quarta-feira, 29 de maio de 2024

Apresentação de "Inferno", por Cauby Monteiro

Inferno (1980) de Dario Argento



por João Palhares

Vidros partidos, paredes raspadas, desenhos que se formam sob gesso, placas de pavimento arrancadas, argamassa moída, cabos cortados, folhas rasgadas, canos soltos, tectos caídos, salpicos de sangue, maçanetas seccionadas, amontoamentos de gatos, de ratos ou de insectos, são tudo coisas que surgem em filmes de Dario Argento. Uma e outra vez. Essa fragmentação física, associada nas suas estórias a mistérios que as personagens precisam de resolver a todo o custo, e que normalmente até é provocada por elas, seja por acidente ou de propósito, é imediatamente seguida por uma fragmentação formal accionada por Argento e que as castiga cruelmente. Esses planos que duram um instante e que não mostram absolutamente nada, pois é o encadeamento da sequência em que se inserem que lhes dá o sentido, dão prova do seu grande talento e de uma herança que podemos retraçar a Dziga Vertov e aos soviéticos ou ao inevitável Alfred Hitchcock. 
 
Como disse em entrevista a Daniele Costantini e Francesco Dal Bosco para o livro Nuovo cinema inferno, de 1997[1], Dario Argento frequentou o Filmstudio, cineclube fundado em 1967 por Americo Sbardella, Annabella Miscuglio e Paolo Castaldini, e por onde passaram cineastas como Michelangelo Antonioni, Marco Bellocchio, Marco Ferreri, Jean-Luc Godard, Gregory Markopoulos, Pier Paolo Pasolini, Roberto Rossellini, Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Paolo e Vittorio Taviani ou Luchino Visconti. “Era um lugar muito excitante para um entusiasta do cinema,” disse Argento. “Eu via de tudo. Cinema alemão, cinema francês... Cinema russo também, pelo qual era apaixonado. Dziga Vertov, o Kino-Glaz. E Eisenstein, fascinante. Uma das coisas que mais me impressionou, além da mostra de filmes de terror no Metropolitan, além de Hitchcock e Visconti, foi “Kino-Pravda”[2] de Vertov. A história é pura aventura, acção em estado puro. Com meios muito simples consegue comunicar emoções visuais muito profundas.” 
 
Foi activo politicamente, era e é de esquerda, mas percebeu muito cedo, durante a corrente de cinema político ou revolucionário que era praticado em Itália e um pouco por toda a Europa, que as certezas formais e discursivas desses filmes os afastavam por completo das pessoas e da realidade que tentavam captar. É uma cisão parecida com a dos Cahiers du Cinéma com Gillo Pontecorvo e a de Manoel de Oliveira com os filmes engajados politicamente e rodados nas ruas portuguesas durante o Processo Revolucionário em Curso. Um filme até nos pode dizer tudo o que queremos ouvir, defender tudo o que achamos por bem defender, mostrar as coisas de um ponto de vista supostamente isento ou jornalístico, se é que isso é possível, mas dessa posição estamos todos perfeitamente confortáveis, não há espaço nem margem para a descoberta, não há mistério nenhum, e a câmara e a montagem podem tornar-se em relação proporcional de um conservadorismo medonho. Isto dá sempre azo a mal-entendidos, infelizmente, mas foi certamente por estas vias de pensamento que os Cahiers chegaram à realização de que a moral e a estética são uma e a mesma coisa e que “o travelling é uma questão de moral,” ou que Oliveira decidiu que “o cinema revolucionário está atrasado face à revolução.” Ideias semelhantes tinha Argento, que disse na mesma entrevista a Constantini e Dal Bosco que “normalmente o cinema, e o espectáculo em geral, servem de amortecedores, ou se não tendem para a análise, para a especulação intelectual. Eu, pelo contrário, dirigia-me para os becos mais escuros, tentava explorar as zonas ocultas, e expressava uma fúria sempre crescente. Uma fúria instintiva que coincidia, sem qualquer planeamento, com o estado de espírito de uma parte da sociedade que era normalmente negligenciada ou mesmo observada com um olhar político e cultural muito tradicional. Falo do estado de espírito dessa grande massa de jovens que exprimiam todos os dias um forte instinto de revolta, quase selvagem, certamente de origem social mas de certa forma também pré-política.” 
 
