quarta-feira, 30 de maio de 2018

98ª sessão: dia 1 de Junho (Sexta-Feira), às 21h30


Não há discussão sobre cinema moderno, da proclamada "morte do cinema" às possibilidades  abertas pelas rodagens em exteriores (ou pelo vídeo, ou pelo digital, ou pelos telemóveis de última geração), passando pela citação como forma de criação, que não tenha sido atravessada de uma ponta à outra pelo filme da nossa próxima sessão, O Acossado (1960) de Jean-Luc Godard. Em 2018, e depois de tanta discussão à volta do essencial, talvez seja possível vê-lo pelo que é: um filme. Para nos ajudar, teremos Joel Yamaji, cineasta e professor de cinema brasileiro que nos enviou uma apresentação em vídeo.

Godard disse aos Cahiers du Cinéma em 1962 que "os nossos primeiros filmes eram todos filmes de cinéfilos - o trabalho de entusiastas do cinema. Pode-se fazer uso do que já se viu no cinema para fazer referências deliberadas. Isso foi verdade para mim em particular. Eu pensava em termos de atitudes puramente cinematográficas. Para alguns planos, referia-me a cenas de que me lembrava em Preminger, Cukor, etc. E a personagem interpretada por Jean Seberg era uma continuação do papel dela em Bonjour Tristesse. Eu podia ter pegado no último plano do filme de Preminger e começado depois de fazer uma transição para um título, 'Três Anos Depois'. Isto é o mesmo tipo de coisa que o meu gosto pela citação, que ainda mantenho. Porque é que havemos de ser censurados por isso? Na vida as pessoas citam como bem entendem, portanto nós temos o direito de citar como bem entendemos. Assim sendo, eu mostro pessoas a fazer citações, certificando-me apenas de que citam o que me agrada. Nas notas que faço de qualquer coisa que possa ser útil para um filme, acrescento uma citação de Dostoievsky se gostar dela. Porque não? Se se quer dizer alguma coisa, só há uma solução: dizê-la.

"Além disso, O Acossado era o tipo de filme em que vale tudo: era disso que se tratava. Qualquer coisa que as pessoas fizessem podia ser integrada no filme. Na verdade, foi este o meu ponto de partida. Disse a mim mesmo: já tivemos Bresson, acabámos de ter Hiroshima, um certo tipo de cinema está a chegar ao fim, pode ter acabado, portanto vamos juntar o toque  final, vamos mostrar que vale tudo. O que eu queria era pegar numa história convencional e refazer tudo o que o cinema tinha feito, mas de forma diferente. Também queria dar a sensação de que as técnicas do cinema tinham acabado de ser descobertas ou experienciadas pela primeira vez. O plano em íris mostrou que se podia regressar às origens do cinema; o fundido apareceu, só uma vez, como se tivesse acabado de ser inventado. Se não usei outros processos, foi em reacção contra um certo tipo de cinema; mas não deve ser feita uma regra a partir disso. Há filmes em que eles são necessários; e às vezes devem ser usados com mais frequência. Há uma história sobre Decoin* a ir ver o montador dele em Billancourt e dizer: 'Acabei de ver O Acossado; a partir de agora, os planos em continuidade estão fora de questão.'"

*"Decoin": O realizador veterano Henri Decoin, cujos filmes - e.g. Les Inconnus dans la maison (com Raimu, 1942), La vérité sur Bébé Donge (com Gabin, 1951) - são feitos de forma competente mas não revelam personalidade individual.

Pierre Rissient, falecido este mês para nossa grande tristeza, esteve presente na rodagem do filme como assistente de realização, e disse a Olivier Père que "eu segui toda a preparação e a rodagem de O Acossado. Não havia um argumento no sentido clássico do termo mas um esboço de etapas de três páginas a partir do qual se pôde criar um orçamento e um plano de trabalho. Ainda não havia diálogos. Esse orçamento e esse plano de trabalho foram respeitados, de forma geral, com a excepção de algumas mudanças relacionadas com a acessibilidade de cenários. Portanto pode-se dizer que a preparação foi muito precisa. Durante a rodagem, Godard vinha de manhã com os diálogos, escritos diariamente. Jean-Luc, Jean Seberg e Belmondo sentavam-se no café da esquina para ler e repetir os diálogos, e de maneira geral foram feitas muito poucas mudanças na altura da rodagem. Também havia muito pouca direcção de actores da parte de Godard. A sua direcção de actores manteve-se muito funcional, sem indicações psicológicas, o que frustrava um bocado Jean Seberg, enquanto que Belmondo ficava muito confortável. 

"Quanto aos outros actores, ou melhor, não actores, eram sobretudo companheiros como Daniel Boulanger que interpretavam divertindo-se, e não digo isso de forma pejorativa. Houve muitos amigos cinéfilos que fizeram aparições no filme, Jean Domarchi, Michel Fabre, Jacques Lourcelles, Jacques Rivette, Jean Douchet… Mas também houve alguns actores profissionais que Godard manteve, Van Doude no papel do repórter e Henri-Jacques Huet. Em contrapartida, não tenho a certeza se ele pensou imediatamente em Jean-Pierre Melville..."

Jacques Lourcelles, que entra no filme de Godard sob o pseudónimo de Raymond Ravanbaz, escreveu que "tudo ou quase tudo é emprestado neste descalque pálido do film noir americano: o assunto, o género e os temas vêm do cinema hollywoodiano, a actriz Jean Seberg é retomada tal como aparecia em Bonjour tristesse de Preminger. Ainda assim, o filme será considerado como uma revolução no cinema francês rígido da época. Sob o plano material e financeiro, o facto de ter custado três ou quatro vezes menos que um filme médio, obtendo um sucesso imediato e considerável, valeu-lhe uma legião de imitadores. Sob o plano visual, o seu estilo bosquejado e brutal que elimina as ligações tradicionais da narração cinematográfica (transição para negro, fundido, etc) – é a sua principal inovação – surgirá como a própria imagem da juventude. Sob o plano do assunto, « os jovens », entidade vaga e difusa, tornar-se-ão durante muito tempo o principal assunto das ficções do cinema francês. Certo que o cinema francês, enclausurado na ditadura dos seus cineastas quinquagenários e sexagenários (geralmente talentosos), nas suas rigidezes sindicais e profissionais, precisava muito de um banho de juventude. Mas a emenda foi sem dúvida pior que o soneto. Todos os elementos constituintes da mise en scène foram afectados. A ausência de preparação e de construção no argumento vai amolecer as histórias todas (a de O Acossado é exangue). A rodagem sistemática em exteriores vai aniquilar a pouco e pouco a vida dos estúdios. A fotografia de estilo « reportagem » vai tornar obsoleta – por um tempo – toda a pesquisa nesse domínio. Só a chegada ao estrelato de Jean-Paul Belmondo é que pode ser considerada um elemento inovador. Passando depois sem esforço do filme dito de autor para o filme « comercial », rompendo as fronteiras e as divisões convencionais, o actor abriu o caminho para um tipo de intérprete polivalente de que Gérard Depardieu fornece hoje o modelo. Com a mesma abordagem agressiva e glaciar em relação ao real, Godard dedicar-se-á então a retratar, não sem complacência, a confusão mental da sua geração, matéria suficiente para dezenas de filmes. A única razão pela qual O Acossado ainda deve ser mencionado hoje, é por assinalar, como um marco miliário, a entrada do cinema na era de perda da sua inocência e da sua magia natural. Entrada essa de que um só filme não pode ser tido como responsável, evidentemente. Depois de O Acossado, o cinema, como que ferido, vai ser mais triste, menos criativo, mais consciente de si próprio – self-conscious, como dizem os anglo-saxónicos com uma sugestão pejorativa discreta. 

"N.B. Uma grande parte da História da Nouvele Vague está ligada ao progresso da credulidade do público de cinema e do público em geral. Muitos começaram a acreditar no que os cineastas diziam dos seus filmes e depois repetiram-no. Ora, a originalidade maior – esta sim incontestável – dos cineastas da Nouvelle Vague é que ninguém antes deles tinha ousado falar tão bem de si e tão mal dos outros. Alguns exemplos, entre mil. «Sempre se acreditou que a N.V. era o filme económico contra o filme caro. De modo nenhum. Era apenas o bom filme, fosse ele qual fosse, contra o mau filme». «O cinema deles [o dos cineastas que não pertenciam à Nouvelle Vague] era a irrealidade total. Eles estavam desligados de tudo (...). Não viviam o seu cinema. Um dia vi Dellanoy entrar no estúdio de Billancourt com a sua maleta: dir-se-ia que estava a entrar numa companhia de seguros». (Pessoalmente, preferimos com algum recuo e mesmo sem recuo algum a “maleta” e certos filmes de Dellanoy a toda a obra de Godard.) «Antes da guerra, entre, por exemplo, La belle equipe de Duvivier e La bête humaine de Renoir, havia uma diferença, mas apenas de qualidade. Enquanto que agora, entre um dos nossos filmes e um filme de Verneuil, Delannoy, Duvivier ou Carné, há mesmo uma diferença de natureza.» Estas afirmações de Godard ilustram o que Freddy Buache chamou, com um pouco de exagero, «a arrogância fascista» da Nouvelle Vague, nos «Cahiers du Cinema», nº 138 (1962). Breathless (83), remake americano por Jim McBride com Richard Gere e Valérie Kaprisky. 

"BIBLIO. : argumento e diálogos in « L’Avant Scène » nº 79 (1968). Também contém o argumento inicial de Truffaut. Reconstituição do filme em fotogramas na colecção « Bibliothèque des classiques du cinéma », Balland, 1974."

Até Sexta!

sábado, 26 de maio de 2018

Tirez sur le pianiste (1960) de François Truffaut



por José Oliveira

François Truffaut, o enfant terrible da nouvelle vague Francesa. François Truffaut, o mais violento dos críticos da geração de Jean-Luc Godard ou Jacques Rivette, que antes de passar a meter a mão na massa da realização atacou uma geração anterior de realizadores do seu país acomodados ao prestigio e à qualidade literária, aos grandes meios, o tal “cinema de papa” conivente com a ocupação nazi explicado e desmontado no mítico artigo dos Cahiers du cinéma nº 31 apelidado “Une certaine tendance du cinéma français”, dado ao prelo em Janeiro de 1954. O protegido do pai de todos os que escreveram e não escreveram nessas revistas, André Bazin, O crítico. Há todo um universo Truffaut que chega da sua infância contada e recontada pela pena ou pelos seus filmes, quase trinta até falecer precocemente com 52 anos em 1984, até às suas grandes aventuras privadas com as mais belas actrizes e não-actrizes, passando pelas amizades com grandes mestres como Roberto Rossellini ou Alfred Hitchckok – cujo livro-entrevista partilhado é o saint graal da cinefilia – até servir de actor para Steven Spielberg no fabuloso Close Encounters of the Third Kind, dádiva e concretização de um sonho escrito algures na parte mágica da sua efabulação incomparável pela mão do generoso cineasta americano. Há vários Truffauts, todos eles convergindo na emoção, numa emoção violentíssima porque interessada nos abismos da paixão, do amor louco, até aos delírios vomitados da sua impossibilidade e finitude. 

