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quinta-feira, 27 de junho de 2024

Espero Tua (Re)volta (2019) de Eliza Capai



por Inara Chayamiti

“Quem vai contar essa história sou eu” diz Marcela Jesus na introdução do filme protagonizado por ela, Nayara Souza e Lucas “Koka” Penteado. Os três fizeram parte da mobilização estudantil que, entre 2015 e 2017, saiu às ruas e ocupou mais de 200 escolas secundárias contra a reorganização do ensino proposta pelo governo do Estado de São Paulo e em defesa de uma educação pública de qualidade. 

Espero Tua (Re)volta, dirigido por Eliza Capai, leva-nos para o centro de um debate muito importante e cada vez mais incontornável no âmbito do documentário: afinal, quem deve contar a história? 

Por muito tempo, o documentário foi dominado por um fazer extrativista do homem branco hétero com uma câmara a reduzir o mundo ao seu “male gaze”. O potencial do cinema de proporcionar ao público a entrada em outros mundos, com todas as suas complexidades e idiossincrasias, ficava limitado. Com a democratização dos meios de produção de cinema e a ampla discussão sobre a falta de representatividade nos ecrãs, aos poucos, isso tem mudado. 

A câmara de Capai é um instrumento de poder que ela divide com os retratados de forma tão transversal que o resultado é um filme que é o espelho dos personagens. Assim como eles ocuparam as escolas, ocuparam também o próprio filme. E enquanto contam suas histórias e suas perspetivas singulares sobre os acontecimentos, parecem até estar sentados na ilha de edição a dizer aos montadores como organizar a narrativa. 

O filme também é um vívido retrato da importância da participação dos jovens na democracia e do tortuoso percurso de uma mobilização social, desde como começam até os desafios que enfrentam e as conquistas. Entre os desafios, o mais traumático e brutal é a violência policial. Enquanto os jovens lutam para que suas escolas não sejam fechadas pela alegada falta de recursos, a polícia ataca-os com caríssimas bombas de gás lacrimogéneo. “Cada bomba dessa aí dá 500 merendas [refeições] em uma escola, mais 500 merendas jogadas fora”, narra Koka numa das cenas. Violência experienciada por muitos já nas manifestações de 2013 que levaram milhões às ruas, também lembradas pelo filme como contexto histórico. 

Outro aspeto interessante é que, além da pauta da educação, os estudantes trazem também temas pouco trabalhados no ambiente escolar, como o feminismo e o racismo. Nas ocupações, isso é debatido e inserido nas práticas do quotidiano, como por exemplo ao atribuir a rapazes funções na cozinha e de limpeza. 

Acredito que é esse tipo de cinema disruptivo que nos proporciona um real encontro com o outro. E desse encontro podem surgir conexões e entendimentos mais profundos para que possamos ver-nos uns nos outros e realizar as transformações sociais de que tanto precisamos.



Yzalú - Rap, Feminismo e Negritude (2018) de Inara Chayamiti e Mayra Maldijan



por Jessica Sérgio Ferreiro

A realizadora Inara Chayamiti, também, videojornalista, dedica-se a documentar histórias reais ligadas a causas políticas, sociais e ambientais, contando, ainda, com uma longa-metragem – Onde as ondas quebram (2024) –, atualmente a correr os festivais. Mayra Maldjian é, também, jornalista, Dj, beatmaker e produtora, integrando vários projectos de empoderamento feminino através da música, incluindo o grupo de hip hop e soul Rimas & Melodias e o coletivo de mulheres DJs As Mina Risca, bem como foi produtora no projecto “Escuta as Minas”. Ambas juntaram forças com a artista Yzalú para realizar um filme sobre a experiência feminina. 

Yzalú – Rap, feminismo e Negritude (2018), realizado por Inara Chayamiti e Mayra Maldjian, centra-se no percurso da cantora, compositora e rapper, de São Paulo, Luiza Yara Lopes Silva, conhecida como Yzalú, cuja trajectória é relatada na primeira pessoa. O preconceito e a discriminação que marcaram o seu percurso viriam a definir a sua carreira, moldando a sua música, a qual, extravasando a expressão individual, narra experiências comuns. Através da palavra declamada, Yzalú denuncia a violência e a desigualdade que impactam os quotidianos das mulheres negras no Brasil, incorporando a história da “racialização”, como parte de processos sociais contemporâneos. 

Após uma breve auto-apresentação biográfica, Yzalú, com o seu violão, encara a câmara de frente, para nos contar e cantar as “Mulheres Negras”, canção de 2012 que marcou a sua carreira artística, e cujo grito atravessa, de forma aparentemente anacrónica, a escravatura e as formas de exploração e exclusão herdadas que recaem, atualmente, sobre a população negra no Brasil e, em especial, sobre as mulheres. São, ainda, mostrados alguns excertos de videoclipes, tal como “É o rap tio”, do seu álbum de estreia “Minha Bossa é Treta” (2016), editado após vários anos de carreira musical e que, espelhando as experiências “periféricas”, se tornou, assim, num manifesto anti-racista e feminista. Ao longo do filme assiste-se, ainda, a pequenos momentos de composição, ensaios e atuações ao vivo.

A Rapper guia-nos, também, pela sua infância, em voz off sobreposta a algumas imagens de arquivo, enfatizando o apoio da sua mãe “guerreira” ao longo da sua vida. Yzalú dá, ainda, destaque ao grupo de rap feminino Essência Black, de São Paulo, do qual fez parte e teve de compatibilizar com os empregos e estudos, descrevendo a sua experiência no mercado de trabalho e os obstáculos que teve de ultrapassar até se poder entregar totalmente à música. 

O testemunho de Yzalú revela a diferenciação e classificação do “outro” com base nas categorias de “raça”, “género” e “classe”, abordando, ainda, questões ligadas à “limitação física”, como denominado pela artista. Assim, a par com a música e o trajecto de vida de Yzalú, o filme representa a luta pela igualdade numa sociedade contemporânea, ainda, patriarcal e racista, cujas estruturas socioeconómicas e políticas, historicamente sedimentadas, continuam a produzir a “diferença”, a sua hierarquização e discriminação. Assim como o rap, o filme torna-se um lugar de fala, um gesto político, produzindo, assim, representatividade para grupos de pessoas que foram e, ainda, são subalternizados. 

O filme esteve presente em vários festivais de cinemas no Brasil, tal como no 10º Festival Internacional do Documentário Musical, edição de 2018, em São Paulo; também no 29º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo - Curta Kinoforum, em 2018 e no 15º Festival MIMO de Cinema 2018, entre outros. Foi, ainda, premiado no 8º Prêmio CineB Solar, bem como integrou, em 2019, a programação do 3º Festival International Du Film Sur Le Handicap (FIFH), em Lyon (França).



quarta-feira, 26 de abril de 2023

A Idade da Terra (1980) de Glauber Rocha



por Alexandra Barros

O último filme de Glauber Rocha, e aquele em que procurou levar mais longe uma forma revolucionária de fazer cinema, fortuitamente é exibido no dia da Revolução dos Cravos. A militância cultural de Glauber Rocha e a sua militância política foram inseparáveis e, por isso, durante a ditadura militar, esteve vários anos exilado em diversos países e continentes. Encontrava-se na Europa em abril de 1974 e aterrou em Portugal no dia 26. Nos dias que se seguiram à revolução filmou e participou nas emoções vividas nas ruas portuguesas. Esses testemunhos deram origem ao filme As Armas e o Povo, o mais célebre filme da revolução, de acordo com a Cinemateca Portuguesa. 
 
