicídio, Jenny vive "intermitentemente" tempos de vida e tempos de morte (na zona entre uma e outra) como defender que a partir do fabuloso grande plano que precede e acompanha o gesto com que engole os comprimidos, Jenny está tão morta como Agnes, Oscar ou o Bispo e que, a partir daí, a visão face a face que o filme propõe (metafísica e figuradamente, pois nunca Bergman levou tão longe o uso insistente do grande plano, até a uma escala que ultrapassa os limites abissais do uso que já fizera de tal figura gramatical) é a visão da morte, é a visão da morta*. Como nos filmes e projectos contemporâneos de Face a Face** essa vertiginosa transição é progressiva."

"* É possível aproximar esta visão da morte - estas visões de mortos - das crenças orientais (búdicas) sobre o período que se segue à morte. De acordo com tais crenças (cf. nomeadamente O Livro dos Mortos tibetano) o espírito do morto recusa a separação do seu próprio corpo e tenta habitá-lo como se a vida continuasse. Por isso, a tarefa dos vivos é a concentração, de modo a convencer o morto da realidade da sua morte e a fazê-lo aceitar a separação do espírito e do corpo. Só assim se evitará que a alma continue errante (alma penada) na desesperada busca do seu invólucro carnal. Só assim terminará a terrível angústia do morto e este poderá conhecer a paz. De certo modo, as visões da morte em Lágrimas e Suspiros, Face a Face ou Fanny e Alexandre parecem evocar esta milenária crença.

"** Nomeadamente no script do filme jamais realizado - O Príncipe Petrificado - e em Da Vida das Marionetas, obra com fortíssimas semelhanças com Face a Face."

Já Robin Wood, para a Canadian Forum nº 41, escreveu que "a afirmação de Bergman de que Fanny e Alexandre vai ser o seu último filme deve-se entender indubitavelmente de forma mais retórica que literal: já terminou outro. É certo que especificou que ia ser o seu último filme para cinema, e o novo, Depois do Ensaio, foi feito para a televisão sueca – mas também Fanny e Alexandre o foi na sua forma original e mais longa e o novo filme já foi adquirido para distribuição em sala fora da Suécia: as distinções são vagas. No entanto, a declaração continua a ser útil para salientar a natureza particular de Fanny e Alexandre: a de um testamento e soma artísticos, o tipo de trabalho que qualquer cineasta gostaria que o seu ‘último filme’ fosse. Também é o filme mais geralmente acessível que Bergman fez em muitos anos, talvez desde Morangos Silvestres e é-o por impressionante contraste ao imediatamente anterior Da Vida das Marionetas. Ainda assim, a sua acessibilidade e popularidade merecidas tanto entre os críticos como o público não garantem necessariamente que tenha sido totalmente entendido; eu fico impressionado com o facto de a maioria das críticas terem ignorado ou sido muito vagas precisamente sobre os aspectos do filme que me parecem mais interessantes, aspectos centrados em Ishmael. Ou os nossos críticos não sabem o que fazer de Ishmael, ou não querem fazer nada em relação a ele (ela). Um longo artigo sobre o filme por William Wolf na Film Comment de Junho, por exemplo, não consegue oferecer mais do que ‘O Alexander resgatado ... conhece o misterioso sobrinho de Isak, Ishmael, que o apresenta ao sobrenatural’ (que Alexander já tinha conhecido em várias ocasiões, já agora) ‘com uma conversa hipnotizante de poderes mágicos’. Na verdade, a comunicação mais significativa de Ishmael com Alexander é que é suposto ser muito perigoso, razão pela qual permanece trancado; podemos deduzir que os nossos críticos também o acham muito perigoso. Vou voltar a Ishmael, que me parece o culminar, não só deste filme, como de todo o trabalho de Bergman até à data."

Até Quinta!

Em Dezembro, no Lucky Star:




sexta-feira, 27 de novembro de 2020

La voce della luna (1990) de Federico Fellini



por Alexandra Barros

La Voce della Luna, o último filme de Fellini, tem sido considerado uma obra menor do realizador, por reunir mais uma vez vários dos seus temas e situações típicas. Porém, teve sucesso junto do público italiano, facto que não é surpreendente dado que este se terá revisto num filme sobre demandas e desejos humanos universais. 
 
