No final do Verão, entramos no mundo ficcional de Clarice Lispector com Suzana Amaral e Marcélia Cartaxo, que interpreta o papel de Macabéa, personagem principal de A Hora da Estrela, a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Como guia, teremos Bemvindo Sequeira, que conhece Marcélia e nos continuará a falar do cinema do seu país.
Em entrevista a Alex Beigui em 2007, e quando este lhe perguntou como dirigiu a actriz principal no filme, Suzana Amaral respondeu que "(...) eu fiz o Actor’s Studio como atriz mesmo. Então eu aprendi uma forma bem “actor’s studio” e eu trabalhei a Marcela nesse sentido também. Mas, depois conforme eu fui conhecendo mais, e lendo, e podendo estudar, eu fui percebendo que esse não era o caminho. Então tiveram outras pessoas que eu comecei a ler e que me influenciaram o Xavier Ismail. Não sei se você já ouviu falar.* Aí então eu me interessei mais e comecei a ler e a pesquisar e a trabalhar os meus atores com base nesses novos princípios, ou seja: nenhuma intelectualização psicológica, nenhuma memória afetiva. Tudo aquilo que eram e ainda são de certa forma os princípios do Actor’s Studio. E como a dialética do desenvolvimento, a dialética é uma coisa muito importante, eu me contradisse. E graças a Deus que eu me contradisse. Porque eu acho importante você está sempre mudando, sempre descobrindo coisas novas e hoje eu trabalho no sentido da “interpretação negativa”. Eu não quero jogar com nada de conflitos, pensamentos, com essa coisa psicológica. Não. É o aqui e agora, aqui e agora. É o que você está fazendo. Tem que comer, então come. Então como é que esse personagem vai comer? Como se come. Oras! Coma. Porque quem faz o filme é o ator, claro. Mas quanto menos um ator faz pelo seu filme melhor para o seu filme; o ator que quer fazer muito pelo seu filme estraga o filme. É, nesse sentido, que também sou minimalista: quanto menos o ator fizer, quanto menos o ator pensar, quanto menos o ator se emocionar, melhor para o seu filme. O ator tem que fazer aquilo que tem que ser feito, o resto deixa que eu faça. O filme, a mise en scène, a montagem, a luz, o resto eu faço. O ator tem que entender a personagem e trabalhar."
* Xavier Ismail escreveu alguns artigos sobre cinema, alguns deles traduzidos para o português: "Transgressões de Todas as Regras", "Do Golpe Militar à Abertura: a resposta do cinema de ator" e o ainda não traduzido "Memoires of Prison", todos publicados em 1985.
Entrevistada por Ricardo Daehn para o Correio Braziliense, o ano passado, Cartaxo confessou que "A Hora da Estrela e o prêmio do Festival de Berlim definiram a minha vida, a minha carreira. Até então, eu morava na cidade do interior, na Paraíba, e todos os meus amigos do grupo estavam indo embora para João Pessoa, e eu não tinha perspectiva de sair daquele lugar. Se não fosse A hora da estrela acho que estaria lá até hoje.
"(...) me deu muitas oportunidades, muitas perspectivas de me perceber de me botar em prática. Na minha vida, resistindo. Voltei para o Nordeste e estou aqui, resistindo, perpetuando o meu jeito de ser. O que tenho e o que eu sou são transformados numa coisa maior. Através da minha arte, quero dizer muito sobre a sociedade, sobre os preconceitos, sobre a violência, sobre vencer obstáculos. Então a minha arte me salvou verdadeiramente também da loucura, da ansiedade, dos medos, dos anseios e até dos desejos. Com mais maturidade, agora, com um pouco mais de segurança, mas sempre sendo uma aprendiz na arte e na vida."
Perto do final da sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa começa a descrever as coisas belíssimas que ele tem, citando "(...) aquele belíssimo plano de Macabéia ao espelho, logo no início, depois do chefe lhe dizer «deste jeito, vamos ter que despedir você»; a primeira noite na casa das moças (inadjectivável fotografia de Edgar Moura), com os sons do rádio e Macabéia sentada no penico, a comer a perna de galinha; a sequência do metro («Eu gosto mesmo é de passear no Metro, nos dias de Domingo») com o permanente «o senhor me desculpe», culminando no prodigioso enquadramento que a mostra a sentir o cheiro dos homens, o cheiro do sovaco dos homens (depois, ela mente, dizendo que não sabe o que isso é) e que a conduz à masturbação nocturna, filmada com um pudor magnífico, e ao plano de Macabéia a benzer-se (reparem na "rima interna" desse plano, com o que se segue, mais tarde, na noite em que Olímpico a traiu).
"Depois, é tudo tão bonito: tão bonito o raccord entre o espelho (quando ela repete «sou dactilógrafa, sou virgem e gosto de Coca-Cola») com o plano da montra de manequins com fatos de noiva. Tão bonito o encontro com Olímpico de Jesus Moreira Chaves («O que quer dizer Olímpico?»); tão bonita a história da Alice no País das Maravilhas (no livro, era a leitura dos Humilhados e Ofendidos de Dostoievsky que obcecava Macabéia); tão bonita a ideia das horas; tão bonita a sequência no jardim zoológico; tão bonito o plano da despedida («Macabéia, você é cabelo na minha sopa, não dá vontade de comer»).
Até Terça-Feira!
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