Embora seja importante, também por essa fúria instintiva e por essas zonas ocultas de que fala o cineasta italiano, para além do que possa revelar sobre si próprio e os seus fantasmas, não é o mais importante que ele povoe os seus filmes de assassinos e degenerados, que haja sangue e mortes a rodos pelas suas extensões, que as próprias estórias às vezes nem façam grande sentido ou que se assista frequentemente a actos verdadeiramente grotescos. Porque tudo isto é apenas o que potencia o seu lado verdadeiramente imaginativo e poético, que também passa por rechear todas as suas cenas de contrapontos e contrastes fabulosos. Pode-se começar pela banda-sonora de Inferno, que foi composta por Keith Emerson e convive com excertos de Verdi que são estudados pelos musicólogos interpretados por Leigh McCloskey e Eleonora Giorgi. Não é pouco comum ouvir nela grandes repentes sonoros que abalam uma serenidade e uma harmonia aparentes, ou melodias concorrentes que se intersectam ritmicamente até serem engolidas por um paroxismo inevitável. Esta tensão constante permite a Argento, por exemplo, cortar do grande auditório onde as personagens de McCloskey e Giorgi têm a aula de música para Giorgi dentro de um táxi com o cabelo enchumbado de água sem que achemos que é despropositado ou que esteja deslocado. Sem se preocupar demasiado, também, com o que possam ser as construções e progressões dramáticas como as aprendemos a analisar, ele permite-se ainda acrescentar pormenores insólitos como os pregos espetados na porta do táxi que ferem o dedo de Giorgi, a maçaneta que se parte e corta a mão da personagem de Daria Nicolodi, as saliências no pano estendido na parede que se rasga a meio para revelar Nicolodi moribunda, a cena em que o vizinho de Nicolodi, às portas da morte, se agarra a ela em desespero e não a quer deixar escapar, ou a sequência absolutamente demente do livreiro que se afasta sob a lua cheia numa noite de eclipse com um saco cheio de gatos, em que todas as nossas expectativas como espectadores saem frustradas. 
 
E podia-se passar linhas e parágrafos a elogiar mais uma data de coisas, do artesanato das miniaturas e das pinturas em espelhos do grande Mario Bava à iluminação quase opressiva de Argento, que usava mais projectores do que qualquer um dos seus colegas de profissão e assustava até alguns dos seus técnicos e produtores associados, passando pelo grande feito que é a cena subaquática do início do filme, a bela recriação da cidade de Nova Iorque nos estúdios INCIR-De Paolis em Roma ou a atenção do cineasta italiano ao som, que noutra cena insólita vai ao detalhe de acompanhar por tubos um sistema acústico criado para facilitar a comunicação entre apartamentos no prédio amaldiçoado das três Mães. Mas fiquemos com a cena da decapitação da personagem de Eleonora Giorgi, um prodígio de construção e um prodígio de execução. Deambulação da personagem, apresentação de todo o espaço. As janelas partem-se sozinhas, troveja lá fora. Sente-se uma grande instabilidade, tudo é incerto. Ela aproxima-se de uma portada. Não parece estar lá ninguém. Vira as costas e é agarrada pelas sombras, duas mãos tapam-lhe a cara e expõem-lhe o pescoço. Vemos os pregos, em baixo. O vidro a cair aos poucos, em cima. Os olhos dela procuram uma saída, por todas as direcções. O vidro falha o alvo. Surgem braços velhos e quase cadavéricos a puxar de novo o vidro para cima, com as sombras desse movimento no rosto dela no plano seguinte. O vidro está de novo lá em cima e surge agora a mão a segurá-lo no topo. Novo plano do rosto da vítima. Plano aproximado da mão e do vidro, desaparecem os dois para baixo. Sai um jacto de sangue para cima do vidro iluminado a vermelho, diz-se que a cor do inferno.
 
Durante perto de trinta anos, no pico da sua criatividade, Dario Argento praticou um cinema que criava dados e situações novos a cada minuto que passava, refugiando-se no grande bastião do género do terror para levar a cabo essas experiências. Era por isso que não era levado a sério e era considerado um mero sucedâneo de Alfred Hitchcock, mas também era por isso que tinha rédea solta para libertar os seus fantasmas e as suas soluções estéticas. Passados quarenta e quatro anos e superando a barreira dos nossos preconceitos, ainda presos às histórias e aos temas, talvez possamos admitir finalmente que o seu talento e a sua importância não são mera opinião, mas um facto.

[1] «Nuovo cinema inferno. L'opera di Dario Argento», Daniele Costantini, Francesco Dal Bosco e Dario Argento, Pratiche editrice, Parma, 1997.
[2] “Kino-Pravda” é uma série de jornais cinematográficos realizados por Dziga Vertov, com Elizaveta Svilova e Mikhail Kaufman. Teve vinte e três episódios e foi considerado pelo cineasta como o primeiro trabalho em que leva a cabo as suas ideias sobre cinema. Em russo, “kino-pravda” quer dizer “cinema-verdade”.



domingo, 26 de maio de 2024

345ª sessão: dia 28 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Cineclube de Braga exibe “Inferno” de Dario Argento 
 
Este mês de Maio, o Lucky Star – Cineclube de Braga promove um ciclo dedicado a cinema de terror realizado na Europa, com obras do cineasta britânico Terence Fisher, o franco-americano Jacques Tourneur, o francês Georges Franju e o italiano Dario Argento. As sessões realizam-se sempre às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “Europa Terror Expresso - Clássicos do terror europeu”, termina terça-feira à noite com a exibição de Inferno de Dario Argento, segundo tomo de uma trilogia iniciada em 1977 com Suspiria e terminada em 2007 com Mãe das Lágrimas - A Terceira Mãe
 
O filme acompanha a investigação do desaparecimento de uma jovem em Nova Iorque levada a cabo pelo irmão. É parcialmente inspirado pelos escritos de Thomas de Quincey, escritor e crítico literário britânico, mais particularmente por Suspiria de Profundis de 1845. O guião foi escrito pelo realizador e por Daria Nicolodi, que interpreta a condessa Elise De Longvalle Adler no filme. 
 
