A terminar o ciclo a que decidimos chamar "Aquarela do Brasil", sempre com a presença do actor Bemvindo Sequeira para uma conversa final, veremos o fruto de um trabalho de vinte anos apresentado pela organização Vídeo nas Aldeias, fundada por Vincent Carelli em 1986. Foi ele que realizou Corumbiara, a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.
Em entrevista à revista Eco Pós, em 2017, Carelli disse que "(...) eu sempre digo que trabalhar com índio é aprender a sofrer derrotas. Eu, que tenho dificuldades pessoais em sofrer derrotas, tive que aprender isso: a cada derrota, dar a volta por cima e voltar à carga, não é? Então, é isso: eu entro no CEDI, onde tivemos que constituir um grande banco de dados. A realidade indígena era algo completamente obscuro. Nem governo, nem Estado brasileiro tinham informações organizadas; havia lugares, na Amazônia profunda, que nem sequer os órgãos indigenistas tinham chegado. Eu ajudei a propor essa grande rede de informação, que era uma rede supra “fé”, supra profissional, supra partidária, supra tudo. Apelava aos missionários, intelectuais, pesquisadores e jornalistas, enfim, para constituir esse grande banco de informações minimamente confiáveis, para que se pudesse pensar inclusive políticas indigenistas. Algo que resultou na ampla enciclopédia do Instituto Socioambiental.
"Além de ajudar a criar essa rede (para a qual cada um vinha com seu capital de relações), eu constituí um arquivo fotográfico: corri todos os acervos de museus, de imprensa, os arquivos pessoais... encontrei uma quantidade enorme de fotografias, registros esparramados em gavetas e armários, escondidos em museus. Descobri, então, a importância de resgatar esses registros e esses acervos: a coleção fotográfica de [Curt] Nimuendajú, o registro monumental da Comissão Rondon... todas essas preciosidades. Tudo isso, que para as novas gerações tem uma importância muito grande, tudo isso tinha que voltar aos índios, porque era deles, afinal. Era parte de um processo de expropriação e precisava ser devolvido. Então, por ter feito uma opção radical na vida, por ter abandonado tudo (cidade, casa, família) e ter partido para morar com os índios, eu passei a enxergar o mundo de uma outra perspectiva. Eu via as pessoas irem para as aldeias fazer seus trabalhos e percebia ser sempre um movimento de mão única. Raramente retornavam às aldeias os produtos e os registros destes trabalhos. Então, eu sentia isso da perspectiva da aldeia e todo o meu movimento seria o de, justamente, inverter essa direção. Quer dizer, as coisas tinham que voltar. Para esses povos, que sofrem transformações e perdas de conhecimento muito rápidas e intensas, essas referências históricas são fundamentais."
Numa crítica para a revista Retrato do Brasil, Leandro Saraiva escreveu que "como uma flechada, Corumbiara nos impacta violentamente, como espectadores desacostumados com um cinema feito de compromissos radicais. As discussões sobre o estatuto das imagens documentais, a natureza do caráter ético e/ou político das relações estabelecidas entre quem filma e quem é filmado, ou mesmo a ética (sempre “a ética”, entendida como compromisso individual entre “autor” e “documentado”)
da produção audiovisual com relação aos abundantes desvalidos retratados – todas essas questões debatidas nos últimos anos, de especial crescimento do documentário no País, amargam na nossa boca, tomando um gosto meio pueril defrontadas com a clareza e firmeza desassombrada dos posicionamentos que movem o filme de Vincent Carelli. Tamanha contundência tem seu nervo no inconformismo frente à violência bárbara que rege as relações sociais nas frentes de expansão agrária do País.
"Corumbiara se compõe das filmagens feitas por Carelli na região homônima, em Rondônia, entre 1986 e 2006. Sempre tentando flagrar os criminosos responsáveis pelo massacre de um grupo indígena que “atrapalhava” fazendeiros locais – pelo desagradável inconveniente de existir, com o agravante de fazê-lo sobre terras que os fazendeiros sulistas tinham comprado num negócio de lucros amazônicos promovido pelo desenvolvimentismo patrimonialista –, o cineasta acumulou farto material ao longo de duas décadas. Vestígios de ocupação violentamente desfeita, oculta de modo primário, ameaças de jagunços, depoimentos de trabalhadores que tes- temunharam o ataque, entrevistas com especialistas indigenistas, localização de índios que fugiram e sobreviveram e até mesmo a confirmação do massacre por alguns desses sobreviventes."
Já sobre o projecto Vídeo nas Aldeias, damos a palavra à educadora Nietta Lindenberg Monte, que a descreveu como "parte de uma rede de organizações não-governamentais com atuação em terras indígenas, o VÍDEO NAS ALDEIAS constrói sua trajetória particular no cenário do novo indigenismo brasileiro ao apresentar uma renovada proposta educativa junto aos povos indígenas e à sociedade brasileira e internacional. Seu trabalho tem obtido reconhecimento como marco de referência original não só pelo rico acervo etnográfico que acumulou em 18 anos, mas pelos processos educacionais interculturais que estão na origem e nos fins de sua produção audiovisual.
"A partir de 1997, uma prática sistemática e inovadora de formação de realizadores indígenas, entre 23 povos em 4 estados da Amazônia Legal, vem implicando na formação de um público diversificado dentro e fora das fronteiras brasileiras, com a divulgação e comercialização das obras resultantes desse processo educacional."
Até Terça!
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