Sempre surpreendente, começando por fazer filmes uns contra os outros, gestos antagónicos, tentando desse modo atingir o essencial nos mais diversos espaços, épocas e tons, que exemplo mais claro do que comparar a sua longa-metragem inaugural, Les 400 Coups com o filme que hoje vamos ver, Tirez sur le pianiste, realizado logo um ano depois dessa data de 1959 tão fundamental para a história do cinema? A primeira foi a biografia filmada, terna, filmes e livros no centro, cheia de nostalgia e de um pudor ferrado, almejando a veracidade mas amando a aura cristalina, dando ao escuro lancinante Jean-Pierre Léaud para o seguir para sempre, até hoje. O segundo, que num certo sentido paga mais dívidas ao cinema do que o primeiro, é a carta de amor aos realizadores americanos que tanto marcaram essa geração, realizadores que eles trataram como ninguém, mostrando a sua importância e génio inclusive aos mesmos e a essa nação, amor ao filme noir – termo inventado pela crítica francesa – e à literatura policial, aqui segundo o poet of the losers David Goodis, entre referências várias. Um filme que é vários outros e vários livros e tanta memória do escuro e da solidão. 

Um golpe inesperado, uma pedrada no charco, quando todos estavam à espera que Truffaut aproveitasse imediatamente o sucesso atingido no tiro de partida. Seguindo de perto os acontecimentos do livro em que se baseia, Down there, conservando os flashbacks, a voz-off e outros mecanismos típicos desse universo tanto fílmico como literário, Truffaut começa logo a virar tudo do avesso, a reinventar em cima das regras e da atmosfera, usando um formato largo de filmagem (2.35 : 1 nada convencional para os filmes de género), um preto e branco sujo aonde a luz está constantemente a escoar e a fugir, transtornada, e sobretudo uma movimentação nervosa da câmara, sempre solta e atrás da personagem ou da causa, tão acossada como o protagonista principal, numa forma que estala qualquer verniz pressuposto. 

Personagem acossada é o pianista de Charles Aznavour, que aparece como um falso culpado, um inocente acossado à maneira do mestre do suspense Inglês – como escreveu Carlos Melo Ferreira no seu apaixonante livro O Cinema de François Truffaut – para mais tarde percebermos que se calhar o seu passado sempre o puxou para os acontecimentos rocambolescos que irão urdir e abrasar a trama, não perdoando certas decisões ou falta delas. Pianista num bar rasca, um simples empregado de diversão, tarefeiro anónimo, que vive com prostitutas e não liga por aí além aos amores platónicos a ele dirigidos, fantasma que matou a esperança própria e sempre merecida, mudando de nome e de alma, morto inconfessado. Quando o passado lhe acaba por lançar a pesada e ansiosa garra aparece-lhe um dos irmãos que certo dia escolheu maus caminhos, mortais desígnios, de seguida ainda outro irmão em pior estado, e ao ter de fugir para o proteger e os proteger recorda-se das outras vidas, de quando foi um pianista famoso mas pagou por isso um preço impossível, recorda-se ainda de ter renunciado a essa família, de ter almejado a diferença dos semelhantes, de uma certa renuncia ao sangue, mesmo sem culpas. 

Entre um novo amor que surge e o “regresso a casa”, bate-lhe de frente a possibilidade de retomar ao nome de baptismo, de voltar ao auge, mas, não saberemos se por ele querer ao não, tudo retoma ao ponto inicial, como um fatalismo inelutável, depois de uma arma lhe ter sido oferecida e da segunda paixão ter sido ceifada de modo tão trágico como a primeira. E por este lado, pela imposição do destino e de uma natureza, pela impossibilidade de escapar ao meio e à lengalenga da infância, Truffaut filia-se a Goodis e ao cinema negro mais desesperado e lírico, nos quais o mais duro dos homens é vergado por esse peso primordial e primogénito. Na Philadelphia do escriba das mil vidas ou na Paris dos intelectuais sedentos, cada qual é mesmo cada qual, uma constituição única que produz efeitos, seja o Behaviorismo ou o célebre “eu” do existencialismo francês, sem automatismos. 

E Truffaut, tão fiel a si como à verdade intraível da história de Goodis, vai cavando nesse escuro novas maneiras de trazer ao lume as imagens e o drama, como na primeira conversa ao piano entre os dois irmãos e o dono da espelunca, onde tudo o que é subjectivo e frontal, dos ângulos de câmara às intenções, surge torcido para um melhor entendimento; ou os véus em penetração nas sombras e na luz rarefeita nesse encontro do pianista com a prostituta que acaba na cama e na rotina, manto espinhoso; culminando na voz-off da empregada que demora a entregar-se ao amado, começando do nada a narrar os segredos mais inconfessáveis até se deter nela mesma. Ainda pulsões e vipes de montagem a ensinarem Martin Scorsese ou Spike Lee, nesse bater horrendo à porta do agente ou nas divisões fotográficas e lúgubres do ecrã em daguerreótipo experimental. 

O final na neve, antes do oblívio calado, tem o chamamento de David W. Griffith e as vísceras a ferver de Nicholas Ray. Truffaut a tentar a claridade mas a escuridão e os fundos da alma a imporem-se. Truffaut, o não académico que depois iria flertar com a máxima transgressão ligada umbilicalmente ao máximo apelo e beleza (desafiando e lutando para afastar a perversão) em La peau douce, preferindo ainda a loucura, as tripas e os vómitos de fora à rendição na L'histoire d'Adèle H., contradizendo perfeitamente o filme de hoje; o homem que amaria a mulheres para lá do racional mas também as crianças desse modo puro. Até ao infinitamente purificador altar dos mortos de La chambre verte. O cineasta mas acima de tudo o homem que se zangou algures no caminho com Godard pelas velhas oposições entre a arte e a cultura, é assim tão radical como, por isso incomparável, consumindo-se livre e comprometido na máxima busca interior e na máxima contradição. Não se sai ileso do cadente Truffaut.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

97ª sessão: dia 25 de Maio (Sexta-Feira), às 21h30


Para Sexta, no estaleiro cultural da velha-a-branca, temos encontro marcado com François Truffaut, que com o seu texto Une certaine tendance du cinéma français fez catapultar a Nouvelle Vague sobre os destroços da velha ordem instituída pela tradição de qualidade. Com Disparem sobre o Pianista, a nossa próxima sessão, Truffaut adaptou David Goodis, filadelfiano de mil personalidades que nos deu dos mais belos livros sobre o fogo interior de todos os seres humanos, dentro ou fora do policial.

Num conjunto de citações reunidas pela Cinemateca Francesa, Truffaut admite que "o sucesso dos 400 Golpes foi uma surpresa total para mim. Estava livre como o vento e, portanto, escolhi a restrição para não ficar maluco. Coloquei-me na situação do cineasta ao qual impõem uma encomenda: um romance da Série noire, americano, a transpor para a França. Escolhi Disparem sobre o Pianista por admiração pelo autor desse romance, David Goodis, de quem os cinéfilos talvez conheçam Dark Passage, que no cinema se torna O Prisioneiro do Passado de Delmer Daves, e O Ladrão, adaptado por Paul Wendkos sob o título de Perfume e Violência. Como queria muito rodar um filme com Aznavour, depois de ter visto La Tête contre les murs, podia conciliar dois sonhos ao reunir Goodis e Aznavour. Além disso, Disparem sobre o Pianista deu-me a oportunidade de mostrar que tinha sido formado pelo cinema americano. 

"Com Disparem sobre o Pianista, tentei fazer um filme que não parecesse nem francês, nem americano. Isso começou com a escolha de Aznavour e dos seus irmãos arménios. Queria tentar fazer um filme que não se passasse em nenhum lugar preciso, num país imaginário. E Aznavour é o mesmo tipo de emigrante e artista. É inadequado socialmente. Aznavour é vulnerável sem ser uma vítima. A sua fragilidade permite ao público identificar-se com ele. Ao reler o livro, apercebi-me que não tinha sido escrupuloso de todo, exigindo o livro uma personagem mesmo muito forte, uma personagem corpulenta do género de Sterling Hayden. Isso entrava tudo em colapso por causa da escolha de Aznavour. Isto atormentou-me alguns dias até à maré virar. Foi por isso que chamei a Marie Dubois para o papel de Léna, porque disse a mim mesmo: vamos fazer o contrário, vamos pegar numa rapariga que vai ser mais forte, que o vai levar quase às costas, e depois num tipo que vai ser praticamente um trapo, e vamo-nos desembaraçar com isso."

No oitavo número da Présence du Cinéma, em que o editor da revista faz um mea culpa em relação à crítica do número anterior ao filme de Truffaut (onde é que isto ainda acontece?), pedindo a dois redactores que lhe fizessem justiça, Jean Wagner escreveu que "François Truffaut deve estar contente: Louis Chauvet não gostou de Disparem sobre o Pianista. É a prova mais evidente, se houvesse alguma dúvida, que o seu filme é bom. É a prova que é inteligente e que é novo*. Claro, é a prova menos estabelecida mas a mais imediata. Depois de Os quatrocentos Golpes, François Truffaut devia dar-nos pedaços de quatrocentos golpes, de crianças delinquentes queres, aqui tens, ou afinal, porque não, a continuação do seu primeiro filme. Truffaut fez muito melhor: fez uma obra autobriográfica em profundidade, uma obra muito mais pessoal por ser mais distanciada dos seus temas.

*Boris Vian, acho eu, disse essencialmente que o Figaro era rico o suficiente para insultar um imbecil por dia e uma pessoa inteligente por semana.

"A cobertura preta e amarela da N.R.F. é um álibi fácil: quem diz «série noire» diz «um romance qualquer...». Se os senhores sérios estudassem um bocado estas pequenas obras, teriam descoberto algumas pérolas: «O Pão da Mentira», «The Diamond Bikini», «L'excommunié», alguns McPartlands e as obras de David Goodis. Por mais estranho que possa parecer, Goodis tem um universo que lhe é próprio, universos de obsessões, de complexos, de repressões (frequentemente muito menos artificiais que em Tennessee Williams, por exemplo) e já que estamos no domínio da música, sobre ele não vou citar Erroll Garner ou Art Tatum, como Aznavour, mas um pianista que desapareceu, de quem pessoalmente gostava muito e que se chamava Tadd Dameron (falo aqui do tom das duas obras. Seria absurdo fazer uma comparação entre o valor dois dois homens.).

"Isto tudo para dizer que Disparem sobre o Pianista não é um romance qualquer da série noire. Não foi por acaso que Truffaut escolheu este em vez de qualquer um dos outros 500 (além disso, ele também é capaz de o imaginar: cf. o argumento de À bout de souffle). Foi por ter encontrado lá o material mais adequado para se exprimir. Não discorremos durante anos sobre a política dos autores nem examinamos séries B ao microscópio para ignorar que o tema não é o essencial. (Um homem como Dassin nunca foi tão grande como nos policiais de encomenda: pense-se no abismo que separa Night and the City do seu último filme.)