Descrevendo o estilo do cineasta italiano, o crítico francês Jean-Baptiste Thoret escreveu que “dificilmente redutível a uma categoria, a obra de Argento escapa de facto a qualquer classificação: apesar de possuir uma espantosa coerência (dois planos são suficientes para identificar um dos seus filmes), dá provas de uma heterogeneidade constante.” 
 
“Esteticamente,” continua Thoret no seu livro Dario Argento: Magicien de la peur, publicado em 2008, “os seus filmes inspiram-se tanto nos grandes pintores maneiristas do século XVI como na fotonovela italiana dos anos 60 e os fumetti Neri (Diabolik, Kriminal, Killing).” 
 
“Na sua fantasia de esqueleto,” termina ele, “a Mãe das Lágrimas de Inferno evoca por exemplo Satanik, justiceiro sádico que fez a sua primeira aparição em 1966 (antes de ser levado ao grande ecrã dois anos mais tarde por Piero Vivarelli), mas também a Grande Guilhotina que assombrava as pinturas medievais de Signorelli.” 
 
As sessões do mês de Maio contam com apresentações em vídeo de Cauby Monteiro, Pedro Favaro e Fernando Costa, integrantes da produtora de cinema brasileira Asilo Febril. Para o filme de terça, a apresentação ficará a cargo de Cauby Monteiro. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Apresentação de "Olhos Sem Rosto", por Cauby Monteiro

Les yeux sans visage (1960) de Georges Franju



por Alexandra Barros

Deus me proteja de mim 
E da maldade de gente boa 
Da bondade da pessoa ruim” 

excerto da canção Deus me proteja, do cantor/compositor Chico César 

A maldade de gente boa e a bondade da pessoa ruim” poderia ser o título desta folha de sala. Como tantas outras características humanas, a maldade e a bondade estão “in the eye of the beholder"[1]. As pessoas amiúde praticam acções que contradizem as respectivas intenções: os piores feitos praticados em nome do amor (a uma entidade divina, a uma causa, a uma pessoa); as acções pretensamente virtuosas praticadas com inconfessados propósitos egocêntricos. 

As ambiguidades e complexidades do bem e do mal permeiam este filme em que um cirurgião famoso, Dr Génessier, “rouba” rostos a jovens mulheres por amor à filha, Christiane, a quem deseja restituir (a qualquer custo) o rosto, desfeito num acidente de automóvel. Ou será que a obsessão se deve principalmente à sua vaidade profissional e interesse científico, como acusa a própria filha? Afinal ela é tratada como uma cobaia, uma prisioneira como os muitos cães e pombas, à disposição do pai para as suas experiências médicas. 

As tentativas do Dr Génessier, para refazer o rosto de Christiane, falham sucessivamente. Louise, a devotada assistente, tem uma fé cega no doutor e é ela quem se encarrega de trazer “rostos” para a mesa de operações e de ocultar “os efeitos colaterais”. Exasperada com o preço em vidas humanas que terá que ser pago pela eventual, mas muito improvável recuperação do seu outrora belo rosto, Christiane decide pôr fim aos actos desumanos do pai, mesmo que recorrendo ela própria a actos desumanos. 

Nesta altura do filme o “terror” torna-se mais “convencional”, mais visual e explícito, com imagens de grande violência. Durante a maior parte do filme - com excepção da operação de transplante de rosto - a nossa perturbação, assombro, repulsa ou pavor são respostas induzidas ora por sons, ora ambientes ora ainda reacções de personagens a imagens que não nos são dadas a ver. Talvez porque, supostamente, o produtor Jules Borkon impôs ao realizador as seguintes condições: o filme não poderia mostrar demasiado sangue (por causa dos censores franceses), nem tortura animal (por causa dos censores ingleses), nem personagens de cientistas loucos (por causa dos censores alemães). 