A ideia de Revolução – política e cultural - é fundamental no pensamento e na obra de Glauber Rocha, que considerava que para exprimir a essência ou a alma da cultura dos países do Terceiro Mundo e para abordar a realidade, lutas e aspirações dos seus povos eram necessárias formas revolucionárias de representação, novos processos criativos, novas formas de fazer cinema. É n’ A Idade da Terra que Glauber Rocha mais profundamente mergulha em “águas” inexploradas. Dessa experiência emerge uma obra insólita e classificada, por muitos, como impenetrável. Glauber Rocha acreditava, no entanto, que no futuro lhe seria feita justiça, tal como sucedera com Terra em Transe (de 1967), em que críticos de primeira hora vieram, mais tarde, a converter-se em admiradores. 
 
O slogan “Primeiro estranha-se e depois entranha-se” - criado originalmente por Fernando Pessoa para uma campanha publicitária da Coca-Cola - poderia ter sido concebido para este excêntrico filme. A Idade da Terra foi mal recebido, pela crítica e pelo público em geral, quando estreou no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 1980, mas - ao longo dos anos - críticos, estudiosos e cinéfilos têm vindo a reconhecer o seu valor artístico e impacto no meio cultural brasileiro. É um filme que provoca reacções extremadas, com as opiniões a expressarem ora máxima admiração (classificando-o como: obra-prima, ousado, provocador, arte) ora máxima aversão (por parte de quem o vê como: pretensioso, inacessível, entediante). Apesar desta falta de unanimidade é actualmente considerado um dos mais importantes filmes na história do cinema brasileiro. 
 
Sem fio narrativo, caótico no conteúdo e na forma, “compreender” este filme parece-me tarefa impossível, por muitos visionamentos que eu possa vir a fazer. Porém, compreensão não foi o que o realizador pretendeu, da parte dos espectadores. Nas suas próprias palavras: “É um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, anti-literário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí. [...] Não é para ser contado, só dá para ser visto.”[1] A Idade da Terra parece um vulcão, jorrando continuamente novas imagens, símbolos e referências culturais, uma lava de misticismo, religião, poesia, sexualidade e política, com foco particular em temas como: o imperialismo, o colonialismo, a liberdade, a miséria, a pobreza. As cores são saturadas; os diálogos/discursos são gritados e histéricos; a música e os sons são densos e intensos; os tempos e os lugares são múltiplos e coexistentes. Num momento as personagens estão imersas na selva tropical, à beira de um imenso charco; no seguinte, a profundidade de campo alarga-se e, ao fundo, na outra margem do “charco”, avistamos o Rio de Janeiro. A cidade cosmopolita e a selva tropical são afinal planos distintos de um mesmo “palco”. Filme e rodagem do filme são indistinguíveis. A música brasileira, principalmente a ritualizada, mística, religiosa, tem uma forte presença no filme. De rituais lascivos no primitivo Jardim do Éden somos transportados para as coreografias ensaiadas dos actuais desfiles do Carnaval carioca, sempre mergulhados em ritmos hipnóticos, através dos quais o Homem tem procurado, desde os primeiros tempos, o transe, o êxtase, a transcendência. Porém, mais que filmar o transe, Glauber Rocha quer induzi-lo nos espectadores, comunicar com eles através do inconsciente, diluir as barreiras entre o que está na tela e o que está fora dela. Este cinema não pretende contar histórias. Quer actuar e ser História. A descolonização começa por ser cultural. “A Idade da Terra [...] materializa os signos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, as santas em revolucionárias. Tudo isso está no filme [...] O filme oferece uma sinfonia de sons e imagens ou uma anti-sinfonia que coloca os problemas fundamentais de fundo. A colocação do filme é uma só: é o meu retrato junto ao retrato do Brasil.” “Meu estilo de filmar está profundamente ligado à cultura popular brasileira. Os que são considerados símbolos e alegorias não são abstrações, senão expressões diretas de elementos da cultura popular. É um cinema feito sobre o povo e com a colaboração popular de sua cultura. [...] O cinema latino-americano tem dois caminhos: um, que é o cinema-documentário, informado de denúncia e agitação política e social [...]. No meu caso, por uma deficiência profissional, já que não tenho capacidade para fazer documentários, faço filmes de ficção ligados à realidade latino-americana, com uma linguagem que expressa os mitos.” “Não há vantagem alguma em fazer filmes de conteúdo revolucionário se, na forma, você imita a Nouvelle Vague francesa, o expressionismo alemão ou o comercialismo norte-americano. O problema dos cineastas do Terceiro Mundo é encontrar um estilo próprio.”[2] “O que interessa é a criação. A linguagem estabelecida, em qualquer arte, cansa.”[3]
 
Originalmente sem créditos iniciais ou finais, e sem uma ordem estabelecida de montagem das várias cenas, a sequência pela qual eram projectadas as bobinas do filme era deixada deliberadamente ao critério do projeccionista. Conceptualmente, o filme prenuncia a era da navegação digital e virtual. A ambição de fazer emergir múltiplos percursos e sentidos através de um conjunto desordenado de numerosas referências e justaposições, remete para uma outra revolução que estava a ser preparada. De forma intuitiva, sem formulação “técnica” ou filosófica, os conceitos de hiperlink, de leitura não-sequencial, de uma rede de conteúdos infinitamente “navegável” presidem à criação da Idade da Terra. Uma década mais tarde, esses mesmos conceitos estiveram na base de um acontecimento que viria a mudar o mundo: o nascimento da World Wide Web.




quarta-feira, 19 de abril de 2023

Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha



por Joaquim Simões

Terra em Transe é um flashback na hora da morte de Paulo Martins escritor e idealista de uma ferocidade tal que a desilusão trágica é o único destino possível para ele. É assim que o filme começa, na iminência de um golpe de estado, o falhanço espetacular do seu projeto, a queda da única esperança política de Eldorado - cidade fictícia que Rocha criou como símbolo da esperança, do sonho inalcançável. E Paulo atira-se a uma morte que podia evitar, ignorando as palavras Brechtianas da companheira Sara, que lhe diz “não precisamos de heróis”. Ele grita “eu preciso cantar” e atravessa uma barreira policial, sendo inevitavelmente atingido. Na areia, moribundo, mas gracioso, aponta a metralhadora para o céu; o seu último poema são as memórias que vemos em filme. 