"Em suma, ele fez do livro de Goodis o seu conteúdo. Contou-se a si mesmo mas com a distância que personagens impostas lhe deram. Digo eu que esta distância nos faz conhecê-lo melhor que Os quatrocentos Golpes? A verdade sobre um ser não está em dois detalhes históricos ou realistas mas numa maior acuidade de olhar, numa profundidade mais completa. O facto de ter estado menos próximo do seu tema permitiu-o descrever-se de forma mais completa, mais profunda."

João Bénard da Costa, que foi dos que mais amou a obra de Truffaut, escreveu que "o azar que, ao longo dos 78 minutos que este filme dura, se abate sobre o protagonista, parece ter-se comunicado ao filme do pianista. Vindo após o grande êxito que coroara a primeira longa-metragem de Truffaut - Os quatrocentos Golpes - , e antes do sucesso idêntico a esse - Jules et Jim, de 1961 - o opus 2 de Truffaut esteve longe de despertar favores. O filme teve uma carreira discreta, como discreto foi o acolhimento feito pela crítica. Exemplo típico o caso português: Disparem sobre o Pianista foi ante-estreado duas vezes, com um intervalo de dez anos: em 1965 e em 1975, em Festivais. De nenhuma das vezes o distribuidor (que adquirira, titulara e legendara a cópia) passou da potência ao acto (ou seja, da ante-estreia à estreia) e este filme é a única longa-metragem de Truffaut inédita comercialmente entre nós (embora tantas vezes exibida em sessões especiais como esta e tantas vezes mostrada em reprodução televisiva). 

"O que pode ter contribuído para este relativo “desfavor” de um filme tão importante? Em primeiro lugar, ele veio contrariar a imagem que se formara do realizador após o “confessionalismo” de Os quatrocentos Golpes. Sem, de forma alguma, se pretender diminuir esse notável ponto de partida da carreira de Truffaut, pode-se dizer que essa era uma obra que se prestava a ser apreciada por maus motivos: a lágrima fácil que as histórias dos enfants sauvages sempre despertam, a inserção numa tradição do filme francês (em que se viu Vigo revisitado e domesticado), o citado “confessionalismo” (ou se se preferir autobiografismo), a novidade duma abordagem “à flor da pele”, etc. 

"Disparem sobre o Pianista, aparentemente, nada disto tinha. O argumento do filme era um romance policial americano e Truffaut transpôs o décor do livro (o bairro louche de Skid Row, em Filadélfia) para uma Paris só genericamente reconhecível, sem nada do ambiente típico que tanto se insinua na maior parte dos filmes franceses, inclusive nos da Nouvelle Vague (pense-se no quase contemporâneo À bout de souffle, de Godard)."

Até Sexta-Feira!

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Visages villages (2017) de Agnès Varda e JR



por José Oliveira

E com a sessão de hoje vamos perfazer várias rimas, sendo a mais bela de todas o facto de Agnès Varda ter sido companheira e obviamente colaboradora muito próxima do inigualável Jacques Demy, do qual vimos faz agora um mês o sumptuoso e renovador Les demoiselles de Rochefort, que surgiu no ecrã gigante do nosso Cineclube como um novo amanhecer desta arte ainda totalmente jovem. O que Varda contribuiu para os filmes de Demy, e o que Demy ensinou por sua vez a Varda, será sempre objecto de fascinante especulação e fantasia, que vamos deixar ao critério de cada um. De resto, desde que Demy morreu precocemente, ela não mais parou de o homenagear, tanto subtilmente e em segredo nos seus filmes, como noutros que dele falaram literalmente ou como num sonho, em Jacquot de Nantes ou L'univers de Jacques Demy

Tendo começado a realizar em 1955 com La Pointe-Courte Varda nasce sob o signo da nouvelle vague, do lado da Rive Gauche, cúmplice de Marker, Resnais, Kast, Doniol-Valcroze, e obviamente do fascinante Gene Kelly francês seu amado, e possui como quase todos eles uma carreira riquíssima e diversa que recomendamos cada um perseguir. Por hoje vamos destacar o obrigatório Cléo de 5 à 7 de 1962, corajoso e cru retrato de uma mulher sem posições "feministas" e já numa invenção formal perfeitamente singular, sem rede nem amarras; o duro e generoso Sans toit ni loi, de 1985, que reinventou Sandrine Bonaire e nos deixou vislumbrar ainda outros lados da mulher Cléo. Depois, eternamente jovem, cheia de sede pelas novas tecnologias e pelas suas possibilidades de diário filmado e da autonomia absolutas – perto dos quartos e do íntimo gigantesco de Marcel Proust que ela tanto ama – sacou, arrancou à frieza dos zeros e uns o revolucionário Les glaneurs et la glaneuse, humilhando o bug do mundo virtual à entrada dos anos 2000. 

Hoje, Visages villages, forjado meio sem querer e sem expectativas a meias com o fotógrafo e artista visual JR, sem argumento escolar nem pressão de produtoras, com a buchinha no bolso e o pátio de recreio na memória, completamente imerso na bela irresponsabilidade e na curiosidade primordial, numa viagem iniciática como nos velhos contos infantis nos quais o velho e o novo, diferentes, de outras eras, se encontram e se descobrem na mais descabelada das aventuras. Nem sequer estamos diante de uma passagem de testemunho, jamais alguém dá conselhos definitivos ou certezas acabadas. Muito distante dos filmes finais de certos mestres que se embrenharam em metafísicas impenetráveis, Varda atira-se de cabeça ao risco do passo seguinte no desconhecido, obtendo sangue novo numa claridade jubilatória. Os dois vão ao encontro de anónimos pelos lugares mais remotos de França, ela com a máquina de filmar e ele com as fotografias e os grandes formatos de impressão prontos para imortalizar essas pessoas simples e grandes nas superfícies mais inesperadas em estampas magníficas como em planos cinematográficos justos. 

Então, pela arte deles e por um coração aberto ao conhecimento e ao outro, ganham amizades e emoções impagáveis, diferentes do que é possível no cinema da ficção, e sobretudo muito muito diferentes da ficçãozinha dos dias de hoje. Divertido e terno, cheio de revelações e surpresas ao novo – por exemplo, ela a mostrar-lhe a campa de Henri Cartier-Bresson e a presentear-nos com histórias deliciosas e privadas ou a meter-lhe medo com a possibilidade de conhecer Jean-Luc Godard – como de insuflação do compromisso e da entrega pelo novo que ela agarra como elixir da longa vida, o mais bonito do filme são mesmo essas aproximações e entendimentos entre naturezas aparentemente longínquas. Um road-movie humanista sem mapa, nem lei, nem roque, muito menos beira. 

Uma boa viagem. Eternamente jovens!

segunda-feira, 21 de maio de 2018

96ª sessão: dia 22 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Quase a fechar o mês de Maio e o ciclo de cinema francês, veremos o último filme de Agnès Varda, cineasta associada à Rive Gauche (junto ao marido, Jacques Demy, Alain Resnais e Chris Marker) e autora daquele que é considerado por alguns como o primeiro filme da Nouvelle Vague, La pointe courte. Visages Villages é então a nossa próxima sessão, nos cinemas do Braga Shopping.

Transcrevemos e traduzimos o que Varda e JR, co-realizador do filme, responderam à Slant Magazine quando foram questionados sobre se a arte resgatava a memória: "Agnès Varda: Há muitos documentários a serem feitos pelo mundo inteiro. Isto é muito importante. É o que faz os arquivos, sabe? Agora, a arte faz algo diferente. Eu fiz um documentário sobre os respigadores, mas houve um artista que começou a respigar coisas e fazia arte com isto, portanto estava a respigar limpadores de pára-brisas, e começou a coleccionar isso e fez arte. Portanto, todos os tipos de respiga são importantes e fazemos o nosso trabalho com coisas que respigamos ou algo que encontramos e que as pessoas esqueceram ou sentimos que estávamos certos em encontrar estas pessoas. Mas talvez haja outro documentário sobre cabras, só que na altura achámos que “fomos nós que descobrimos isto, temos de o partilhar!”

"JR: A arte permite-nos partilhar alguma coisa. É como quando se é um repórter, se vai tirar uma foto e nunca mais se volta. No nosso caso, vamos lá, fazemos alguma coisa com as pessoas que documentamos. Muda a dinâmica toda da coisa porque partilhámos todos algo que construímos juntos. As pessoas dizem se querem e como querem ser retratadas, até ajudam a colar a foto. Portanto esse círculo todo está só a ser documentado, mas todos partilhamos algo juntos e a imagem na fábrica das pessoas a darem todas as mãos assim, isso foi feito para elas, sabem, portanto é mesmo algo de que se vão lembrar e ligar de volta a algumas pessoas na fábrica. Mas mais do que nós, documentamos apenas isso, mas para eles isso teve um verdadeiro impacto na fábrica porque muitas pessoas não falam umas com as outras. Há diferentes grupos, há diferentes lados políticos lá dentro, portanto isso é o que a arte consegue fazer um bocado mais do que documentários, talvez, mas quando tudo se combina, é maravilhoso.

"Varda: E tentámos mostrar o filme a toda a gente. As pessoas da fábrica foram convidadas a ver o filme perto da fábrica. Havia aqui um cinema, e em Le Havre vieram os trabalhadores das docas e nós fomos ter com eles. Fizemos uma festa com eles. A senhora no norte, teve que ser expulsa da casa dela, mas tem boas memórias do filme. Ela vai às projecções e é a estrela das projecções sempre que vai. A vida continua aí antes do filme e depois do filme—a vida verdadeira. É apenas algo no meio."

Inês Lourenço, que mantém os programas A Grande Ilusão e Afinidades Electivas, escreveu no Diário de Notícias que "Agnès Varda é de uma generosidade ilimitada. Já tínhamos provas suficientes disso - inclusivamente no autorretrato documental As Praias de Agnès (2008), em que manifesta o gosto de filmar sobretudo os outros - e voltamos a reconhecer-lhe o gesto humanista em Olhares Lugares

"O título preserva o espírito do original (Visages Villages, "rostos aldeias") e reflete a essência do seu cinema: a curiosidade pelo outro. Juntando-se aqui ao fotógrafo e muralista JR, que coassina a realização, Varda segue pela França mais remota à procura dos heróis do dia-a-dia, para colar nas paredes os seus retratos em grande escala, como forma de homenagem pública. 

"Esta é a arte que mais interessa à cineasta (veja-se Mur Murs, de 1981), uma mulher que no convívio e amizade partilha sempre algo da sua mágica coleção de memórias. Que filme genuíno e adorável."