Ivo Salvini ouve vozes e procura o eco das mensagens que a Lua lhe envia em poços espalhados pelo campo. Se escrevesse o que lhe vai na cabeça possivelmente seria um poeta reconhecido e se se levasse a sério seria filósofo, mas como isso não calhou acontecer é considerado lunático (no seu duplo significado: louco e influenciado pela Lua). “Não aguento mais estar sempre à espera de alguma coisa. A espera nunca pára.” Gosta de recordar, mais do que viver. Questiona-se: “No fundo, que diferença faz?” A noção do tempo é distorcida pelo entrelaçar de fantasia e realidade: “Há quanto tempo caminhamos? Parece que toda a minha vida se passou durante esta única noite.” Outras questões: “É possível nunca saber nada acerca de ninguém? Onde estão os mortos? Para onde vai o fogo quando se extingue? Para onde vai a música quando se faz silêncio? As ideias surgem e são esquecidas. Como impedi-las de desaparecerem?” 

Ivo vagueia por paisagens do seu passado e do presente. Os campos por onde vagueia à noite remetem para a sua infância. O presente centra-se numa praça urbana ruidosa, onde ao barulho de obras em construção, se junta um vendedor ambulante com um altifalante, turistas japoneses a fotografar exaustivamente, os preparativos para o Festival do Gnocchi & Concurso de Beleza Miss Farina e grupos de jovens que ouvem música (paradoxalmente os menos ruidosos pois usam auscultadores). Tenta fotografar a cor dos sinos da igreja, mas não consegue. “Em breve, poderemos fotografar até aquilo que não vemos.”, diz, já que os avanços tecnológicos galopantes tudo parecem vir a tornar possível. 
 
Aldina, por quem Ivo está apaixonado e cujo rosto, de tão belo, considera ser a própria Lua, é uma das concorrentes do concurso de beleza. Para poder aproximar-se dela, Ivo esgueira-se para baixo do palco, onde acaba por ficar preso e mais afastado do que nunca. Além de partes descontextualizadas das concorrentes, tem apenas um breve vislumbre da Lua (rosto de Aldina) através de um buraco circular no chão do palco. 
 
Entre as diversas personagens excêntricas com que Ivo se vai cruzando, nas suas deambulações, temos: 
- Um ex-professor de música que vive numa gaveta de um cemitério vertical. Enterrou o seu oboé para impedi-lo de tocar um determinado acorde, que acredita ser diabólico: “Há pausas, intervalos por onde entram fantasmas, escuridão, gelo. Alguns acordes deviam ser banidos pois são como lagartos a percorrer a nossa coluna vertebral. Aí, a música faz o que quer de nós. Como podemos defender-nos do que nos faz promessas (alegria, serenidade, esquecimento, felicidade, ... ), mas nunca cumpre?” 
- Gonnella, que formula elaboradas teorias de conspiração. Acredita que as pessoas não são o que parecem, se limitam a representar papéis, consciente ou inconscientemente. “Nada é verdade [...]; apenas uma ficção, pura representação.”. Porém, olhando para os cenários políticos actuais ou para as redes sociais, talvez seja de reconsiderar a sua caracterização como paranóico. Gonnella não seria afinal apenas presciente? 
- Marisa, uma mulher sexualmente insaciável. Chora após divorciar-se, a seu pedido, porque na verdade não queria divorciar-se. Diz que estava disposta a um acordo porque é razoável, mas segundo ela as pessoas razoáveis nunca são entendidas. 
- Os irmãos Micheluzzi, que engendram um mecanismo para capturar a Lua. Pensam que a Lua está sempre a espiar-nos e não tem utilidade. Quando conseguem amarrá-la e trazê-la para a Terra, filas de ciclistas, carros e pessoas dirigem-se para a quinta onde está ancorada, numa cena tipicamente felliniana. 