Desiludido primeiro pela tirania da direita e depois pela fraqueza da esquerda, Paulo atravessa o espetro político sem encontrar nele um lugar, mas a sua alma poética é incapaz de se resignar ou de viver cinicamente: é um homem que tem de ir até ao fim. Ao acompanharmo-lo nessa viagem exaltada, por vezes febril, passamos por danças, tumultos e rituais, uma mistura única de religião, política, pobreza e tropicalismo, o caldeirão tumultuoso que era o Brasil na década de 60. 

O privilégio da memória na montagem é a liberdade absoluta. E o filme flui como uma associação livre que nos lembra dos sonhos de Fellini cortados com a brusquidão de Godard, num violento frenesim sociopolítico em que singram apenas como idealistas os temperamentos ferozes como o de Paulo Martins, talvez semelhante ao de Glauber Rocha. Apesar desta fluidez, nunca ficamos muito tempo sem ouvir o som de disparos e explosões, normalmente em off, que são um despertar constante para o artifício do filme e ao mesmo tempo para a realidade angustiante que Eldorado, ou seja, o Brasil, atravessa. 

Um filme marcante no seu tempo, e ainda hoje, Terra em Transe foi, como não é surpreendente, censurado na altura do seu lançamento por “denegrir a imagem do Brasil” e por ser considerado subversivo e irreverente com a igreja, acabando por ser exibido em Cannes depois de protestos por parte de cineastas franceses e brasileiros, e no Brasil apenas na condição de ser dado um nome ao personagem do padre representado por Jofre Soares. Em Portugal manteve-se censurado até ao 25 de Abril. E hoje é apresentado no cineclube.


quarta-feira, 12 de abril de 2023

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) de Glauber Rocha



por António Cruz Mendes

António das Mortes começou por se chamar O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Este título, que se diz ter sido aquele que Glauber Rocha preferia, remete- nos para a lenda do combate entre S. Jorge e o Dragão. Sylén, uma cidade na Líbia, vivia sob a chantagem de um dragão que, sob a ameaça de a aniquilar, todos os anos exigia o sacrifício de uma donzela. A próxima vítima seria a própria filha do rei. Mas, S. Jorge resgata-a, enterrando a sua lança nas goelas do monstro, e desposa-a, trazendo-a com ele para a Inglaterra. 

O sentido alegórico da lenda é evidente. A própria iconografia da vitória de S. Jorge sobre o Dragão, consagrada por inúmeras pinturas, está presente no filme de Glauber Rocha na cena da morte do coronel, o “Dragão” personificado na figura de um homem cego ao sofrimento que provoca e à miséria que o rodeia. Corisco, o cangaceiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol, já se identificava como um “S. Jorge”. E, em António das Mortes, um filme que se encontra na sequência daquele que vimos na passada semana, aquilo que está em causa continua a ser a revolta dos trabalhadores sem terra do sertão brasileiro contra a ganância dos “coronéis” que a exploravam como pastagens para a criação de gado. 
 
A associação da mitologia cristã à luta de classes não se esgota, aliás, nessa representação alegórica, mas encontra-se presente em todas as manifestações do grupo de “beatos” que resistem à opressão animados por uma confusa fé redentora. De resto, há sequências do filme que foram encenadas como se de rituais religiosos se tratassem. Veja-se, por exemplo, a cena do duelo entre António das Mortes e Coirana, presos por um lenço que os dois seguram com os dentes, empunhando as suas catanas e defrontando-se no meio de um semicírculo de beatos e cangaceiros, ao som de batuques e melopeias. 

A presença asfixiante da paisagem nordestina à qual o colorido vibrante do filme oferece um relevo particular, associado a uma revolta metafísica contra a pobreza, aos cânticos e danças extasiantes e às cenas de extrema violência a que assistimos (a sequência da denúncia da infidelidade de Laura e do assassinato de Mattos é particularmente impressiva) pode, por vezes, dar-nos uma impressão de excesso. No entanto, tudo isso é consentâneo com a dimensão quase operática do filme, onde a música assume um protagonismo evidente, comentando os acontecimentos e oferendo-nos um guião narrativo indispensável ao seu entendimento. Veja-se, como exemplo, o longo plano-sequência onde o coronel, transportado numa espécie de andor e seguido pelos seus jagunços, se dirige ao lugar onde se travará a luta final, enquanto se ouve uma canção que nos fala dos feitos do lendário Lampião. 

Os recursos convocados para nos contar a história de António das Mortes, “matador de cangaceiros” que, com a morte de Corisco julgava ter acabado com essa laia de bandidos, mas que acabou por seguir o caminho desses “ladrões de honestidade”, são os mais variados. Glauber Rocha fala-nos, por exemplo, da influência de Eisenstein. Penso que ela é particularmente evidente na montagem paralela das cenas patéticas do funeral de Mattos e da eufórica reunião dos beatos e cangaceiros. A elas, seguir-se- á, por um lado, a matança executada pelos jagunços do Mata-Vacas e, por, outro, a adesão de António das Mortes à causa da Dona Santa e dos miseráveis. Mas, a “síntese” daquela contradição, o duelo final que culmina com a morte de Mata-Vacas e do Coronel bem que podia ter sido filmado por Sam Peckinpah. 

No final, António das Mortes segue um caminho que não sabemos onde o conduzirá. A luta dos beatos há-de prosseguir, mas a dele é de outra ordem. Porque, se “negócio de pobre é com o senhor”, o dele “é só com Deus”.



quarta-feira, 5 de abril de 2023

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha



por João Palhares

Glauber Rocha nasceu e morreu algures, é certo. Cruzou, confundiu e desmistificou os hemisférios. Quis fazer o mesmo com o primeiro e o terceiro mundo, com a riqueza e a pobreza, com deus e o diabo, com a vida e com a morte. Será para sempre a presença nunca descansada, nunca satisfeita, nunca pacificada e maior que a vida que caiu de pára-quedas na revolução dos cravos e se pôs a espicaçar os populares e os militares com enérgicos “acriditá ná révulução?”, “Há quanto tempo você lútá?”, “O sénhô sofreu com á ditadura?”, “O quê achá dá situação atuau?” “Porque é qui não foram ao primeiro di Maio, porqui não estão ná Práça?” Pela mesma altura no congo, em cuba, no peru, em itália, na frança, no chile, em todas as revoluções e em todas as frentes, quem é que o alcança? Também foi ele que, em 1976, aterrou sem cerimónias e sem aviso no velório e no funeral do amigo Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, com uma câmara na mão e como um poeta apaixonado que usa uma caneta, ou um pintor um pincel. Na curta Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Quimera, Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. (1977), que foi o resultado dessas filmagens ainda infames para alguns, diz que aprendeu a filmar com Rossellini, que fazia o mesmo, fazia da câmara uma extensão do próprio corpo e da própria cabeça, dos neurónios criativos (“… fui destacado para entrevistar o Roberto Rossellini, e lá conheci o Di Cavalcanti que me apresentou o próprio Roberto, com a caméra de dezésseis milímitros, saindo pela rua na Bahia e filmando rapidamente lá um sarcófago e outros batuques das ruínas portuguesas barrocas da Bahia com uma rapidez impressionante. Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei o que é que era realmente o negócio de “ideia na cabeça e caméra na mão”. Quer dizer, o Rossellini realmente fazia com a caméra de dezésseis o que Di Cavalcanti faria com um pincel.”), da parcela redentora do ser humano, aquilo que o pode projectar na eternidade. Mas entrou no velório, escrevemos, e fez daquilo um carnaval celebrando a vida e a obra do amigo Di Cavalcanti nem lhe faltando trazer o morto para a festa também (“Agora dá um close na cara dele… barba por fazer, calça Benim azul-marinho, casaco azul claro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons… o cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão de Di Cavalcanti no velório no museu de Arrrrr-ti Moderna.”). Realizou treze longas-metragens e seis curtas-metragens ao longo duns meros vinte anos, viveu quarenta e dois, escreveu certamente milhares de textos e foi uma personalidade fogosa, apaixonante, instigadora e imprescindível para as décadas de 60 e 70. 
 