Já Carlos Melo Ferreira, no seu blog,  adiantou que "muito ao jeito dela, que é uma lenda do cinema francês desde a "nouvelle vague" e desde aí se habituou e nos habituou a não fazer filmes para a bilheteira, este é um documentário que, mostrando o presente, evoca o passado dela e do cinema a partir da fotografia a que ela se dedicou e JR se dedica. 

"A partir da ideia da amplificação de fotografias para a fachada de edifícios, ambos visitam agricultores e operários do noroeste da França em pequenos trechos muito curiosos, enquanto dialogam e se picam um ao outro. Especialmente interessantes a visita à avó dele, centenária, a visita ao porto do Havre e às mulheres dos estivadores, e a visita ao pequeno cemitério onde está sepultado Henri Cartier-Bresson. 

"Mas a evocação que ela faz do cinema, em especial do seu tempo, tem o maior interesse como memória de uma época crucial da história do cinema de que ela é uma das poucas protagonistas e testemunhas vivas. Desse ponto de vista são especialmente interessantes as recordações do tempo em que, nos anos 60, ela e o Jacques Demy eram convidados do Jean-Luc Godard e da Anna Karina."

Até amanhã!

sábado, 19 de maio de 2018

O CINEMA DO FILHO



por Jorge Silva Melo

à memória de um amigo Benoit Régent 

1. Terá sido num dos primeiros "Cahiers" depois da série amarela, lá por 1967, que vimos uma fotografia de página e meia da Zouzou, cabeça para baixo, olhos fechados, no que penso ser a imagem final (mas não garanto) de Marie Pour Mémoire. E quando digo "vimos" falo da gente que, nesses finais dos anos sessenta, conspirava, sufocava, intrigava, ria, corria, se espraiava, preguiçava, adiava, preparava, falhava ali pelo Saldanha, entre a deliciosa cassata do Monte-Branco, "madeleine" de todos nós, e a bica do Monte-Carlo, fornecendo-se de livros na Livraria Divulgação que então havia na Estefânia, de filmes nos cinemas de bairro ou nas sessões das seis e meia, de uns Marx mal lidos, Herberto acabadinho de sair na Guimarães e uns Bobby Lapointe mal cantados. 

E quando começámos a ver os filmes de Philippe Garrel (foi em Avignon 1968, a Eduarda Dionísio, o Luís Miguel Cintra, o Luís Filipe Salgado de Matos, o Nuno Júdice, a Helena Abreu que uma meia noite sob os plátanos da Provença, vimos o Marie Pour Mémoire), confirmámos o lirismo daquela fotografia tantas vezes olhada, tão comentada. 

Não queríamos histórias no cinema, nem personagens, queríamos homens a filmar as namoradas, queríamos o amor nu, o louco amor, queríamos a poesia, queríamos aquele incerto segredo dos rostos (será verdade o que diz?) que aprendêramos em Fritz Lang mas sem a intrigalhada do aconteceu-isto-e-depois-aquilo, apenas o "mover de olhos brando e piedoso" que o Luís Miguel leria pouco depois no Snack do Florida, nosso envidraçado Montparnasse sobre o Marquês de Pombal, à Paula então-Ferreira-agora-Bobone nesses belíssimos Sapatos do João César, queríamos o lirismo e nele víamos a libertação das almas e dos entupidos corpos dominados pelo Salazar, besta que não havia meio de esticar a bota. 

E Garrel surgiu-nos, de câmara empunhada como bloco de notas, diário, caderno de encontros, agenda, frágil, sonâmbulo, errático, disperso, filmando ao acaso a namorada em êxtase, Anémone ou Zouzou, nas tintas para enquadrar personagens no perfil narrativo, colhendo o desabrigado gesto, montando uma sequência infinda de sonhos, vigílias, espasmos, visões, alterações da consciência, um abandono sentido e sensível que aprendêramos naqueles poetas - e só nos poetas - do absinto e do outro fim do século, Isidore Ducasse que invocávamos, Maldoror-Garrel, filmando desde o início o seu próprio pai, esse actor moral, austero, modesto e empenhado combatente da Resistência e de todas as lutas, o estóico Maurice Garrel. 

Era a libertação. 

Era, contra o "cinéma de papa", um cinema do filho. 

E nós éramos filhos, seus irmãos portanto, do mesmo lado da genética, sonhando com a saída de casa e a partida para o mundo, um mundo feito de liberdade e da queda das estreitas responsabilidades burguesas. Drogámo-nos no seu cinema, sonhámos sonhos de sexo e noite, de natureza e corpos, nós os filhos serôdios do salazarismo, que já nada queríamos nem de deus, nem da pátria, e da família apenas aguardávamos a mesada. 

Depois de Rossellini, depois de Godard, o cinema rasgava os cânones da teia dos sentidos, da mecânica narrativa, das motivações psicológicas, recuperava do par de namorados esse beijo que é o intenso desejo de filmar, a câmara possuindo a rapariga abandonada, pintor e modelo presos pelo rolar da película, prazer consentido e desvendado. 

As descobertas que fizémos nesse Verão de 1968, imenso verão em Avignon entre pide e suspeitas, Jean Vilar e o Living, foram dois filmes, Crónica de Anna Magdalena Bach de Jean Marie Straub e este Marie Pour Mémoire, febril, ferida ainda por cicatrizar. Outros vimos, que a história apagaria e eram belos, The Plastic Dome of Norma Jean de Juleen Compton e um Alice de François Weyerganz a partir de Ramuz mas também de Bresson, delicado, cerebral talvez, rigoroso. 

Era a libertação. 

E destes filmes falámos cem cessar pelo soturno Monte-Carlo ao Saldanha durante todo um ano. Logo com o Rui Diniz na noite de Agosto em que cheguei de Avignon e depois da qual nunca mais o vi, ele sem ser capaz de dizer que no dia seguinte, dia 15, partiria para a América para não mais voltar. Com a Alda Taborda que eu queria filmar como Garrel filmara a bela Zouzou, sem história, flores ou coroas, filmar só. Com a Paula Caeiro, talvez actriz de um filme que eu faria, curta-metragem informal que nunca cheguei a escrever, é certo, mas que prometi em inúmeras reuniões de produção na Média Filmes, do outro lado do Saldanha. Com o José Mariano Gago, entre livros e abraços, ele que não gosta dessas coisas do cinema, ou não gostava então. Com a Antónia Brandão, com a Elsa. Com o Luís Miguel. E voltávamos a vê-lo na Quinzena do Cinema Francês organizada pelo Letras & Artes, com o António-Pedro, o Seixas e a Solveig de Vokswagen azul. 

Falavam-me dos Velvet e nós falávamos de Garrel, de Londres, da libertação das formas e de Burroughs, aprendíamos o nome de John Cale, apostávamos com Pasolini no imparável avanço da história até à poesia. O Nuno Júdice sorria, lançando de quinze em quinze dias a frase sibilina. E nós acreditávamos no venenoso lirismo de Garrel, na doença de Terzieff em Le Révélateur, filme mudo em 1968, no aparecimento desse serpentino anjo que foi Pierre Clémenti em Le Lit de La Vierge filmado em Marraquexe e na Itália, ousando o scope. Nada o faria parar, parecia-nos, ao Garrel e à sua quadrilha com casacos afegãos e olhos húmidos da muita erva. 

E olhámos Nico, a bela Nico, a insuportável Nico, a amada Nico na Cicatriz Interior e pensávamos também poder um dia ir filmar ao México, ao Egipto, na Itália, onde nos levasse o vento, fazendo explodir as formas como rebentam, belas, hugolianas, as ondas do mar, anos a fio, sem plano de trabalho, sem obrigações financeiras, vivendo à boleia da vida como os santos de Assis, em inocência comunitária. 

Havia de ser o João César quem mais recolheu esta semente lírica, esta flor que entrevíamos mais do que víamos, a partir da qual efabulámos mais do que analisámos, a propósito de quem mais histórias se contaram, havia de ser ele, o marginal, o João César, o escritor, quem mais herdou o invisível gesto de um cineasta que acompanhámos inventando ("sabes que agora partiu para a Islândia, é maluco!", "sabes que está a fazer um filme mudo)", "como é que arranja a massa"?, "parece que vão fazer uma retrospectiva", "o fulano de tal é burro que nem casas mil, diz que o Garrel é um impostor", etc), mais à mesa de café do que sentados nas salas de cinema. Também com a sua trupe, a Manuela de Freitas entrando e saindo, o Carlos Ferreiro, nosso Lazlo Szabo, o Luís Miguel inventado a tremer como Clémenti ou Léaud nos Sapatos. E um filme como A Sagrada Família do João César, com a sua ideia de happening e de cerco, de manipulação e extrema liberdade, de improvisação e loucura, até com a cena dos pais (Luso Soares e Dalila Rocha), com a sua rodagem em quatro dias e o rosto apocalíptico da Manuela de Freitas, aqui anjo e aqui morte, é o supremo eco das infindas cavaqueiras que íamos tendo, tantos nós, pela Fontes Pereira de Melo abaixo, anos a fio, noites e noites. Como naquele plano de Veredas, filme-cicatriz, o plano que deu o cartaz, em que vemos a cabeça de Margarida Gil deitada para trás ecoando, agora a cores e noutro amor, a bela fotografia da Zouzou com que toda esta história toda terá começado. Mas não foi só o João César, francófono, quem acolheu no seu jardim a carnívora planta, o letárgico perfume de Philippe Garrel. Também o Alberto Seixas Santos panoramicou em espiral à volta das personagens nos Brandos Costumes lembrando A Cicatriz Interior. E há planos no Perdido Por Cem do António-Pedro Vasconcelos, uma maneira de filmar a Marta Leitão (tão linda, tão ferida e morreu tão nova, actriz que poderia ter sido de Garrel!) que, encerrada embora dentro de minelliana intriga, se liberta dos porquês e dos comos para só estar, isolada, abandonada, como as belas solitárias de Garrel, perdida no fundo. 


2. A pouco e pouco, vivia eu em Paris, nesses anos 80 e foram os meus amigos actores que me trouxeram notícias de Philippe Garrel. Os realizadores tinham-se esquecido dele, acontece. Eu tinha-o perdido de vista, os seus filmes sumiam-se nas cinematecas, em circuitos muito marginais, em instituições de caridade artística. 

Mas pelo mundo do teatro parisiense que eu frequentava, começavam a aparecer telefonemas, convites para filmes. Garrel precisava de actores mais novos do que ele, ia fazer filmes sobre a sua vida, actores com trinta anos. Já não filmava com os seus mortos, os mortos tinham morrido, precisava de intermediários agora, de actores, de mediums para contar as suas histórias. Como me impressionou o Lou Castel, vindo de Bellochio, ferido e sólido, reaparecer no universo de Garrel. E a maravilhosa Christine Boisson, essa febril, frágil, nocturna lua vinda da Gaivota do Bruno Bayen e da Identificação de Uma Mulher de Antonioni com aquele desenho de testa à Pollaiolo e a sua ferida. 