A captura da Lua gera um debate nacional e os Micheluzzi são aconselhados pelo Prof. Falzoni a recolocar a Lua no seu sítio: o facto de ela nos espiar é bom, já que precisamos de alguém que nos vigie e tome conta de nós. É uma alegoria totalmente ajustada à contemporaneidade onde sistemas de vigilância instalados com ou sem o nosso consentimento (dados recolhidos pelas grandes empresas tecnológicas, a polémica aplicação stayaway covid, ...) armazenam toda a espécie de informação pessoal. Neste debate, um dos temas implícitos do filme - a procura do sentido da vida - é abordado de forma explícita por alguns dos presentes: “Qual é o meu propósito neste mundo? Para que é que nascemos? A vida é uma charada”, “É normal que as pessoas sintam que são abandonadas ao nada. E cansam-se.” “Não sabemos nada. Imaginamos tudo.”. 
 
No final, Ivo e Gonnella entram no que parece ser um celeiro abandonado, até que duas portas gigantes deslizam sobre carris e revelam uma multidão a dançar euforicamente ao som de The Way You Make Me Feel, de Michael Jackson. É a vez de um dos temas recorrentes de Fellini, o mistério feminino, ser abordado explicitamente. “Qual é o vosso segredo?” pergunta Ivo às raparigas que o rodeiam. Ao verificar que um sapato de Aldina serve a dezenas das jovens mulheres ali presentes, Ivo tem uma epifania. O amor que dedicara a Aldina e se transformara em decepção, não está morto nem é exclusivo.Tudo o que nos encanta o pode despertar. 
 
Enquanto Ivo abraça (pelo menos momentaneamente) este novo mundo, Gonnella insurge-se contra ele. Dança não é aquilo. “A dança é um bordado. É como um vislumbre da harmonia das estrelas. É uma declaração de amor. A dança é um hino à vida.”. Pára a festa para dançar o Danúbio Azul com a mulher dos seus sonhos. É aplaudido pela multidão embevecida que, no entanto, recomeça imediatamente a vibrar com The Way You Make Me Feel, mal termina a valsa. Gonnella não consegue perceber que a música pop provoca nesta nova geração os mesmos sentimentos que nele se manifestam através da música clássica. É mais um episódio muito felliniano: a evocação nostálgica do passado e a dificuldade de entendimento de um mundo que muda rapidamente. Mesmo Ivo, que se abriu um pouco à modernidade, regressa ao passado, onde se sente mais confortável. Este, porém, é inalcançável. Até a Lua foi apanhada pelos novos tempos. Exibe spots publicitários, a meio da conversa entre os dois. 
 
O filme é considerado desorganizado e inconsistente, mas essa estrutura adequa-se perfeitamente à jornada de Ivo, onde ao caos da sua mente se junta o fragmentado e ruidoso mundo contemporâneo. “Se todos fizéssemos um pouco de silêncio, talvez se pudesse compreender alguma coisa.”, diz Ivo enquanto inclina a cabeça para dentro de um poço, na cena final do filme.

Prova d'orchestra (1978) de Federico Fellini



por José Amaro

Como é possível realizar um filme cujo título dá pelo nome “ensaio de orquestra”, com um cenário de um “ensaio de orquestra”, partituras, instrumentos musicais, músicos (?) e maestro e, mesmo assim, não ser um filme sobre música, músicos ou orquestras e, mesmo assim, ser um belíssimo filme? É possível porque estamos perante uma obra de Fellini que utiliza todo este ambiente, orquestra, músicos, maestro, de forma metafórica para espelhar uma sociedade em crise, força dos individualismos egoístas que impossibilitam a cooperação necessária a uma harmonia musical ou a uma harmonia societal, num tempo de catarse em Itália, decorrente, entre outros mal estares, do sequestro e posterior assassinato de Aldo Moro às mãos das brigadas vermelhas. Todo este ambiente acompanhado por aquela que foi a última trilha sonora criada por Nino Rota para Fellini. 
 
O filme começa, enquanto é apresentada a ficha técnica, ao som do ruído de buzinas e sirenes ruidosas, a legendar um ambiente urbano caótico, como que a retratar uma Itália caótica. 
 
Começamos por ver o velho copista que, de forma nostálgica nos fala das memórias que nos enquadram o passado do local onde se passa todo o filme, uma antiga capela da Roma medieval e da orquestra cujos músicos começam a chegar e a instalar-se. Estes, de forma desconfiada, olham para a presença da câmara de uma televisão que está a realizar um documentário (um documentário dentro de um filme). 
 
