sexta-feira, 27 de novembro de 2020

La voce della luna (1990) de Federico Fellini



por Alexandra Barros

La Voce della Luna, o último filme de Fellini, tem sido considerado uma obra menor do realizador, por reunir mais uma vez vários dos seus temas e situações típicas. Porém, teve sucesso junto do público italiano, facto que não é surpreendente dado que este se terá revisto num filme sobre demandas e desejos humanos universais. 
 
Ivo Salvini ouve vozes e procura o eco das mensagens que a Lua lhe envia em poços espalhados pelo campo. Se escrevesse o que lhe vai na cabeça possivelmente seria um poeta reconhecido e se se levasse a sério seria filósofo, mas como isso não calhou acontecer é considerado lunático (no seu duplo significado: louco e influenciado pela Lua). “Não aguento mais estar sempre à espera de alguma coisa. A espera nunca pára.” Gosta de recordar, mais do que viver. Questiona-se: “No fundo, que diferença faz?” A noção do tempo é distorcida pelo entrelaçar de fantasia e realidade: “Há quanto tempo caminhamos? Parece que toda a minha vida se passou durante esta única noite.” Outras questões: “É possível nunca saber nada acerca de ninguém? Onde estão os mortos? Para onde vai o fogo quando se extingue? Para onde vai a música quando se faz silêncio? As ideias surgem e são esquecidas. Como impedi-las de desaparecerem?” 

Ivo vagueia por paisagens do seu passado e do presente. Os campos por onde vagueia à noite remetem para a sua infância. O presente centra-se numa praça urbana ruidosa, onde ao barulho de obras em construção, se junta um vendedor ambulante com um altifalante, turistas japoneses a fotografar exaustivamente, os preparativos para o Festival do Gnocchi & Concurso de Beleza Miss Farina e grupos de jovens que ouvem música (paradoxalmente os menos ruidosos pois usam auscultadores). Tenta fotografar a cor dos sinos da igreja, mas não consegue. “Em breve, poderemos fotografar até aquilo que não vemos.”, diz, já que os avanços tecnológicos galopantes tudo parecem vir a tornar possível. 
 
Aldina, por quem Ivo está apaixonado e cujo rosto, de tão belo, considera ser a própria Lua, é uma das concorrentes do concurso de beleza. Para poder aproximar-se dela, Ivo esgueira-se para baixo do palco, onde acaba por ficar preso e mais afastado do que nunca. Além de partes descontextualizadas das concorrentes, tem apenas um breve vislumbre da Lua (rosto de Aldina) através de um buraco circular no chão do palco. 
 
Entre as diversas personagens excêntricas com que Ivo se vai cruzando, nas suas deambulações, temos: 
- Um ex-professor de música que vive numa gaveta de um cemitério vertical. Enterrou o seu oboé para impedi-lo de tocar um determinado acorde, que acredita ser diabólico: “Há pausas, intervalos por onde entram fantasmas, escuridão, gelo. Alguns acordes deviam ser banidos pois são como lagartos a percorrer a nossa coluna vertebral. Aí, a música faz o que quer de nós. Como podemos defender-nos do que nos faz promessas (alegria, serenidade, esquecimento, felicidade, ... ), mas nunca cumpre?” 
- Gonnella, que formula elaboradas teorias de conspiração. Acredita que as pessoas não são o que parecem, se limitam a representar papéis, consciente ou inconscientemente. “Nada é verdade [...]; apenas uma ficção, pura representação.”. Porém, olhando para os cenários políticos actuais ou para as redes sociais, talvez seja de reconsiderar a sua caracterização como paranóico. Gonnella não seria afinal apenas presciente? 
- Marisa, uma mulher sexualmente insaciável. Chora após divorciar-se, a seu pedido, porque na verdade não queria divorciar-se. Diz que estava disposta a um acordo porque é razoável, mas segundo ela as pessoas razoáveis nunca são entendidas. 
- Os irmãos Micheluzzi, que engendram um mecanismo para capturar a Lua. Pensam que a Lua está sempre a espiar-nos e não tem utilidade. Quando conseguem amarrá-la e trazê-la para a Terra, filas de ciclistas, carros e pessoas dirigem-se para a quinta onde está ancorada, numa cena tipicamente felliniana. 

A captura da Lua gera um debate nacional e os Micheluzzi são aconselhados pelo Prof. Falzoni a recolocar a Lua no seu sítio: o facto de ela nos espiar é bom, já que precisamos de alguém que nos vigie e tome conta de nós. É uma alegoria totalmente ajustada à contemporaneidade onde sistemas de vigilância instalados com ou sem o nosso consentimento (dados recolhidos pelas grandes empresas tecnológicas, a polémica aplicação stayaway covid, ...) armazenam toda a espécie de informação pessoal. Neste debate, um dos temas implícitos do filme - a procura do sentido da vida - é abordado de forma explícita por alguns dos presentes: “Qual é o meu propósito neste mundo? Para que é que nascemos? A vida é uma charada”, “É normal que as pessoas sintam que são abandonadas ao nada. E cansam-se.” “Não sabemos nada. Imaginamos tudo.”. 
 
No final, Ivo e Gonnella entram no que parece ser um celeiro abandonado, até que duas portas gigantes deslizam sobre carris e revelam uma multidão a dançar euforicamente ao som de The Way You Make Me Feel, de Michael Jackson. É a vez de um dos temas recorrentes de Fellini, o mistério feminino, ser abordado explicitamente. “Qual é o vosso segredo?” pergunta Ivo às raparigas que o rodeiam. Ao verificar que um sapato de Aldina serve a dezenas das jovens mulheres ali presentes, Ivo tem uma epifania. O amor que dedicara a Aldina e se transformara em decepção, não está morto nem é exclusivo.Tudo o que nos encanta o pode despertar. 
 
Enquanto Ivo abraça (pelo menos momentaneamente) este novo mundo, Gonnella insurge-se contra ele. Dança não é aquilo. “A dança é um bordado. É como um vislumbre da harmonia das estrelas. É uma declaração de amor. A dança é um hino à vida.”. Pára a festa para dançar o Danúbio Azul com a mulher dos seus sonhos. É aplaudido pela multidão embevecida que, no entanto, recomeça imediatamente a vibrar com The Way You Make Me Feel, mal termina a valsa. Gonnella não consegue perceber que a música pop provoca nesta nova geração os mesmos sentimentos que nele se manifestam através da música clássica. É mais um episódio muito felliniano: a evocação nostálgica do passado e a dificuldade de entendimento de um mundo que muda rapidamente. Mesmo Ivo, que se abriu um pouco à modernidade, regressa ao passado, onde se sente mais confortável. Este, porém, é inalcançável. Até a Lua foi apanhada pelos novos tempos. Exibe spots publicitários, a meio da conversa entre os dois. 
 
O filme é considerado desorganizado e inconsistente, mas essa estrutura adequa-se perfeitamente à jornada de Ivo, onde ao caos da sua mente se junta o fragmentado e ruidoso mundo contemporâneo. “Se todos fizéssemos um pouco de silêncio, talvez se pudesse compreender alguma coisa.”, diz Ivo enquanto inclina a cabeça para dentro de um poço, na cena final do filme.

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