Ao mais gráfico horror segue-se a mais fantasiosa e lírica cena do filme. Christiane, após libertar os cães e as pombas destinadas às experiências do pai, adentra-se na escuridão nocturna de uma floresta, rodeada pelas pombas que esvoaçam em seu redor, numa cena que parece saída de um filme da Disney. Não faltam aliás possíveis diálogos com a história da Branca de Neve. Branca de Neve refugia-se na floresta para evitar ser assassinada por um caçador a mando da sua madrasta. Christiane refugia-se na floresta depois de assassinar Louise (a “caçadora” de rostos) e ser responsável pela morte (?) do pai. A sentença de morte de Branca de Neve é desencadeada por um espelho que, ao considerá-la a mais bela mulher existente, provoca a ira da madrasta. O pai de Christiane mandou inutilizar os espelhos da sua mansão-prisão para evitar que Christiane perceba quão horrível está o seu rosto. Na floresta, Branca de Neve faz amizade com os animais que aí habitam, vindo estes a tornar-se seus ajudantes, protectores e confidentes. Christiane visita os animais enjaulados pelo pai, oferecendo- lhes companhia, afecto e, por fim, a mais preciosa dádiva: a liberdade. 

Não admira pois que este filme que cruza terror, fantasia (uma pintura que “ganha vida”, ...), imaginário gótico (ambientes misteriosos e sombrios, florestas, neblinas, uma mansão labiríntica, cemitérios e sepulturas, espelhos, máscaras, duplos, gaiolas e jaulas, ...), questões psicológicas (identidade, ...) e filosóficas (os meios justificam os fins?, o bem e o mal, ...) e evoca uma fábula disneyesca, seja actualmente considerado uma obra- prima, tendo a sua reputação vindo a crescer ao longo do tempo.

[1] “In the eye of the beholder” é uma expressão inglesa que significa que a percepção ou avaliação de algo é subjectiva e varia de acordo com a pessoa que está a observar/avaliar.



domingo, 19 de maio de 2024

344ª sessão: dia 21 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


A segunda longa-metragem de Georges Franju, na BLCS 
 
Este mês de Maio, o Lucky Star – Cineclube de Braga promove um ciclo dedicado a cinema de terror realizado na Europa, com obras do cineasta britânico Terence Fisher, o franco-americano Jacques Tourneur, o francês Georges Franju e o italiano Dario Argento. As sessões realizam-se sempre às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “Europa Terror Expresso - Clássicos do terror europeu”, continua terça-feira à noite com a exibição de Olhos Sem Rosto de Georges Franju, escrito por Claude Sautet, Jean Redon e a famosa dupla Boileau-Narcejac, conhecida pelos seus romances policiais. 
 
Trata-se da segunda longa-metragem de Georges Franju, co-fundador da Cinemateca Francesa com Henri Langlois em 1936, e é uma adaptação do romance homónimo de Jean Redon publicado em 1959. A história debruça-se sobre as tentativas desesperadas de um cirurgião plástico em restaurar o rosto da filha, desfigurada num acidente automóvel e dada desde então como desaparecida. 
 
Numa história oral organizada por Delphine Simon-Marsaud para a Cinemateca Francesa em 2022 e retirada de diversas fontes e entrevistas, Franju disse que “eu queria trabalhar com Boileau e Narcejac por uma razão muito precisa, não confessada a Brasseur e Borkon, e vão perceber porquê. No primeiro período do livro policial, o herói era o polícia ou então um seu semelhante, um detective ou um jornalista a colaborar com a polícia.” 
 
“Com o Cavaleiro Dupin, Sherlock Holmes e Rouletabille,” continuava Franju, “estávamos do lado da lei. Noutra orientação, o herói podia ser o fora-da-lei. Com Arsène Lupin, Fantômas e toda a série negra dos gangsters americanos, estávamos do lado do criminoso.” 
 
“Boileau e Narcejac,” terminava o realizador francês, “não estão nem do lado do polícia, nem do lado do criminoso, eles estão do lado da vítima. Aí está a razão por que recorri a eles: queria que a personagem dominante em Olhos Sem Rosto fosse a vítima.” 
 
As sessões do mês de Maio contam com apresentações em vídeo de Cauby Monteiro, Pedro Fávaro e Fernando Costa, integrantes da produtora de cinema brasileira Asilo Febril. Para Olhos Sem Rosto, a apresentação ficará a cargo de Cauby Monteiro. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Apresentação de "A Noite do Demónio", por Pedro Favaro

Night of the Demon (1957) de Jacques Tourneur



por João Palhares

Quem foi Jacques Tourneur? Entre as muitas formas que existem para tentar responder a essa pergunta, a melhor, no caso do franco-americano, talvez seja mesmo dar-lhe a palavra. “Eu fui assistente primeiro,” disse ele a Patrick Brion e Jean-Louis Comolli[1], “depois montador. Percebi depressa que mesmo que se seja um bom assistente, temos poucas hipóteses de nos tornarmos realizadores. Aprendi então montagem em Berlim porque me queria absolutamente tornar cineasta, e é bem mais fácil passar de montador a realizador do que virar cineasta depois de se ter sido assistente. Sabem que um assistente muito bom não é necessariamente um bom cineasta e, vice-versa, um realizador não tem as qualidades de organização e precisão de um bom assistente. Um cineasta deve ser sempre um bocado um... inventor. Eu montei quatro ou cinco filmes, os maiores filmes do meu pai: Les Gaités de l’Escadron, As Duas Órfãs, Accusée... levez-vous! e mais uns quantos de cujos títulos me esqueci. Emile Natan, que nessa altura era o chefe, propôs-me então (com uma «cunha» do meu pai) o meu primeiro filme. Eis como comecei.” 