Os músicos começam a interagir contando as suas histórias e a tentar mostrar a importância maior de cada um dos seus instrumentos, na orquestra. Depois dos músicos, chega finalmente o maestro e começa o ensaio, mas este é conturbado e quando o maestro exige repetições, o sindicado impõe-se e começa uma rebeldia com os músicos a não querem reconhecer a autoridade do maestro. É, então, ordenado um intervalo que os músicos aproveitam, uns para conviver descontraidamente outros para falar do maestro e outros ainda, para falar dos seus instrumentos. 
 
Voltamos a ver o copista e as suas nostalgias, nomeadamente as histórias acerca de maestros mais autoritários com o consentimento dos músicos. Assistimos também a considerações do maestro sobre a importância da sua função no passado. 
 
Com o regresso do maestro, depois do intervalo e de uma falha de luz, assiste-se a uma insurreição dos músicos. Aos gritos e palavras d`ordem nas paredes, estes provocam o caos total levando-os, nomeadamente, a disparos. 
 
Só a destruição de uma das paredes da igreja interrompe o caos, acalmando todos os presentes levando os músicos a se submeterem ao maestro. Este, tão frágil no início, consegue finalmente, de forma autoritária, impor-se, com um discurso que de italiano passa a alemão como que a trazer-nos à (má) memória a maléfica figura alemã.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

182ª sessão: dia 26 de Novembro (Quinta-Feira), às 19h00


No rescaldo do cancelamento da sessão de A Doce Vida, que lamentamos e tentaremos colmatar em breve, avançamos para a segunda metade da carreira de Federico Fellini, fase em que abandonou definitivamente a narrativa e mudou conscientemente os seus processos. Assim, esta Quinta-Feira veremos em double-bill Ensaio de Orquestra e A Voz da Lua, na nossa próxima sessão no auditório do Museu D. Diogo de Sousa.

Em entrevista a Toni Maraini, por alturas da estreia do filme de 1990, o realizador disse que "a minha lentidão em começar um filme é certamente inaceitável numa profissão que requer planeamento, mas confesso que preciso desse ambiente para começar um filme. Quando começo, tento encontrar uma disposição despreocupada, essa postura incomensurável da narrativa, esse prazer que experimentei ao filmar Entrevista

"Esse filme curto foi filmado dia a dia enquanto o inventava. Ando a almejar cada vez mais a este tipo de filmes. Portanto, para A Voz da Lua, o meu último filme, tentei fazer a mesma coisa, fazer como faz a gente do circo: criar uma cena e um espectáculo a partir do nada. Eu preciso de construir o argumento a partir da vida – com edifícios, luzes, situações, estações – como premissa para ver como as coisas andam. Para este filme, desenhei e criei tudo, dos edifícios à publicidade. Então de vez em quando visitava o plateau, via-o vazio, via a poeira a invadi-lo, algumas janelas destruídas pelo vento, e perguntei a mim próprio, “O que é que está a acontecer?” Correndo o risco de parecer romântico, confesso que houve algo em mim que disse, “Vão ver, a praça vai ganhar vida, o sacristão vai aparecer no pórtico da igreja, vem alguém a uma loja comprar qualquer coisa…” E assim foi. Como que por necessidade, o plateau ganhou vida. Deixei o filme acontecer; as coisas importantes foram descartadas como banalidades, e as coisas casuais pareciam importantes. Queria alcançar a naturalidade da Entrevista."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, Luís Miguel Oliveira escreveu que "A Voz da Lua ficou como o último filme realizado por Federico Fellini. A recepção crítica não foi das melhores, e mesmo os “fellinianos” mais convictos não evitam um certo tom de condescendência na sua apreciação deste filme. Mas como Fellini não teve hipótese de realizar mais nenhum filme A Voz da Lua viu-se encarregado da ingrata tarefa de “representar” o testamento cinematográfico do realizador. E se não é, nem de longe nem de perto, um dos melhores Fellinis, até consegue cumprir cabalmente esse papel de “testamento”. Ou seja, é possível ver nele uma espécie de resumo, ou de balanço, das ideias que enformaram o olhar de Fellini sobre o cinema e sobre o mundo. Deste ponto de vista, é um filme absolutamente genuíno de um cineasta que mesmo nos seus filmes menos conseguidos nunca soube o que era a “falsidade”. 