Também foi ele, claro, que nos anos 60 decidiu partir para o sertão brasileiro com pouquíssimos meios para encenar uma alegoria política e religiosa fundadora, uma mitologia nova para o terceiro mundo. Plena de fúria e de sangue, como nos mitos que se conhecem da bíblia sagrada ao sagrado capital, chamou-lhe Deus e o Diabo na Terra do Sol e deu-lhe forma de western para se apropriar doutro mito, o do cinema. E assim dois fazendeiros incautos, um homem e uma mulher como no paraíso, encontram um deus negro e um diabo louro e são perseguidos por um carrasco de cangaceiros chamado António das Mortes. Pontuado por comentários escritos por Glauber Rocha e cantados à guitarra por Sérgio Ricardo, nos termos mais directos possíveis, o filme torna-se um grito primordial de revolta desde muito cedo. “Vou contar uma estória, na verdade é imaginação. Abra bem os seus olhos, para prestar bem atenção. É coisa de deus e diabo, lá nos confins do sertão.” À medida que avançamos assistimos aos pecados e aos sacrifícios que se cometem para tentar erigir uma ideia de civilização, a sociedade atrás de homens e mulheres que se tornam criminosos por não se contentarem nem terem de se contentar com o quinhão que lhes é alotado por meia dúzia de iluminados privilegiados. Deus e o diabo acabam por não parecer assim tão diferentes e os homens descobrem que têm de lutar por si próprios para transformar o sertão em mar e para o paraíso lhes ser devolvido. Como em qualquer epopeia ou mito, há algo de verdadeiro, de factual, e a acção situa-se na época de Corisco e Dadá, cangaceiros conhecidos por esses nomes mas que em tempos se chamaram Cristino Gomes da Silva Cleto e Sérgia Ribeiro da Silva. São personagens do filme e fizeram parte das fileiras do rei do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Foram todos o pesadelo das autoridades brasileiras, entre as duas grandes guerras, mas para um povo fustigado e cansado representaram um sonho e a esperança de que algo mudasse nas suas vidas. Projectando as suas mordaças e as suas amarras nas que tentavam pôr nos cangaceiros, livres no sertão, seguiram as suas aventuras e torceram por eles como libertadores anunciados. Como quem percebe que as coisas não estão bem, ainda hoje, líderes mundiais sempre a gerir um equilíbrio talvez impossível entre a ordem e a liberdade, quando não é a mera subsistência, milhões de pessoas presas ao trabalho e ao dinheiro podem gritar com Corisco quando chega António das Mortes e lhe diz para se entregar: “Eu não me entrego, não. Não me entrego ao tenente, não me entrego ao capitão. Eu me entrego só na morte de parabelo na mão.” E a ambição de contar uma Odisseia ou uma Ilíada do século XX, realiza-se, não se sabe se os séculos não transformarão Manuel em Ulisses e Corisco em Aquiles, perdendo-se o filme e os seus negativos mas sustendo-se o mito. Dezenas de decanos e decanas perdidos no deserto em peregrinação num fim do mundo longínquo qualquer a debitar de memória emprestada os planos e os versos de Glauber Rocha, que viveu e morreu como um cangaceiro e deu novos mundos ao mundo. E nem na morte descansou ou nos deixa a nós descansar.



quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Corumbiara (2009) de Vincent Carelli



por Alexandra Barros

Em 1985, houve um massacre de índios na Gleba Corumbiara, no estado brasileiro de Rondônia. Terá sido executado pelos fazendeiros locais, para evitar que as “suas” terras fossem demarcadas pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) como área protegida. Os ataques terão sido tão bárbaros que ganharam o estatuto de mito e foram esquecidos. Os fazendeiros tentaram apagar as marcas dos crimes e negam sistematicamente que tenham ocorrido. 

O indigenista Marcelo Santos, para evitar a continuidade dos crimes e punir os responsáveis, inicia uma expedição para encontrar sobreviventes e recolher vestígios dos massacres. As autoridades exigem prova visual para reconhecer a existência de indígenas e cabe ao realizador Vincent Carelli, que acompanha Marcelo, captar as imagens da expedição. 

Ao longo de vinte anos, a equipa de Carelli regressa repetidamente a Corumbiara para reunir evidências dos crimes, encontrar/reencontrar os sobreviventes, protegê-los, evitar que os territórios por eles habitados sejam ocupados por fazendeiros e tentar entender o que aconteceu em 1985. 

No entanto, tudo se vem a revelar muito mais complexo do que a ingenuidade com que partiram para o projecto permitiu entrever. Embora inicialmente o projecto fosse essencialmente político e humanitário, ao longo dos anos vai-se transformando num meta-projecto, na história das suas dificuldades e impossibilidades. 

No início, surge a dificuldade de estabelecer contacto entre pessoas que se receiam mutuamente (os indígenas e a equipa de indigenistas) por não conhecerem as intenções uns dos outros e não terem uma linguagem comum. Depois, após o contacto, existem dificuldades de comunicação, dado que as línguas indígenas são desconhecidas. Ao longo dos anos, a equipa de Carelli debate-se com a oposição cerrada dos fazendeiros ao seu trabalho. Os fazendeiros, sempre que podem, negam o acesso aos territórios onde se suspeita que existem indígenas escondidos. Boicotam também o trabalho que a equipa consegue realizar, através de campanhas para desacreditar as provas da existência de tais indígenas recolhidas pela equipa. 

Finalmente, são também problemáticas as dúvidas dos próprios “salvadores” sobre os métodos que utilizam nos “salvamentos”, particularmente quando o contacto é recusado por quem é suposto “ser salvo”. A equipa reflecte sobre a sua abordagem: será legítimo impor a sua presença a quem nitidamente não a deseja? Será legítimo filmar quem não quer ser filmado, mesmo com a melhor das intenções? 

Duas décadas depois do massacre, é finalmente lançado um documentário sem conclusões definitivas. Não há história com princípio, meio e fim. O que se mostra é um puzzle com muitos buracos, seja por ser impossível encontrar algumas das peças, seja por que outras, ao longo dos anos, perderam a sua nitidez. 