O pai de Jacques Tourneur, nascido Jacques Thomas, era Maurice Tourneur, cineasta francês nascido em 1876 e que trabalhou também na Alemanha e nos Estados Unidos durante a era do cinema mudo, terminando a carreira de novo em França. Viveu quase noventa anos e tem perto de cem créditos em seu nome, tendo sido considerado por Clarence Brown, seu assistente de realização e montador em inúmeros filmes, tão importante para os cineastas americanos como D.W. Griffith. “O meu pai tinha uma particularidade que não estava muito disseminada na altura,” disse Tourneur a Bertrand Tavernier[2], “era apaixonado por todas as investigações científicas, médicas e filosóficas. A biblioteca dele era inacreditável. Ele seguia de forma muito minuciosa todas as descobertas da psicanálise. Foi em casa dele que eu descobri Freud, Jung, Adler ou Havelock Ellis. Eu nunca leio romances. Apenas ensaios, tratados científicos. É muito mais apaixonante.” 

Foi graças a pessoas como Brion, Comolli e Tavernier, mas também Chris Wicking, Pierre Guinle, Simon Mizhari, Philippe Bernert, Charles Higham, Joel Greenberg, Joel E. Siegel, Eric Leguèbe, Jacques Manlay e Jean Ricaud, que hoje sabemos que Tourneur, para se proteger dos produtores e dos técnicos, cortava totalmente o som quando os actores deixavam de falar e se dirigiam para algum sítio abrindo uma porta ou subindo escadas, para haver silêncio completo nessas situações, que iluminava as cenas de forma muitíssimo cuidada e deliberada para permitir que os actores interpretassem sem distracções e quase intimamente, quase em segredo, induzidos pela luz baixa, levando-os às vezes para os locais mais sossegados dos estúdios para poderem ensaiar, que sonhou com um cinema sem estúdios, sem teatro, sem cenas, sem quarta-parede, planos gerais, planos médios “e essa porcaria toda”[3], que achava que os melhores filmes que tinha realizado eram I Walked with a Zombie, Stars in My Crown e O Arrependido, com menções ainda para A Pantera, A Noite do Demónio, O Facho e a Flecha, O Expresso de Berlim, Canyon Passage e Wichita, e que quis a dado momento que a Hammer lhe produzisse “o verdadeiro filme de terror”, que para ele nunca tinha sido feito, sobre a guerra entre os vivos e os mortos. 

Este filme, nunca realizado por ele, fosse em Inglaterra, na França ou nos Estados Unidos, iria chamar-se “Whispers in a Distant Corridor”, e numa das fases de desenvolvimento contava com o magnata Howard Hughes, o terceiro homem mais rico do mundo, e um poeta galês chamado Richard Burton como personagens. Depois de contactar o M.I.T., a Duke University, o Cal Tech e outras universidades americanas e europeias, Hughes incumbia Burton de procurar uma casa assombrada na Escócia para lhe provar que os fantasmas não existiam. Com quatrocentos homens de batas brancas, equipados com computadores de última geração, aparelhos de infra-vermelhos, microscópios acústicos, geradores, gravadores e casas-de-banho portáteis, eles conseguiam finalmente contactar fantasmas e descobriam que esses fantasmas queriam ajudar a humanidade. Abriam também, no entanto, uma brecha e o mundo a três dimensões e de uma só realidade como o conhecemos era invadido por mundos paralelos e pelo “exército dos mortos”. 

