domingo, 6 de maio de 2018

Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut (1956) de Robert Bresson



por João Palhares

Foi no país da liberdade, da igualdade e da fraternidade que se fez A Grande Ilusão de Jean Renoir, O Buraco de Jacques Becker ou O Exército das Sombras de Jean-Pierre Melville; que se escreveu o Conde de Monte Cristo, em que Edmond Dantès escapava da prisão para onde era mandado injustamente e começava a exercer a sua vingança, reinventado como conde de Monte Cristo. Foi também na França que nasceu Henri Charrière (a.k.a. Papillon), condenado por homicídio a cumprir pena num campo de trabalhos forçados da Guiana Francesa, em 1931, e que entre fugas e capturas viveu com os índios, recebeu cuidados e atenção de leprosos, foi traído por freiras e privou com piratas, a céu aberto. O homem que tenta escapar, como vimos também em Escape from Alcatraz de Don Siegel, fá-lo sempre com a vida em jogo, por achar que tudo o resto é dispensável se não se tem controlo sobre o próprio destino, se se está confinado a quatro paredes meses a fio sem mudanças de rotinas, sem lufadas de ar fresco ou temporadas ao relento. O homem que o consegue, merece a emancipação e representa os ideais da liberdade, que são apenas uma definição possível para essa centelha que nos queima durante os invernos de cativeiro e nos permite fazer o impossível contra todas as adversidades. 

Também em Fugiu um Condenado à Morte, o filme de Robert Bresson que hoje vamos ver, se abordam estas questões sob a égide dessa conversa sobre novos nascimentos e espíritos que triunfam sobre a carne entre Nicodemos e Jesus e que termina com aquele “o vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito.” Mas o que terá atraído mais ao realizador na história de André Devigny, um dos muitos homens e mulheres traídos por infiltrados na Resistência Francesa durante a ocupação nazi, foi a paciência e a resiliência no seu triunfo sobre a carne durante esse novo nascimento, com uma economia de meios que se pode confundir com o próprio trabalho de realização (senão leiamos os primeiros três mandamentos das Notas sobre o Cinematógrafo de Bresson: “Libertar-me dos erros e das falsidades acumuladas. Conhecer os meus meios, assegurar-me de eles.” “A faculdade de me servir bem dos meus meios diminui quando o seu número aumenta.” “Controlar a precisão. Ser eu mesmo um instrumento de precisão.”). 

Como se sabe desde o início qual vai ser o destino do tenente Fontaine (o título não esconde absolutamente nada), os vislumbres de tensão passam a ser outros: como comunicar sem palavras, como construir sem meios, quanto tempo se tem para atravessar um corredor ou um pátio sem ser visto pelos guardas, como esconder o que se tem e o que se cria, como apanhar um bocado de sol e de vento. Sem a distracção das incertezas narrativas, podemos prestar atenção às rotinas e aos processos prisionais, delirar com um plano sobre uma esquina vazia e que oculta um homicídio, fiel aos milagres sensórios de um Jacques Tourneur e que complica a arrumação de Bresson nas prateleiras dos grandes teóricos do cinema e a pertinência em usar alguns dos seus mandamentos para descrever as suas imagens, como se a sua obra tivesse o fito único de ilustrar as suas ideias sobre cinema e não as pudesse transcender (como é que era mesmo, “uma imagem vale por mil palavras?”). Uma mão sobre o puxador do carro, um bastão policial a bater nas hastes dos corrimões das escadas, os papéis que viajam de bolso em bolso, as tosses fingidas que disfarçam escavações e assinalam que a costa está livre. Um sem fim de coisas assim, que nos fazem perceber talvez a relação que Fontaine tem com os objectos: quanto tempo se tem de olhar para uma coisa para ela se transformar noutra coisa? Para escapar da prisão da vida é preciso escapar da prisão dos sentidos, que os olhos pegam-nos partidas. Reduzir tudo ao denominador comum. Transformar uma colher numa alavanca, uma lanterna num gancho, roupa nova em corda, uma prisão num horizonte prometido, uma guerra num armistício e numa paz possível. 

Bresson é ainda o maior dos cineastas.

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