O filme, mais do que uma história de sucesso ou de metas alcançadas (descobrir e punir os culpados pelos crimes, por exemplo), é uma história sobre as lacunas da própria história, sobre a incapacidade de atingir os objectivos propostos e sobre as implicações éticas dos métodos utilizados. No entanto, essa aparente fragilidade é uma das grandes forças do filme, levando-o para territórios que ultrapassam o activismo em prol de uma causa específica. 

É também um filme sobre o Brasil (teias de poder, pobreza e estratégias de sobrevivência, ocupação de território, indigenismo, ambientalismo e sustentabilidade, ...) e um filme sobre adversidade e a superação possível, sem mistificação. No fim, não há heróis, há homens que fizeram o melhor que sabiam e que cometeram erros, mesmo tendo as melhores intenções. E é aí que todos nos poderemos identificar. Sem incluir as histórias dos problemas, falhanços, crises e impasses, não haveria filme, não haveria história. Para além de outros pontos de contacto com Cabra Marcado Para Morrer (filme já exibido neste ciclo dedicado ao cinema brasileiro), esta estratégia de composição é talvez o que mais aproxima os dois filmes. Impossibilidades transformadas em possibilidades, fraquezas feitas forças, histórias que afinal são História.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

A Hora da Estrela (1985) de Suzana Amaral



por António Cruz Mendes

Há pessoas que passam pela vida como sombras. São quase imperceptíveis. Limitam-se a desempenhar, rotineiramente, melhor ou pior, as funções que lhe foram atribuídas, sem grandes alegrias ou tristezas porque “a vida é mesmo assim”. Mas, apesar de tudo, podem alimentar sonhos fabulosos e há mesmo um momento onde, finalmente, ocupam o centro do palco e todas as atenções se voltam sobre si. É a hora da sua morte, a hora da estrela. 

Antes deste filme, Suzana Amaral só tinha realizado documentários. Conta-nos ela que o professor de roteiro da Universidade de Nova Iorque onde estudou cinema, aconselhava os alunos que quisessem adaptar uma obra literária a não escolher um livro grande. Corriam o risco de realizar um filme que não fosse mais que um resumo truncado, empobrecido, da sua história. Uma narrativa curta teria que ser expandida e, mais facilmente, o filme adquiriria vida própria. Suzana Amaral lembrou-se disso quando pensou em adaptar uma obra de Clarice Lispector. Passou um dedo pela estante onde, na biblioteca da Universidade, se encontravam os seus livros e percorreu as lombadas até encontrar a mais fininha. Saiu-lhe A Hora da Estrela, uma extraordinária obra literária – que muitos consideravam ser inadaptável para cinema. 

Clarice Lispector conta-nos a história de Macabéa pela voz de um narrador, Ricardo S. M., que constantemente interrompe a narrativa para se referir a si mesmo e à sua íntima necessidade de contar a história da Macabéa e, ao mesmo tempo, da dificuldade que tinha em fazê-lo. Afinal, ele apenas entreviu a rapariga que a inspirou. A personagem “Macabéa” é, em grande medida, uma criação sua. Como traduzir isto em imagens? 
 
Suzana Amaral optou por se concentrar em Macabéa que viu como uma pessoa real e, ao mesmo tempo, como uma metáfora. Aqui, temos que abrir um parêntese para falar da extraordinária interpretação de Marcélia Cartaxo (“Urso de Prata” de interpretação no Festival de Cinema de Berlim). A sua dicção, a sua postura corporal, a sua aparência física compõem uma personagem dotada de um extraordinário verismo. Por outro lado, “todas nós”, as mulheres e, em particular, as nordestinas deslocadas e perdidas numa grande cidade, diz-nos Suzana Amaral, “temos algo de Macabéa”. Ela própria também se sentiu uma “Macabéa”, imigrada em Nova Iorque, quando, com mais de 50 anos e mãe de nove filhos, foi para aí estudar cinema. 

Macabéa tem 19 anos. O pai e a mãe viveram e morreram no sertão, em Alagoas. Foi criada por uma tia beata, fria e autoritária que a privava de um dos poucos prazeres que conhecia, o de comer queijo com goiabada. E, depois da morte dela, vê-se sozinha, longe da sua terra, partilhando um quarto miserável com três desconhecidas e ganhando a vida num trabalho mal pago, que não lhe dá prazer e que desempenha toscamente. Incompetente na dactilografia e incompetente na vida. Baixinha e magricela, não é bonita, nem vistosa – “nem pobreza enfeitada tem”, diz-nos Ricardo S. M. É tímida e ignorante – embora goste de ouvir os ensinamentos da Rádio Relógio, cuja linguagem, aliás, não entende e dos quais não retira proveito algum. Tem uns olhos grandes que perscrutam com curiosidade um mundo que percebe mal, mas que aceita como ele é. Procura ser amável e educada, mas não conhece o amor. É virgem e despe-se, pudicamente, sob os lençóis da sua cama. 

É, portanto, alguém que facilmente podemos ignorar, substituir, descartar. Afinal, haverá milhares de Macabéas. Porém, ela tem um sonho: gostava de ser uma estrela de cinema. 

Suzana Amaral já tinha realizado uns cinquenta documentários quando realizou A Hora da Estrela e é num registo quase documental que nos descreve o quotidiano de Macabéa, a sua amizade com Glória, a colega exuberante, de roupas justas e cabelo pintado, que procura o amor, mas de quem todos se aproveitam e com quem ninguém quer casar; e o seu patético namoro com Olímpico, outro nordestino, também ele sozinho e desterrado em São Paulo, mas que, com a sua fingida desenvoltura, o seu dente de ouro e o seu cabelo empastado de brilhantina, sonha ser “deputado”. 

Como se resolverá este balanço entre a crua realidade e os sonhos fantásticos de Macabéa e dos seus amigos? A Madame Carlota, que já foi prostituta e “patroa” e que, agora, lança as cartas e adivinha o futuro, tem uma palavra a dizer.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Cabra Marcado para Morrer (1984) de Eduardo Coutinho



por João Palhares

CINEMA MARCADO PARA SUMIR*
 
Braga, Setembro de 2021. 
 
Décima quinta ou décima sexta semana de um processo entre cinco instituições diferentes que põe em causa o financiamento de um cineclube. O Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) dobrou o subsídio do Apoio à Exibição em Circuitos Alternativos para 2022 e 2023, mas fê-lo com um pequeno senão: obrigou os candidatos a apresentar o Documento de Identificação do Recinto (DIR), quatro palavras bastante simples mas que implicam todo um arsenal de documentação que deve ser entregue pela Câmara Municipal de Braga (CMB), pela Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS) e o cineclube à Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC). 
 
