quarta-feira, 30 de maio de 2018

98ª sessão: dia 1 de Junho (Sexta-Feira), às 21h30


Não há discussão sobre cinema moderno, da proclamada "morte do cinema" às possibilidades  abertas pelas rodagens em exteriores (ou pelo vídeo, ou pelo digital, ou pelos telemóveis de última geração), passando pela citação como forma de criação, que não tenha sido atravessada de uma ponta à outra pelo filme da nossa próxima sessão, O Acossado (1960) de Jean-Luc Godard. Em 2018, e depois de tanta discussão à volta do essencial, talvez seja possível vê-lo pelo que é: um filme. Para nos ajudar, teremos Joel Yamaji, cineasta e professor de cinema brasileiro que nos enviou uma apresentação em vídeo.

Godard disse aos Cahiers du Cinéma em 1962 que "os nossos primeiros filmes eram todos filmes de cinéfilos - o trabalho de entusiastas do cinema. Pode-se fazer uso do que já se viu no cinema para fazer referências deliberadas. Isso foi verdade para mim em particular. Eu pensava em termos de atitudes puramente cinematográficas. Para alguns planos, referia-me a cenas de que me lembrava em Preminger, Cukor, etc. E a personagem interpretada por Jean Seberg era uma continuação do papel dela em Bonjour Tristesse. Eu podia ter pegado no último plano do filme de Preminger e começado depois de fazer uma transição para um título, 'Três Anos Depois'. Isto é o mesmo tipo de coisa que o meu gosto pela citação, que ainda mantenho. Porque é que havemos de ser censurados por isso? Na vida as pessoas citam como bem entendem, portanto nós temos o direito de citar como bem entendemos. Assim sendo, eu mostro pessoas a fazer citações, certificando-me apenas de que citam o que me agrada. Nas notas que faço de qualquer coisa que possa ser útil para um filme, acrescento uma citação de Dostoievsky se gostar dela. Porque não? Se se quer dizer alguma coisa, só há uma solução: dizê-la.

"Além disso, O Acossado era o tipo de filme em que vale tudo: era disso que se tratava. Qualquer coisa que as pessoas fizessem podia ser integrada no filme. Na verdade, foi este o meu ponto de partida. Disse a mim mesmo: já tivemos Bresson, acabámos de ter Hiroshima, um certo tipo de cinema está a chegar ao fim, pode ter acabado, portanto vamos juntar o toque  final, vamos mostrar que vale tudo. O que eu queria era pegar numa história convencional e refazer tudo o que o cinema tinha feito, mas de forma diferente. Também queria dar a sensação de que as técnicas do cinema tinham acabado de ser descobertas ou experienciadas pela primeira vez. O plano em íris mostrou que se podia regressar às origens do cinema; o fundido apareceu, só uma vez, como se tivesse acabado de ser inventado. Se não usei outros processos, foi em reacção contra um certo tipo de cinema; mas não deve ser feita uma regra a partir disso. Há filmes em que eles são necessários; e às vezes devem ser usados com mais frequência. Há uma história sobre Decoin* a ir ver o montador dele em Billancourt e dizer: 'Acabei de ver O Acossado; a partir de agora, os planos em continuidade estão fora de questão.'"

*"Decoin": O realizador veterano Henri Decoin, cujos filmes - e.g. Les Inconnus dans la maison (com Raimu, 1942), La vérité sur Bébé Donge (com Gabin, 1951) - são feitos de forma competente mas não revelam personalidade individual.

Pierre Rissient, falecido este mês para nossa grande tristeza, esteve presente na rodagem do filme como assistente de realização, e disse a Olivier Père que "eu segui toda a preparação e a rodagem de O Acossado. Não havia um argumento no sentido clássico do termo mas um esboço de etapas de três páginas a partir do qual se pôde criar um orçamento e um plano de trabalho. Ainda não havia diálogos. Esse orçamento e esse plano de trabalho foram respeitados, de forma geral, com a excepção de algumas mudanças relacionadas com a acessibilidade de cenários. Portanto pode-se dizer que a preparação foi muito precisa. Durante a rodagem, Godard vinha de manhã com os diálogos, escritos diariamente. Jean-Luc, Jean Seberg e Belmondo sentavam-se no café da esquina para ler e repetir os diálogos, e de maneira geral foram feitas muito poucas mudanças na altura da rodagem. Também havia muito pouca direcção de actores da parte de Godard. A sua direcção de actores manteve-se muito funcional, sem indicações psicológicas, o que frustrava um bocado Jean Seberg, enquanto que Belmondo ficava muito confortável. 

"Quanto aos outros actores, ou melhor, não actores, eram sobretudo companheiros como Daniel Boulanger que interpretavam divertindo-se, e não digo isso de forma pejorativa. Houve muitos amigos cinéfilos que fizeram aparições no filme, Jean Domarchi, Michel Fabre, Jacques Lourcelles, Jacques Rivette, Jean Douchet… Mas também houve alguns actores profissionais que Godard manteve, Van Doude no papel do repórter e Henri-Jacques Huet. Em contrapartida, não tenho a certeza se ele pensou imediatamente em Jean-Pierre Melville..."