E um dia estava eu ao lado do Benoît Régent quando ele recebeu o recado: se podia encontrar-se com Garrel para fazer esse tão bonito J' Entents Plus La Guitarre. E ele pôde. E fez a que seria uma das mais verdadeiras, nervosas, erráticas, extraordinárias, magoadas, fantásticas representações que conheço, meu querido Benoît que a morte arrebataria, a maldita!, uma madrugada num hotel da Suíça, morte solitária e acidental como num destes secos, determinados, desamparados, angustiantes, cinzentos mesmo que a cores, metropolitanos filmes de Garrel. 

É que, imperceptivelmente, Garrel começa a afastar-se do bloco de notas inicial que tanto nos fascinara na sua imprevisível liberdade. E a precisar de actores. Envelhece, está mais só, já se foram os do bando. Os seus filmes não sei se começaram agora a contar histórias, traziam era personagens escapadas do delírio. E ao filmar a vida desgarrada com que tanto nos surpreendeu na sua delicadeza inicial, sucedeu-se, no seu cinema, filmar a representação. 

Pois o que ficou foi a memória. O tempo foi-se indo. E a morte avançando sobre os copains, o ingénuo bando que prometera entrar na negra noite. 

E estes filmes que se seguem regularmente desde L'Enfant Secret são filmes da vida representada, da memória encarnada, filmes da re-presentação, filmes filmados ao de leve como quem ordena as notas dispersas e as passa a limpo, filmes já de pai e não de eterno filho, filmes escritos (determinante a relação com Cholodenko), filmes com rugas e dor, filmes já narrados, a pouco e pouco narrados. Das esparsas notas do seu início passou Garrel à elaboração de uma dolorosa autobiografia, fazendo reviver os seus amores passados, actores também, e fazendo entrar no seu mundo, não a presença, mas a re-presença, essa vida em diferido que os actores fazem sua, a vida de novo nua. 

E continuou a filmar o pai, Maurice Garrel. Filmou-o como pai, filma-o agora como actor, magoado actor, tão modesto, tão extraordinário. Como volta a filmar como actor essa sua outra sombra tutelar, a ferida viva que é Laurent Terzieff, actor-poesia, mágoa moral, essa cicatriz, esse osso. Os seus filmes continuam a ser meteoros, vêm do coração, passam-nos pela vida, como acidentes celestes. Acidentes de câmara, surgindo aqui e além, com ele filmando Johanna Ter Steege como já tinha filmado Anémone ou Nico, filmando a minha muito querida amiga Évelyne Didi (que contente que ela ficou quando ele a convidou para ingressar naquela sua tropa fandanga!), fazendo entrar o genial Luís Rego no seu mundo de sobreviventes entre o falhanço e o sagrado, entre o apartamento e o hospital como já andavam as suas personagens-sem-personagem na Marie Pour Mémoire

Também o João César, a pouco e pouco, foi abandonando o lirismo irracional de filmes como Veredas para se emparedar no seu teatro falso, lúgubre, avançando na sua representação burlesca, fazendo W.C. Fields vencer a sombra narcísica de Lautréamont. 

E entre os dois há Eustache. Eustache que, com o seu Père-Noel está nas margens dos Sapatos e a quem Garrel dedica sentido documentário, depois da morte, Eustache o mais pobre da Nouvelle Vague, o suicida, o lírico sem pieguice, o sem-pai, aquele que não foi filho, que só levou a Françoise Lebrun ao Train Bleu com o dinheiro ganho em trabalhos ocasionais e não em casamentos, Eustache o ferido de morte pelos amores. 

O cinema de Garrel, nas duas fases magoadas que imperceptivelmente se aproximam, é o cinema de um filho, o filho que sai de casa com as muitas raparigas, os copains, a guitarra, uma volkswagen e o mundo inteiro como destino, Marrocos e a liberdade, um bando de saltimbancos ao relento, franciscanos da arte e do sexo, um pouco de erva e música a olhar as estrelas e a vida a passar num beijo, o luxo da imensa beleza a desfazer-se, consumptiva. 

E que um dia volta a casa, filho que nunca foi pródigo pois sempre nessas aventuras à beira do delírio, levou o seu maravilhoso pai, volta a casa o filho para começar a arrumar, para ver o pai morrer, e ele começar a limpar, a ter filhos, levá-los à escola, tratar da baby-sitter, começar a pôr em ordem a imensa cicatriz que lhe ficou de tantas mortes que a vida lhe foi trazendo, Nico, a bela Nico, Pierre Clémenti, o belo Pierre Clémenti, Jean Seberg, a bela Jean Seberg, os adeuses, a tristeza, Eustache, as mulheres, Paris, tudo foi-se indo e ele fica, testemunha, narrando, testemunhando agora que é pai, deixando ficar para os que "nascerem depois de nós" este vai-vem que tanto nos libertou, que tanto libertou o João César desde as noites de Monte Carlo, aberta na mesa a página e meia dos Cahiers em que vinha a belíssima foto da Zouzou no Marie Pour Mémoire

Como quem (e foi o pobre Brecht quem primeiro o pediu) diz "Olhem depois para nós com compaixão". 

Dizem-me que não se encontra nos "Cahiers" essa fotografia imensa que juro ter visto e revisto nas noites do Monte-Carlo. Tenho a memória assim tão frágil? Lá se me foi a argumentação? Sonhamos essa fotografia? Mas vimo-la e era de página e meia, segredos de Maria, memória quebradiça. 

in «Philippe Garrel - uma alta solidão», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Boy Meets Girl (1984) de Leos Carax



por João Palhares

Há uma raiva ensurdecedora e insuportável que atravessa Boy Meets Girl: a dos personagens, a de Alex e Mireille, uma vontade imensa de viver e amar, de largar tudo e “ser” para o outro, sem concessões. É vontade que fere, é vontade que mata, pulsão que vem de Ray, Murnau e doutros, pensando em influências, mas que acima de tudo, vem do próprio Carax. Repare-se como tudo se passa à noite e em como há tanto de belo e destrutivo, de primitivo, de como essas coisas andam de mãos dadas, em Carax. Tudo isto, colorido (pode parecer estranho, visto ser um filme a preto-e-branco) por um experimentalismo desbravado e corajoso. Jovem. A forma como Leos Carax dispõe os corpos de Alex e Mireille entre sombras e luzes até haver só luz, naquele plano longo, à mesa, e em toda essa sequência: um rapaz e uma rapariga, numa cozinha, o momento em que o boy meets the girl e em que conversam, noite adentro, horas a fio... 

Um rapaz conhece uma rapariga, tema e ponto de partida dos três primeiros filmes de Leos Carax, nada de original, nada de novo, não há um gimmick ou um qualquer truque narrativo que permita o realizador subestimar o espaço narrativo e o campo de emoções - de batalha - no filme (como fazem Lars von Trier e Gaspar Noé, constantemente). As novidades maiores no filme de Carax são a insistência e a obsessão pelos sons e imagens que o estado de espírito do par do filme permite, e que se convertem em devaneios fantasiosos e poéticos belíssimos. É procurar o que há de antológico no quotidiano e preferir o sonho à realidade. Os cenários artificiais e as ruas não vistas de Paris. A noite em vez do dia. Decisões práticas de trabalho que permitem construir um mundo alternativo e fantástico, quase com ambiência de filme de gênero, e não será por acaso que se possa pensar não só em Murnau, Borzage, Vidor (um preferido do francês) mas também em Berkeley e Fuller, ao mesmo tempo. 

O primeiro filme, como diz Pedro Costa - e Carax talvez concorde - é como pagar uma dívida. Ao que se gosta, ao que nos transforma e vocaciona, aos heróis de infância e de adolescência. Aos álbuns que se ouviu, aos filmes que se viu, às raparigas por quem se sonhou acordado, às partidas da vida, aos desenhos, às cartas, aos poemas e à Literatura. 

Mas voltemos à mesa e à cozinha, a Alex e Mireille, à caneca partida. Ao vinho. Aos corações e olhares despedaçados dos dois, à sinceridade cortante e demolidora daquela conversa nocturna. São a entrega e o amor louco os motores de tudo, e se Alex e Mireille são culpados de alguma coisa, é de sentir demais, de sentir tudo à flor da pele e não deixar nada dentro. De querer tudo, de querer, só, e a todo o momento. Amores e quereres incendiários, adolescentes e mortais. A culpa é da vontade, a culpa é da pulsão, uma pulsão de morte, de não querer estar só e por que haja corpos, corações, a ansiar por eles. É este o dínamo emocional que impulsiona o cinema de Leos Carax, mas que ainda assim, pouco explica do enigma Boy Meets Girl. Fabulosa primeira obra. 

texto publicado no quarto número da revista FOCO

domingo, 13 de maio de 2018

95ª sessão: dia 16 de Maio (Quarta-Feira), às 18h30


Ainda esta semana, a convite da Civitas Braga e para celebrar os 50 anos do "Maio de 68", escolhemos um filme de um dos maiores sonhadores de Maio, Philippe Garrel, feito em Marrocos para o colectivo Zanzibar, grupo de jovens cineastas financiado por Sylvina Boissonnas. O filme é Le lit de la vierge, alegoria revolucionária de um romântico com banda-sonora de Nico e o colectivo Zanzibar nos papéis principais. Será exibido no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, com comentários finais do nosso associado António Cruz Mendes.

Pedido a comentar sobre os seus filmes dos anos 60, em entrevista a Daniel Kasman, do MUBI, Garrel disse que "eu acho que se pode falhar ou ser bem sucedido em qualquer altura da nossa vida, e um artista nunca melhora, é apenas fiel a si próprio e à sua identidade como artista—e claro que passa por diferentes fases na vida. Desde que comecei a fazer filmes, que gosto de alguns e doutros não gosto tanto, e isso não mudou em 50 anos, sabes—no princípio, era igual ao que é hoje. Acho que nenhuma mudança depende de uma época, ou dos tempos que mudam. 

"O que mudei foi a minha maneira de fazer filmes. Durante 15 anos, os meus filmes nunca eram escritos, não tinha argumento nenhum. Depois comecei a escrever filmes, percebi que as minhas mudanças dependiam—as mudanças que ocorreram na minha vida, com um pintor—dependiam das mulheres que amei e com quem vivi. E foi isso que influenciou o meu estilo. Portanto depende mesmo muito disso, e eu sei que passei por tempos e períodos em que uma mulher me estimulou a mudar o meu estilo e a fazer algo diferente. É exactamente como um pintor, sabes, quando um pintor passa por um certo período e o que muda é a atitude dele, não a sua arte. De certa forma, ele pode mudar o seu estilo, e foi assim que eu sobrevivi no ambiente do cinema em filmes populares ou filmes mainstream."