"Há vários paradoxos em Fellini, na sua obra e na sua relação com ela. Um deles é a sua trajectória, e a sua passagem quase sem ruptura do “caldo” neo-realista em que se formou para um onirismo extremamente pessoal e para uma concepção “deformada” da realidade, cheia de características recorrentes que contribuiram para que o adjectivo “felliniano” ganhasse um sentido preciso e fosse tudo menos uma palavra vazia. Ao mesmo tempo, esse adjectivo é também um instrumento de “defesa” inventado para combater o desconcerto provocado pelo universo de Fellini, para combater a dificuldade em encontrar “pontos de referência” sólidos e concretos num mundo derivado em linha recta da mente de uma pessoa e do qual só o próprio Fellini possuia certamente a “chave” absoluta. Com a progressiva acentuação desses traços característicos do cinema e da personalidade do cineasta, com todo o hermetismo que sempre lhe esteve subjacente - a mescla entre pormenores autobiográficos e outros oriundos do mais puro devaneio imaginativo foi sendo cada vez mais difícil encontrar sinais imediatamente “reconhecíveis” e relacionáveis com uma realidade concreta. Algures entre A Doce Vida e Otto e Mezzo essa “realidade concreta” deixou de contar para Fellini, apagando-se em função do domínio concedido a uma realidade de outra ordem, a uma realidade, se quisermos, puramente... “felliniana”. E aqui que há um certo paradoxo: a evolução da obra do cineasta não é comparável à de outros, que foram caminhando rumo a uma depuração que passava, nalguns casos, pelo isolamento de meia-dúzia de traços essenciais. Em Fellini sucedeu o contrário e a ideia de “depuração” não pode ser separada da ideia de “acumulação”: despojado foi Fellini nos seus primeiros filmes, não nos últimos. Pelo contrário, o seu percurso baliza-se em torno do progressivo “exagero” e da constante acentuação das suas características básicas. Como se houvesse uma profunda “malaise” na sua raiz que cada filme, em vez de apaziguar, contribuísse para alimentar."

Em relação ao Ensaio, e também numa folha da Cinemateca, escreveu Frederico Lourenço que "Ensaio de Orquestra é um filme que pode ser visto de duas maneiras: como alegoria política, onde o individualismo leva ao caos, que redunda em revolta, que, por sua vez, só se resolve no totalitarismo do tipo hitleriano; ou então como puro espectáculo cinemático (seja lá o que isso for), em que nos devemos abstrair de tudo o que não seja a pura fruição do filme como cinema. O primeiro modo de ver o filme é banal e redutor; o segundo, utópico. Dificil será determinar o que nos resta. Mas uma coisa é absolutamente certa: Ensaio de Orquestra não é um filme sobre um ensaio de orquestra, nem sobre a psicologia do músico, nem sobre música, apesar de, num ou noutro momento do filme, o espectador ser quase levado a acreditar que sim. Desengana-se, porém, muito rapidamente. E se o espectador tem alguns conhecimentos musicais, se alguma vez tocou algum dos instrumentos que figuram no filme, então não pode deixar de rir às gargalhadas durante 71 minutos, pois, como já se disse, Ensaio de Orquestra nada tem que ver - ou só superficialmente - com músicos e música. No entanto, é um filme fascinante. Porquê? 