Jacques Tourneur acreditava no sobrenatural. Como acreditou Victor Hugo, depois de participar em sessões espíritas organizadas pela Madame Delphine de Girardin, durante o seu exílio na ilha de Guernsey, no Canal da Mancha. “There are more things in Heaven and Earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy,” responde o príncipe dinamarquês ao amigo na quinta cena do primeiro acto de Hamlet, de William Shakespeare, precisamente quando Horatio lhe diz que não acredita em fantasmas. Em A Noite do Demónio, Dana Andrews interpreta um psicólogo céptico e muito prático que é testado e contradito em todas as ocasiões durante a sua investigação e que só mesmo perto do final do filme é que se convence e se consegue livrar do pergaminho amaldiçoado e espoletar outro dos finais sintéticos e fabulosos de Tourneur, para juntar aos de Canyon Passage, Anne of the Indies, Encontro nas Honduras, Wichita, Os Fabricantes do Medo ou Timbuktu, e que só por si mereciam um grande estudo, tal como os de Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni e John Carpenter. Quantas vezes ou por quanto tempo é que temos de olhar para um corredor até começar a vislumbrar o abismo, esse tal que se diz que nos olha de volta mesmo nos olhos? Dana Andrews, perdido nos seus pensamentos enquanto procura o seu quarto de hotel, imagina ou ouve mesmo uma canção antiga enigmática e fundadora, olha uma e várias vezes para os corredores e até nós pensamos ver sombras ou ouvir sussurros distantes. Pensamos numa epígrafe encontrada no livro fundamental de Chris Fujiwara sobre Tourneur, atribuída a René Descartes. “Não há indicações conclusivas de que a vida acordada possa ser distinguida do sono.” Faz-nos lembrar o mais poético e desesperado “Is all that we see or seem / but a dream within a dream,” de Edgar Allen Poe. As luzes apagam-se e ficamos sozinhos, a fitar as imagens que criámos para nos atormentarmos a nós próprios sob o doce encanto dos pesadelos e que não conseguimos deslindar: um puxão inesperado para dentro duma sala pequena e lotada. Carne solta, pele e músculos saídos. Um crânio a descoberto. Visões em relâmpagos e pouco nítidas que nos fitam quando avançamos num corredor enorme e desolado. E recuamos, sem querer saber se há lá alguma coisa ou não. Sim, “maybe it's better not to know.” E os fantasmas não existem.

[1] in «Cahiers du Cinéma» nº 181, Agosto de 1966.
[2] in «Positif» nº 132, Novembro de 1971.
[3] «Cahiers du Cinéma» nº 181.



domingo, 12 de maio de 2024

343ª sessão: dia 14 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“A Noite do Demónio” de Jacques Tourneur, no cineclube 
 
Este mês de Maio, o Lucky Star – Cineclube de Braga promove um ciclo dedicado a cinema de terror realizado na Europa, com obras do cineasta britânico Terence Fisher, o franco-americano Jacques Tourneur, o francês Georges Franju e o italiano Dario Argento. As sessões realizam-se sempre às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “Europa Terror Expresso - Clássicos do terror europeu”, continua terça-feira à noite com a exibição de A Noite do Demónio de Jacques Tourneur. O filme centra-se nas investigações do psicólogo norte-americano John Holden, que viaja para Inglaterra para assistir a uma convenção sobre fenómenos parapsicológicos quando é informado da morte em circunstâncias misteriosas de um amigo, o Professor Harrington, que planeava expor as actividades de uma seita satânica. 
 
Jacques Tourneur foi um cineasta franco-americano que fez o essencial da sua carreira em Hollywood, embora tenha também trabalhado em França, Itália e Inglaterra. Filho do ilustrador e cineasta Maurice Tourneur e da actriz Fernande Petit, nasceu na cidade de Paris em 1904, e faleceu em Bergerac em 1977. Realizou mais de trinta longas-metragens, devendo-se contar ainda as suas curtas-metragens e o trabalho que fez para a televisão norte-americana. 
 
Na entrada sobre A Noite do Demónio no seu dicionário de cinema, revisto e republicado em dois volumes no final de 2022, o crítico e historiador francês Jacques Lourcelles escreve que “Tourneur regressa à veia das produções Val Lewton, acrescentando-lhe mesmo um aumento de sobriedade, uma inquietude mais gélida, mais abstracta, mais refinada e ainda mais impressionante.” 
 
“Envolto em cepticismo,” continua Lourcelles, “o herói, Holden, vai ver as suas certezas a cair uma a uma, durante um trajecto fantasmagórico que no fim o deixa arquejante e aturdido, não acreditando já mais na ciência do que na magia negra, não acreditando mais no que quer que seja senão nas suas dúvidas, que já não quer de todo tentar esclarecer.” 
 
As sessões do mês de Maio contam com apresentações em vídeo de Cauby Monteiro, Pedro Fávaro e Fernando Costa, integrantes da produtora de cinema brasileira Asilo Febril. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Apresentação de "As 2 Faces do Dr. Jekyll", por Fernando Costa

The Two Faces of Dr. Jekyll (1960) de Terence Fisher



por António Cruz Mendes

Terence Fisher realizou dezenas de filmes protagonizados por uma vasta galeria de conhecidos monstros: Frankenstein, Drácula, o Fantasma da Ópera, a Múmia… Desvalorizados pela crítica quando estrearam, houve quem viesse mais tarde a reconhecer a sua qualidade. 
 