Luís Miguel Oliveira, que co-editou o catálogo da Cinemateca Portuguesa dedicado ao cineasta, abre esse catálogo dizendo que "(...) o cinema de Philippe Garrel, como o de Jean Eustache, "parceiro" de geração que vem terrivelmente à memória quando se vê um filme como Les enfants desaccordés, por exemplo, que por sua vez se parece terrivelmente, no tom e no espírito (assim como dois membros da mesma família se podem parecer um com o outro), com Le Père Noel a les yeux bleues, o cinema de Philippe Garrel, dizíamos, pode ser visto como uma longa, contínua e pessoalíssima crónica de um trajecto ao longo do qual uma série de esperanças se foram perdendo. Garrel, não o esqueçamos (como ele próprio não se esquece), pertence à geração que tinha exactamente vinte anos no Maio de 68. E essa ideia - "Maio de 68" transformado numa ideia - tomada assim mesmo, no mais idealista dos sentidos, continua hoje a corporizar  da melhor maneira o que foi essa esperança, seguramente vaga e difusa, mas suficientemente forte para poder ser uma esperança. É uma data que marca um momento determinante na geração e na vida de Garrel, para mais um cineasta que tem na psicanálise um guia quase em forma de crença ("o cinema é Louis Lumière e Sigmund Freud", chegou a dizer), e portanto especialmente atreito a captar a importância dos "momentos determinantes", aqueles de onde tudo parece vir e aonde tudo parece conduzir. Essa "esperança" terá tido outras ideias e outros rostos - o cinema de Garrel também é sobre essas outras ideias e outros rostos - mas foi ficando, gradualmente, como uma coisa lá no fundo, fixa noutro tempo, já não recuperável mas eventualmente tacteável - através do cinema - ou meramente intuível - como a presença de um fantasma, em todo o caso com a evidência de importância suficiente para que se justifique que, nas fronteiras da obsessão, se volte sempre e repetidamente a esse "fundo" e a esse "outro tempo". Os últimos filmes de Philippe Garrel, J'entends plus la guitare, Le coeur fantôme, Sauvage innocence (e percebemos agora, no momento em que os citamos e escrevemos, a que ponto estes títulos se enquadram bem nesta perspectiva) são os filmes que Jean Eustache não teve tempo, oportunidade (nem, provavelmente, vontade) de fazer: filmes de sobreviventes, filmes de alguém que atravessou para o outro lado do tempo da esperança, e que viveu para contar como era (é)."

No mesmo catálogo, Bernard Eisenschitz reconstitui os passos de Garrel no ano de 1968, escrevendo que "(...) em Maio, Philippe Garrel está em Paris e filma, como muitos outros - mas de uma forma diferente (conhece-se o resultado intitulado, segundo as fontes, Actua e Actualités révolutionnaires, apenas a partir das descrições do próprio realizador nas suas entrevistas). Em finais de Maio vai à Alemanha levando consigo a película que lhe ofereceu Claude Nedjar e roda um filme mudo, Le Révélateur. Em Agosto, La concentration é rodado em três dias, em Paris. Estas primeiras longas-metragens, cronologicamente, centram-se à volta de "Maio 68" e dos acontecimentos conhecidos como tendo esta etiqueta (e para as massas e não somente para os cinéfilos, deve-se acrescentar o "affaire Langlois" de Fevereiro desse ano).

"Um ano depois, Le lit de la vierge, financiado por Silvina Boissonas e filmado em cinemascope e a preto e branco em sítios longínquos como a Bretanha e Marrocos pareciam, ao espectador da época, pertencer a uma outra história, como se de um salto se tratasse. Vistos no espaço de poucos meses, os primeiros quatro filmes, principalmente, estão em sintonia com a perturbação das consciências que é também o factor mais duradouro destes acontecimentos, rapidamente confundidos na memória pelo seu lado quotidiano ou anedótico. Tais acontecimentos mostram claramente o que a memória conservaria, a omnipresença da máquina ideológica e repressiva do Estado, um sentimento de fundamental inadaptação face à sociedade prometida e de iminente guerra civil, a necessidade de tudo pôr em causa.

"Recorde-se também que, no movimento que se tinha desenvolvido com crescente importância nestes últimos dois ou três anos - anunciado, com a precisão de um barómetro, em Masculin Féminin (Garrel distancia-se com pertinência das personagens deste filme) ou em La Chinoise - vieram à luz filmes "progressistas" espectaculares e de grande sucesso, um pouco sobre o modelo italiano representado pelo realizador Rosi e pelo argumentista Solinas, Ao lado dos "filmes-limite", de que L'amour fou é o primeiro exemplo, o cinema de Garrel intervém na polémica contra aquela forma de encarar o cinema e a realidade."

Até Quarta!

sábado, 12 de maio de 2018

94ª sessão: dia 15 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Em 1984, um jovem de 23 anos que passava mais tempo do que devia na Cinemateca Francesa estreava um fabuloso primeiro filme que pagava de volta a alegria dessas sessões formativas da infância e da adolescência, bem como às canções que ouvia, aos primeiros amores, às noites em claro entre máquinas de pinball e encontros fortuitos em festas que se revelavam mais tristes do que festivas. Esse jovem era Leos Carax e o filme é Boy Meets Girl, a nossa próxima sessão nos cinemas do Braga Shopping.

No festival de cinema de Busan, Carax foi convidado a resumir a estética dos seus filmes e respondeu que "eu disse-vos que comecei a fazer cinema muito jovem, obviamente. O que é diferente para quem começou no cinema bastante jovem, talvez seja o facto de serem cineastas e espectadores ao mesmo tempo. Ao fim de um bocado, eles descobrem o cinema ao mesmo tempo que o fazem. Inevitavelmente, os primeiros filmes atingem-nos como cartas de amor ao cinema ou como cartas de agradecimento aos cinemas que existem e às pessoas que antes de nós fizeram viver o cinema e inventaram o cinema, porque é a única arte que foi inventada tecnicamente.

"Não se inventou a pintura nem a escrita como se inventou o cinema ou a fotografia. Houve uma consciência da estética. Numa rodagem, os momentos em que sei que alguma coisa está bem conseguida são quando tenho um sentimento nos meus olhos, como se os actores e como se os traços das imagens à frente das câmaras já tivessem existido, como o que chamamos em francês de ilusão já vista.

"Quando isso acontece, não muito frequentemente, há uma estética que não sabemos de onde vem e isso vem da infância. O que é que faz com sejamos sejamos sensíveis a certas imagens, a certas composições e a uma certa luz? Então, temos a impressão de estar melancólicos. Algo nos diz que essa imagem já existia antes e, finalmente, eu só criei representações."

Serge Daney, um dos primeiros críticos a defender Carax em França, escreveu que "um filme como Boy Meets Girl não ganha nada em ser descrito. Não porque haja um mistério a guardar-se sobre essa velha história - bressoniana - de um jovem rapaz, na última noite antes de partir para o serviço militar, entre uma rapariga que o abandonou e uma outra que ele encontra, desde já “entre a dor e o nada.” É porque o seu mistério está na segurança da mise en scène quando ela evoca esse sentimento insustentável de precariedade, na beleza dos monólogos enunciados com neutralidade, sem falsas seduções. 

"Há dois amigos a discutir sobre as margens do rio Sena à noite e um encurrala o outro, há confissões sexuais bastante ousadas e doces, em voz off, um salão de jogos aberto e que até pisca, uma criança que inicia um monólogo devastador no metro, um homem mudo que culpa os jovens “de não falar”, as crianças esquecidas que choram num quarto numa noite de recepção, os discos roubados por amor, um quarto de empregada iluminado pela luz de um frigorífico aberto, o orgulho das dores de amores perdidos e uma ausência quase total de adultos. 

"Um jovem autor (Carax?) é alguém que sabe já ter visto muitos filmes, vivido poucas coisas (mas já com dificuldades) e que não tem muito tempo a perder para começar a falar disso tudo. Porque o cinema é feito com aquilo que se tem. Autobiografia e programa exaltado da vida por vir (fulgurante) e, em seguida, momentos de afasia onde a homenagem ao cinema mudo não é uma afectação cinéfila, mas um mau momento a ser superado. Horror de errar por um mundo “já visto” mas “ainda não vivido”. Um jovem velho que só pode rejuvenescer."

Já Miguel Marías, escrevendo no Pretérito Imperfeito - o tempo verbal ideal para descrever o filme, parece-nos -, conta que "Boy Meets Girl (1984) era um típico primeiro filme (antes tinha realizado uma curta e escrito algumas críticas nos Cahiers du Cinéma), decididamente nas pegadas da nouvelle vague, de cuja eclosão se cumpria precisamente o primeiro quarto de século: actores com encanto (Denis Lavant e Mireille Perrier), semi-desconhecidos e jovens - como o próprio realizador, que tinha 23 anos -, poucos personagens, fotografia a branco e preto, uma história simples (a mais simples desde o cinema mudo, a enunciada em inglês pelo seu título: rapaz conhece rapariga...), e um tom mais ou menos romântico, fantasioso, triste e cómico ao mesmo tempo, e asperamente amável; nem sequer faltava a influência mais comum (ainda que soterrada) a toda a nouvelle vague, tanto a da Rive Droite (Godard, Rivette, Truffaut, Rohmer) como a Gauche (Marker, Resnais, Varda, Demy, Kast, Doniol-Valcroze) ou os seus antecedentes (Franju, Melville) e epígonos (Pialat, Eustache, Pollet, Assayas, Guiguet, Brisseau etc.), ou seja, a de Jean Cocteau, nem a segunda, mais patente e reconhecida, a de Robert Bresson (no caso de Carax, mais o de As Quatro Noites dum Sonhador, O Dinheiro ou Le diable probablement que o de Pickpocket). 

"Era um filme exemplar na sua economia, rodado com poucos meios e que teve êxito notável tanto de crítica como de bilheteira. Lembro-me de ter escrito, quando estreou na Espanha, propondo-o não como um modelo que deveriam imitar, e sim emular a partir de suas próprias circunstâncias, os jovens realizadores espanhóis, que tinham que compensar a falta de dinheiro e meios com personalidade, estilo e imaginação, e de o tornar possível implicando-se na tradição cinematográfica, ainda que fosse para seguir caminhos divergentes e até opostos."

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Parade (1974) de Jacques Tati



por João Palhares

Voltamos a Jacques Tati, o homem que se sentava horas a fio dentro de cafés para observar o mundo em silêncio através das vitrinas, o realizador que erigiu um dos maiores monumentos do cinema, em que um cenário gigante se transformava num imenso aquário que espelhava as pequenas excentricidades de todos os seres humanos, os belos trânsitos da vida e as frustrações da vida moderna; o francês que transformou o gag e a comédia numa altura em que o ofício parecia desligado dos grandes ensinamentos do cinema mudo, estimulando ainda a imaginação e o talento de Blake Edwards e Jerry Lewis, do outro lado do Atlântico. Depois do desastre financeiro de Playtime, a obra-prima que se conhece, com um desvio pelos engarrafamentos de Trafic, em que Hulot parecia encontrar a felicidade e o amor por baixo de um guarda-chuva, Tati regressa às raízes da sua comédia, situadas nos números populares de circo e de vaudeville que fizeram a fama dos seus grandes mestres, bem como a sua, antes de enveredarem pelo cinema. É em Parade, o filme feito para a televisão sueca que hoje vamos ver. 