Em conversas com representantes doutros cineclubes, durante as primeiras semanas do processo, descobre-se que o concurso é adiado de Julho para Setembro de 2021 por pressão da Federação Portuguesa de Cineclubes (FPCC), de forma a garantir que os candidatos tenham tempo para apresentar toda a documentação. Descobre-se também que há salas que são obrigadas a fazer obras para obterem o DIR e poderem concorrer ao dito concurso. Tudo isto em plena pandemia. Mas como estamos em Portugal, nada disto é noticiado, é-se obrigado a aceitar tudo e a depender de processos burocráticos que parecem existir apenas para extinguir pequenas associações e pequenos cinemas. Descobre-se um mundo vasto de pessoas que se refugiam de muito bom grado nas regras e nos regulamentos como se fossem o dogma absoluto por que nos devêssemos reger e sem fazer quaisquer perguntas. Não serve de nada falar de cinema, de cineclubismo e do 25 de Abril, ou do cineclubismo antes do 25 de Abril porque isso são coisas de intelectuais, de artistas e pequeno-burgueses, as sanguessugas da sociedade. E o mundo gira, e os dias passam.

Um piloto-pintor português viaja durante meia vida pelo mundo, regressa à terra natal, faz a decoração de cinco andares alusivos a cinco civilizações diferentes em casa e tenta convencer o presidente da junta de freguesia a dinamizar a sua vila, oferecendo os seus préstimos. É recusado. Segundo este, a vila só quer festas e bailaricos. Um produtor tenta convencer a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) a comprar e exibir nos seus canais um filme que não segue modas nem tendências actuais. Esse apoio tornaria viável a carreira comercial do filme. É recusado, recebe uma lição não solicitada sobre o que deve produzir. Um artista plástico junta-se a uma associação cultural e pede paredes numa cidade à vereadora da cultura para pintar murais alusivos ao 25 de Abril. É recusado. Pouco tempo depois, as paredes ficam disponíveis para uma iniciativa supostamente mais alinhada com os gostos dos munícipes e sem revoluções à mistura. A vereadora tira várias fotografias de promoção diante das paredes.
 
No momento em que exibimos Cabra Marcado para Morrer de Eduardo Coutinho, e porque achamos que uma descrição dos bastidores de um cineclube também pode servir de folha de sala, estamos à espera que o IGAC aceite o pedido do DIR para que seja possível enviar mais quatro documentos e formulários preenchidos e seja depois emitido um DIR provisório, que será então enviado para o ICA para se poder criar um sistema de emissão de bilhetes com uma sessão-teste e finalizar a candidatura. Tudo isto num tempo recorde de três dias e meio. E exactamente por causa disto tudo, continua-se a acreditar que o mundo é feito de indivíduos e das suas acções, que são eles que podem mudar o estado geral das coisas indo além do que é esperado deles. E para este caso em concreto, com centenas de telefonemas num espaço de poucos meses, essa pessoa foi José Amaro, o presidente do cineclube. Se para o ano houver cinema na biblioteca, a ele o devemos. E a quem conseguiu convencer e recrutar para tornar viáveis os projectos de uma pequena associação.
 
Salvaguardando todas as distâncias, que a luta por pão e por casa é muito mais importante, muito mais urgente e muito mais dura do que tudo isto, põe-nos em sentido em relação ao que são os verdadeiros problemas na vida, ganhamos alento ao ouvir Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, depois de tudo o que lhe aconteceu e depois de tudo o que viveu, dizer perto do final de Cabra Marcado que “a mesma necessidade está na fisionomia do operário, do homem do campo e do estudante. A luta é que não pode parar.” Portanto, a luta continua.

* no dia em que se escreveu esta folha de sala, o caso DIR parecia muito mais mal parado. Como é também costume em Portugal, tudo se resolveu num dia, entre telefonemas, instalações de software em controlo-remoto, pedidos de certidões, declarações e certificados, concentração de esforços individuais num só sentido. Sempre na corda-bamba, o cineclube conseguiu submeter a candidatura ao Apoio à Exibição em Circuitos Alternativos para os próximos dois anos.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980) de Héctor Babenco



por Joaquim Simões

Não há necessidade de elogiar a obra que é Pixote, um filme que relata a vida num reformatório juvenil em São Paulo, centrado no protagonista de onze anos que lhe dá o título - o filme já possui todos os louros que merece, tendo sido abundantemente premiado e inclusivamente considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos melhores 100 filmes brasileiros de todos os tempos. E, se na altura da sua estreia teve um impacto enorme, hoje, passadas quatro décadas, ver esta obra é uma experiência completamente diferente, mais deslocada da realidade atual e por isso talvez mais intensa, pois as qualidades realistas que na altura o tornaram um documento fiel da sociedade brasileira no final da ditadura militar são hoje o que fazem deste filme, para nossa sensibilidade atual, uma obra de tal brutalidade que pode até parecer romantizada: um testemunho de que a realidade é muitas vezes mais surpreendente e chocante do que é possível imaginar. 

Apesar de Héctor Babenco ter comprado os direitos de adaptação do livro Infância dos Mortos, de José Louzeiro, o realizador admite que a matéria prima do filme, mais do que o livro, foram as duzentas horas de entrevistas conduzidas com crianças de reformatórios em São Paulo. Inicialmente pensado como documentário centrado na vida de crianças em reformatórios, a ideia foi rapidamente abandonada uma vez que filmar em tais instituições seria impossível: o reformatório que aceitasse tal exposição estaria a revelar os abusos sistemáticos que eram a prática comum. 

Babenco teve então de recorrer a contar a realidade através da ficção. Fê-lo de forma objetiva e, portanto, brutal. Para tornar o filme o mais fiel possível à realidade, o realizador recrutou os atores das ruas de São Paulo, através de oficinas com centenas de crianças. Num desfecho irónico do destino, o ator protagonista Fernando Ramos da Silva, depois do sucesso do filme e de uma breve e falhada tentativa numa carreira de ator, voltou à vida das ruas e foi morto com 19 anos; segundo a sua esposa, pela polícia. 

A história começa com o momento em que Pixote e os companheiros são apanhados das ruas de São Paulo, levados à esquadra e consequentemente confinados num reformatório. Aí assistimos ao quotidiano destes rapazes que jogam futebol, matrecos e se divertem de formas relativamente inocentes. Há até uma banda. Mas vamos também sendo introduzidos, gradualmente, à realidade subjacente de abuso, corrupção e crueldade por parte da administração, cada vez mais presente e que leva os personagens ao ponto de ruptura quando um jovem inocente é espancado até à morte por se revoltar, e a culpa é impingida na amante transexual que o segura tragicamente entre os braços no momento da sua morte, consolando-o em vão. É nesse ponto que o desespero leva os rapazes a escapar do reformatório. A partir daí seguimos Pixote e o seu grupo, ou tribo, na luta pela sobrevivência nas ruas da cidade, vivendo a princípio de furtos, passando pela venda de droga e juntando-se por fim a uma prostituta num esquema de assaltos planeados, à medida que o grupo se desmorona, um a um, até que Pixote tem de seguir a sós, sem rumo e sem futuro. 

