sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Cabra Marcado para Morrer (1984) de Eduardo Coutinho



por João Palhares

CINEMA MARCADO PARA SUMIR*
 
Braga, Setembro de 2021. 
 
Décima quinta ou décima sexta semana de um processo entre cinco instituições diferentes que põe em causa o financiamento de um cineclube. O Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) dobrou o subsídio do Apoio à Exibição em Circuitos Alternativos para 2022 e 2023, mas fê-lo com um pequeno senão: obrigou os candidatos a apresentar o Documento de Identificação do Recinto (DIR), quatro palavras bastante simples mas que implicam todo um arsenal de documentação que deve ser entregue pela Câmara Municipal de Braga (CMB), pela Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS) e o cineclube à Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC). 
 
Em conversas com representantes doutros cineclubes, durante as primeiras semanas do processo, descobre-se que o concurso é adiado de Julho para Setembro de 2021 por pressão da Federação Portuguesa de Cineclubes (FPCC), de forma a garantir que os candidatos tenham tempo para apresentar toda a documentação. Descobre-se também que há salas que são obrigadas a fazer obras para obterem o DIR e poderem concorrer ao dito concurso. Tudo isto em plena pandemia. Mas como estamos em Portugal, nada disto é noticiado, é-se obrigado a aceitar tudo e a depender de processos burocráticos que parecem existir apenas para extinguir pequenas associações e pequenos cinemas. Descobre-se um mundo vasto de pessoas que se refugiam de muito bom grado nas regras e nos regulamentos como se fossem o dogma absoluto por que nos devêssemos reger e sem fazer quaisquer perguntas. Não serve de nada falar de cinema, de cineclubismo e do 25 de Abril, ou do cineclubismo antes do 25 de Abril porque isso são coisas de intelectuais, de artistas e pequeno-burgueses, as sanguessugas da sociedade. E o mundo gira, e os dias passam.

Um piloto-pintor português viaja durante meia vida pelo mundo, regressa à terra natal, faz a decoração de cinco andares alusivos a cinco civilizações diferentes em casa e tenta convencer o presidente da junta de freguesia a dinamizar a sua vila, oferecendo os seus préstimos. É recusado. Segundo este, a vila só quer festas e bailaricos. Um produtor tenta convencer a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) a comprar e exibir nos seus canais um filme que não segue modas nem tendências actuais. Esse apoio tornaria viável a carreira comercial do filme. É recusado, recebe uma lição não solicitada sobre o que deve produzir. Um artista plástico junta-se a uma associação cultural e pede paredes numa cidade à vereadora da cultura para pintar murais alusivos ao 25 de Abril. É recusado. Pouco tempo depois, as paredes ficam disponíveis para uma iniciativa supostamente mais alinhada com os gostos dos munícipes e sem revoluções à mistura. A vereadora tira várias fotografias de promoção diante das paredes.
 
No momento em que exibimos Cabra Marcado para Morrer de Eduardo Coutinho, e porque achamos que uma descrição dos bastidores de um cineclube também pode servir de folha de sala, estamos à espera que o IGAC aceite o pedido do DIR para que seja possível enviar mais quatro documentos e formulários preenchidos e seja depois emitido um DIR provisório, que será então enviado para o ICA para se poder criar um sistema de emissão de bilhetes com uma sessão-teste e finalizar a candidatura. Tudo isto num tempo recorde de três dias e meio. E exactamente por causa disto tudo, continua-se a acreditar que o mundo é feito de indivíduos e das suas acções, que são eles que podem mudar o estado geral das coisas indo além do que é esperado deles. E para este caso em concreto, com centenas de telefonemas num espaço de poucos meses, essa pessoa foi José Amaro, o presidente do cineclube. Se para o ano houver cinema na biblioteca, a ele o devemos. E a quem conseguiu convencer e recrutar para tornar viáveis os projectos de uma pequena associação.
 
Salvaguardando todas as distâncias, que a luta por pão e por casa é muito mais importante, muito mais urgente e muito mais dura do que tudo isto, põe-nos em sentido em relação ao que são os verdadeiros problemas na vida, ganhamos alento ao ouvir Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, depois de tudo o que lhe aconteceu e depois de tudo o que viveu, dizer perto do final de Cabra Marcado que “a mesma necessidade está na fisionomia do operário, do homem do campo e do estudante. A luta é que não pode parar.” Portanto, a luta continua.

* no dia em que se escreveu esta folha de sala, o caso DIR parecia muito mais mal parado. Como é também costume em Portugal, tudo se resolveu num dia, entre telefonemas, instalações de software em controlo-remoto, pedidos de certidões, declarações e certificados, concentração de esforços individuais num só sentido. Sempre na corda-bamba, o cineclube conseguiu submeter a candidatura ao Apoio à Exibição em Circuitos Alternativos para os próximos dois anos.

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