“O que vocês vão ver não é um filme”, disse Tati em entrevista, “é um espectáculo feito para que eliminemos um bocado o vidro entre o ecrã e os espectadores. Porque se fala muito de "participação" nos dias de hoje. Fala-se muito mas não se a vê muitas vezes. Há um tipo que se faz matar, ele faz-se matar, muito bem, e não se participou de todo. Aqui, é ao contrário: estamos num circo. Um circo é redondo, e os espectadores do circo tornam-se um bocado vocês mesmos. Enquanto como é costume, não paramos de fazer "chiu!", é um dos raros filmes em que o realizador fica encantado que as pessoas falem na sala; temos o direito de aplaudir, como os espectadores do circo. Temos o direito de assobiar. Até temos o direito de ir embora se não acharmos isto agradável. 

"Acho que seria pretensioso dizer: "Eu defendo o circo, eu sou um literário! Para mim, o palhaço é uma personagem assim ou assado!". De qualquer forma, Parade não tem absolutamente nada que ver com a arena das estrelas. É mais teatro de variedades do que circo. Se quiserem, o que eu quis mesmo foi devolver a pista às crianças. Deixei-as e disse-lhes: "aqui estão os acessórios todos" e eles começaram a refazer os números todos que tinham visto, começaram a tentar fazer malabarismo, a interpretar e a tornar-se pequenos artistas de circo. Quando se vê um pintor - foi o que eu observei - apercebemo-nos que ele ficaria muito contente se soubesse fazer uns pequenos malabarismos com o seu pincel. E porque é que não o havia de fazer? No meu espectáculo já não se sabe quem é malabarista, pintor, espectador, artista, palhaço ou não-palhaço.  

"As pessoas vêem este filme com uma grande tristeza, embora ele seja optimista. O circo é uma escola extraordinária de simplicidade e de gentileza que pode parecer hoje ridícula, nestes tempos modernos. Não teria havido Chaplin, nem Keaton, nem Laurel & Hardy se o circo não tivesse existido. É certo que ele é absolutamente necessário para as crianças: o ambiente, os olhares, os sorrisos destes jovens que vêem o espectáculo, são indispensáveis. E peço desculpa, mas nunca encontrarão isso à frente de um aparelho de televisão. Eu acho que o cinema é um todo: temos o direito de disparar, de matar, temos o direito de nos despirmos, temos direito a fazer tudo. E eu acredito também precisamos de alguma alegria. Quer tenhamos dinheiro ou não o tenhamos, temos direito a rir das mesmas coisas, de nos comovermos com o esforço físico e perigoso de um trapezista. É uma necessidade. Podemos muito bem não gostar disso, dizer que o circo nos chateia, que é triste, que não leva a lado nenhum, mas os movimentos, a câmara, o conjunto, foi dessa maneira que eu tive que filmar o espectáculo." 

Aqui têm as regras e as recomendações. 

Uma boa sessão para todos!

segunda-feira, 7 de maio de 2018

93ª sessão: dia 8 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Depois do Tati inicial, adorado e acarinhado por todos, veremos o último filme do realizador, ainda pouco visto e muito incompreendido. Parade, espectáculo montado por Tati para a televisão sueca, apesar de mais modesto, não é menos revolucionário que um Meu Tio ou um Playtime. É a nossa próxima sessão, na sala de cinema do Braga Shopping.

Em entrevista, o realizador explicou que "o que vocês vão ver não é um filme: é um espectáculo feito para que eliminemos um bocado o vidro entre o ecrã e os espectadores. Porque se fala muito de "participação" nos dias de hoje. Fala-se muito mas não se a vê muitas vezes. Há um tipo que se faz matar, ele faz-se matar, muito bem, e não se participou de todo. Aqui, é ao contrário: estamos num circo. Um circo é redondo, e os espectadores do circo tornam-se um bocado vocês mesmos. Enquanto como é costume, não paramos de fazer "chut!", é um dos raros filmes em que o realizador fica encantado que as pessoas falem na sala; temos o direito de aplaudir, como os espectadores do circo. Temos o direito de assobiar. Até temos o direito de ir embora se não acharmos isto agradável.

"Acho que seria pretensioso dizer: "Eu defendo o circo, eu sou um literário! Para mim, o palhaço é uma personagem assim ou assado!". De qualquer forma, Parade não tem absolutamente nada que ver com a arena das estrelas. É mais teatro de variedades do que circo. Se quiserem, o que eu quis mesmo foi delvolver a pista às crianças. Deixei-as e disse-lhes: "aqui estão os acessórios todos" e eles começaram a refazer os números todos que tinham visto, começaram a tentar fazer malabarismo, a interpretar e a tornar-se pequenos artistas de circo. Quando se vê um pintor - foi o que eu observei - apercebemo-nos que ele ficaria muito contente se soubesse fazer uns pequenos malabarismos com o seu pincel. E porque é que não o havia de fazer? No meu espectáculo já não se sabe quem é malabarista, pintor, espectador, artista, palhaço ou não-palhaço. 

"As pessoas vêem este filme com uma grande tristeza, embora ele seja optimista. O circo é uma escola extraordinária de simplicidade e de gentileza que pode parecer hoje ridícula, nestes tempos modernos. Não teria havido Chaplin, nem Keaton, nem Laurel & Hardy se o circo não tivesse existido. É certo que ele é absolutamente necessário para as crianças: o ambiente, os olhares, os sorrisos destes jovens que vêem o espectáculo, são indispensáveis. E peço desculpa, mas nunca encontrarão isso à frente de um aparelho de televisão. Eu acho que o cinema é um todo: temos o direito de disparar, de matar, temos o direito de nos despirmos, temos direito a fazer tudo. E eu acredito também precisamos de alguma alegria. Quer tenhamos dinheiro ou não o tenhamos, temos direito a rir das mesmas coisas, de nos comovermos com o esforço físico e perigoso de um trapezista. É uma necessidade. Podemos muito bem não gostar disso, dizer que o circo nos chateia, que é triste, que não leva a lado nenhum, mas os movimentos, a câmara, o conjunto, foi dessa maneira que eu tive que filmar o espectáculo."

Em Elogio de Tati, Serge Daney escreveu que "evidentemente, Tati não é apenas a testemunha exemplar e desolada do recuo do cinema francês e da degradação do ofício (ainda que cada um dos seus filmes seja como um documentário, uma perspectiva abissal das suas condições de possibilidade). Ele toma o cinema nas condições em que o encontra (tecnologicamente também) e curiosamente, ele que tantas vezes foi acusado de passadismo, não pensa senão em inovar. Começamos a saber que Tati não esperou por ninguém para repensar ex nihilo, a partir de Jour de Fête, a banda sonora do cinema, mas sabemos que no outro extremo da cadeia, quase trinta anos mais tarde, Parade (escandalosamente ignorado quando da estreia, pelos “Cahiers” também) é uma extraordinária exploração no domínio do vídeo. Na verdade, o grande tema dos filmes de Tati, através dos avatares da produção (ou graças a eles), é aquilo a que chamamos hoje com uma certa facilidade os media. Não no sentido restrito dos “grandes meios de informação”, mas no sentido, mais próximo de McLuhan, das “extensões especializadas das faculdades mentais ou psíquicas do homem”, dos prolongamentos do seu corpo no todo ou em parte. Os media, são já, por excelência a história de Jour de Fête, em que um carteiro, à força de refinar na transmissão da mensagem, a perde (é uma criança que a herda, mas desviada pelo caminho por um circo, não a irá transmitir: bela metáfora da intransitividade da arte moderna), no momento em que o espectador tiver compreendido que a mensagem é ele, o carteiro, Tati. Mas os media são também o fogo-de-artifício lançado cedo de mais e por engano no fim de Vacances e que transformava Hulot em espantalho luminoso, prefigurando o fim genial de Parade em que cada um – seja quem for – se torna rasto luminoso de uma cor numa paisagem electrónica (numa entrevista, Tati explica que tinha substituído os pinos dos malabaristas por pincéis). E os media eram também, em Mon Oncle, esse parti-pris muito surpreendente para a época de não fazer rir à custa dos programas de televisão comprada pelo casal, mas de reduzir essa televisão ao espectáculo das variações de luz fria e baça iluminando o jardim ridículo. A lista não tem fim e poderiam citar-se cem outros exemplos."

Já Jean-Marie Straub, em conversa com Danièle Huillet, Martin Walsh, Peter Gidal, Stephen Heath, Regina Cornwell e Jonathan Rosenbaum, disse que "gosto muito do último Tati (Parade). Rivette estava certo quando disse que Tati se tinha tornado um cineasta político. O que ele faz com o material em vídeo ampliado, o que ele consegue daquilo é extraordinário. E está fora desse grupo político, essas pessoas que saem do cinema à noite e vivem a realidade de forma completamente diferente. O que é emocionante em Parade é que é um filme sobre todos os graus do fluxo nervoso, começando com a criança que ainda não consegue fazer um gesto, que não consegue coordenar a sua mão e seu o cérebro e vai até ao mais talentoso dos acrobatas."

Até Terça!

domingo, 6 de maio de 2018

Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut (1956) de Robert Bresson



por João Palhares

Foi no país da liberdade, da igualdade e da fraternidade que se fez A Grande Ilusão de Jean Renoir, O Buraco de Jacques Becker ou O Exército das Sombras de Jean-Pierre Melville; que se escreveu o Conde de Monte Cristo, em que Edmond Dantès escapava da prisão para onde era mandado injustamente e começava a exercer a sua vingança, reinventado como conde de Monte Cristo. Foi também na França que nasceu Henri Charrière (a.k.a. Papillon), condenado por homicídio a cumprir pena num campo de trabalhos forçados da Guiana Francesa, em 1931, e que entre fugas e capturas viveu com os índios, recebeu cuidados e atenção de leprosos, foi traído por freiras e privou com piratas, a céu aberto. O homem que tenta escapar, como vimos também em Escape from Alcatraz de Don Siegel, fá-lo sempre com a vida em jogo, por achar que tudo o resto é dispensável se não se tem controlo sobre o próprio destino, se se está confinado a quatro paredes meses a fio sem mudanças de rotinas, sem lufadas de ar fresco ou temporadas ao relento. O homem que o consegue, merece a emancipação e representa os ideais da liberdade, que são apenas uma definição possível para essa centelha que nos queima durante os invernos de cativeiro e nos permite fazer o impossível contra todas as adversidades. 