Se despirmos o filme das fortes pressões que movem os personagens na sua luta pela sobrevivência e liberdade, esta é uma história sobre crianças que não tiveram direito a infância e sobre as relações de amizade, ternura, amor e sexualidade que surgem naturalmente, por efémeras que sejam, mesmo nas condições mais hostis.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

The Salt of the Earth (2014) de Juliano Ribeiro Salgado e Wim Wenders



por Carlos Melo Ferreira

Talvez não tenhamos ainda a noção plena de que Wim Wenders, um dos fundadores do Cinema Novo Alemão dos anos 60 (ver "Fassbinder e o futuro", de 17 de Junho de 2012, e "Palavra e pensamento", de 12 de Outubro de 2013), tem uma importante vertente documental na sua já impressionante obra. O Sal da Terra/The Salt of the Earth, co-realizado com Juliano Ribeiro Salgado (2014), vem recordar de maneira feliz o seu lado documentarista no cinema, pois permite-lhe uma reflexão dupla sobre a imagem, a do cinema e sobretudo a da fotografia por intermédio da personagem central e motora, o famoso fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. 

Vamos por partes. Depois de filmes iniciais justos e muito bons, Wim Wenders dispersou-se um tanto na beleza das imagens por si própria, sem grande recuo, o que, aliás, fez o sucesso dos seus filmes desde As Asas do Desejo/Der Himmel über Berlin (1987), justamente um filme notável pela ligação que estabelece entre imagens e sons. Pese embora a minha admiração por esse e outros filmes subsequentes, não devo esconder que é nos seus filmes iniciais que ainda hoje descubro o seu melhor.

Posto isto, O Sal da Terra agora estreado entre nós é um projecto consequente com o seu anterior Pina (2011), sobre a famosa e entretanto desaparecida bailarina e coreógrafa Pina Bausch (1940-2009), pois se trata de um filme sobre um criador artístico visual, um fotógrafo, e um fotógrafo famoso. O assunto permite ao cineasta, acolitado pelo filho mais velho do fotógrafo, ao recapitular com este a sua vida e a sua obra produzir sobretudo pela palavra do fotógrafo uma reflexão muito produtiva sobre a imagem da fotografia na história e sobre a própria história. 

De facto, Sebastião Salgado foi uma testemunha privilegiada dos últimos 40 anos da história mundial, presente com a sua máquina fotográfica nos locais e momentos em que a história recente mais doeu: no Sudeste Asiático, em África (pela qual não esconde a sua preferência), na ex-Jugoslávia, na América Latina, mas também na Sibéria, na fronteira com o Ártico, no seu próprio país, o Brasil. Conhecendo já a obra do fotógrafo, o que mais me interessa no filme é o que ele nele diz sobre si próprio e em especial sobre as suas fotografias, o espaço, o tempo e as circunstâncias em que foram tiradas. 

Arte visual, a fotografia é uma "arte muda" (se me é permitida a redundância), e o que o filme de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado permite e procura é a palavra do fotógrafo Sebastião Salgado sobre as suas fotografias, as suas séries temáticas. Casando bem a vida profissional e a vida pessoal do protagonista, o filme destaca-se sobretudo por ser uma lição de fotografia e sobretudo de história sobre os conturbados anos que a Sebastião Salgado foi (como a nós) dado viver. 

Ora esta reflexão, este esclarecimento do fotógrafo sobre o seu trabalho, é acompanhado por um bom exercício cinematográfico dos realizadores que, estabelecendo de maneira muito clara a diferença entre a fotografia e o cinema, permite através deste questionar aquela. Pese embora uma ou outra ingenuidade, como a dobragem com som ambiente de fotografias antigas, O Sal da Terra cumpre bem uma função reflexiva de segundo ou terceiro grau, dando à pessoa física do fotógrafo o destaque visual e sonoro que ele merece sem se coibir (pelo contrário) de mostrar as suas fotografias e de, a esse propósito, explorar o contraste do preto e branco e da cor

Que dessa forma nos seja permitido recapitular 40 anos de história, e da história mais trágica da humanidade, não dissociando o local do global, é um dos méritos principais do filme, em especial para uma época que, pressionada pelo presente, tende a esquecer o passado mais próximo, contudo dele indissociável. Por ser ele próprio fotógrafo, e fotógrafo de mérito, Wim Wenders sai-se bastante bem neste filme em que não receia mostrar-se a si próprio em diálogo com o protagonista. Que em conclusão se expresse confiança no ser humano, contudo responsável por tantas e tão selvagens destruições, sem convencer fica bem.

in «O poder da imagem», Some like it cool, 12 de Abril de 2015.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O Rio do Ouro (1998) de Paulo Rocha



por João Palhares

Na mata de Roquelanes, três irmãos despojados das vidas abastadas que acreditavam ser suas por direito matam-se durante as horas do dia pelas três chaves de um tesouro que viu morrer centenas de outros antes deles. Noutro século e noutras paragens, onde as árvores brotam sangue e a água é de mil fontes, nascem três meninos reais com estrelinhas na testa que são trocados por cães e cadelas e se tornam filhos de moleiros. Mais à frente na estrada, uma fada vestida de velha troca os corpos da filha feia e da enteada bonita de uma mulher ruim, trocando também as voltas à mulher que passa a tratar muito mal a filha amada e muito bem a enteada que odeia. Uma pomba encantada é laçada com ouro por um príncipe e aliviada do alfinete que tinha na orelha, transformando-se em mulher. A filha de um ministro entra num palácio ao lusco-fusco com uma camisa fina de cambraia às cavalitas de um criado para responder à adivinha de um rei. Na sétima encruzilhada de um bosque perdido, uma mulher vira uma camisa e umas calças ao contrário e veste-as a um lobo que se transforma no seu irmão. Mas antes de tudo isto acontecer, três rios irmãos combinaram encontrar-se no mar mal acordassem na manhã seguinte, uma das manhãs da Criação. O Guadiana foi o primeiro, “escolheu lindos sítios e partiu de seu vagar. O Tejo acordou depois, e como queria chegar primeiro ao mar, largou mais depressa, e já as suas margens não são tão belas como as daquele. O Douro foi o ultimo que acordou, por isso rompeu por montes e vales, sem se importar com a escolha, e eis porque as suas margens são tristes e pedregosas.”[1] 

Os rios são testemunhas das andanças do mundo há centenas e centenas de milhares de anos, ora fazendo vogar calmamente quem viesse por bem e respeitasse o seu curso ora precipitando a perdição dos seres impulsivos que aí procuravam a morte. Quanto não pode um rio, ainda, das enchentes mortais e cascatas a pique às correntes e caudais que nos alimentam as casas e a vida em comum? “Sou um rio injusto, com margens de labaredas”, escreve Mário Cesariny de Vasconcellos na sua Pena Capital, “se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.” O Rio Douro vela há quase trezentos anos pelas belíssimas vinhas que parecem escorregar pelas suas margens, alimentando as gentes que povoavam as redondezas de enguias, de escalos e de trutas, irrigando as margens em profundidade e fazendo brotar carvalhos, estevas, zimbros e sobreiros. Mas também afogou as milhares de almas portuenses que tentavam fugir das forças napoleónicas em 1809 pela Ponte das Barcas, abandonadas pelo comandante das forças portuguesas, D. António de São José de Castro, que saiu cobarde e sorrateiro pela noite; também reclamou para si o barão de Forrester, que deixara a sua Inglaterra natal pelo seu amor desmedido ao rio Douro apenas para encontrar a morte nas suas águas em 1861. Os cadáveres dos tripulantes foram todos encontrados e enterrados, menos o do barão, que ficou para sempre no leito do rio[2]. 