"Em primeiro lugar, tratando-se de um filme de Federico Fellini, nunca poderia ser menos que fascinante: pois Fellini, mais do que qualquer outro grande cineasta da história do cinema, tem o condão de simultaneamente repelir e atrair o espectador: ver Fellini-Satyricon, Ensaio de Orquestra, E la Nave Va ou mesmo Otto e Mezzo pode ser uma experiência exasperante; mas o espectador, mesmo o menos felliniano, não pode deixar de sentir que o que um filme de Fellini lhe oferece em termos de "vivência do cinema" é algo de muito especial que mais nada, a não ser outro filme de Fellini, lhe poderia oferecer. Esta afirmação um pouco provocatória faz lembrar a célebre frase de Marilyn ao ser confrontada, num dos seus filmes, com um copo de whiskey: I hate the taste but I love the effect. E dos filmes citados, Ensaio de Orquestra é sem dúvida o mais exasperante, começando pela questão ultra irritante da dobragem feita a martelo, a que já nos habituámos em filmes italianos, mas que neste filme ultrapassa os limites do tolerável por largos quilómetros. Já nem se trata da questão de o actor estar claramente a recitar o alfabeto, sabe Deus em que língua, ao mesmo tempo que a banda sonora nos faz ouvir um prolongado e desenvolvido discurso sobre as vantagens e desvantagens de tocar este ou aquele instrumento: a coisa torna-se particularmente ridícula e excessiva quando, num filme pretensamente "musical", vemos no ecrã um grupo de instrumentistas a tocar energicamente frases musicais que, na banda sonora, são tocadas por outros instrumentos, totalmente diferentes dos que temos à nossa frente. Poderá muito bem tratar-se de um pormenor irrelevante para uma apreciação menos mesquinha do filme: mas um filme, para ser bem conseguido, tem de ser um pouco mais do que a soma das suas partes, e quando nem as partes resistirem à prova dos nove ... mas adiante. Poderiamos ainda focar a questão de alguns dos "músicos" terem tido o seu primeiro contacto com o seu respectivo instrumento durante a rodagem de Ensaio de Orquestra, mas julgo que já não vale a pena insistir mais nesse ponto. Não é um filme sobre música; não batamos mais nessa tecla."

Até Quinta-Feira!

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

La Strada (1954) de Federico Fellini



por André Miranda

Federico Fellini tem apenas seis anos quando vê Maciste All’Inferno, um filme acusado de blasfémia e repleto de humor bizarro, que nunca mais abandona o seu subconsciente: “Estou certo que o lembro perfeitamente, porque as suas imagens impressionaram-me tanto que tento invocá-lo em todos os meus filmes. Vi-o de pé, envolvido pelos braços do meu pai, rodeado por pessoas com os sobretudos molhados. Lembro-me da barriga nua duma mulher, o umbigo, os olhos negros maquilhados, ardentes. Com um movimento imperioso do braço criou um círculo de chamas à volta de Maciste, também ele seminu, segurando uma pomba na mão.” Assim como estas imagens não o abandonam, também não o deixa a memória da cidade natal, Rimini, onde nasceu a 20 de Janeiro de 1920. 

Se o desejo dos pais tivesse sido cumprido, Fellini, quando aos dezanove anos vai para Roma, ter-se-ia formado em direito. Mas ele tinha outros planos, e nunca os seus pés tocam na universidade. É jornalista por breves momentos, desenha cartoons, vende piadas e escreve para revistas. E durante esta vagabundagem encontra Giulietta Masina, protagonista de uma série radiofónica para a qual Fellini escreve. Os dois casam-se em 1943 e só se separam 50 anos depois, com a morte do realizador. 

“Ele foi como o polícia de trânsito que me ajuda a atravessar a estrada.” Foi assim que Fellini resumiu a relação com Roberto Rosselini, com quem colaborou pela primeira vez em Roma, Cidade Aberta, obra marcante do neo-realismo. Os dois continuam a parceria com Paisà e As Flores de São Francisco. Respeitado, Fellini tem anos prolíficos e os seus argumentos são procurados pelos mais variados autores italianos. Mas esta ainda não é a sua vocação. Só em 1950 realiza o seu primeiro filme, Luci del Varietà. Quatro anos depois oferece ao mundo A Estrada, filme que hoje apresentamos. 
 
*** 
 
É uma Itália mísera e pobre, de casas arruinadas e caminhos esburacados, aquela que Gelsomina e Zampanò habitam em constante viagem, levando, de terra em terra, um espetáculo circense. Uma existência cruel para a alma sensível e diferente de Gelsomina. Os seus olhos grandes e belos, dominados pela força bruta de Zampanò, habituam-se à dor e às lágrimas. Aceita o destino que lhe cabe e recusa todas as possibilidades de fuga. Tem a companhia do tambor e do trompete. Aqui e ali um pouco de felicidade. Mas o que Gelsomina apenas deseja é colocar as sementes de tomate num pedaço de terra que seja seu. 

