sábado, 12 de maio de 2018

94ª sessão: dia 15 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Em 1984, um jovem de 23 anos que passava mais tempo do que devia na Cinemateca Francesa estreava um fabuloso primeiro filme que pagava de volta a alegria dessas sessões formativas da infância e da adolescência, bem como às canções que ouvia, aos primeiros amores, às noites em claro entre máquinas de pinball e encontros fortuitos em festas que se revelavam mais tristes do que festivas. Esse jovem era Leos Carax e o filme é Boy Meets Girl, a nossa próxima sessão nos cinemas do Braga Shopping.

No festival de cinema de Busan, Carax foi convidado a resumir a estética dos seus filmes e respondeu que "eu disse-vos que comecei a fazer cinema muito jovem, obviamente. O que é diferente para quem começou no cinema bastante jovem, talvez seja o facto de serem cineastas e espectadores ao mesmo tempo. Ao fim de um bocado, eles descobrem o cinema ao mesmo tempo que o fazem. Inevitavelmente, os primeiros filmes atingem-nos como cartas de amor ao cinema ou como cartas de agradecimento aos cinemas que existem e às pessoas que antes de nós fizeram viver o cinema e inventaram o cinema, porque é a única arte que foi inventada tecnicamente.

"Não se inventou a pintura nem a escrita como se inventou o cinema ou a fotografia. Houve uma consciência da estética. Numa rodagem, os momentos em que sei que alguma coisa está bem conseguida são quando tenho um sentimento nos meus olhos, como se os actores e como se os traços das imagens à frente das câmaras já tivessem existido, como o que chamamos em francês de ilusão já vista.

"Quando isso acontece, não muito frequentemente, há uma estética que não sabemos de onde vem e isso vem da infância. O que é que faz com sejamos sejamos sensíveis a certas imagens, a certas composições e a uma certa luz? Então, temos a impressão de estar melancólicos. Algo nos diz que essa imagem já existia antes e, finalmente, eu só criei representações."

Serge Daney, um dos primeiros críticos a defender Carax em França, escreveu que "um filme como Boy Meets Girl não ganha nada em ser descrito. Não porque haja um mistério a guardar-se sobre essa velha história - bressoniana - de um jovem rapaz, na última noite antes de partir para o serviço militar, entre uma rapariga que o abandonou e uma outra que ele encontra, desde já “entre a dor e o nada.” É porque o seu mistério está na segurança da mise en scène quando ela evoca esse sentimento insustentável de precariedade, na beleza dos monólogos enunciados com neutralidade, sem falsas seduções. 

"Há dois amigos a discutir sobre as margens do rio Sena à noite e um encurrala o outro, há confissões sexuais bastante ousadas e doces, em voz off, um salão de jogos aberto e que até pisca, uma criança que inicia um monólogo devastador no metro, um homem mudo que culpa os jovens “de não falar”, as crianças esquecidas que choram num quarto numa noite de recepção, os discos roubados por amor, um quarto de empregada iluminado pela luz de um frigorífico aberto, o orgulho das dores de amores perdidos e uma ausência quase total de adultos. 

"Um jovem autor (Carax?) é alguém que sabe já ter visto muitos filmes, vivido poucas coisas (mas já com dificuldades) e que não tem muito tempo a perder para começar a falar disso tudo. Porque o cinema é feito com aquilo que se tem. Autobiografia e programa exaltado da vida por vir (fulgurante) e, em seguida, momentos de afasia onde a homenagem ao cinema mudo não é uma afectação cinéfila, mas um mau momento a ser superado. Horror de errar por um mundo “já visto” mas “ainda não vivido”. Um jovem velho que só pode rejuvenescer."

Já Miguel Marías, escrevendo no Pretérito Imperfeito - o tempo verbal ideal para descrever o filme, parece-nos -, conta que "Boy Meets Girl (1984) era um típico primeiro filme (antes tinha realizado uma curta e escrito algumas críticas nos Cahiers du Cinéma), decididamente nas pegadas da nouvelle vague, de cuja eclosão se cumpria precisamente o primeiro quarto de século: actores com encanto (Denis Lavant e Mireille Perrier), semi-desconhecidos e jovens - como o próprio realizador, que tinha 23 anos -, poucos personagens, fotografia a branco e preto, uma história simples (a mais simples desde o cinema mudo, a enunciada em inglês pelo seu título: rapaz conhece rapariga...), e um tom mais ou menos romântico, fantasioso, triste e cómico ao mesmo tempo, e asperamente amável; nem sequer faltava a influência mais comum (ainda que soterrada) a toda a nouvelle vague, tanto a da Rive Droite (Godard, Rivette, Truffaut, Rohmer) como a Gauche (Marker, Resnais, Varda, Demy, Kast, Doniol-Valcroze) ou os seus antecedentes (Franju, Melville) e epígonos (Pialat, Eustache, Pollet, Assayas, Guiguet, Brisseau etc.), ou seja, a de Jean Cocteau, nem a segunda, mais patente e reconhecida, a de Robert Bresson (no caso de Carax, mais o de As Quatro Noites dum Sonhador, O Dinheiro ou Le diable probablement que o de Pickpocket). 

"Era um filme exemplar na sua economia, rodado com poucos meios e que teve êxito notável tanto de crítica como de bilheteira. Lembro-me de ter escrito, quando estreou na Espanha, propondo-o não como um modelo que deveriam imitar, e sim emular a partir de suas próprias circunstâncias, os jovens realizadores espanhóis, que tinham que compensar a falta de dinheiro e meios com personalidade, estilo e imaginação, e de o tornar possível implicando-se na tradição cinematográfica, ainda que fosse para seguir caminhos divergentes e até opostos."

Até Terça-Feira!

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