Em As duas faces do Dr. Jekyll, Terence Fisher trouxe para a tela dos cinemas a personagem da bem conhecida novela O Médico e o Monstro. No entanto, o argumento de Wolf Mankowitz é estranho à história escrita por R. L. Stevenson. Nesta, só há protagonistas masculinos mas, no filme, a mulher tem um papel fundamental e, tal como sucede noutras obras de Fisher, o horror associa-se ao erotismo. Muitos recordarão por certo, a volúpia com que, nos seus filmes, jovens donzelas oferecem o seu pescoço aos dentes do Conde Drácula... Neste caso, grande parte da acção decorre em dois cenários contrastantes: o ambiente do laboratório do Dr. Jekyll, sombrio, austero e monocromático, e o da Esfinge, um cabaret onde as cores explodem e reina a liberdade e a devassidão. Estes dois mundos espelham-se no rosto dos protagonistas. O Dr. Jekyll e o Mr. Hyde são encarnados pelo mesmo actor, mas Paul Mason, quando assume o papel do primeiro, aparece-nos com uma cabeleira e sobrancelhas postiças, uma fácies torturada e o rosto sob uma pesada maquilhagem e, quando encarna o segundo, surge-nos despido de todos esses adereços, livre, espontâneo, de olhar fulgurante e sorriso aberto. 
 
O conflito interior do Dr. Jekyll com o seu alterego, Mr. Hyde, tem sido por vezes entendido como exemplificando aquele que opõe o Id ao superego. Para Freud, o Id, fonte de impulsos e desejos inconscientes, busca o prazer imediato. É irracional e amoral. O superego, pelo contrário, encarna os valores socialmente aceites e funciona como um juiz da acção humana. O conflito entre ambos é gerido de uma forma apenas parcialmente consciente pelo ego, que obedece ao “princípio da realidade”, procurando minimizar todas as consequências negativas que possam advir da busca do prazer. Embora a novela de Stevenson tivesse sido escrita muito antes de Freud ter enunciado a sua teoria psicanalítica, esta tese pode corresponder ao facto de, nela, Mr. Hyde ser descrito como um tipo impulsivo e bestial, mas também como sendo muito baixo, de uma altura muito inferior à do Dr. Jekyll, o que se explicaria por o seu ser ter vivido sempre reprimido, impedido de se exercitar livremente. 
 
No filme de Terence Fisher, apesar de Mr. Hyde nos aparecer sob uma forma de um homem atraente e bem-parecido, essa interpretação também é admissível. O diabo tem de saber ser tentador. Porém, As duas faces de Dr. Jekyll pode sugerir-nos outras leituras. Há nele uma nota de crítica social que importa sublinhar, uma denúncia da hipocrisia da puritana sociedade Vitoriana, da qual a Esfinge nos revela uma das suas faces ocultas. Quando Hyde quer conhecer os bas fonds da sociedade inglesa, é Paul Allen, um gentleman na sua aparência, que lhe serve de guia. E pode ser visto ainda como um caso de crime passional. Apesar do seu cinismo e da sua hipocrisia, Kitty está apaixonado por Allen e rejeita tanto os pedidos de ajuda de Jekyll, como os avanços amorosos de Hyde. E este, que a estupra e assassina, acaba por ser o instrumento da vingança de Jekyll. Será, talvez, a necessidade imperiosa de a realizar o que pode explicar que, no conflito interior que o consome, acabe por ser Hyde a levar a melhor. 
 
Enfim, na novela de Stevenson, o honrado Jekyll suicida-se porque percebe que essa é a única forma que lhe permite liquidar o brutal e sádico Hyde que o habita. No filme de Terence Fisher, o final fica em aberto. Diante dos olhos da polícia, Jekyll e Hyde revelam-se como uma só pessoa, mas o autor material dos crimes cometidos praticou-os contra a vontade do homem que têm diante de si. Como irá lidar a Justiça com o seu caso?



domingo, 5 de maio de 2024

342ª sessão: dia 7 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“As 2 Faces do Dr. Jekyll”, para ver na biblioteca 
 
Este mês de Maio, o Lucky Star – Cineclube de Braga promove um ciclo dedicado a cinema de terror realizado na Europa, com obras do cineasta britânico Terence Fisher, o franco-americano Jacques Tourneur, o francês Georges Franju e o italiano Dario Argento. As sessões realizam-se sempre às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “Europa Terror Expresso - Clássicos do terror europeu”, começa terça-feira à noite com a exibição de As 2 Faces do Dr. Jekyll de Terence Fisher. Baseado no célebre livro O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, o filme troca as voltas à história original e apresenta-nos um Dr. Jekyll bem mais insípido e um Sr. Hyde nada monstruoso fisicamente mas antes esbelto e muito bem sucedido socialmente. 
 
Fisher nasceu a 23 de Fevereiro de 1904, em Maida Vale, e faleceu em Twickenham a 18 de Junho de 1980, aos oitenta anos. Fez perto de sessenta filmes, sendo mais conhecido pelos que realizou para a produtora Hammer, fundada em 1934 por William Hinds e James Carreras, e talvez particularmente pelos ciclos dedicados às personagens do conde Drácula e do barão Frankenstein, interpretadas por Christopher Lee e Peter Cushing. 
 