Por isso, pedimos-te, Zampanò: olha para dentro de ti, admite o afeto que sentes por Gelsomina; não percebes o quanto precisas dela? Limpa-lhe as lágrimas do rosto, abraça-a. Talvez um dia seja tarde demais. Então compreenderás o quão cruel foste. E, chegado esse dia, o que farás ao teu amor? Deixar-te-ás cair na praia?

terça-feira, 10 de novembro de 2020

181ª sessão: dia 12 de Novembro (Quinta-Feira), às 19h00


Não no início mas quase a meados de Novembro, depois de uma breve pausa em busca de sala causada pelos tempos que correm e tanto nos limitam, voltamo-nos para Federico Fellini, cineasta italiano que teve direito a adjectivo por ter feito os filmes que fez. Em 2020 celebra-se o seu centenário e resolvemo-nos juntar à festa com a exibição de quatro filmes, sendo o primeiro A Estrada com Anthony Quinn e Giulietta Masina, com banda-sonora de Nino Rota. É a nossa próxima sessão, agora no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa e às 19h.

Em entrevista a George Bluestone para a Film Culture, em 1957, e quando este lhe pergunta a que se teria devido a óptima recepção do filme, Fellini respondeu que "diria que a história, a história e as personagens, acima de tudo. Lembra-se da parábola da pedra? O significado da parábola é simples. Toda a gente tem um propósito no universo; toda a gente, mesmo o bruto Zampano, precisa de alguém para amar. Os espectadores não viram este tema no ecrã nos últimos anos. Pelo menos não em filmes sérios. Sabe que a Giulietta recebeu pelo menos umas mil cartas de mulheres que dizem que os maridos - maridos que as abandonaram, maridos que estas mulheres não viam há anos - voltaram a casa depois de terem visto A Estrada? Uma noite há não muito tempo voltámos a  Roma depois de estar fora, e encontrámos um homem e uma mulher no degrau de entrada. Disseram-nos que eram casados e tinham estado à nossa espera desde o início dessa manhã. Queriam-nos contar que, na semana anterior, estavam a ponto de se separar, mas tinham visto A Estrada e isso tinha-os reconciliado. Afinal não se iam separar. Queriam-nos agradecer. Isto é só um exemplo. A Giulietta também tem muitas cartas de aleijados, parlíticos, pessoas que se sentiam completamente inúteis até verem o filme. Estas cartas vêm do mundo inteiro. É por isso que eu digo que a história é responsável. Além disso (a sorrir), talvez seja um bom filme."

Em 1955 e para a Esprit, André Bazin escreveu que "a vitalidade do cinema italiano é-nos confirmada mais uma vez com este filme maravilhoso de Federico Fellini. E é duplamente confortante afirmar que o resto dos críticos foram quase unânimes em cantar os louvores de A Estrada (1954). Sem este apoio, que não hesitou em atrair o snobismo para o seu lado, o filme talvez tivesse tido alguma dificuldade em atrair a atenção de um público inundado e sem discernimento. 