Jacques Lourcelles, que entra no filme de Godard sob o pseudónimo de Raymond Ravanbaz, escreveu que "tudo ou quase tudo é emprestado neste descalque pálido do film noir americano: o assunto, o género e os temas vêm do cinema hollywoodiano, a actriz Jean Seberg é retomada tal como aparecia em Bonjour tristesse de Preminger. Ainda assim, o filme será considerado como uma revolução no cinema francês rígido da época. Sob o plano material e financeiro, o facto de ter custado três ou quatro vezes menos que um filme médio, obtendo um sucesso imediato e considerável, valeu-lhe uma legião de imitadores. Sob o plano visual, o seu estilo bosquejado e brutal que elimina as ligações tradicionais da narração cinematográfica (transição para negro, fundido, etc) – é a sua principal inovação – surgirá como a própria imagem da juventude. Sob o plano do assunto, « os jovens », entidade vaga e difusa, tornar-se-ão durante muito tempo o principal assunto das ficções do cinema francês. Certo que o cinema francês, enclausurado na ditadura dos seus cineastas quinquagenários e sexagenários (geralmente talentosos), nas suas rigidezes sindicais e profissionais, precisava muito de um banho de juventude. Mas a emenda foi sem dúvida pior que o soneto. Todos os elementos constituintes da mise en scène foram afectados. A ausência de preparação e de construção no argumento vai amolecer as histórias todas (a de O Acossado é exangue). A rodagem sistemática em exteriores vai aniquilar a pouco e pouco a vida dos estúdios. A fotografia de estilo « reportagem » vai tornar obsoleta – por um tempo – toda a pesquisa nesse domínio. Só a chegada ao estrelato de Jean-Paul Belmondo é que pode ser considerada um elemento inovador. Passando depois sem esforço do filme dito de autor para o filme « comercial », rompendo as fronteiras e as divisões convencionais, o actor abriu o caminho para um tipo de intérprete polivalente de que Gérard Depardieu fornece hoje o modelo. Com a mesma abordagem agressiva e glaciar em relação ao real, Godard dedicar-se-á então a retratar, não sem complacência, a confusão mental da sua geração, matéria suficiente para dezenas de filmes. A única razão pela qual O Acossado ainda deve ser mencionado hoje, é por assinalar, como um marco miliário, a entrada do cinema na era de perda da sua inocência e da sua magia natural. Entrada essa de que um só filme não pode ser tido como responsável, evidentemente. Depois de O Acossado, o cinema, como que ferido, vai ser mais triste, menos criativo, mais consciente de si próprio – self-conscious, como dizem os anglo-saxónicos com uma sugestão pejorativa discreta. 

"N.B. Uma grande parte da História da Nouvele Vague está ligada ao progresso da credulidade do público de cinema e do público em geral. Muitos começaram a acreditar no que os cineastas diziam dos seus filmes e depois repetiram-no. Ora, a originalidade maior – esta sim incontestável – dos cineastas da Nouvelle Vague é que ninguém antes deles tinha ousado falar tão bem de si e tão mal dos outros. Alguns exemplos, entre mil. «Sempre se acreditou que a N.V. era o filme económico contra o filme caro. De modo nenhum. Era apenas o bom filme, fosse ele qual fosse, contra o mau filme». «O cinema deles [o dos cineastas que não pertenciam à Nouvelle Vague] era a irrealidade total. Eles estavam desligados de tudo (...). Não viviam o seu cinema. Um dia vi Dellanoy entrar no estúdio de Billancourt com a sua maleta: dir-se-ia que estava a entrar numa companhia de seguros». (Pessoalmente, preferimos com algum recuo e mesmo sem recuo algum a “maleta” e certos filmes de Dellanoy a toda a obra de Godard.) «Antes da guerra, entre, por exemplo, La belle equipe de Duvivier e La bête humaine de Renoir, havia uma diferença, mas apenas de qualidade. Enquanto que agora, entre um dos nossos filmes e um filme de Verneuil, Delannoy, Duvivier ou Carné, há mesmo uma diferença de natureza.» Estas afirmações de Godard ilustram o que Freddy Buache chamou, com um pouco de exagero, «a arrogância fascista» da Nouvelle Vague, nos «Cahiers du Cinema», nº 138 (1962). Breathless (83), remake americano por Jim McBride com Richard Gere e Valérie Kaprisky. 

"BIBLIO. : argumento e diálogos in « L’Avant Scène » nº 79 (1968). Também contém o argumento inicial de Truffaut. Reconstituição do filme em fotogramas na colecção « Bibliothèque des classiques du cinéma », Balland, 1974."

Até Sexta!

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