“O estilo de Fisher é um estilo clássico, equilibrado, por vezes um pouco lento,” escreveu o crítico e historiador francês Jacques Lourcelles sobre o cineasta britânico no seu dicionário de cinema. “Desprovido de exibicionismos e de insistência, ele vai no entanto até ao limite do que se podia tentar, na altura em que cada um dos filmes foi realizado, no domínio do terror visual.” 
 
Falando precisamente sobre As 2 Faces do Dr. Jekyll, de 1960, o crítico espanhol Jesús Cortés escreveu em 2011 que “a variação acometida por Terence Fisher sobre uma das grandes novelas de finais do século XIX, O Médico e o Monstro, escrita por Robert Louis Stevenson em 1886, chega no momento de máxima criatividade do grande cineasta inglês, coincidindo com o apogeu ou o equador dos ciclos sobre outras personagens míticas da literatura fantástica.” 
 
As sessões do mês de Maio contarão com apresentações em vídeo de Cauby Monteiro, Pedro Fávaro e Fernando Costa, integrantes da produtora de cinema brasileira Asilo Febril. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Dina e Django (1981) de Solveig Nordlund



por Estela Cosme

Dina é jovem, sonhadora e meiga, mas sobretudo é rebelde e destemida. Leva ao peito uma chave, tendo sempre consigo o único acesso ao seu mundo interior. Embora esteja apenas a começar a vida, o universo de Dina é bem mais rico que os senhorios da casa onde mora. 

Pouco depois de a conhecermos, vemos Dina de olhos abertos, inquieta numa noite calma, deixando o conforto da cama da avó pela frieza do chão da casa de banho, onde finalmente pode partilhar os seus pensamentos. É através do seu diário, um dos seus poucos pertences nesta casa de estranhos, que obtemos a pista mais importante para desvendar o destino de Dina. 

"Lisboa, 17 de Março de 1974". 

Dina é como todas as jovens da sua idade, com uma tremenda ânsia de experienciar a vida, impaciente por expandir o seu mundo para fora do diário, para fora da cozinha da avó, para fora da janela da escola. O que ela não sabe é que em breve uma rebelião estará à porta do seu liceu no Largo do Carmo. Mas Dina não espera e põe em marcha a sua própria revolução. 

É comum que na nossa sociedade as vivências de adolescentes sejam subestimadas, postas de parte como consequências inconvenientes do crescimento. Um sobressalto em alto mar antes da chegada a bom porto. Mas o filme de Solveig Nordlund mostra precisamente o contrário, focando-se numa história que tem tanto para contar como a de um adulto, inclusive em tempos de mudança. Dina emerge como uma ligação entre o passado e o futuro, ilustrando o quão difícil é viver no intermédio. Pior ainda quando se está a tentar estabelecer uma individualidade, sobretudo uma que resista a um sistema político opressivo. 

A rebeldia de Dina é discreta numa ditadura incessante e cruel, e nada parece causar-lhe grandes problemas, à exceção de uma camisola. É na atenção que os homens mais velhos lhe prestam que ela encontra a sua forma de escapar à monotonia da adolescência, o que lhe trará consequências nefastas. Mas o amor está ao virar da esquina. E os tanques também. 

A vida de Dina muda radicalmente quando conhece Django, tão misterioso como o seu nome, um enigma de casaco de cabedal, com promessas de um amor que ela só conhece das bandas-desenhadas. O começo é o típico mar de rosas até que Django se mostra cada vez mais possessivo. Enquanto as ruas da cidade se enchem de esperança e alívio pelo fim da brutalidade do regime findado, o amor de Dina e Django azeda e complica-se, tornando-se não só violento mas também inquebrável, com um pacto de sangue que manchará as suas vidas para sempre. 

A revolução de Dina e de Django é difícil de presenciar, sobretudo quando entram numa espiral de criminalidade que não se fica apenas pelos roubos e sequestros. É inquietante ver quando Django esconde num cobertor uma espingarda, um dos símbolos da revolução de Abril, desta vez sem cravo, uma mera arma para perpetrar os seus crimes. É ainda mais doloroso ver quando é usada, num momento de pânico, não só por ele, mas também por Dina, já não mais inocente, nem perante a lei nem perante a sua própria consciência. 

Enquanto dorme, Dina agarra a chave que leva ao pescoço. Agarra também a sua ligação ao passado para poder escapar ao presente. Comete por isso mais um ato de rebeldia, tentando assim evitar um destino trágico. Quebra então a sua submissão a Django, mas é tarde demais, e a sua adolescência chega a um fim precoce demais. 

As palavras da sua avó ecoam enquanto vemos o triste desfecho de Dina: “O mais importante é o amor.” Será verdade? 

É o amor que leva Dina algemada a um destino trágico, um efeito da nova liberdade das mulheres, mas também castigo da ditadura dos homens. Vemos a injustiça de um presente aprisionado enquanto se grita por liberdade nas ruas. A sua revolução é uma sem cravos. 

Dina aprende a lição com uma pena demasiado pesada: não há amor sem liberdade. E essa é a chave que devemos levar sempre ao peito.