“O rio Douro não teve cantores”, escreveu Agustina Bessa-Luís no início da sua Fanny Owen. “Teve-os o Mondego e o Tejo também. Mas, para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira de neve que cobria os barrancos de Sabroso. O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro. Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada. Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas e não ardentes.” 

Os rios como forças, motivos e parábolas primordiais atravessam também as obsessões apaixonadas do grande Paulo Rocha, que os menciona em várias ocasiões. Sobre Jean Renoir, com quem trabalhou em Le caporal epinglé (1962) como assistente de realização e a quem chamou mesmo o “Rio Renoir”, menciona “a água (sacra) dos rios sem destino”, “o rio das ilusões e dos desejos que fazia flutuar os corações dos homens”, “a lógica cega e flutuante daqueles rios obscuros onde se escondiam as pulsões de morte”[3]. Sobre Agustina e no que parece uma carta de amor escreve que “através da tua boca falam pedras e plantas, animais e água, o rio, a luz do dia e a luz do céu”, que “as respostas da Sibila são anteriores à invenção da escrita. É uma lufada, uma palavra oral, rio sem barragens, águas primordiais.”[4] Estas comparações podem muito bem revelar a grande amizade e o grande amor que Rocha tem pelas pessoas de quem fala, pois também há rios na descrição de António Reis, que “morava num apartamento em Gaia com vista sobre o rio. As paredes estavam cobertas de bonecos de pano, de todas as cores, feitos pelos loucos de um manicómio. Os bonecos eram monstros com várias patas e cabeças e prenunciavam os desenhos de Jaime. Naquelas janelas viradas para a bruma do rio, havia uma energia irracional, um sopro de vida à beira do abismo.”[5] Em A Ilha de Moraes (1984), filme belíssimo em que Rocha continua na pista de Wencesleau de Moraes depois da Ilha dos Amores (1982), há uma monja japonesa que lhe diz que “Tokushima é famosa pelos seus rios e pelas suas mulheres. Encontramos mulheres belas perto de belos rios por todo o mundo.” Na mesma cena, com o rio em relevo, a mulher indaga sobre a palavra “mujô”, que se pode traduzir e explicar como a mutabilidade e a impermanência das coisas, dizendo que “é uma palavra que é muito cara aos japoneses. O rio corre sempre no mesmo sentido e nunca sobe a encosta. A água que corre à nossa frente nunca é a mesma. Essa palavra está gravada no fundo dos nossos corações.” Por fim, e em 1987, numa apresentação de O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987) na Cinemateca Portuguesa, Rocha remata a questão e parece mesmo descrever o seu fabuloso Rio do Ouro (1998) ao dizer que “quando nos banhamos no rio do prazer absoluto, morremos, porque descobrimos a outra face da realidade, a realidade absoluta. A água do rio não recusa ninguém.” 

O Rio do Ouro é então o culminar das grandes paixões de Paulo Rocha, o culminar de uma forma trabalhada e ensaiada com os melhores técnicos no Japão, mantendo a impulsividade, a frescura e a curiosidade inata de sempre. Três saltos no eixo incríveis na cena do comboio, quando o “Zé dos Ouros” vê algo que não quer nem deve ver e que a Carolina de Isabel Ruth quer descobrir à força toda. É o princípio do fim. Se se descobre o efeito de certas coisas, porque não pô-las em prática, porque não insistir e repetir até ser só beleza em perfeita continuidade? O chamado erro técnico pode ser uma decisão consciente de dramaturgia. E pode ser preciso calcar horas e horas os arredores de Lisboa, conhecer pescadores, filmar em cabanas com pulgas nas meias, ler O Romance do Genji[6], passar anos no Japão, aprender a língua e servir de adido cultural entre dois países que tão misteriosamente e tão paradoxalmente se ligam para a tomar. O rio Douro da infância de Paulo Rocha é também o rio dos amores de Wencesleau de Moraes, do martírio dos pescadores do Furadouro, das mulheres invioláveis de Manoel de Oliveira, da ferocidade de Agustina, do apartamento em Gaia de António Reis com vista sobre as águas, das mortes poéticas de barões assinalados e das mortes trágicas de populares a fugir pela sobrevivência das tropas do general Junot, do teatro da vida do “Rio Renoir”, das vidas dilaceradas de Mizoguchi e das míticas imprudências do rei a quem chamaram “O Desejado”. Uma hora e quarenta que contém o mundo, um rio que se transforma em mar sem ter de chegar à foz, da mente indomável e continuamente mutável de Paulo Rocha, sem barragens ou diques sociológicos que a detenham. Há quem faça a recolha muito necessária de narrativas e músicas milenares para a posteridade, há quem as sintetize com movimentos de câmara desarmantes à volta de barcos rabelos e guindastes afiados, rodas populares com coreografias fascinantes, madrinhas ciumentas com poderes para lançar feitiços, sereias inocentes cujos salvamentos provocam a fúria das águas, fogo e sangue, pragas de abelhas e alpendres voadores, quedas de carros por falésias, comboios descarrilados e sacrifícios aos deuses pagãos ou aos quatro elementos naturais. Há quem faça O Rio do Ouro e nos continue a deixar pasmados com o resultado. Passaram vinte anos e o mergulho e a viagem são os mesmos, fontes inesgotáveis de sobressaltos e descobertas.

[1] in «Contos Tradicionaes do Povo Portuguez», de Teófilo Braga. 
[2] Joseph James Forrester amou o Douro como ninguém. Foi o primeiro estrangeiro a conseguir o título de barão em Portugal, conseguido pelo seu excelente trabalho cartográfico, nomeadamente um mapa completo do rio Douro que ia desenhando com grande rigor científico e ao largo das muitas horas em que ancorava entre as águas no seu barco rabelo com cozinha, quartos, casa-de-banho e sala de jantar. Esse amor e esse episódio não passaram despercebidos a Paulo Rocha, que os queria incluir num dos seis episódios do primeiro rascunho do filme, na altura chamado A Balada do Rio do Ouro.
[3] in «O Rio Renoir», a grande ilusão – revista de cinema, nº15-16, Abril de 1994.
[4] in «A Sibila do Campo Alegre», Público Magazine, nº189, 9 de Setembro de 1990.
[5] in «Uma figura luminosa – António Reis, poeta do cinema», Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 480, 17-23 de Setembro de 1991. O rio era o Douro.
[6] O Romance do Genji é um épico escrito no início do século XI por Murasaki Shikibu, mulher da corte imperial japonesa. Foi editado em duas partes pela Relógio d'Água em 2008.