"Fellini fez um desses filmes muito raros sobre os quais se pode dizer que se esquece que são filmes e se aceita serem simplesmente obras de arte. Lembra-se a descoberta de A Estrada como uma experiência estética de grande emoção, como um imprevisto com o mundo da imaginação. Quero dizer que isto é menos um caso de um filme ter sabido obter um certo nível intelectual ou moral do que de ter feito uma afirmação pessoal para a qual o cinema é com certeza a forma necessária e natural, mas cuja afirmação possui ainda assim uma existência artística virtual por si própria. Não é um filme que é chamado A Estrada; é A Estrada que é chamado um filme. Ligado a esta ideia, também vem à mente o último filme de Chaplin, embora seja diferente de muitas formas de A Estrada. Em relação a Luzes da Ribalta (1952) também se poderia dizer que a sua única encarnação adequada era o cinema, que era inconcebível através de outro meio de expressão, e que, apesar disso, tudo nele transcende os elementos de uma forma artística particular. Portanto A Estrada confirma à sua maneira a seguinte premissa crítica: a saber, que o cinema apareceu numa etapa da sua evolução em que a própria forma já não determina o que quer que seja, em que a linguagem fílmica já não chama a atenção para si mesma, mas sugere pelo contrário apenas tanto quanto qualquer dispositivo estilístico que um artista possa empregar. Indubitavelmente se dirá que só o cinema pode, por exemplo, dotar a moto-caravana extraordinária de Zampanos da importância de mito vivo que esse objecto estranho e banal aqui obtém. Mas pode-se ver de forma igualmente clara que o filme, neste caso, não está nem a transformar nem a interpretar nada por nós. Não há lirismo de imagem ou de montagem a encarregar-se de guiar as nossas percepções; vou mesmo dizer que a mise en scène não o tenta fazer - pelo menos não a mise en scène de um ponto de vista tecnicamente cinematográfico.* O ecrã limita-se a mostrar-nos a caravana melhor e de forma mais objectiva do que o pintor ou o romancista poderiam. Não digo que a câmara tenha filmado a caravana de uma forma muito simples - mesmo a palavra "filmado" é demais, aqui - mas antes que a câmara simplesmente nos mostrou a caravana, ou ainda melhor, nos permitiu vê-la."

"* Mise en scène quer dizer literalmente "colocar no palco." Num programa de teatro francês, o crédito para "realizado por" lia-se "mise en scène de." Este termo foi livremente adaptado para utilização com referência ao cinema, e cobre áreas como as do estilo visual, o movimento da câmara e/ou dos actores, a disposição dos actores em relação ao cenário, as utilizações da iluminação e da cor, etc. Quando Bazin fala de "mise en scène de um ponto de vista tecnicamente cinematográfico," refere-se à posição da câmara (e.g., grande plano), ângulo (e.g., contra-picado), e movimento (e.g., panorâmica rápida) que chamam alguma atenção para si próprios."

No seu Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles escreve que "o sucesso mundial do filme, mais do que o seu escasso conteúdo, intriga o espectador de hoje em dia. Em que fibra é que Fellini terá tocado entre o público para que esta obra, no fim de contas menor, alcançasse uma tal repercussão? Parece que foi um dos primeiros ter tido o pressentimento da marginalização inevitável que se tornaria o apanágio de um número crescente de personagens cinematográficas. Em todo o caso, e mesmo a meio dos anos 50, dá a dois marginais completos o estatuto de heróis de pleno direito. Nem que fosse apenas pela compaixão com que os envolve, exactamente a mesma de que beneficiam a priori os heróis (nada marginais) dos melodramas italianos da época. Nas últimas horas do neo-realismo, Fellini aprende a lição da obra de Chaplin, pintor de marginais excepcionais e exemplares (de Charlot a Calvero, passando por Landru) e aplica-a a personagens anónimas mas que têm ao mesmo tempo um carácter insólito e minoritário. As suas duas personagens são marginais pela relação delas com a sociedade envolvente e mais ainda pela sua relação de casal - essa união estranha e improvável entre um primata taciturno e uma adolescente (?) assexual e sem idade. Ao contrário dos heróis do melodrama italiano tradicional, eles não são representativos de nada, a não ser de si próprios. E em definitivo talvez tenha sido a sua estranheza (para a época) e o seu eventual valor profético, mais do que outra coisa qualquer, que tenha suscitado a magia deste filme. 

"Biblio. : argumento e diálogos: in «Bianco e nero» Setembro-Outubro de 1954, retomado em volume, Bianco e nero Editore, Roma, 1958; in «L'Avant-Scene» nº102 (1970). Inclui as cenas cortadas depois da passagem no Festival de Veneza de 1954 (o filme circulou muito em cópias amputadas). Reedição (com diálogos em francês e em italiano) no n° 381 (1989) da mesma revista. A Estrada figura também no volume «II primo Fellini», Cappelli, 1969, e foi publicado em colecções de argumentos de filmes italianos publicadas em Moscovo (1958) et em Praga (1966)."

Até Quinta!