Também em Fugiu um Condenado à Morte, o filme de Robert Bresson que hoje vamos ver, se abordam estas questões sob a égide dessa conversa sobre novos nascimentos e espíritos que triunfam sobre a carne entre Nicodemos e Jesus e que termina com aquele “o vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito.” Mas o que terá atraído mais ao realizador na história de André Devigny, um dos muitos homens e mulheres traídos por infiltrados na Resistência Francesa durante a ocupação nazi, foi a paciência e a resiliência no seu triunfo sobre a carne durante esse novo nascimento, com uma economia de meios que se pode confundir com o próprio trabalho de realização (senão leiamos os primeiros três mandamentos das Notas sobre o Cinematógrafo de Bresson: “Libertar-me dos erros e das falsidades acumuladas. Conhecer os meus meios, assegurar-me de eles.” “A faculdade de me servir bem dos meus meios diminui quando o seu número aumenta.” “Controlar a precisão. Ser eu mesmo um instrumento de precisão.”). 

Como se sabe desde o início qual vai ser o destino do tenente Fontaine (o título não esconde absolutamente nada), os vislumbres de tensão passam a ser outros: como comunicar sem palavras, como construir sem meios, quanto tempo se tem para atravessar um corredor ou um pátio sem ser visto pelos guardas, como esconder o que se tem e o que se cria, como apanhar um bocado de sol e de vento. Sem a distracção das incertezas narrativas, podemos prestar atenção às rotinas e aos processos prisionais, delirar com um plano sobre uma esquina vazia e que oculta um homicídio, fiel aos milagres sensórios de um Jacques Tourneur e que complica a arrumação de Bresson nas prateleiras dos grandes teóricos do cinema e a pertinência em usar alguns dos seus mandamentos para descrever as suas imagens, como se a sua obra tivesse o fito único de ilustrar as suas ideias sobre cinema e não as pudesse transcender (como é que era mesmo, “uma imagem vale por mil palavras?”). Uma mão sobre o puxador do carro, um bastão policial a bater nas hastes dos corrimões das escadas, os papéis que viajam de bolso em bolso, as tosses fingidas que disfarçam escavações e assinalam que a costa está livre. Um sem fim de coisas assim, que nos fazem perceber talvez a relação que Fontaine tem com os objectos: quanto tempo se tem de olhar para uma coisa para ela se transformar noutra coisa? Para escapar da prisão da vida é preciso escapar da prisão dos sentidos, que os olhos pegam-nos partidas. Reduzir tudo ao denominador comum. Transformar uma colher numa alavanca, uma lanterna num gancho, roupa nova em corda, uma prisão num horizonte prometido, uma guerra num armistício e numa paz possível. 

Bresson é ainda o maior dos cineastas.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

92ª sessão: dia 4 de Maio (Sexta-Feira), às 21h30


Em Agosto de 1943, André Devigny fugiu da prisão nazi de Montluc, onde teria de cumprir uma pena de morte, sobrevivendo para contar a história, felizmente. Em 1956, Robert Bresson leu essa história e fez questão de demorar os cem dias que Devigny passou na prisão a rodar o filme e usar alguns dos mesmos materiais utilizados na fuga para realizar Fugiu um Condenado à Morte, filme maravilhoso que será a nossa próxima sessão, no estaleiro cultural da velha-a-branca.

Aos Cahiers du Cinéma, que lhe perguntaram em 1957 se a história de Devigny o tinha fascinado ou era só um pretexto, Bresson respondeu: “Sabem... estão-me a perguntar coisas que não me perguntei a mim próprio... Lembro-me da leitura que fiz dessa história: era uma história muito precisa e mesmo muito técnica da evasão. Lembro-me dessa leitura e lembro-me que ela me pareceu uma coisa de grande beleza: era escrita num tom extremamente preciso, muito frio, e até a construção da história era muito bela. Tinha muita grandeza. Havia ao mesmo tempo essa frieza e essa simplicidade que fazem com que sintamos que é uma obra de um homem que escreve com o coração: é algo de muito raro. E como eu procuro, sempre e em primeiro lugar, um tema que possa contentar ao mesmo tempo o produtor com quem trabalho e a minha pessoa, e mais qualquer coisa que esteja muito perto da verdade – porque se eu parto de uma coisa falsa, é-me muito difícil restabelecer essa falsidade para chegar a uma verdade –, achei que esse tema reunia todas as qualidades.”

Paul Schrader, autor de argumentos para Martin Scorsese, John Flynn ou Brian De Palma, bem como realizador do extraordinário Hardcore, escreveu sobre Bresson no seu livro Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer, dizendo a páginas tantas que "os protagonistas de Bresson, como o pároco de aldeia, não conseguem encontrar metáforas capazes de exprimir a sua agonia. São condenados à alienação; nada neste mundo vai apaziguar a sua paixão interior, porque essa paixão não vem deste mundo. Assim sendo, eles não respondem ao seu ambiente, mas sim a esse sentido do Outro que parece muito mais imediato. Daí a disparidade; o protagonista de Bresson vive num ambiente frio, factual e que inclui toda a gente, mas em vez de se adaptar a esse ambiente, ele responde a algo completamente separado dele.

"É um choque quando Joana d'Arc responde aos seus inquisidores corruptos com sinceridade, franqueza, honestidade, e desconsideração total para com a sua segurança pessoal—não está a responder ao ambiente dela numa proporção de 1:1. Em vez disso, responde aos seus juízes como se estivesse a falar com as suas "vozes" misteriosas e transcendentais. Da mesma forma, em Fugiu um Condenado à Morte, o desejo de fugir de Fontaine ultrapassa qualquer motivação normal de um prisioneiro. Ele não é senão uma Vontade de Fugir encarnada; o espectador só o vê como um prisioneiro cujos fôlegos anseiam todos por ser livre. Ao longo do filme, Fontaine usa uma camisa esfarrapada, suja e sangrenta, e quando recebe finalmente uma encomenda de roupas novas, o espectador rejubila (ou quer rejubilar) por ele. Em vez de experimentar as roupas novas, Fontaine rasga-as imediatamente para fazer cordas. Para a mente de Fontaine (conforme definido pela "privação") a encomenda não continha roupas novas, de todo, mas potenciais cordas. Outro prisioneiro, que tinha o desejo mas não a paixão de ser livre, teria usado as roupas velhas como cordas. A obsessão de Fontaine é a sua qualidade definitiva, e é maior que o seu desejo de estar dentro ou fora desses muros da prisão. A prisão em Fort Montluc é apenas o correlativo objectivo para a paixão de Fontaine. Em Pickpocket, o carteirismo de Michel têm a mesma qualidade obsessiva familiar; não é motivada sociológica nem financeiramente, mas, em vez disso, é uma Vontade de Roubar Carteiras. E quando Michel renuncia o carteirismo pelo amor por Jeanne, a motivação dele é outra vez mal definida. O espectador sente que a paixão assoberbante de Michel foi transferida para Jeanne, mas ainda não sabe qual é a sua fonte."

Já Jacques Lourcelles, no seu Dicionário, escreve que Fugiu um Condenado à Morte é a "quarta longa-metragem de Robert Bresson. Embora o seu filme anterior, Le jornal d’un curé de campagne, tenha conhecido o sucesso, Bresson é ainda um cineasta de fama discreta, conhecido e apreciado pela crítica e por um público pequeno. Un condamné à mort s’est échappé, lançado numa combinação de salas que incluíam o Gaumont-Palce, tornou-o conhecido do grande público. Bresson tinha feito com que o genérico fosse antecedido pela seguinte menção: «Esta história é verdadeira. Dou-a como é, sem ornamentos». Sem ornamentos? Certo. Embora o conteúdo do assunto (uma evasão real) e certos métodos de rodagem se aproximem do neo-realismo: ausência de actores profissionais, pela primeira vez em Bresson; rodagem nos próprios lugares da acção, com acessórios que serviram para a evasão, e a presença do verdadeiro herói da aventura (André Devigny) como conselheiro técnico. (Mas parece que foi muito pouco consultado.) A partir destes elementos, Bresson põe em prática as suas teorias sobre o despojamento do estilo, não as levando ainda até aos limites em que se podem tornar auto-destrutivas. Fazendo a elipse (seria melhor dizer: o impasse) da violência física e de todas as espécies de circunstâncias anexas da acção, Bresson constrói a sua narrativa com uma sucessão de planos aproximados ou de grandes planos de rostos, mas sobretudo de mãos e de objectos. Os actores têm todos a mesma voz, dominada e quase apagada pela voz off do herói-narrador. Este estilo é evidente, quase em demasia: não está aí um ornamento, e dos mais espectaculares? Nunca uma narrativa de acção tinha sido antes relatada desta maneira, minuciosa e elíptica ao mesmo tempo, sóbria e discretamente lírica, totalmente apontada para o aspecto material das coisas para chegar através de si ao interior das personagens. Para Bresson, o despojamento é uma via de acesso ao essencial: o sublinhar da obstinação de um homem face à matéria e aos acontecimentos, inspirada e guiada pela vontade divina. «Ajuda-te a ti próprio e o céu ajudar-te-á», este preceito do bom senso, que o filme ilustra de forma fiel e intensa, é aqui reposicionado no seu contexto original de espiritualidade e de fé. (De resto, um dos primeiros títulos previstos para o filme foi: O céu ajudar-te-á.) Como o herói dele tem fé em Deus, Bresson tem fé nesse herói. O público foi sensível à universalidade e ao aspecto positivo desta mensagem, encarnado na mais emocionante das histórias. Até o despojamento formal desejado por Bresson em torno do seu personagem estimulou a atenção da maior parte das pessoas, revelando-se favorável ao sucesso do filme. Situado no conjunto da obra de Bresson, Un condamné à mort... surge como uma obra de transição entre a teatralidade clássica e raciniana dos primeiros filmes e a teatralidade cada vez mais abstracta e anti-natural das obras posteriores a Pickpocket. Odiando o teatro, Bresson nunca mais o deixará. Passo a passo, ele moldou o seu teatro a si mesmo, sem dúvida o mais « artificial » do cinema francês, repleto de personagens dignos, orgulhosos, obstinados e que tentam compreender o mundo através da sua submissão frequentemente dolorosa – aqui não o é muito – à Divindade. Mas sejam quais forem a sua tenacidade, os seus esforços e o seu sofrimento, em última análise é a Providência que vai fixar a sorte deles. 

"BIBLIO. : dois actores do filme escreveram sobre a rodagem. Roland Monod («En travaillant avec Robert Bresson» in «Cahiers du cinéma» nº64) nota : «É uma das coisas que surpreendem mais quando vemos Robert Bresson ao trabalho. Ele sabe desde o início e admiravelmente o que não quer, mas só descobre a pouco e pouco o que quer, ao longo de metros de película, mesmo através da falta de jeito dos intérpretes que reproduzem as suas indicações. O que explica que tenham sido rodados sessenta mil metros de película e só sejam projectados dois mil cento e cinquenta.» R. Monod assinala que a rodagem durou cem dias, o tempo da detenção de Devigny em Montluc. François Leterrier, que, como outro actor do filme (Jacques Ertaud) se tornará realizador, concedeu igualmente um texto aos «Cahiers du cinéma» : «Robert Bresson l'insaisissable» (in nº66)."

Até amanhã!